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Seriedad y ritmo en los compases, Monografías, Ensayos de Lengua y Literatura

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Tipo: Monografías, Ensayos

2023/2024

Subido el 28/06/2024

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¡Descarga Seriedad y ritmo en los compases y más Monografías, Ensayos en PDF de Lengua y Literatura solo en Docsity! UNIVERSIDADE DE SÁO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÉNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUACÁAO EM LITERATURA PORTUGUESA RODRIGO LOBO DAMASCENO Situacáo do autor na poesia moderna: Fernando Pessoa e Ezra Pound (Versáo corrigida) Sáo Paulo 2015 UNIVERSIDADE DE SÁO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÉNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUACÁO EM LITERATURA PORTUGUESA Situacáo do autor na poesia moderna: Fernando Pessoa e Ezra Pound (Versáo corrigida) Rodrigo Lobo Damasceno Dissertacáo apresentada ao Programa de Pós-Graduacáo em Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da Universidade de Sáo Paulo, para a obtengáo do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Caio Márcio Poletti Lui Gagliardi De acordo, Sáo Paulo 2015 Resumo Esta dissertacáo propóe um estudo comparativo das obras críticas e poéticas de Fernando Pessoa e Ezra Pound, partindo da hipótese central de que a leitura conjunta dos seus textos proporciona um ángulo privilegiado de análise, tanto de seus procedimentos específicos quanto de alguns dos aspectos axiais da poesia moderna e das tensóes que os constituem. Focaliza, para tanto, as estratégias formais que os poetas utilizam na busca por uma espécie de despersonalizacáo poética (seja na escrita de poesia, seja em sua leitura e em sua crítica): os fenómenos da heteronímia e da persona. Como eixo organizador dessa leitura, encontra-se a relagáo dos dois autores com a tradicáo literária entendida como arquivo de escritos que caberia ao poeta contemporáneo (moderno e antimoderno) conservar e renovar, o que os faz assumir uma postura contrária á das manifestacóes mais severas das vanguardas, sobretudo do Futurismo italiano, com as quais polemizam. A tradicáo, supostamente morta pelos decretos vanguardistas, deve entáo reviver e retornar nas obras de Pessoa e de Pound - que encontram na crítica, na experiéncia da voz (da multiplicidade de vozes que funda e conforma a poesia) e na tradugáo os meios próprios para esse retorno. Os ideais de uma despersonalizacáo poética, cristalizados nos expedientes da persona e da heteronímia (mas postas em movimento também em suas traducóes e páginas críticas), sáo lidos aqui, portanto, como passos em busca da conservacáo e da renovacáo das vozes que vém da tradicáo. Situados num período de extremismos estéticos (nos quais eles também incorrem constantemente), Pessoa e Pound sáo lidos nessa dissertacáo como marcos em que a modernidade poética se realiza e ao mesmo tempo se trai, balizas em que o novo e o antigo tém suas definicóes borradas e em que a modernidade se define por meio de suas próprias indefinigóes e contradicóes. Palavras-chave: Fernando Pessoa, Ezra Pound, Poesia Moderna, Crítica Literária, Tradigáo, Tradugáo, Voz. Abstract This dissertation proposes a comparative study of critical and poetic works by Fernando Pessoa and Ezra Pound, based on the central hypothesis that the joined reading of their texts enables a privileged angle of analysis with respect to their specific procedures as well as to the axial aspect of modern poetry and its constituting tensions. As such, the present study focuses on the formal strategies utilized by the poets in their quest for poetic depersonalization (whether in their writing of poetry, or in their reading and critique): the phenomena of heteronymia and of persona. The organizing axis of this reading is framed within the relation of both authors to literary tradition understood as an archive of writings that is bestowed upon the contemporary (modern and anti-modern) poet for conservation and renovation, forcing them to assume a negative position towards the more severe vanguard manifestations, namely towards Italian Futurism. Tradition, supposedly dead at the hands of vanguard decrees, must therefore relive and return in the works of Pessoa and Pound - who find in criticism, in the experience of the voice (of the multiplicity of voices that founds and conforms poetry) and in translation the means by which it can return. The ideals of a poetic depersonalization, crystallized in the expedients of the persona and heteronymia (but set in movement also through translation and critical pages) are hence understood as crucial steps in the search for conservation and renovation of the voices that come from tradition. Situated in a period of aesthetic extremisms (from which they are never far themselves), Pessoa and Pound are read as milestones in which poetic modernity is effected at the same time as it is betrayed, where the new and the old have their definitions blurred, bringing about a definition of modernity that is composed by its very own indefiniteness and contradictions, Keywords: Fernando Pessoa, Ezra Pound, Modern Poetry, Literary Criticism, Tradition, Translation, Voice. Essa relacáo entre luto e interesse ou amor pelo morto é o que define certas figuras situadas na retaguarda da vanguarda, sobretudo a do antimoderno, no termo de Antoine Compagnon (inspirado por Roland Barthes) utilizado no primeiro capítulo da dissertacáo para ilustrar as posturas de Pessoa e de Pound. Nesse contexto, as análises propostas (de poemas e de reflexóes críticas e teóricas dos dois autores) procuram discernir os momentos em que a paixáo, o amor ou o afeto pelo morto se evidenciam, sobretudo em suas polémicas com os futuristas e em suas recorrentes imagens do poeta em sua biblioteca, agindo como um arqueólogo ou um filólogo, empenhado numa conservacáo amorosa (que náo necessariamente denota conservadorismo), ainda que aquilo que se conserva seja um cadáver. Mas é preciso repetir: eles náo desejam apenas ouvir a tradigáo, mas ressoá-la, para isso tornando-se, eles mesmos, vetores para a sua fala - posigáo que implica um elevado grau de despersonalizacáo ou de relativizacáo da identidade do poeta, posta em prática por Pound através do expediente das personae e ilustrada e potencializada por Pessoa em sua experiéncia heteronímica. Esse trabalho de despersonalizacáo, que é definidor das duas poéticas estudadas, tem como consequéncia comum, em ambas, uma infinidade de polémicas e de ataques a determinado modo de ler que, na visáo de Pessoa e Pound, marcava a crítica literária da época, devedora de procedimentos e vícios do século XIX. No segundo capítulo, sáo analisados tanto os ataques a uma certa crítica afeita á ideia de autoria como organizadora da obra (e das suas interpretacóes possíveis) quanto as propostas dos dois poetas para a sua superagáo - e que, no fim das contas, consistiria sobretudo numa acumulagáo de funcóes: o crítico será poeta, o poeta será crítico - pois só o poeta estaria ciente da quantidade de vozes alheias que estáo em jogo em determinado poema. O tema da voz, que perpassa toda a dissertacáo, é encarado mais detidamente no terceiro capítulo, no qual é apresentada uma reflexáo sobre essa posigáo medial do poeta, entre a tradicáo que ainda pode falar e a contemporaneidade que deve escutar. Por meio da análise de determinados poemas, parece possível discernir como Pessoa e Pound partem de uma interpretacáo platónica da figura do poeta (como mensageiro dos deuses) para, em seguida, operarem uma laicizagáo que substitui os deuses (ou a Musa) enquanto fonte da mensagem e da voz pelos poetas mortos, pela tradicáo. Nesse processo, 10 expedientes como a citacáo (uma “musa leiga”, como afirma Compagnon [2007, p. 79]), a ironia e a tradugáo se tornam fundamentais para a evocagáo - sáo elas as brechas por meio das quais as mensagens do morto podem chegar. Comum aos dois poetas, o trabalho da traducáo (tanto em suas manifestacóes reflexivas e teóricas quanto em sua realizagáo prática) parece ser o campo ideal para a observagáo de uma espécie de síntese que os temas da tradicáo (no que ela tem de morta e de amada), da crítica e da voz sofrem ao longo das obras de Pessoa e de Pound. Trata-se, a bem dizer, do método mais direto para abrir uma brecha de onde venha a mensagem (ou simplesmente a voz) de um morto - náo por acaso, ao comentar as suas traducóes de Propércio, Pound diz que o seu interesse, naquele trabalho, era trazer um homem morto de volta á vida (POUND apud XIE, 2001, p. 208). É este o tema do quarto capítulo, que busca ler Ezra Pound traduzindo e sendo traduzido e Fernando Pessoa traduzindo e fingindo que traduz, e descortinar as implicacóes desses processos para uma reflexáo acerca das ideias de obra original, bem como de autoria - pois para Pessoa e Pound, a figura do tradutor parece se confundir com a do autor, movimento cuja consequéncia foi sintetizada por Octavio Paz ao dizer que através dele se caminha para a “(...) desaparición del autor” (PAZ, 1974, p. 107). Analisar como Pessoa e Pound pensaram a traducáo e como traduziram e foram traduzidos é um dos modos mais intensos e diretos de entrar em contato com a problemática da despersonalizacáo do poeta moderno - consciente disso, talvez seja este o motivo pelo qual Augusto de Campos tenha se utilizado da terminologia dos dois autores para definir a sua relagáo com a tarefa tradutória: “Traducáo para mim é persona. Quase heterónimo. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor” (CAMPOS, 1988, p. 7). 1 Na retaguarda da vanguarda “É no seio dessa condigáo comum que o presente se torna o lugar de um saber: sem curiosidade verdadeira nem paixáo pelo atual nenhuma memória do passado pode ser viva; inversamente, a percepcúáo do presente se atenua e se empobrece quando se apaga em nós essa presenga, muda mas insistente, do passado.” Paul Zumthor, A imaginacáo crítica. 1 - Ezra Pound: luto e luta. Num dos seus ensaios sobre as relacóes ambíguas entre a modernidade e a literatura moderna, reunidos no volume Os antimodernos, o crítico Antoine Compagnon resgata uma curiosa declaracáo de Roland Barthes, datada de 1971, na qual o teórico francés assume e explica a sua singular posigáo no debate em torno do modernismo e da vanguarda. Barthes, relembra Compagnon, dizia situar-se “na retaguarda da vanguarda” (BARTHES apud COMPAGNON, 2011, p. 18). E logo esclarecia: “(...) ser da vanguarda é saber o que está morto; ser da retaguarda é ainda amá-lo” (Idem, ibidem)1. Segundo Compagnon, esta posicáo de retaguarda em relagáo á vanguarda define “o antimoderno como moderno, incluído no movimento da história, mas incapaz de concluir seu luto pelo passado” (COMPAGNON, 2011, p. 18)2. 1 “C'est pourquoi je pourrais dire que ma propre proposition historique (il faut toujours s'interroger la-dessus) est d'étre a l'arriére-garde de l'avant-garde: étre d'avant-garde, c'est savoir ce qui est mort; étre d'arriére-garde, c'est l'aimer encore (...)” (BARTHES, 2002, p. 1038). 2 No seu livro O momento futurista, a crítica norte-americana Marjorie Perloff refere-se á4 mesma declaragáo, embora náo cite o mesmo trecho e afirme, equivocadamente, que a entrevista data de 1975: “Jaime le romanesque”, observou Roland Barthes numa entrevista em 1975, “mais je sais que le Roman est mort' (PERLOFF, 1993, p. 20). A interpretasáo de Perloff é muito distinta e, em certa medida, oposta á de Compagnon, já que ela observa, nesta declarasáo, “a nossa própria ánsia pós- 12 sade may speak, brings them blood: a neat metaphor for translation (...)” (KENNER, 1991, p. 360)3, Portanto, esse luto náo se completa porque talvez nem seja necessário superá-lo - e náo porque a morte possa ser evitada, mas porque ela náo é o bastante para impedir o convívio entre o que está morto e o que segue vivo, “What thou lovest well remains/ the rest is dross/ What thou lov'st well shall not be reft from thee/ What thou lov'st well is thy true heritage” (POUND, 1996, pp. 540- 541)1, escreve Pound no seu “Canto LXXXI” - agora relacionando a permanéncia, a sobrevida, áquilo que se ama. Entáo a resisténcia - a luta - poundiana que permite o já referido convívio entre o morto e vivo (o que náo implica a superacáo ou a negagáo do luto, mas justamente a vivéncia e a convivéncia dentro dele) é encarada, portanto, sobretudo como uma luta amorosa, assim como propunha Roland Barthes. Mas, curiosamente, é na história e na tradigáo portuguesa que Pound encontra a imagem definitiva dessa espécie particular de relacáo entre o passado e O presente, entre o que vive e o que morre - e da importáncia do amor e do afeto nessa relacáo. No seu “Canto XXX”, o poeta norte-americano retoma o caso do amor entre Pedro e Inés, que conheceu através de Camóes, e escreve: Time is the evil. Evil. A day, and a day Walked the young Pedro baffled, a day and a day After Ignez was murdered. Came the Lords in Lisboa a day, and a day In homage. Seated there dead eyes, Dead hair under the crown, 3 O tema da tradugáo será aprofundado no quarto capítulo da dissertagáo. 4 “O que amas de verdade permanece,/ o resto é escória/ O que amas de verdade náo te será arrancado/ O que amas de verdade é tua heranga verdadeira” (POUND, 1983, p. 202) é como traduzem, em conjunto, Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos. 15 The King still young there beside her (POUND, 1996, pp.147-148)5. O rei, neste sentido, é como Barthes (e é como Pound, logo se vé): sabe o que está morto, a rainha, mas ainda assim a ama - em termos freudianos, a libido que liga o rei á rainha morta náo se retira, apesar da morte. E essa relacáo entre luto e amor, que em Compagnon e Barthes é programaticamente proposta e que em Pound se manifesta imageticamente, seja em sua poesia ou em seu trabalho teórico, foi sistematizada por Freud nos seguintes termos: Entáo, em que consiste o trabalho realizado pelo luto? Creio que náo é forcado descrevé-lo da seguinte maneira: a prova de realidade mostrou que o objeto amado já náo existe mais e agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligacóes com esse objeto. Contra isso se levanta uma compreensível oposigáo; em geral se observa que o homem náo abandona de bom grado uma posicáo da libido, nem mesmo quando um substituto já se Ihe acena (FREUD, 2011, p. 49, grifo meu). Daí náo surpeender o fato de que William Harmon anote, sobre este “Canto XXX”, justamente que “The presence of this royal corpse is a reminder of Pound's mingling of past and present, living and dead, in a parable (or travesty) of resurrection that indicates the powers of art and love against mortality” (HARMON, 1977, pp. 116-117, grifos meus). E essa espécie de mistura ou confluéncia entre passado e presente á qual Harmon faz referéncia é, muito provavelmente, o 5 Estes versos, traduzidos por Jorge de Sena, tornaram-se: "O tempo é o mal. Mal/ Um dia e mais dia/ Andava aflito o jovem Pedro,/ um dia e mais dia/ depois que Inés foi assassinada.// Vieram os grandes Senhores a Lisboa/ um dia e mais dia/ Prestar homenagem. Sentada lá/ olhos mortos, / Morto cabelo por debaixo da coroa,/ O Rei ainda jovem lá ao lado dela” (SENA, 2012, online). Décio, Augusto e Haroldo, que também verteram este canto para o portugués, compuseram os versos: “O tempo é o mal. O mal./ Um dia, e um dia/ Atónito caminha o infante Pedro/ um dia e um dia/ Depois que Inés foi morta,// E vém os nobres de Lisboa/ um dia, e um dia/ Em homenagem. Sentada ali/ olhos mortos,/ Cabelo morto sob a coroa,/ O Rei ainda jovem a seu lado” (POUND, 1983, p. 189). 16 fundamento central da teoria literária poundiana, sobretudo no que diz respeito á sua reflexáo acerca da tradigáo€: “All ages are contemporaneous. It is B.C., let us say, in Morocco. The Middle Ages are in Russia. The future stirs already in the minds of the few. This is especially true of literature, where the real time is independent of the apparent (...) (POUND, 1952, p. 8), escreveu em The spirit of romance. E este fundamento, como se sabe, define-se numa imagem, a do vortex, ponto dinámico para o qual se precipitam todas as ideias, toda a energia, todos os tempos”, No primeiro número da revista Blast, meio de divulgacáo das ideias e das producóes vorticistas editado em 1914, Pound afirma: "All experience rushes into this vortex. All the energized past, all the past that is living and worthy to live" (POUND, 1914, p. 153, grifo meu). Duas conclusóes a partir deste trecho: há um passado que náo vale a pena ser revivido, com o qual se deve romper - e ao qual Pound se volta com iconoclastia e violéncia (feito um vanguardista); há, no entanto, um passado que deve retornar, e cujo retorno deve ser feito por meio de uma reinvencáo, de uma crítica e de uma selecáo de aspectos e de tragos cuja validade para o presente possa ser comprovada pelos poetas contemporáneos - e ao qual Pound se volta com interesse e instintos de preservacáo (feito um antivanguardista). A evidéncia de que determinado passado ou determinada tradigáo deve viver só pode surgir a partir do momento em que esse passado é “ Deve-se ressaltar, ainda, que com a sua interpretacáo, Harmon acrescenta, como uma outra forca e um outro meio possível de resisténcia á morte e ao luto, a arte - além de também reconhecer a importáncia e a poténcia do amor neste trabalho. 7 Na sequéncia desse trecho inicial de The Spirit of Romance, Pound utiliza a sua ideia de convivéncia entre passado e presente para criticar o presente, condenando-o ao passado (em seu mau sentido, o passado que náo deve ser mantido), pois na literatura “(...) many dead men are our grandchildren's contemporaries, while many of our contemporaries have been already gathered into Abraham's bosom, or some more fitting receptacle” (POUND, 1952, p. 8). Essa posicáo crítica em relacáo ao presente é constante em sua obra - e náo custa lembrar que para Freud, ao contrário do que ocorre na melancolia, quando o próprio ego é rebaixado, “No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio” (FREUD, 2011, p. 53). 17 rupturas, mortes, renascimentos e sínteses parecem ser as marcas do período. O vortex poundiano pretende acolher todos esses tragos - reservando-se, no entanto, o papel principal de sintetizador de tendéncias, de poéticas e de tempos. Só assim, pois, poderia reunir, a um só tempo e no mesmo espago, a ruptura da vanguarda modernista e a preservacúo da tradicáo característica do modernismo antimoderno. 2 - Fernando Pessoa: luto e luta. Jerónimo Pizarro afirma que “Pessoa náo precisava de romper com a tradicáo; visava á síntese, náo á ruptura” (PIZARRO, 2009, p. 141) e faz-se uma pergunta que logo em seguida ele mesmo responde: Vanguardista? Modernista? Esta é a principal interrogagáo que suscita a poética sensacionista, que aceita certas “gestualidades' futuristas, como aceita certos topoi decadentistas, mas que se aproxima mais do modernismo de Pound, Eliot e Joyce, entre outros, do que das denegagóes e rasuras vanguardistas (Idem, p. 142). Se Compagnon já incluíra Pound entre aqueles autores afeitos ao ideário e ao procedimento que ele classifica como antimoderno, Pizarro, ainda que obviamente náo se utilize da terminologia do crítico francés, nota também em Pessoa essa afeicáo e essa afinidade. Náo se trata, naturalmente, de que Pessoa náo tenha praticado denegasóes e rasuras (praticou-as, por exemplo, com os saudosistas), mas de que a sua ruptura náo se deu num nível amplo o suficiente para se voltar contra a própria ideia ou instituigáo tradicional da arte: assim como a Pound, interessava-lhe uma revisáo, uma outra ordenagáo e uma nova relacáo com o antigo, muito mais que a sua mera supressáo programática. 20 Apoesia de Pessoa, bem como a de Pound, está repleta de indicagóes de que O passar, o correr e o fluir do tempo estáo relacionados com o que é mau, ou com o próprio Mal. A relacáo é semelhante áquela que aparece no “Canto XXX”, comentado mais acima. Por exemplo: O véu das lágrimas náo cega. Vejo, a chorar, O que essa música me entrega — A máe que eu tinha, o antigo lar, A crianga que fui. O horror do tempo, porque flui, O horror da vida, porque é só matar! (PESSOA, 1969, p. 718) Este horror diante do tempo que segue, marcado apenas por uma indiferenca frente áquilo que ele leva e destrói, foi a motivacáo para que Pessoa, no dizer de Finazzi-Agro, tentasse alcangar e criar “(...) em última análise, uma paragem do tempo, uma suspensáo - se bem que fictícia - do seu curso, quebrando a cadeia do “antes e do “depois”, delimitando (como magistralmente afirmou Eduardo Lourenco) um “espago intrinsecamente paralisado” (FINAZZI-AGRÓ, 1990, p. 257). Trata-se, portanto, de um luto que engendra, contra aquilo que ele significa (a perda), uma espécie particular de luta. Paralelo a isso - ou, antes, em funcáo disso - também aparece em Pessoa a figura do enlutado que resiste em aceitar a perda, cujo paradigma para Pound em seu canto é Pedro, aquele que ama e exibe o cadáver de Inez. Pessoa, a bem da verdade, trabalha num tom menor e menos dramático. No seguinte poema, por exemplo, registra a morte de um amigo, mas náo a sua perda: Morreste. Veio a noticia Ter com o meu ignoral-a. Velho amigo! Sem pericia Chorei sua sorte impropicia - O único mal é choral-a. Náo sabe descrer o forte? O sabio confia e faz. Morreste? Falhou-te a sorte. 21 Náo acredito na morte. Até a vista, rapaz! (PESSOA, 2004, p. 44). A afeicáo entre os amigos, neste caso, parece diminuir a fora da morte - e do tempo que traz a morte. Ainda mais explícito em sua relagáo com as posturas de Barthes e de Pound, lé-se noutro poema: “Eu amo tudo o que foi,/ Tudo o que já náo é” (PESSOA, 1969, p. 543). Nesse contexto, o artigo de Finazzi-Agró citado acima importa ainda mais porque recorda e comenta certo trecho do Livro do desassossego que, ao modo do crítico francés e do poeta norte-americano (e como já estes poemas confirmam), diz também da relacáo de afeto ou de amor entre o passado morto e o artista vivo. Escreve Pessoa, em nome de Bernardo Soares, que Como o presente é antiquíssimo, porque tudo, quando existiu, foi presente, eu tenho para as cousas, porque pertencem ao presente, carinhos de antiquário, e furias de colleccionador precedido para quem me tira os meus erros sobre as cousas plausíveis, e até verdadeiras, explicacóes scientíficas e baseadas. As várias posigóes que uma borboleta que vóa ocupa successivamente no espaco sáo aos meus olhos maravilhados varias cousas que ficam no espago visivelmente (PESSOA apud FINAZZI-AGRO, 1990, p. 259, grifo meu) A imagem do antiquário que, carinhosa ou amorosamente, trata dos objetos de um tempo ido é, talvez, a imagem ideal para a definicáo da postura de Pessoa frente á tradicáo - e, cabe dizer, serve também ao caso de Ezra Pound. Observe-se, afinal, que em Pessoa é o carinho - como, em Barthes (e em Pound), era o amor - que impede a completude do luto: a tarefa do antiquário - resgatar ou garantir a sobrevivéncia do antigo, ou a persisténcia do que está morto - é um trabalho que inevitavelmente envolve afeto e apego”. ? Vale recordar, neste ponto, a observacáo de Leyla Perrone-Moisés sobre o caráter afetuoso de grande parte da poesia de Pessoa: "É preciso lembrar, agora, algo que náo tem sido suficientemente dito: o Vácuo-Pessoa é pontualmente e constantemente habitado de afetos. Pessoa náo é apenas o que pensa; o que nele pensa está sentindo. O que ocorre á sua leitura é que sua inteligéncia é táo espetacular, e seu sentimento táo discreto, que tendemos a superestimar a primeira e a subestimar o segundo. Além disso, para o discurso crítico, é muito mais fácil (consubstancial, diria) mover-se no terreno do pensamento do que no do sentimento” (PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 138, grifo meu). Nota-se, nesta mesma segáo do capítulo “O Vácuo-Pessoa”, de Aquém do eu, além do outro, a relagáo 22 Pessoa com o Futurismo (ou com as ideias de dinamismo retiradas de Walt Whitman) sáo exemplos claros dessa adesáo seguida de rompimento. Partindo do fundamental trecho do Livro do desassossego já referido, Finazzi-Agroó intitula o seu breve artigo de “As fúrias de colecionador' - a invencáo do tempo em Fernando Pessoa”. É também uma opsáo possível e frutífera tomar como norte e como título a figura anterior, aquela do antiquário carinhoso - figura que denota o trato demorado, crítico mas compreensivo e respeitoso, com a antiguidade. Finazzi-Agró relaciona as duas figuras - colecionador furioso, antiquário carinhoso - ao trabalho do arqueólogo: “Arqueologia portanto (outro termo de cunho nietzscheano): regressáo a um tempo censurado pela História” (FINAZZI-AGRO, 1990, p. 290). O mesmo termo é facilmente encontrado na fortuna crítica e interpretativa poundiana: Richard Sieburth, por exemplo, afirma que “(...) The Spirit of Romance marks Pound's first sustained archaeological excavation of the Tradition of the New” (SIEBURTH, 2005, pp. 7-8). Considerando, no entanto, que o trabalho do poeta é o trabalho da língua e da escrita, talvez náo seja disparatado propor a substituicáo da figura do arqueólogo pela do filólogo - tal como ela é pensada, por exemplo, pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, para quem “(...) até mesmo uma análise superficial do seu método poderia tranquilamente provar” (AGAMBEN, 2005, p. 164) que a vanguarda é “indubitavelmente uma forma de filologia” (Idem, ibidem); pois esta “náo se dirige jamais ao futuro, mas é um esforco extremo para encontrar uma relagáo com o passado” (Idem, p. 163)11, E trata-se, afinal, de um esforco que demanda interesse e afetividade, algum nível de paixáo1?, 11 Antoine Berman, ao comentar a postura de Pound diante da história da tradusáo, da poesia e da crítica literária, escreve que “Toda modernidade institui náo um olhar passadista, mas um movimento de retrospecgáo que é uma compreensáo de si. Assim, o poeta-crítico-tradutor Pound 25 Essa busca por uma relacáo com o passado, táo evidente no propósito poundiano de “make it new”, é sintetizada por Pessoa na sua (de Ricardo Reis) conclusáo de que “Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta qualquer coisa por onde se note que existiu Homero” (PESSOA, 1974, p. 147), encontrando, para isso, a seguinte justificativa: “A novidade, em si mesma, nada significa, se náo houver nela uma relagáo com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novidade sem que haja essa relacáo” (Idem, ibidem) - com a qual dá, inclusive, um passo de considerável ousadia conceitual ao afirmar que mesmo a novidade, para ser admitida como tal, deve colocar-se numa relagáo com o passado: afinal, é somente em face dele que se pode constituir enquanto novidade. Nessa breve assertiva, Pessoa flerta com determinada visáo de texto que já implica uma considerável matizacáo da nogáo de autoria - afinal, pode-se dizer que, a partir daqui, todos os textos devem ter dois autores, sendo Homero um deles. A poeta norte-americana Rosemarie Waldrop afirmaria algo semelhante muito tempo depois: “A página em branco náo está em branco. As palavras sáo sempre de segunda-máo, diz Dominique Noguez. Nenhum texto tem apenas um autor. Quer estejamos conscientes disso ou náo, estamos sempre escrevendo sobre um palimpsesto” (WALDROP, 2011, p. 115, grifo meu). E encontrar ou mesmo meditava simultaneamente sobre a história da poesia, da crítica e da tradugáo” (BERMAN, 2002, p. 12). 12 Edward Said observa, utilizando-se do exemplo de Goethe, a mesma relacáo de dependéncia entre filologia e paixáo: “(...) ela se exemplifica admiravelmente no interesse de Goethe pelo islá em geral e por Hafiz em particular, uma paixdo devoradora que o levou á composicáo do Divá ocidental- oriental e que direcionou suas ideias posteriores sobre Weltliteratur (...)” (SAID, 2007, pp. 20-21, grifo meu). 26 compor este palimpsesto é, para utilizar o termo de Agamben, um trabalho de filologia13, Escreve Auerbach que a filologia surge quando uma civilizacáo “deseja preservar dos estragos do tempo as obras que lhe constituem o património espiritual” (AUERBACH, 1972, p. 11, grifo meu) - tempo este que Pound identifica ao Mal e que a Pessoa provoca horror; património este que suscita essa dedicacáo e essa atividade porque preserva interesse e valor afetivo. Contudo, o trabalho filológico que esses poetas praticam, embora também se paute na busca por nexos e sentidos ocultos que seguem rumo ao esquecimento ou á superagáo, náo é simplesmente uma conservacáo ou uma recuperacáo dos nexos e dos sentidos originais - muitas vezes, torna-se também uma apropriacáo e uma alteragáo, uma criagáo de novos nexos e novos sentidos, Auerbach observa que “Aquilo que somos, nós o somos por nossa história, e só dentro desta poderemos conservar e desenvolver nosso ser; tornar isso claro, de modo penetrante e indelével, é a tarefa da filologia do nosso tempo” (AUERBACH, 2007, p. 361), indicando, afinal, uma concepgáo histórica bastante distinta daquela expressa por Pessoa, por Pound e pelos vanguardistas e modernistas em geral. Como descreve Paz, para estes La oposición entre el pasado y el presente literalmente se evapora, porque el tiempo transcurre con tal celeridad, que las distinciones entre los diversos tiempos - pasado, presente, futuro - se borran o, al menos, se vuelven instantáneas, imperceptibles e insignificantes (PAZ, 1974, pp. 20-21) Se a cronologia poundiana, fruto dessa alteragáo do conceito de tempo que Paz observa nos autores deste período, permitia que o autor acreditasse que “All ages are contemporaneous” (POUND, 1952, p. 8), Pessoa, ao analisar as relacóes entre Cesário Verde e Guilherme Braga, propóe também a sua subversáo cronológica e 13 Significativos sáo os seguintes versos do próprio Ricardo Reis: “Assim quisesse o verso: meu e alheio/E por mim mesmo lido” (PESSOA, 2007, p. 100). 27 dedicacáo exclusiva a este aspecto termina por diminuir a tensáo existente entre os dois movimentos e os dois autores. O poeta e tradutor brasileiro Dirceu Villa, por sua vez, prefere considerar a ambiguidade dessa relacáo de forma mais direta, assumindo a sua centralidade. Para ele, o movimento de vanguarda londrino, em sua relacáo com o Futurismo, deve ser pensado como “(...) náo só um discípulo, mas um adversário (...)” (VILLA, 2011, p. 20). Villa propóe que esse caráter ambíguo seja discernido da seguinte forma: o vorticismo vincula-se á vanguarda italiana por meio de técnicas composicionais (este é o ponto de Perloff), mas afasta-se dele na medida em que náo propóe superasáo ou apagamento do passado e da tradicáo. O poeta brasileiro escreve que Pound náo (...) desejava fazer as obras do passado arder numa enorme pira sacrificial, na verdade, no que era praticamente o avesso dessa atitude, estabelecia um ABC repleto de autores de épocas passadas distantes (gregos arcaicos, poetas latinos antigos, as odes chinesas da antologia de Confúcio, trovadores medievais da Provenga, etc.), que atuasse de modo direto e revigorante na arte de seutempo (VILLA, 2011, p. 22), destacando, portanto, tanto a proximidade quanto a distáncia entre o poeta norte- americano e os artistas da vanguarda italianals, No que diz respeito á leitura das relacóes entre Fernando Pessoa e o Futurismo, é hoje bastante aceita uma visáo que póe em primeiro plano, mais do que a sua adesáo ao movimento, o seu problemático e resistente contato com ele. Termos como o já citado “Futurismo saudosista” tornaram-se fundamentais para pensar tais relacóes. Segundo Perrone-Moisés, mesmo no “Ultimatum”, texto que 16 Q poeta Jerome Rothenberg afirma algo semelhante em entrevista a Rodrigo Garcia Lopes: “(...) Ezra Pound, a quem tomamos como radical - estruturalmente radical a partir dos Cantos -, insiste em recuar o quadro temporal 8 expandi-lo horizontal ou culturalmente para uma série de momentos inaugurais (...). É isso que coloca Pound em conflito com Marinetti 8: os futuristas italianos: há uma história da tribo', como Pound chamou, mas curiosamente - naquela mente fascista — era a história de uma tribo muito maior do que nagóes 8: ragas privilegiadas nos levaram a crer” (ROTHENBERG, 2006, p. 204). 30 se enquadra num género marcadamente vanguardista e futurista (o manifesto), a recusa parcial de Pessoa aos preceitos e preconceitos do movimento italiano é evidente?”: E depois de uma grande exclamagáo “futurista” ('MERDA!”), o que Campos propóe para o futuro é uma retomada da grandeza passada: “Dai Homeros á Era das Máquinas, ó Destinos científicos! Dai Miltons á Época das Coisas Elétricas, ó Deuses interiores á Matéria!” (PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 155). Chamados ao passado semelhantes a esses podem ser encontrados ainda em seus poemas tradicionalmente associados ao Futurismo, todos eles atribuídos a Álvaro de Campos. Versos como “Canto, e canto o presente, e também o passado e todo o futuro/ E há Platáo e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas” (PESSOA, 1969, p. 306), da “Ode triunfal”, sáo recorrentemente lembrados como exemplos dessa retomada do passado no seio do Futurismo pessoano - mas é possível ir um pouco além: a própria composicáo de uma ode parece decorrer de uma incongruéncia entre Pessoa e os futuristas. Essa forma poética, marcadamente arcaica e tradicional, representa, segundo o poeta portugués, o triplo movimento que “náo é só a lei da ode, o fundamento eterno [var.: perene] da poesia lírica; é, mais, a lei orgánica da disciplina mental, o regulamento eterno da criacáo psíquica” (PESSOA, 1974, p. 289, grifo meu). Perceba-se que todos os vocábulos destacados indicam a inadequasáo da forma da ode ás propostas futuristas, Curiosamente, é também numa ode, a “E.P. Ode pour lelection de son sepulchre”, com que inicia “Hugh Selwyn Mauberley”, que Pound faz pouco caso de 17 Merquior discorda, afirmando que "(...) até aos finais da Grande Guerra, o pensamento de Pessoa partilhou de facto com o futurismo uma tendéncia-chave: a exigéncia de uma tábua rasa no plano cultural. O propósito de recomegar a partir do zero é o óbvio sentido da política cultural de reconstrugáo radical defendida no famoso 'Ultimatum', publicado no número único do Portugal Futurista (1917)" (MERQUIOR, 1989, p. 28); sua interpretacáo, no entanto, parece se basear numa leitura um tanto quanto literal do “Ultimatum”, que náo leva em conta o seu caráter claramente irónico, inclusive frente ao movimento futurista e aos seus próprios manifestos. 31 aspectos da vida moderna louvados pelos futuristas18, Dentre eles, destaque-se o automatismo, na imagem da pianola que suplanta o bárbito grego, e a guerra, apresentada como uma verdadeira devastacáo, sem qualquer sentido higiénico ou estético, como pretendia Marinetti. Na sua “Carta a Marinetti”, Pessoa também faz consideracóes negativas acerca do extermínio ou do sacrifício de povos e indivíduos, com o que certamente quer se referir á guerra. Sua crítica se baseia na sua obsessáo pela síntese - á qual, como ele mesmo escreve, “(...) nada deve faltar” (PESSOA, 1974, p. 303). Se nada deve faltar, náo deverá faltar também o passado e asua produgáo. O poeta portugués escreve, acerca do curso histórico, que “Na evolugáo náo encontramos uma linha regularmente ascendente; pelo contrário, O desenvolvimento processa-se de uma maneira violenta e cataclísmica, em que os ganhos sáo obtidos apenas por meio de perdas fundamentais” (Ibidem, p. 302) e refere-se, ao longo de toda a carta, á perda e á necessidade da recuperagáo - parece disposto, enfim, a assumir diante da história e da arte o papel de um restaurador ou, para utilizar a sua própria imagem, de um antiquário que carinhosamente preserva os antigos objetos. Como nota Finazzi-Agro, este é um Pessoa, enfim, conservador desse museu ou, melhor, coleccionador á Benjamin que, no fluxo temporal, isola instantes, “sensacóes mínimas”, “cousas pequeníssimas' fixadas na sua sucessáo descontínua e dotadas duma materialidade, duma autonomia, duma história próprias - objectos que se tém de coligir “furiosamente'”, na perspectiva de uma recomposicáo eventual, duma história utopicamente completa, duma lógica sempre futura e inacessível (FINAZZI-AGRO, 1990, p. 259). 18 É possível observar, no ámbito da poesia modernista, uma utilizacáo recorrente da ode sob o signo da paródia, tratando-se de subverter o seu caráter originalmente entusiástico ou laudatório. Um exemplo mais, a título de ilustragáo, é a “Ode” de e.e. cummings na qual o poeta trata de enfileirar vitupérios aos “doces velhinhos/ que governam o mundo” (CUMMINGS, 2012, p. 70), na tradusáo de Augusto de Campos. 32 comum que se desenvolve por métodos distintos e que alcanca resultados opostos: se Marinetti quer retirar o indivíduo de cena para, como explica na sequéncia do manifesto, voltar a atencáo do artista á matéria desprovida de psicologia, Pessoa deseja que, do desaparecimento do indivíduo, a psicologia pretensamente una do artista se despedace numa expressáo múltipla. Em resumo, o próprio Pessoa cifra esta relacáo numa sentencga - como é do seu costume - lapidar: “Nas obras cubistas e futuristas o que é interessante é o que elles querem realizar, náo o que elles realizam” (PESSOA, 2009, p. 296). A divergéncia é muito semelhante áquela que também é discernível na comparagáo entre a ideia futurista e a proposta de Ezra Pound. No caso deste, o trabalho de superagáo da individualidade expressiva, uma constante na obra do poeta norte-americano, em momento algum se volta contra a ideia de uma arte envolvida com a psicologia. O poeta afirma, inclusive, que “As artes nos fornecem dados de psicologia, referentes ao mundo interior do homem” (POUND, 1976, p. 65), vindo daí a sua importáncia para a vida social - pois, diz, fornecer os dados de psicologia é fornecer os dados para a ética. Náo é propriamente um equívoco reunir os nomes de Marinetti, Pessoa e Pound nesta tentativa de superagáo ou destruigáo do eu literário. Esta, aliás, é uma meta comum a diversos outros artistas contemporáneos seus - todos eles envolvidos com uma arte modernista e de vanguarda. É necessário, contudo, observar que este ponto de partida comum se desenvolve de maneira distinta nas obras do Futurismo e nas de Pessoa e Pound, quando o caráter antimoderno destes últimos se revela por meio da dissensáo frente ao programa da vanguarda. imaginário (falso) da expressividade egocéntrica que é posto em crise na literatura moderna, em razáo de uma subjetividade alargada que, ao contrário de anular, aumenta a consciéncia e a responsabilidade do escritor” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 167). 35 Tal dissensáo parece ser o resultado direto da incompatibilidade entre as posturas de Marinetti e de Pessoa e Pound no que diz respeito ao trato com a tradicáo. Essa proposicáo pode ser esclarecida com uma análise do texto “O poeta e a cultura”, composto por Pessoa na década de 1920. Como boa parte dos escritos teóricos e críticos pessoanos, trata-se de um texto breve e idiossincrático, retoricamente amparado no subterfúgio da enumeratio (recorrente em sua obra, e mesmo na de Pound) - e no qual o poeta trata de esclarecer os componentes e as dinámicas da inteligéncia, da erudicáo e da cultura. A imagem central deste texto de Pessoa é a de um poeta em sua biblioteca. Esta, recorde-se, também é a figura que aparece na proposigáo do manifesto de Marinetti. No entanto, se na composicáo futurista este poeta surge “(...) completamente avariato (...)'(MARINETTI, 1994, p. 82) e submetido, por medo, a uma certa lógica e a uma sabedoria, no ensaio de Pessoa a sua posicáo é distinta: o poeta, aqui, é um participante ativo nesta relacáo entre homem e biblioteca - destemido, nem um pouco avariado. Pessoa escreve que A cultura é um alimento mental, e o alimento, para que nutra, tem que ser assimilado. Assim o a quem chamamos um homem culto é aquele que tem a capacidade de assimilar cultura, de transmudar as influéncias culturais em matéria própria do seu espírito, e o que de fato adquire essas influéncias (PESSOA, 1974, p. 267, grifo meu), e esclarece que a sua visáo do homem em contato com a cultura, em sua biblioteca, é oposta áquela de Marinetti. Para este, a cultura apavora e esmaga o homem em sua própria individualidade, na qual ele tende a se enclausurar. Para Pessoa, no entanto, o que sobressai é uma conotagáo positiva para esta relacáo: a relacáo com a cultura, com a escrita e com a expressáo alheia e passada (acumulada nas bibliotecas e assimilada por meio do estudo ou de uma pesquisa poético-filológica) é o meio para o contato com subjetividades alheias - e o resultado deste contato 36 (ao menos para aquele indivíduo que, segundo o poeta, demonstra ter “capacidade de cultura” [Idem, ibidem]), é a superasáo da individualidade, a possibilidade de uma variagáo e de uma multiplicagáo da experiéncia e da expressáo artística. Outra vez: a resisténcia á individualidade é comum aos dois autores. Marinetti acha-a desinteressante. Pessoa, por sua vez, escreve que “Os dados diretos dos sentidos sáo, em si mesmos, necessariamente limitados, pois cada um de nós é só quem é: náo vé senáo com os próprios olhos, nem ouve senáo com os próprios ouvidos” (Idem, p. 266), também sublinhando o desinteresse desses dados para a composicáo de uma obra poética que supostamente deve fazer sentido para todos ou para muitos. Também em Pound é perceptível um posicionamento afinado com este que Pessoa expressa e ilustra: o estudo e a assimilacáo dos estilos alheios - por meio da leitura, mas principalmente por meio da crítica, da reescritura e da tradugáo - é o método ideal para a superacáo do dogma da individualidade e da expansáo da capacidade e do campo expressivos do poeta. Em Pound, de forma mais evidente do que em Pessoa, este método aparece como norteador na construgáo da sua própria obra: tradugóes em profusáo, reescrita de clássicos como Homero e Chaucer; tudo isso dá a justa medida da importáncia que a cultura - ou, mais propriamente, a tradicáo - tem para a poética poundiana, bem como evidencia o seu resultado, a saber, a desestabilizacáo da individualidade, a superagáo da figura do poeta como aquele que expressa sua subjetividade por meio de uma linguagem construída também subjetivamente. Na prosa crítica e teórica de Pound, bem como na de Pessoa, o conselho de que o artista jovem deve priorizar o contato, o estudo e a imitacáo dos antigos é recorrente. Ora diz que “Quanto ás “adaptacóes”, descobre-se que todos os antigos 37 Poetas-críticos “Quando o objeto é um texto, fundamentalmente o discurso crítico constitui a glosa: uma glosa ativa, que cria simultaneamente e por aí aquilo que ela explica, desdobra, manifesta, vivifica, carrega-se para nós de perfumes e de sabores de que temos necessidade para existir, restitui ao texto passado o potencial erótico que necessariamente, como texto, a seu tempo, ele retém. Na sua qualidade profunda, esse discurso éo inverso do discurso teórico, que ele nega. Nem assertiva, nem categórica, a palavra que inspira e sustenta a imaginacáo crítica entende permanecer em aproximacáo direta, náo sobre “o” mundo, mas sobre “este” onde estamos, mundo que somos, e que náo é um mundo de verdade, mas de desejo.” Paul Zumthor, A imaginacáo crítica. 1 - O objeto da crítica: o poeta ou o poema? O ataque ao eu literário, e a sua consequente destruicáo ou ampliagáo, objetivo comum a modernos convictos e a modernos contrariados (ou antimodernos), pode ainda ser visto, por tabela, como um ataque simultáneo á atividade da crítica literária e á sua funcáo, bem como aos seus métodos tradicionais. Mais uma vez, é Roland Barthes quem indica e explica, de forma sucinta, a relacáo inevitável entre a crítica e certa ideia de exclusividade autoral: Uma vez afastado o Autor, a pretensáo de “decifrar” um texto se torna totalmente inútil. Dar ao texto um Autor é impor-Ihe um traváo, é prové-lo de um significado último, é fechar a escritura. Essa concepcáo convém muito á crítica, que quer dar-se entáo como tarefa importante descobrir o Autor (ou as suas hipóstases: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra: encontrado o Autor, o texto está “explicado”, o crítico venceu; náo é de admirar, portanto, que, historicamente, o reinado do Autor tenha sido também o do Crítico, nem tampouco que a crítica (mesmo a nova) esteja hoje abalada ao mesmo tempo que o Autor (BARTHES, 2004, p. 63, grifo meu). 40 É bastante perceptível, nas páginas ensaísticas e críticas de Pessoa e de Pound, esta correlagáo entre a retirada da figura unívoca do Autor do centro da atividade literária e o desconcerto que atinge o trabalho do Crítico - sendo este mais um ponto de contato entre as poéticas e o pensamento literário de ambos. Esse ponto, como se verá, é fundamental para considerar tanto as relacóes dos dois poetas com a tradicáo literária, quanto certas atitudes de impessoalidade poética que estas relacóes possibilitam, tal como proposto ao fim do capítulo anterior por meio da imagem de um poeta que se despersonaliza em sua biblioteca, assumindo personalidades alheias que encontra no passado literário, Numa de suas frases mais conhecidas, Ezra Pound sentencia que “O mau crítico se identifica facilmente quando comega por discutir o poeta e náo o poema” (POUND, 1970, p. 80) - concentrando, nesta declaragáo, tanto a sua tendéncia para uma espécie de crítica da crítica, que pratica de forma recorrente e com bastante entusiasmo (e vez ou outra com viruléncia), quanto a sua aposta numa criagáo e numa leitura desvencilhadas da ideia de que a individualidade do autor seja a base para a composicáo e a apreciacáo ou interpretacáo do poema. Náo é nem um pouco difícil encontrar ideias análogas a esta na obra crítica de Fernando Pessoa. Por exemplo: numa carta direcionada a um crítico seu, Joáo Gaspar Simóes, o poeta define que uma das fungóes do crítico é “(...) estudar o artista exclusivamente como artista, e náo fazendo entrar no estudo mais do homem que o que seja rigorosamente preciso para explicar o artista” (PESSOA, 1946, p. 226)2* Em resumo, ao procurar explicar o artista ou falar do poeta, o 24 Sabe-se que o próprio Pessoa, noutros momentos de suas prosas reflexivas ou críticas, procura contrariar esta funcáo, sobretudo quando a análise se torna autoanálise, mas estas contradigóes podem ser lidas como lances irónicos e automistificadores típicos do jogo teatral que a questáo heteronímica pretende encenar - sendo o exemplo mais claro disso a célebre carta sobre a génese 41 crítico corre o risco de deixar escapar os outros artistas e os outros poetas que também falam em determinada obra. É preciso ressaltar, contudo, que as constantes polémicas e os seguidos ataques que os autores fazem aos críticos e á própria crítica náo implicam uma verdadeira assungáo da inutilidade da crítica (por mais que, vez ou outra, eles facam pouco caso da atividade) - e o fato destes poetas seguirem escrevendo páginas dessa natureza é a mais óbvia evidéncia disso, A própria comparagáo da escrita crítica dos dois poetas se justifica, em parte, pela centralidade que ela ocupa nas suas obra literárias: talvez menos evidente no caso de Pessoa, é bom recordar, como faz Ana Raquel Roque, que “(...) Fernando Pessoa foi, além de autor, um crítico notável” (ROQUE, 2010, p. 34) e ainda que, além disso, “(...) estreou-se e foi durante muito tempo conhecido apenas pelos seus ensaios críticos” (Idem, ibidem). No caso de Pound, é mais comum que a sua crítica náo seja negligenciada, já sendo assumida como fundamental para a sua obra e para a própria reflexáo acerca da crítica literária moderna?, dos heterónimos enderegcada a Adolfo Casais Monteiro. Sobre as inúmeras e recorrentes contradicóes teóricas de Pessoa, a análise de Jakobson pode ser bastante esclarecedora: “A obra do escritor portugués é uma arte 'essencialmente dramática”, cuja complexidade se acha submetida a uma estruturasáo integral. As supostas incoeréncias e contradicóes nos escritos poéticos e teóricos de Pessoa refletem em realidade o “diálogo interno” do autor, que ele mesmo busca transformar numa complementaridade dialética dos trés poetas imaginários, Alberto Caeiro e seus discípulos Ricardo Reis e Álvaro de Campos” (JAKOBSON, 1970, pp. 94-95). 25 T.S. Eliot, ao introduzir a célebre coletánea de ensaios de Pound que ele mesmo organizou (Literary Essays of Ezra Pound), escreve: “I hope, furthermore, that this volume will demonstrate that Pound's literary criticism ¡is the most important contemporary criticism of its kind” (ELIOT, 1985, p. Xx). Esse reconhecimento, ademais, é o suficiente para que a escrita crítica de Pound seja realmente discutida e também submetida a análises mais amplas. Michel Butor, por exemplo, escreve com dureza que “Em seus escritos críticos, ao lado das observasóes mais justas e mais preciosas, deparamo-nos constantemente com os mais graves erros de julgamento (especialmente no que concerne á literatura francesa); misturam-se constantemente a penetracáo mais aguda e a incompreensáo menos desculpável, a cultura mais precisa e aignoráncia” (BUTOR, 1974, p. 168) 42 diálogo que marca uma nova espécie de texto?8, Nos termos de Barthes citados logo acima, o filólogo náo penetra na obra em busca da sua origem, situada ao fundo, mas a deslinda em seus diálogos com esta tradigáo que retorna á superfície por meio do resgate que ela propóe. Para além disso, esse texto formado por um “tecido de citagóes, oriundas de mil focos da cultura” (BARTHES, 2004, p. 62) funciona como uma espécie de impedimento ou de barreira que náo permite ao escritor se expressar: em verdade, ele expressa por meio da expressáo alheia, passada. O que se percebe nos escritos de Fernando Pessoa e de Ezra Pound é que esse impedimento ou essa barreira náo sáo lamentados, antes encarados como princípio da escrita e mesmo como critério valorativo a ser aplicado ás obras de arte - quanto mais o autor aproveitá-lo, mais bem sucedido parece ser em sua producáo. Contudo, deve-se assinalar: nos casos de Pessoa e de Pound, ainda é o autor quem o aproveita. Marque-se aqui, portanto, uma distingáo entre os poetas e o teórico francés - pois, enquanto que este último aposta na morte do autor como meio para vivificar o leitor, aqueles, ainda que atraídos e mesmo apaixonados pela ideia e pela imagem de um leitor (como demonstrado no capítulo anterior), conduzem suas reflexóes de modo a transformar esse leitor, em momento posterior, num autor. Trata-se, portanto, de um diálogo travado em altíssimo nível, do qual participam apenas aqueles dotados de certo génio, capazes de passar da leitura á escritura?2?. Ressaltadas essas 28 Como se verá mais adiante, Pessoa e Pound salientam que a competéncia fundamental do crítico é a de reconhecimento e familiaridade com a tradigáo que é reconhecível e familiar também ao poeta - pressuposto que leva á natural conclusáo de que o crítico ideal é o poeta. 22 Tomando a afirmagáo de Marjorie Perloff segundo a qual “A morte do autor' nos anos do pós- estruturalismo significou também, é claro, a morte da teoria do génio, com teóricos sociais como Pierre Bourdieu voltando sua atengáo para o modo como a cultura cria a ilusáo de “génio” para as massas evidentemente ingénuas” (PERLOFF, 2013, p. 55), fica ainda mais evidente o trago que distingue e distancia Barthes, e a teoria francesa que lhe é contemporánea, de Pessoa e Pound, autores quase que obcecados pela ideia de génio e genialidade. 45 diferengas, resta a semelhanca fundamental: tanto para Pessoa e Pound, antes, quanto para Barthes, em seguida, o autor náo é dono de uma voz única que, solitária e imperativa, soa em suas páginas, expressando-se%, Deste modo, numa carta enderecada ao poeta Luís de Montalvor, Pessoa define, por meio de uma imagem, a imperfeicáo da obra na qual o autor aparece, conseguindo transformá-la em vetor de autoexpressáo: Há imperfeicóes e inacabamentos nos seus versos. Veem-se ainda entre as flores as marcas das suas passadas. Náo se deveriam ver. Do poeta deve ser o ter passado sem outro vestígio que a presenga das rosas. Para qué os ramos quebrados, ainda, e partido o caule das violetas? (PESSOA, 1974, p. 271). Ao poeta, portanto, cabe passar imperceptivelmente. Leyla Perrone-Moisés observa que esse tipo de impessoalidade só veio a ser teoricamente explorada e encarada positivamente sobretudo a partir da “(...) crise da nogáo de sujeito, nos anos 60 e 70, evidente na filosofia, na psicanálise, na linguística” (PERRONE- MOISÉS, 1998, p. 167), por figuras como o próprio Roland Barthes, muito embora já se tratasse de “um preceito poético desde meados do século XIX, com Poe, Baudelaire e, sobretudo, Mallarmé” (Idem, ibidem) - tendo se tornado, no comeco do século XX, um valor compartilhado entre quase todos os escritores-críticos do período, Para estes, apagar-se ou retirar a sua subjetividade do centro do poema é pór em relevo o próprio poema - ou, no termo que Leyla Perrone-Moisés aproveita de Octavio Paz, a própria linguagem: “Ao preconizar a impessoalidade do poeta, os escritores-críticos modernos propóem seu apagamento em proveito da linguagem” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 166). A crítica que Pound e Pessoa propóem e 30 E mesmo nesta semelhanga reside uma outra distincáo fundamental entre Roland Barthes e Pessoa e Pound, afinal, enquanto o teórico escreve que “(...) a escritura é a destruicáo de toda voz” (BARTHES, 2004, p. 57), os poetas, ainda que assumam a destruigáo da própria voz, náo propóem a destruicáo de toda voz - antes o contrário: a profileracáo de muitas vozes e a utilizagáo de quase todas as vozes sáo os seus métodos (este, aliás, é o tema do capítulo seguinte). 46 procuram fazer leva sempre em consideracáo essa distincáo entre o poeta e o poema, o autor e a linguagem - dando preferéncia, quase sempre, ao poema e á linguagem: “Para mim, escrever é desprezar-me; mas náo posso deixar de escrever” (PESSOA, 1986, p. 385), lé-se a certa altura do Livro do desassossego. Num dos seus textos teóricos mais célebres, “Retrospectiva”, Pound é explícito a esse respeito e escreve que “É tremendamente importante que grande poesia seja escrita; náo faz a menor diferenca quem a escreva” (POUND, 1976, p. 18). Sua postura, refletida em toda a sua producáo crítica, bem como em sua atuacáo de editor e conselheiro, é a de uma espécie de trabalhador que se esforca para o aperfeicoamento da prática (e da leitura) poética - sua e dos seus companheiros escritores. É bastante nítida, na visáo poundiana da literatura e especificamente da poesia, a existéncia de uma nogáo particular de comunidade que, ao escrever poesia, se sacrifica em nome dela31, O crítico norte-americano Langdon Hammer, por exemplo, observa que “Pound, (...), in an almost literal sense conceived of his audience as a kind of distinguished community of readers and writers existing across time, a kind of trans-historical community of artists” (HAMMER, 2012, on-line)32 - indicando, além disso, que esta relacáo se volta também para o passado e para a tradicáo, tornando-se trans-histórica. Se o mais importante é que a grande poesia seja escrita, independente de quem a escreva, é igualmente fundamental que a grande poesia passada seja lida ou relida de uma 31 Foucault observava que a cultura literária moderna abandonara o mito da escrita enquanto resisténcia diante da morte em nome de uma visáo da escrita como atividade análoga ao sacrifício: “(...) a escrita está agora ligada ao sacrifício” (FOUCAULT, 1997, p. 36), escreve, explicando ainda que “(...) esta relasáo da escrita com a morte manifesta-se também no apagamento dos caracteres individuais do sujeito que escreve (...)” (Idem, ibidem). Caberia dizer que a escrita, nos casos aqui analisados, resiste a uma outra morte, a da tradigáo, com o poeta sacrificando-se em seu nome. 32 É perfeitamente possível aplicar essa descrigáo a Fernando Pessoa e a sua comunidade, seja ela uma comunidade simulada pelo jogo heteronímico, seja ela uma comunidade trans-histórica tal como foi proposto no capítulo anterior. 47 Paz cita o exemplo que é, aparentemente, o mais evidente de todos, a saber, o poema em prosa. Aparentemente porque, em verdade, o exemplo mais claro - e o mais próximo e imediato - é a própria escrita crítica que faz a constatagáo e a análise, a escrita crítica de Octavio Paz. Como bem observou Sebastiáo Uchoa Leite, “(...) a crítica de Octavio Paz pode ser definida como método poético de aproximagáo do objeto” (LEITE, 2006, p. 288). Esse remanejamento da ordem do discurso em prosa, portanto, é operado também no interior do trabalho do crítico, sobretudo do crítico que é familiarizado com o discurso poético por meio da sua prática. É por isso que, em seus ensaios, “Paz procede por superposicóes e paralelismos, parecendo perder-se num labirinto verbal" (Idem, p. 287) - porque o texto crítico assume, a partir do momento em que prosa e poesia confluem, um caráter também criativo, Quando se afirma, portanto, que a crítica é encarada pelos escritores- críticos como outro ponto de partida para um processo criativo, náo se quer dizer, simplesmente, que a análise de um poema inspire ou produza outro poema que mantenha algum tipo de relagáo com aquele que foi analisado - se quer dizer, também, que a própria escrita crítica assume um aspecto criativo. Concebidas como trabalho criativo, as páginas críticas dos poetas, portanto, estruturam-se por outras vias que náo aquelas da crítica tradicional, supostamente imparcial, científica, lógica e ordenada3*: ela é imagética, labiríntica, contraditória, vazada numa prosa cujas construcóes sintáticas e cujas escolhas vocabulares pouco ou 34 Segundo Perrone-Moisés, “A obra crítica tradicional é uma dissertatio, isto é, um discurso em que se desenvolvem consideragóes sobre uma questáo precisa, no caso uma obra poética. A dissertagáo implica racionalidade, distáncia, objetividade, fidelidade e dependéncia com relagáo ao objeto tratado. Os objetivos da dissertasáo crítica sáo: compreender, comparar, classificar e avaliar (excluímos a palavra julgar, de conotacóes éticas), para auxiliar a leitura, a compreensáo e a apreciasáo de outros leitores” (PERRONE-MOISÉS, 2005, pp. 87-88). 50 nada tém a ver com o ideal do crítico que, como já foi observado, era propriamente o inimigo desses escritores. Pode-se dizer, afinal, que esse é um processo que descobre e que revela a crítica enquanto linguagem35, Assim é a prosa crítica de Octavio Paz, de Fernando Pessoa e de Ezra Pound36, Muito significativo é o caso do ensaio “Ironia, Laforgue, e um pouco de sátira”, publicado por Pound na revista Poetry, em novembro de 1917. Sobre o contato do poeta norte-americano com a obra de Jules Laforgue e a composicáo deste texto, Massimo Bacigalupo escreveu que “Eliot directed his attention to Jules Laforgue, a minor French symbolist, and the result was Pound's Trony, Laforgue, and Some Satire” (Poetry, November 1917), a masterly article written in mimetic Laforguian style” (BACIGALUPO, 2001, p. 197). O parágrafo inicial do ensaio é exemplar da tomada de consciéncia, por parte de um escritor-crítico, da natureza criativa que esse tipo de escrita pode comportar: Como escreveu Lewis: “A matéria que náo tem a permeá-la inteligéncia suficiente se torna, como sabem, gangrenosa e apodrecida'; para evitar quiproquós, digamos matéria animal. A crítica é fruto da maturidade; o faro é uma faculdade das mais raras. Na maioria dos países, as únicas pessoas que conhecem literatura bastante para apreciar - isto é, para determinar o valor das - novas produsóes, sáo professores e estudantes que limitam sua atengáo ao antigo. E característico do artista que ele, e somente ele, seja indiferente á antiguidade ou á novidade. Náo tolera a decrepitude; o jade pode ser antigo, as flores razoavelmente vigosas, mas um carneiro assado na semana retrasada é, na maioria das vezes, intragável (POUND, 1976, p. 119)”. 35 Cf. BARTHES, Roland. “O que é a crítica”. In: BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. Sáo Paulo: Ed. Perspectiva, 1970, p. 163. 36 No texto referido mais acima, Uchoa Leite destaca as diferengas entre a crítica de Paz e de Pound, mas o faz, acertadamente, com base no viés ideológico ou político. 37 “As Lewis has written, “Matter which has not intelligence enough to permeate it grows, as you know, gangrenous and rotten? — to prevent quibble, let us say animal matter. Criticism is the fruit of maturity, flair is a faculty of the rarest. In most countries the only people who know enough of literature to appreciate — í e. to determine the value of — new productions are professors and 51 As surpreendentes imagens evocadas, que servem de exemplo de longevidade ou de decrepitude, aparecem em torno das costumeiras críticas poundianas aos analistas profissionais (os eruditos atentos apenas ás obras antigas), bem como de algumas sentengas taxativas sobre a natureza e as exigéncias da boa crítica, cercando-as, como se representassem o influxo marginal da lógica imagética da poesia a alcancar e corroer a lógica do discurso da prosa, para utilizar os termos de Paz. O parágrafo seguinte, que traz mais ataques, agora também aos jornalistas, retoma o debate sobre a originalidade - debate esse cifrado, no parágrafo anterior, na ideia de que “É característico do artista que ele, e somente ele, seja indiferente á antiguidade ou á novidade” (Idem, ibidem). Pound propóe que “A “originalidade', quando assaz real, é com frequéncia simples derivacáo, é muitas vezes uma proximidade de índole” (Idem, ibidem) - tudo isto, como sublinha Bacigalupo, num estilo que mimetiza o próprio assunto do texto, Jules Laforgue, autor de índole próxima á de Pound, analisado a partir de uma derivagáo do seu próprio estilo38, O que Pound realiza neste texto em prosa, portanto, náo é muito distinto daquilo que ele realiza em seus versos derivativos de Guido Cavalcanti, Francois Villon ou Catulo. Em detrimento de um estilo subjetivo e pessoal seu, que tenta students, who confine their attention to the old. lt is the mark of the artist that he, and he almost alone, is indifferent to oldness or newness. Stateness he will not abide; jade may be ancient, flowers should be reasonably fresh, but mutton cooked the week before last is, for the most part, unpalatable” (POUND, 1985, p. 280). 38 Um bom exemplo da crítica de Jules Laforgue, tal como recriada por Pound, pode ser vista neste trecho sobre Tristán Corbiére: “Boémio do oceano; cantando o marinheiro bretáo livre e desprezando os terráqueos. Picaresco e anónimo (adotou o prenome de Tristáo: cavaleiro errante da Triste Figura. (..) Estridente como o grito das gaivotas e como elas nunca se cansa. (O vento costeiro da Bretanha fez com que ele encontrasse e amasse o verbo “plangorer”.) (...) Sempre inicia com uma adverténcia: vocés sabem! Náo me levem a sério. Tudo isto é charme, eu poso. Eu irei até lhes explicar como é que se faz” (LAFORGUE, 1989, p. 125). 52 “Da inutilidade da crítica”, justamente quando, ao refletir sobre as qualidades necessárias ao crítico, Pessoa escreve: Pois como há de um crítico julgar? Quais as qualidades que formam, náo o incidental, mas o crítico competente? Um conhecimento da arte e da literatura do passado, um gosto refinado por esse conhecimento, e um espírito judicioso e imparcial. Qualquer coisa menos do que isso é fatal ao verdadeiro jogo das faculdades críticas. Qualquer coisa mais do que isso é já o espírito criativo e, portanto, individualidade; e individualidade significa egocentrismo e certa impermeabilidade ao trabalho alheio (PESSOA, 1974, p. 248). Aqui, O poeta se trai e liga a criatividade á individualidade e, mais ainda, á indiferenga diante do trabalho alheio - tudo isso dito por um poeta táo permeável á poesia alheia que, desde sua biblioteca, absorve, reordena, recria. Esse trecho, no entanto, é significativo por dar também uma espécie de definicáo do jogo que a escrita crítica de Pessoa parece encenar. Porque embora ele exija do crítico um elevado nível de imparcialidade, o próprio trabalho crítico de Pessoa náo se caracteriza por isso. Como observa Ana Raquel Roque, acerca da crítica dentro do universo heteronímico, esta é “entáo, sempre parcial, visto que mesmo quando censura e escarnece violentamente o seu objetivo é contribuir para a polifonia, para a multiplicidade de interpretacóes e de sensibilidades apresentadas” (ROQUE, 2010, p. 48)%, Na própria carta ao amigo poeta, em outro trecho também já citado, Pessoa se define enquanto crítico em termos extremamente individuais, se diria até idiossincráticos: “Eu náo lhe devia dizer 40 A conclusáo exposta por Raquel Roque, na sequéncia do seu artigo, de que a crítica pessoana seria, na verdade, a mais imparcial de todas as críticas possíveis, já que assume a sua parcialidade pelo expediente da ficgáo, parece um tanto exagerada pelo fato de se amparar numa solugáo que reduz o problema, por um viés aparentemente oposto, outra vez aos termos da velha questáo da imparcialidade, mais uma vez assumida como um valor crítico. 55 isto, talvez, sem prefaciar que sou o mais severo dos críticos que tem havido. Exijo atodos mais do que eles podem dar” (Idem, p. 271, grifo meu) 4. Se a crítica pessoana está, portanto, marcada por individualidade e esta já significa espírito criativo, é de se concluir - ou de se imaginar - que a crítica pessoana é trabalho criativo. As páginas críticas de Pessoa, fragmentárias, labirínticas e contraditórias, parecem escritas a partir de pressupostos e critérios muito semelhantes áqueles em que se fundam a sua poesia - exigindo, inclusive, leituras e análises de natureza semelhante. Essa confluéncia talvez alcance sua realizagáo mais bem concentrada e mais irónica (mas náo única), em versos como aqueles assinados sob o heterónimo de Álvaro de Campos e escritos a partir da leitura do drama estático O Marinheiro (que, como indica o subtítulo do poema, foi escrito depois do contato com pega em “Orfeu 1”): Depois de doze minutos Do seu drama O Marinheiro, Em que os mais ágeis e astutos Se sentem com sono e brutos, E de sentido nem cheiro, Diz uma das veladoras Com langorosa magia: De eterno e belo há apenas o sonho. Porque estamos nós falando ainda? Ora isso mesmo é que euia Perguntar a essas senhoras... (PESSOA, 1969, p. 341): arte para criticar arte%, crítica engendrando escrita criativa - tudo em meio ao jogo teatral da heteronímia%, E é em meio a este jogo - teatral e dialógico - que 41 Pound, como sempre, é menos dissimulado e menos sutil, e afirma, dentro do debate da imparcialidade crítica, que “É por uma razáo dessa ordem que toda crítica deveria ser, reconhecidamente, uma crítica pessoal. Ao fim e ao cabo, o crítico só pode dizer “Gosto disso”, ou “Estou comovido”, ou algo parecido. Depois de ele se haver revelado, nós o poderemos compreender” (POUND, 1976, p. 74, grifo meu). 42 “A poesia só pode ser criticada pela poesia. Um julgamento sobre a arte que náo é ele próprio uma obra de arte [...] náo tem o direito de cidadania no reino da arte” (SCHLEGEL apud BERMAN, 2002, p. 216). 56 José Augusto Seabra situa as “metalinguagens críticas” de Pessoa, que, segundo o ensaísta portugués, “(...) náo podem ser consideradas como elementos subsidiários da sua poesia, mas como participando no conjunto estruturado (e em constante reestruturacáo) que é sua obra” (SEABRA, 1974, p. 18). Essa posicáo da crítica - agora aproximada, ou mesmo confundida com a própria literatura, e que Seabra indica como trago definidor da produgáo de Pessoa - é definida por Bacigalupo, em relacáo a Pound, da seguinte forma: It is important to bear in mind that Pound's criticism is not only a poet's criticism, but essentially part of a larger process of writing, and appealing as such. A rhetorical performance, it tells a story and persuades the reader by poetic means (BACIGALUPO, 2001, P. 193). A rhetorical performance: eis, talvez, o trago característico - e definitivo - que as críticas de Pessoa e de Pound compartilham. 3 - Eleicáo e recusa: alguns critérios. Ao tratar das páginas críticas dos autores modernistas, Leyla Perrone- Moisés chega á conclusáo de que “(...) a crítica praticada pelos escritores é uma crítica positiva, nunca negativa; eles só falam longamente de autores “eleitos”; estáo á procura de qualidades e náo, como os críticos profissionais, de defeitos” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 144). A autora observa entáo que, neste ponto, os 43 A crítica heteronímica (aquela que é feita acerca de um heterónimo ou do ortónimo e está assinada por um outro heterónimo ou pelo próprio ortónimo) seria, entáo, um nível extremamente elevado e evidente daquilo que Perrone-Moisés chama de crítica-escritura, na qual “(...) haverá realmente um diálogo entre obras, porque a nova fala se colocará em condicóes de igualdade com aquela que lhe serve de pré-texto” (PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 78) - a igualdade sendo, neste ponto, a condigáo de ficcáo poética tanto da obra comentada quanto do comentário crítico a seu respeito. Deste modo, complementa Perrone-Moisés, “O crítico náo se porá diante dela como um explicador de ambiguidades mas como um desenvolvedor de ambiguidades, isto é, como um escritor” (Idem, p. 79). Ana Raquel Roque, no seu artigo "Crítica ficcional ou ficgáo da crítica no universo da heteronímia pessoana", já citado anteriormente, arrola uma série de textos críticos pessoanos - inclusive anteriores a 1914, ano do "nascimento” de Ricardo Reis - que realizam essa crítica “ficcional” entre heterónimos, além de propor uma análise interessante deste fenómeno. 57 Essa postura indica de forma muito clara uma espécie de comprometimento estético e inclusive ético com os seus contemporáneos - incluindo-se aqui autores e leitores, pois que, na concepgáo dos dois poetas, como logo se verá, a linguagem literária repercute na linguagem de toda a gente (de toda a nacáo ou de toda a pátria, diriam) e, por tabela, na consciéncia nacional. Esse comprometimento, até aqui encarado através do seu caráter positivo e cuja intervencáo é de natureza colaborativa, visando um aperfeicoamento, é discernível também nos ataques e nas recusas protagonizada por Pessoa e por Pound. Portanto, ainda que a referida “crítica dos eleitos” seja recorrente ou mesmo predominante nos seus escritos, tanto Pessoa quanto Pound também praticaram com certa regularidade uma crítica concentrada nos fatores negativos de determinadas obras ou autores. Tais críticas, em geral irónicas e demolidoras, alinham-se estilisticamente a um trago que Compagnon julga típico dos escritores antimodernos: o vitupério. Segundo o teórico francés, A sexta figura do antimoderno é uma figura de estilo, difícil de delimitar: a vociferagáo, a vituperagáo ou ainda a imprecagáo, alianga entre predigáo e predicagáo, em todo o caso, o contrário do “famoso estilo corrente caro aos burgueses”, que Baudelaire denunciava em George Sand. De Maistre, Chateaubriand, Baudelaire ou ainda Nietzsche, fundadores da tradigáo antimoderna que atravessa toda a modernidade, ilustram esse estilo da veeméncia (COMPAGNON, 2011, p. 143). Esta veeméncia em relacáo a aspectos negativos ou reprováveis de certas obras, certos autores e ainda certas posturas no que diz respeito ao trato com a literatura (por parte de críticos, professores, teóricos e censores, por exemplo) pode ser amplamente ilustrada pelas inúmeras polémicas que marcaram o início da vida e da producáo literária propriamente modernista dos dois poetas, Tanto a recepcáo da revista BLAST, em Londres, quanto a de ORPHEU, em Lisboa, produziram 60 contra-argumentacóes com ataques aos “adversários da arte moderna”, para aproveitar um termo do próprio Fernando Pessoa%, Um considerável trecho do capítulo das críticas negativas e das vituperacóes de Pessoa e de Pound está reservado ás suas relagóes e ao seu trato com a crítica literária da época. Enquanto Pessoa parte para a sua polémica contra os críticos da arte moderna com a observacáo de que Lembrou-se, há um tempo para cá, certa gente, degenerada por natureza e crítica por predilegáo, de protestar, cada qual com o mau “modo' que lhe é modo, contra a obscenidade, a confusáo desta ou daquela literatura”, destoutra ou daqueloutra poesia moderna, etc (PESSOA, 1974, pp. 299-300), Pound comega o seu ataque desde o que ele julga ser uma má leitura de Aristóteles: diz que “Náo sendo poeta nem imbecil chapado, Aristóteles limitou-se a procurar formular algumas das relacóes gerais, interiores e exteriores, do trabalho já existente” (POUND, 1976, p. 85), mas observa que “Presumivelmente, é a sua a maior de todas as famílias bastardas de filósofos. Todos, Fulanos, Cicranos e Beltranos, tentam dizer o que deverá fazer o próximo escritor” (Idem, ibidem)?”, Esta vituperagáo e esta veeméncia no trato crítico com a crítica sáo parecidas áquelas que, vez ou outra, surgem também no trato crítico com a arte e com os artistas. Neste ponto, Pessoa e Pound compartilham inclusive alvos bastante semelhantes, o que já indica uma proximidade de índole que, como se verá na segáo seguinte, permite a aproximagáo dos dois por meio das semelhangas entre as categorias críticas com as quais eles trabalham, sobretudo no que diz 46 Cf. PESSOA, Fernando. “Polémica contra adversários da arte moderna”. In: PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Org. de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1974, pp. 299-300-301. 47 Saliente-se que a indisposigáo de Pound náo é exatamente contra o caráter prescritivo, já que a sua própria crítica faz uso constante de proibicóes, mas contra a prescricáo feita por aqueles que náo sáo eles mesmos artistas: “Náo dé atengáo ás críticas de indivíduos que jamais tenham escrito alguma obra digna de nota” (POUND, 1976, p. 11). 61 respeito á apreciacáo e á revisáo da nocáo de autoria, individualidade e originalidade. Antes, contudo, observe-se o virulento texto no qual Fernando Pessoa critica Bartholomeu marinheiro, livro de versos infantis escritor por Afonso Lopes Vieira*8, Os termos com os quais o poeta-crítico se refere e qualifica Lopes Vieira sáo contundentes: trata-se de um idiota, uma verdadeira besta, um estúpido e, enfim, um criminoso. Este último adjetivo é particularmente explorado e explicado por Pessoa. Segundo o poeta, O Sr. Lopes Vieira é um críminoso. É-o por trés razóes. Está estragando, com o seu gato-por-lebre de simplicidade, o rudimentar senso estético de criangas que, mesmo que sejam só duas, sáo classificáveis de inúmeras, ante o horror do crime. - Está tornando ridículos assuntos que conviria tratar com uma decéncia que a estupidez, mesmo quando involuntária, nunca tem (PESSOA, 1974, p. 346, grifos meus). O que se depreende desta observacáo crítica é que Pessoa considera criminosa a falsidade de Lopes Vieira - que, para utilizar os termos do próprio poeta, oferece gato-por-lebre ao leitor, com o agravante desse leitor ser, no caso específico, ainda crianga, incapaz de grande discernimento no que se refere a material artístico e literário. Mais adiante em sua resenha, Pessoa conclui que a influéncia de um autor falso, irresponsável e criminoso como Lopes Vieira sobre as criangas terá como consequéncia o enfraquecimento da capacidade crítica dos portugueses em geral, bem como o consequente enfraquecimento da própria nagáo portuguesa. Assim (com algum humor) o poeta define a situacáo: Educados na estupidez pela leitura das obras infantis do Sr. Lopes Vieira, levados ao antipatriotismo pelo inevitável desdém que um livro como o Bartholomeu marinheiro leva a ter pelo navegador que ali aparece de bebé de Carnaval, cheio de fobias por lIhes terem sido metaforizadas na infáncia cousas como que um quarto 48 Cf. PESSOA, Fernando. “Afonso Lopes Vieira: crítica de um livro para criangas”. In: PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Org. de Cleonice Berardinelli Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1974, pp. 345-346. 62 4 - Categorias compartilhadas e o ideal de síntese. O crítico que tem a sua capacidade questionada é o mesmo crítico que, segundo Barthes, acredita na possibilidade de decifracáo ou de resolugáo da obra por meio da compreensáo do Autor, Na medida em que já náo se entende o autor como o criador de uma obra cujo fundamento é ele mesmo, figura unívoca e incontornável, mas como uma espécie de organizador e sintetizador de vozes, experiéncias e formas que náo sáo apenas suas, mas também alheias, o crítico capaz de ler devidamente a obra será aquele capaz de discernir e escutar os diálogos, e náo aquele ávido por interpretar o monólogo. A dúvida de Pessoa aparece no seu texto “Inutilidade da crítica”, no qual o poeta parece disposto a determinar novos critérios para avaliacáo das obras, bem como indicar uma espécie de incomunicabilidade que se instalara, áquela época, entre a crítica e a arte: esta, já fundada nesses novos critérios que Pessoa apresenta (o principal deles: a originalidade como capacidade de síntese do presente e do passado, do contemporáneo e do tradicional), náo pode sequer ser notada por uma crítica ainda amparada em conceitos superados. Por isso, apesar do “(...) clamor de que o nosso tempo necessita de um grande poeta” (PESSOA, 1974, p. 285) que ainda náo possui, este “(...) pode já ter aparecido: sua obra teria sido noticiada em umas poucas palavras de vient-de-paraítre em algum sumário bibliográfico de um jornal de crítica” (Idem, ibidem). Os critérios que Pessoa sugere para avaliagáo dos poetas aparecem, mais desenvolvidos, também na sua proposta de apreciacáo e de análise das escolas literárias, num texto a propósito do Sensacionismo. Vale citá-lo longamente: 65 Uma corrente literaria sendo, por definigáo, uma ordem de obras originaes, ha trez modos de correntes literarias: 1. A corrente literaria cuja unica preoccupasáo consiste em ser nova e original, rompendo com o passado conscientemente, embora inconscientemente esteja ligada a parte d'elle, como por fórca tem que acontecer. 2. A corrente literaria que procura synthetisar as correntes literarias passadas. 3. Aquella que procura synthetisar as correntes passadas e acrescentar-lhes qualquer elemento, isto é, synthetisal-as atravez de um criterio novo, de uma nova visáo das cousas (PESSOA, 2009, p. 165). Em seguida a essas definicóes e classificagóes, Pessoa observa a superioridade das correntes literárias da terceira espécie: Sáo d'esta ultima especie as mais altas correntes literarias. Sáo aquellas que, reunindo em si quanto de original todas as correntes anteriores trouxeram, synthetisam atravez da sua virtualidade propria os caracteristicos d'essas correntes, e as transcendem com um qualquer caracteristico que lhes é peculiar (Idem, pp. 165- 166), e, como exemplo desta, o poeta cita “Renascenga italiana e ingleza” (Idem, p. 166)50, As semelhangas entre estas categorias críticas, históricas e analíticas e a célebre classificacáo dos autores proposta por Pound, citada mais acima, sobretudo naquelas de “inventores” e “mestres”, sáo notáveis. Ainda que falte ao sistema proposto por Pound um caráter mais explícita e marcadamente dialético que se encaminhe para uma síntese, as duas propostas coincidem no que diz respeito aos valores atribuídos áqueles que inventam e áqueles que sintetizam invencóes próprias e alheias. Pois, para Pound, a classe dos mestres é uma classe muito pequena, e há poucos que o sejam de verdade. O termo se aplica com propriedade aos inventores que, além de suas invensóes pessoais, sáo capazes de assimilar e de coordenar grande número de invencóes anteriores. Quero dizer que eles ou comecam com um núcleo que lhes é próprio e acumulam adjuntos, ou entáo digerem enormes quantidades de assunto, aplicam alguns modos de 50 A julgar por algumas das declarasóes de Pessoa acerca do Sensacionismo, citadas no capítulo anterior, também o movimento idealizado por ele se encaixaria - ou procuraria se encaixar - neste paradigma; daí, afinal, a sua cara Renascenga Portuguesa. Como foi observado pelos dois membros da banca de defesa, algo desse esquema pessoano segundo o qual o poeta superior é aquele que sintetiza pode ser observado também no seu texto sobre os quatro graus da poesia lírica. 66 expressáo conhecidos e conseguem impregnar o todo com alguma qualidade especial ou com alguma característica própria, levando o conjunto a um estado de plenitude homogénea (POUND, 1976, p. 35, grifo meu). Vé-se aqui, outra vez, a ideia de que é a assimilagáo - que se pode deduzir que seja feita através da leitura em sua biblioteca, mas também dos exercícios de imitagáo, traducáo etc. - o trago definidor do artista e da obra cujo valor é o mais alto, Nisso está implícita, ainda, a ideia de um aperfeicoamento contínuo da arte por meio do trabalho conjunto dos artistas - que, em nome desta, retomam antigos modos de expressáo (o termo é poundiano) que podem ser renovados. Daí uma outra dúvida de Pessoa: “(...) aceitará o crítico esse melhoramento como melhoramento, ou como imitagáo o uso daqueles padróes?” (PESSOA, 1974, p. 285)51, O que preocupa Pessoa é algo discernível também entre as reflexóes de Ezra Pound. No seu já comentado ensaio acerca de Laforgue, escrito 4 maneira de Laforgue, o poeta norte-americano declara que um dos grandes equívocos do crítico (“imaturo”, diz ele) é a preocupagáo exagerada com relacáo á originalidade de uma obra ou de um artista. Enquanto que o crítico “vive caindo nessas armadilhas” (POUND, 1976, p. 119), o artista permanece “indiferente á antiguidade ou á novidade” (Idem, ibidem) porque “se encontra em equilíbrio saudável” (Idem, ibidem), fazendo uso do velho e do novo de acordo com as suas necessidades de 51 É curioso notar que a fortuna crítica dos dois poetas assume naturalmente esses parámetros. A título de exemplo, observe-se este trecho de Leyla Perrone-Moisés: “A grandeza de Pessoa náo reside, a bem dizer, numa profunda renovasáo da forma poética, nem na variedade de sua temática. Pessoa náo foi um 'revolucionário” com respeito á forma; foi antes um executante originalíssimo, que soube manejar todos os recursos da língua portuguesa. Afora esse extraordinário virtuosismo, que lhe permitiu moldar a língua a seu jeito, náo há grandes novidades formais em sua obra. Todas as formas que ele usa existiam antes, desde a tradicional quadrinha, passando pela redondilha e o soneto, até as formas mais modernas do verso livre (que ele colheu em Whitman) ou do poema- cartaz, com técnicas como a colagem e o expressionismo tipográfico (que ele recebeu do Futurismo)” (PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 93, grifos meus). Perrone-Moisés, portanto, está longe da postura crítica que percebe esse aproveitamento de técnicas passadas como simples “imitagáo” — além de náo acusar contradigáo entre este aproveitamento e a originalidade do poeta, qualificando- o justamente como “originalíssimo”. 67 Augusto de Campos, no entanto, se náo disse logo, ainda diria algo a respeito da proposta do crítico portugués. No seu texto introdutório ao volume Poesia / Ezra Pound, editado em 1983, o poeta brasileiro trata rapidamente da questáo, á qual dedica apenas um breve parágrafo. Ao tentar iniciar um diálogo com os autores concretos, ainda na década de 1950, Casais Monteiro observara que estes eram os interlocutores ideais por serem todos eles - ao contrário do próprio Casais Monteiro - “profundos conhecedores do poeta dos Cantos” (MONTEIRO, 1985, p. 122), uma definigáo justa, sobretudo se aplicada a Augusto de Campos, autor da introdugáo que por ora é comentada*%3 - e que é, ela mesma, uma evidéncia da sua competéncia no trato com a escrita de Pound. Irónico, no entanto, é que este texto revele, por um lado, uma leitura profunda da obra de Pound e, por outro, uma abordagem um tanto superficial da poesia de Fernando Pessoa. Tome- se, por exemplo, a principal justificativa dada por Augusto de Campos para a inviabilidade ou o desinteresse da comparagáo proposta pelo ensaísta portugués: As personae de Pessoa sáo, na verdade, personalidades fictícias projetadas do próprio poeta, de dentro para fora. Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis - a santíssima trindade poética em que se hipostasiou o poeta - sáo trés pessoas distintas (os) num (a) só Pessoa. Pode-se falar tranquilamente da poesia de cada um deles como um todo, como um “corpus”, até certo ponto independente da obra assinada por Fernando Pessoa (CAMPOS, 1983, p. 25). É surpreendente que Augusto de Campos, crítico no mais das vezes atento ás armadilhas das interpretacóes impressionistas, incorra em tal leitura do fenómeno heteronímico e da obra pessoana. Para além da questionável observacáo segundo a qual a heteronímia é uma espécie de projegáo “de dentro para fora” (portanto subjetivista e, em último caso, vetor de autoexpressáo), a proposta de uma leitura 53 CAMPOS, Augusto de. “Ezra Pound: Nec Spe Nec Metu”. In: POUND, Ezra. Poesia. Introdusáo, organizasáo e notas de Augusto de Campos; Trad. Augusto de Campos [et al]. Sáo Paulo: HUCITEC, Editora UNB, 1983. 70 independente de cada heterónimo (cada um lido ou escutado como uma voz independente) é, por certo, uma proposta empobrecedora, que teria como resultado a limitacáo da experiéncia poética que a heteronímia póe em cena (ou em jogo) - e que consiste, em grande medida, justamente na observagáo e na apreciacáo dos seus diálogos, das semelhangas e das diferengas existentes entre os heterónimos, bem como na forma como estas se relacionam com o seu autor e, por tabela, com a nogáo tradicional de autoria54 O que Augusto de Campos parece náo levar em conta, nesse ponto, é a relacáo dialógica que o fenómeno heteronímico pressupóe para sua criagáo - ou que, pelo menos, pretende ou pode disparar a partir de sua leitura. O poeta paulistano, portanto, parece se conformar com a transformagáo deste diálogo profuso e constante, que se dá tanto no amplo espago da tradicáo poética e literária quanto no ámbito mais restrito (mas nem por isso restrito) do projeto poético e literário particular de Pessoa, num monólogo cerrado que sai de dentro para fora, Segundo a declaracáo de Augusto de Campos, portanto, o suposto monólogo que marca a heteronímia pessoana só poderia ser pensado enquanto diálogo se este fosse definido como um "(...) diálogo silencioso da alma consigo mesma (...)" (CAVARERO, 2011, p. 62), nos termos da filósofa italiana Adriana Cavarero, para quem este diálogo silencioso “náo é somente um monólogo; é um solilóquio que, 54 Nesse contexto insere-se também o diálogo crítico entre os heterónimos, comentado no capítulo anterior. E sobre isso, José Augusto Seabra afirma, ao considerar a génese dos heterónimos, que “Estamos assim mais uma vez confrontados com a estrutura dialógica da heteronímia. Entre os autores que constituem a constelacáo poética de Pessoa estabelece-se um sistema de relacóes mútuas, em que cada elemento se responde e corresponde, num tecer e destecer sempre retomado de fios que se váo entrecruzando, em planos diversos mas que se interpenetram” (SEABRA, 1974, p. 15, grifo meu). 55 Diga-se, desde já, que a leitura questionável que Augusto de Campos faz da heteronímia está ao lado da sua importante intuigáo de que um viés produtivo para a aproximasáo entre Fernando Pessoa e Ezra Pound talvez esteja no trabalho tradutório dos dois poetas, ponto do qual partiráo as análises do capítulo seguinte dessa dissertagáo. 71 mesmo metaforizando-se na esfera da voz, neutraliza o estatuto relacional da voz e, portanto, da palavra” (Idem, ibidem, grifo meu). Essa colocagáo é importante devido á sua distáncia em relagáo á leitura da poesia de Pessoa que aqui se propóe - afinal, ainda que a voz de fato apareca simplesmente metaforizada em diversos poemas do autor portugués (inclusive no ámbito de um eventual debate da alma consigo mesma), a própria realizacáo da heteronímia é a maior evidéncia de que Pessoa foi além da simples metáfora, explorando - inclusive como definidor mesmo da poesia - o estatuto relacional da voz e da palavra. É natural que a poética de Pessoa, vista tal como propóe Augusto de Campos e náo como um processo de diálogo e de seguidas apropriacóes, desdobramentos e reinterpretacóes relacionais de vozes e de falas alheias (como algo, portanto, que náo é simplesmente projetado de dentro para fora), pareca oposta á de Pound, cujas máscaras, segundo o próprio Augusto de Campos, (...) correspondem (com a excegáo talvez única de Mauberley) a pessoas reais de poetas que falam, em sua própria linguagem, “através de' Pound: Cino, Bertran de Born, Villon, Heine, Laforgue, Corbiére, etc. Daí a sua multiplicidade, que impede se constituam numa personalidade acusada, autónoma, ao nível dos heterónimos (CAMPOS, 1983, p. 25, grifo meu). Contudo, essa ideia de que alguém que náo o próprio poeta fala (ou observa, ou escreve, ou vive, ou revive - com tudo isso resultando na escrita) através dele, e que Augusto de Campos cré notar em Pound, mas náo em Pessoa, é, na verdade, um dos fundamentos mesmo da poética pessoana, exposto e exaustivamente comentado por ele em prosa crítica e filosófica e também trabalhado em sua poesia e em seus dramas. Versos como “Quem dicta o que eu medito/ Sem me ouvir meditar?” (PESSOA, 2004, p. 156); ou “Náo sou eu quem descrevo. Eu sou a tela/ E oculta máo colora alguém em mim” (PESSOA, 1969, p. 127); ou “De quem é o olhar/ Que espreita por meus olhos?” (Idem, p. 132); ou ainda, estes mais célebres, 72 forma constante - e, apesar da sua discrigáo, vez ou outra de modo explícito. Náo por acaso, Darlene J. Sadlier escreve sobre Pessoa que Quoting Kristeva, we might say that all his work was “a [conscious] reading of the anterior literary corpus, and his various compositions represent “an absorption of and a reply to' not just one but several other texts. As a consequence of his love of parody, pastiche, and imitation, he created the later heteronyms, who provide him with a complete imaginary world and who function as a kind of tradition - a series of texts that play off against one another and against literary history in general (SADLIER, 1998, p. 25, grifos meus). A parte a referéncia direta aos heterónimos, essa é uma observacáo que pode ser facilmente aplicada a uma interpretacáo da obra e da poética de Ezra Pound: leitura consciente - e, portanto, crítica - da tradigáo; diálogos textuais que se dáo dentro da própria obra do poeta e a partir desta com obras alheias; utilizagáo de recursos como paródia, pastiche e imitagáo (acrescente-se, neste ponto, a traducáo ea citacáo) - todos esses tragos, enfim, podem ser discernidos nas obras crítico- teóricas e poéticas tanto de Pessoa quanto de Pound. 2 - As vozes de Pound. O discurso inaugural do pensamento sobre a poesia, no Ocidente, é também uma reflexáo sobre a origem da voz do poeta - ou da sua mudez. No fon, diálogo de juventude de Platáo, o poeta entra no debate crítico e filosófico ocidental sofrendo uma perda: aquilo que ele diz náo é dele, aquele que fala náo é ele. Platáo escreve que Pois náo dizem [os poetas] essas coisas em virtude de uma técnica, mas em virtude de um poder divino, uma vez que, se eles tivessem, em virtude de uma técnica, a ciéncia de falar belamente em um género, também teriam em todos os outros; mas, por isso, o deus retira deles o senso e se serve deles como servidores, e também dos cantores de oráculos e dos adivinhos divinos, para que nós, os ouvintes, saibamos que náo sáo eles - aqueles nos 75 quais o senso está ausente - os que falam essas coisas assim dignas de tanto valor, mas o próprio deus é quem fala, e através deles se faz ouvir por nós (PLATÁO, 2011, p. 39). Essa assuncáo inicial de uma voz alheia que soa por meio do poeta persistirá em boa parte da discussáo e da reflexáo poética posterior (alcangando inclusive os dias atuais). Entre outros desdobramentos, ela ora ganhará contornos místicos e religiosos (o poeta como médium ou vidente), ora revelará implicacóes de natureza psicológica (o Inconsciente como fonte de expressáo) e paranoica (vide a palavra soprada que, segundo Derrida, atormentava um autor como Antonin Artaud*0), ora provocará uma reflexáo sobre ética e alteridade*! - e, por fim, servirá ainda de ponto de partida para pensar conceitos de teoria literária como intertextualidade, influéncia, apropriacáo e citacáo. É desde esse último espectro que Antoine Compagnon declara, em seu “Vox: a possessáo”, que “A citagáo é uma musa leiga, uma possessáo profana” (COMPAGNON, 2007, p. 79). Para pensar o concerto de vozes que os poetas modernos, entre eles Pessoa e Pound, póem em cena em suas obras, é preciso levar em conta essa espécie de profanacáo do tema sagrado da voz divina que soa através do poeta: o diálogo já náo se daria entre Deus e Poeta, ou entre Musa e Cantor, mas simplesmente entre poetas, no ámbito dessa comunidade idiossincrática referida no capítulo anterior - e por meio sobretudo da citagáo62, $0 "Le poéte qui écrit sadresse au Verbe et le Verbe a ses lois. 11 est dans l'inconscient du poéte de croire automatiquement a ces lois. II se croit libre et il ne l'est pas" (ARTAUD, 2014, online) é a crenga e o desespero do escritor francés, revoltado contra o Verbo (que remete, naturalmente, a Deus). 61 “Ele [o poema] acontece, entáo, essencialmente, sem que se tenha que fazé-lo: ele se deixa fazer, se deixa levar, sem atividade, sem trabalho, no mais sóbrio pathos, estranho a qualquer produgáo, sobretudo á criasáo. O poema cai, bengáo, vinda do outro. (...). Sem sujeito: talvez haja poema, talvez se deixe, mas nunca o escrevo. Nunca assino um poema. O outro assina. O eu apenas é em fungáo da vinda desse desejo: aprender de cor” (DERRIDA, 2010, p. 116, grifos meus) 62 É preciso ressaltar que náo seria o caso de apontar, tanto em Pound quanto em Pessoa, para uma auséncia absoluta dessa discussáo no nível místico ou psicológico, já que a utilizacáo de termos como antenas da raga ou alma ou espírito, em Pound, ou as constantes referéncias de Pessoa á voz 76 O caso de Pound é, outra vez, mais evidente. Mario Faustino, em artigo dedicado ao poeta norte-americano, chama a atengáo já para a etimologia do termo persona: “(...) per sona, sons através de (...)” (FAUSTINO, 1976, p. 146, grifo meu). O expediente das personae, portanto, náo desloca a posigáo medial do poeta, já identificada e declarada por Platáo: ele segue sendo essa espécie de caixa acústica ou de ressonáncia que, em sua esséncia, é oca, a partir da qual náo se pode originar o discurso ou a voz. A distincáo central, portanto, diz respeito á proveniéncia ou á origem da voz, das vozes: elas já náo sáo dos deuses ou das musas$3, mas de outros poetas, que emitem os seus sons desde os seus lugares na tradicáo literáriaó% Analisando a cadeia da mensagem poética tal como apresentada por Platáo no fon, Cavarero escreve que O canto do poeta é um anúncio de coisas de que ele é o mensageiro. O conceito mesmo de mensagem colocada em voz implica pelo menos um jogo a trés: a fonte, o meio e o destinatário. No Íon trata-se, todavia, de um jogo a quatro. Na poesia épica, entre o poeta e o público intervém o rapsodo. Voz da voz do poeta, mensageiro do mensageiro dos deuses, o rapsodo é o segundo elo dessa transmissáo vocálica. No início está a Musa, ao final, o público. No meio, estáo as vozes do poeta e do rapsodo (CAVARERO, 2011, p. 112). Seria o caso de observar, na realizacáo moderna tal como proposta por Pound, um jogo que por sua vez se faz a trés - já que o poeta, após perder o seu contato com os deuses e passar a evocar as vozes de outros poetas, termina por confundir-se de uma espécie de Desconhecido (bem como a sua obsessáo - irónica ou náo - pelos temas de natureza psicológica, ou o seu desejo — semelhante ao de Artaud - de fazer "(...) talvez um dia um poema meu, / Náo qualquer cousa que, se eu a analyso,/ É só a teia que se em mim teceu”" [PESSOA, 2004, p. 121]) evidenciam o contrário, ou seja, uma espécie de persisténcia ou laténcia dessas facetas do debate sobre a origem da voz do poeta, ou da sua mudez. Se aqui se opta por uma terceira via, que é de natureza teórica - e profana — é sobretudo pelo fato de ser justamente essa aquela que permite uma aproximagáo mais frutífera entre os dois autores. 63 Com Barthes, se falaria de Inspiracáo, mas “(...) náo num sentido mítico romántico (a Musa de Musset), nem no sentido grego de entusiasmo, (...), mas no sentido = inspirar-se de” (BARTHES, 2005, pp. 17-18). 64 E náo necessariamente para confirmá-la, mas muitas vezes para questioná-la e abalá-la. 77 poetas eruditos, conhecedores de línguas e de versos modernos e antigos (daí ser mais justo falar de secularizagáo). Para além disso, esse ato de disponibilidade se iguala ao ato de reavivar - porque aquele que fala é aquele que está vivo, ou que foi redivivo. O trabalho de Pound, portanto, é agucar o seu ouvido de poeta - ou de antena - e escutar as vozes que vém do passado, reproduzindo-as em seguida, ou fornecendo-lhe uma espécie de sopro%8, Considerando, tal como o faz Benveniste, que a enunciacáo é que produz o presenteó?, a re-enunciagáo (o que, no trabalho literário, consiste na citacáo?”%) o reproduz, servindo também como uma interrupgáo do luto do poeta vivo pela poesia ou pelos poetas mortos - pois, nesse aspecto, encenar a voz alheia é trazé-la de volta ao presente, soprar-lhe outra vez a vida. O “Canto VII”, definido por William Cookson como “(...) Pound's equivalent of The Waste Land” (COOKSON, 2001, p. 18), é um dos pontos luminosos (para fazer uma apropriacáo algo indevida de um termo poundiano) para a discussáo aqui proposta. De início, após retomar a imagem de Homero cego (que surgira já no primeiro Canto), Pound refere-se enfaticamente á sua audicáo: “Ear, ear for the sea- surge” (POUND, 1996, p. 24), para logo em seguida distinguir “rattle of old men's voices” (Idem, ibidem)?1, A primeira voz a surgir, depois disso, é a de Ovídio, citado 68 Sobre as relasóes entre o sopro, a vida e a voz, cf. CAVARERO, Adriana. “A voz de Jacó”. In: CAVARERO, Adriana. Vozes plurais — filosofia da expressáo vocal. Trad. de Flavio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011. 69 “Poder-se-ia supor que a temporalidade é um quadro inato do pensamento. Ela é produzida, na verdade, na e pela enunciagáo. Da enunciasáo procede a instaurasáo da categoria do presente, e da categoria do presente nasce a categoria do tempo” (BENVENISTE, 2006, p. 85). 70 “Enquanto a enunciacáo é um processo de apropriasáo da língua, a citacáo é um processo de apropriaáo do discurso, do Fundo literário, como dizia Mallarmé” (COMPAGNON, 2007, p. 153). 71 Na tradugáo conjunta de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari: “Pobre do velho Homero, cego,/ cego - morcego,/ Ouvido, ouvido para o mar;/ rilhar de vozes velhas. E entáo Roma fantasma, / bancos de mármore exíguo/ “Si pulvis nullus' disse Ovídio, Erit, nullum tamen excute” (POUND, 1983, p. 170). 80 em latim; a seguir, Propércio, Bertran de Born, Dante, Camóes, Flaubert, entre outros, sáo também escutados, em citagóes literais ou em traducóes ou paráfrases livres (atente-se, outra vez, para o caráter intrometido do rapsodo moderno). Cookson escreve que, nesse poema, ouve-se “(...) the old men of Troy, the sea surge, Henry James, and the modern living dead” (COOKSON, 2001, p. 18) - muito embora as vozes dos mortos-vivos da modernidade náo cheguem aos ouvidos ou aos olhos do leitor”?2, já que náo sáo reproduzidas por Pound, que cede espago apenas aos velhos e - em seu julgamento - bons redivivos. No limite, duvida-se inclusive que os mortos-vivos contemporáneos tenham a capacidade da fala ou possuam vozes”3 — o que se pode ver pela última estrofe do poema, espécie de descricáo de um jantar que reúne homens vivos que produzem um certo som que apenas se parece ao som de vozes: Bend to the tawdry table, Lift up their spoons to mouths, put forks in cutlets, And make sound like the sound of voices (POUND, 1996, p. 27)?4. Como se caminhasse no interior do tempo e das paisagens de milénios de cultura e de poesia, Ezra Pound, neste “Canto VII” (e, aliás, em toda a sua obra - ou 72 A náo ser, talvez, pela censura dos versos: “Garrafa de cerveja no pedestal da estátua! / Isto Fritz, é aera, 0 hoje frente ao passado:/ Contemporáneo”. E a paixáo permanece” (POUND, 1983, p. 171). Aqui, nesse conflito com o contemporáneo, se encena outra vez aquilo que Freud observou no comportamento do enlutado frente ao mundo - que, para ele, torna-se “pobre e vazio” (FREUD, 2011, p. 53). 73 Tal postura é repleta de implicacóes políticas, afinal, é justamente sobre a capacidade de fala e de discussáo pública por meio da fala que os sujeitos políticos se definem, diferenciando-se dos animais ou dos bárbaros. Sobre isso, Jacques Ranciére escreve: “Une célebre formule aristotélicienne déclare que les hommes sont des étres politiques parce qu'ils possedent la parole qui permet de mettre en commun le juste et l'injuste alors que les animaux possedent seulement la voix qui exprime le plaisir ou la peine (...) En un sens, toute Vactivité politique est un conflit pour décider de ce qui est parole ou cri, pour retracer donc les frontiéres sensibles par lesquelles s'atteste la capacité politique” (RANCIÉRE, 2007, pp. 11-12, grifo meu). No poema, portanto, Pound se arroga a capacidade de decidir aquilo que é palavra e aquilo que apenas se assemelha a uma palavra, restando ainda na categoria de voz sem significacáo - e isso tem interesse sobretudo para uma discussáo sobre as suas posturas fascistas. 74 “Inclinadas á mesa elegante,/ Levam colheres á boca, trincham costeletas,/ E produzem som como o som de vozes” (POUND, 1983, p. 173). 81 na maior parte dela), tenta captar o que permanece vivo ou reavivar o que apenas parece morto. A despeito da dificuldade de apreensáo total do poema, Cookson observa que o seu fundamento é, sobretudo, “(...) the theme of “devouring time”, and poetry's fitful power to brave it” (COOKSON, 2001, p. 19). E uma das principais formas que a poesia de Pound encontra para encarar o poder devorador do tempo parece ser esse ato de fornecer espaco para que a voz alheia ressoe através de recursos como a citacáo. Nesse jogo, revivem os poetas mortos e se enche ainda mais de vida e de fólego o poeta vivo; náo por acaso, ao descrever Lorenzaccio, já no fim do poema, Pound escreve, como se descrevesse a si mesmo: (..) Lorenzaccio Being more live than they, more full of flames and voices (POUND, 1996, p. 27)?5, Manejar todas as vozes que ocupam e ressoam no espaco vazio que é o poeta (agora também rapsodo) exige a destreza para lidar com destrogos: porque o método poundiano é, sobretudo, o método do fragmento. Pound enxerga uma cultura que se despedaca e, por isso, conclui que o seu trabalho é, de alguma maneira, reordená-la - para preservá-la (daí esse rapsodo náo servir apenas a um poeta, como costumava, mas a toda uma tradigáo poética). A maneira de um filólogo, quer reconstruir sentidos e nexos entre culturas (ou vozes) passadas e extintas e a sua própria contemporaneidade, sua própria obra. Portanto, já que ouvir a voz de um poeta morto e ressoá-la é, também, uma forma de torná-lo outra vez vivo, trata-se de um ato de resisténcia frente á derrocada, de luta em meio ao luto. 75 “Lorenzaccio/ Mais vivo do que eles, mais cheio de flamas e vozes” (POUND, 1983, p. 183). 82 the region seem to connect past and present, and geography and language” (TRYPHONOPOULOS; ADAMS, 2005, p. 245). Esta peregrinacáo em busca dos ecos de Provenca, que exigem esforgo para serem escutados, resultaria ainda num poema como “Perto de Perigord”, no qual os diálogos se tornam mais explícitos (sendo, porém, imaginários, e expressos em inglés) e, por fim, ganharia contornos definitivos e exemplares nas primeiras estrofes do “Canto XX”, no qual Pound narra a sua visita a Emile Lévy, estudioso de poesia provengal e da língua dos trovadores. Em seu comentário acerca de “Perto de Perigord”, Villa afirma que apenas em um trecho do poema “(...) podemos observar que Pound praticamente deixa o estilo narrativo e quase adentra a colagem” (VILLA, 2011, pp. 339-340) - colagem que seria uma marca dos Cantos. Villa também assinala essa diferenca entre “Provincia deserta” e “Perto de Perigord” em relacáo aos Cantos ao dizer que a prática de evocagáo poundiana “(...) sofreria modificacóes durante o período dos Cantos, quando a narrativa ficcional em versos de Robert Browning é superada em favor de um modelo cambiante e fragmentário (muitas vezes documental) do registro poético da experiéncia” (Idem, p. 332) - sendo justamente esse caráter documental e fragmentário o fator que provoca e evoca as tantas citagóes. Já no início do “Canto XX”, no segundo verso, Bernart de Ventadorn é evocado por meio de uma citacáo, feita diretamente em provengal - com o que Pound alcanca um nível de radicalidade na sua abertura á voz alheia que náo se encontrava ainda em “Provincia deserta”, uma reflexáo sobre a voz alheia feita com a própria voz, ou “Perto de Perigord”, no qual há uma série de diálogos fictícios apresentados em inglés. Mais adiante, o poeta norte-americano narra a sua visita a Lévy, quando procurava descobrir o significado da palavra “noigandres”, lida - ou 85 escutada - numa cancáo de Arnaut Daniel. A certa altura do diálogo entre Pound e O pesquisador, surge o verso “Sound: as of the nightingale too far off to be heard” (POUND, 1996, p. 90) - mais adiante repetido, a enfatizar: The sound, as I have said, a nightingale Too far off to be heard. (Idem, ibidem)?8, como a ilustrar a própria situagáo das palavras e das cangóes provengais - já quase impossíveis de serem ouvidas. Antes, logo ao ser questionado por Pound, Lévy repete duas vezes a enigmática palavra: “And he said: Noigandres! NOlgandres” (Idem, p. 89)?9, como se inicialmente surpreso diante do interesse do poeta e, em seguida, exasperado por uma vontade de trazer á vida a palavra da língua morta. Língua morta: em seu estudo sobre A linguagem e a morte, Agamben observa que “(..) um dos primeiros lugares em que se apresenta, na cultura ocidental, a ideia, que hoje nos é familiar, de língua morta”” (AGAMBEN, 2006, p. 53) é o texto De Trinitate, de Agostinho. Assim Agamben resume o argumento do filósofo medieval: Suponhamos - ele diz - que alguém ouga um signo desconhecido, o som de uma palavra da qual ignora o significado, por exemplo, a palavra temetum (um termo desusado para vinum). Certamente, ignorando o que ele queira dizer, desejará sabé-lo. Mas, para isso, é necessário que ele saiba que o som que ouviu náo é uma voz vazia (inanem vocem), o mero som te-me-tum, mas um som significante (Idem, pp. 53-54). Esse desejo de saber ou conhecer o significado que a palavra morta carrega é definido por Agostinho em termos de amor: “Aquele que com zelo ardente procura saber e, aceso pelo desejo, persevera, pode-se dizer que náo tenha amor?” (AGOSTINHO apud AGAMBEN, 2006, p. 54). A relacáo entre voz e morte (e amor) é 78 “Som: como de rouxinol longe demais para ser ouvido” (POUND, 1983, p. 182) e “O som, como disse, um rouxinol/ longe demais para ser ouvido” (Idem, ibidem) é como os irmáos Campos e Pignatari traduzem os versos citados do “Canto XX”. 79 “E ele disse: Noigandres! NOlgandres!”” (POUND, 1983, p. 182). 86 logo percebida e indicada por Agamben: “É importante salientar, aqui, que o lugar desta experiéncia, que mostra a vox na sua pureza originária como querer-dizer, é uma palavra morta: temetum” (AGAMBEN, 2006, p. 54)%, Pode-se dizer que Pound, em método semelhante ao proposto por Zumthor, escutou o eco, Escutá-lo, no entanto, náo foi tudo - pois, como observa Cavarero, ao analisar o mito original de Eco, “Depois da condenacáo dada por Juno - (...) -, Eco náo é mais um zoon logon echon e náo possui, portanto, uma phoné semantiké. É, pelo contrário, pura phoné, ativada por um mecanismo involuntário de ressonáncia” (CAVARERO, 2011, p. 196): a busca de Pound pela reconstituigáo da pura phoné em phoné semantiké é o que o leva á pesquisa em torno de “noigandres” e, no limite, ao estudo e á traducáo dos textos provengais, que realiza em profusáo. Daí a sua semelhanga com Zumthor ser apenas parcial: Pound se interessa tanto pela acáo quanto pelo que ela possibilita comunicar. Na relagáo possível entre as reflexóes de Agostinho e Agamben e a poesia de Pound, sobretudo neste “Canto XX”, em que se expressa o desejo amoroso de saber do poeta norte-americano diante da palavra morta, da voz esquecida, ecoa a discussáo levantada no primeiro capítulo da dissertacáo, no qual a ideia de apego e de amor ao morto marca o luto peculiar dos poetas situados á retaguarda da vanguarda quando confrontados pela decadéncia e pela suposta morte da arte precedente. Diz Barthes, autor que conduz a reflexáo sobre o amor e o luto, que “Toda relacáo com a voz é amorosa” (BARTHES, 1990, p. 248) - o que se pode completar 80 Num outro ensaio (“Pascoli e il pensiero della voce”, do livro Categorie italiane) em que apresenta essa mesma discussáo, Agamben salienta também a relasáo entre morte e amor, que interessa ainda mais para as discussóes aqui propostas: “Importante e, pero, rilevare che il luogo di questa esperienza d'amore, che mostra la vox nella sua purezza originale, é una parola morta, um vocabulum emortuum: temetum” (AGAMBEN, 1996, p. 69, grifo meu). 87 aqui discernir na obra de Pessoa - ali, em seus poemas - náo apenas a tematizacáo, mas a própria realizacáo, dramatizacáo e exibicúo do momento em que esse vazio é preenchido por uma outra voz, alheia - o momento mesmo em que o poeta, esse vácuo, é possuído. Porque para Pessoa (e, viu-se, também para Pound), “Náo basta que vos faga um discurso sobre a voz. É preciso ainda saber com que voz o proferir. Que voz falará da voz?” (NANCY, 2013, p. 3). Os momentos de possessáo de Pessoa a serem analisados revelam que o poeta costuma ser tomado náo propriamente pelas musas de origem divina, mas sobretudo pelas figuras da tradicáo literária das quais ele se torna rapsodo, e muitas vezes por meio dessa musa leiga que é a citacáo (que, como ficou demonstrado, é táo comum e central na poética de Ezra Pound). Os versos listados na primeira segáo desse capítulo, ainda no ámbito do debate com Augusto de Campos, consistem quase todos em perguntas: quem dita o que o poeta medita?, quem o habita e olha através dos seus olhos?, quem o usa como uma espécie de tela em branco (vazia, portanto) para sua própria pintura? Uma das dramatizacóes mais nítidas do momento posterior, aquele em que o poeta encontra - ou fornece ao leitor - a resposta para as suas perguntas, está na “Ode marítima”. Ao longo de suas tantas páginas, o que se lé é uma grande sequéncia de possessóes e um grande número de vozes que cabe ao poeta emitir. A certa altura, lembra-se de uma velha tia sua e escreve: E outras vezes, numa melodia muito saudosa e táo medieval Era a “Bela Infanta”... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim (PESSOA, 1969, p. 330, grifo meu). Em seguida, aparecem citados os versos da antiga cangáo: “Lá vai a Nau Catrineta/ Por sobre as águas do mar” (Idem, ibidem). Mais adiante, a voz da tia retorna, 90 ainda em uma cancáo, agora a da “Bela Infanta”82, É preciso assinalar que, nessa voz que vem da infáncia, ecoa todo o afeto e o amor enlutado frente a um passado perdido, no qual ninguém estava morto. Na sequéncia da “Ode marítima”, irrompe outro canto, outra voz, esta mais violenta, atribuída ao “Grande Pirata” - que cita e entoa em inglés os versos da cancáo marítima criada por Robert Louis Stevenson para o seu romance Treasure Island: Evoco, por um esforco voluntário, para sair desta emogáo, Evoco, com um esforco desesperado, seco, nulo, A cangáo do Grande Pirata, quando estava a morrer: Fifteen men on the Dead Man's Chest. Yo-ho-ho and a bottle of rum! (Idem, p. 351, grifo meu). Observe-se, já de início, que a voz é evocada com o claro e declarado intuito de despersonalizacáo: ela vem para que o poeta saia da emogáo que sente e, portanto, experimente a emocáo alheia. Daí, afinal, a centralidade do tema da voz na “Ode marítima”: o desejo constantemente expresso de ser tudo e de tudo sentir se realiza por meio da experiéncia da possessáo pela voz alheia, por todas as vozes alheias possíveisé3, Desse modo, tanto as vozes ternas da infáncia8* quanto as vozes dos piratas cruéis soam por meio do poeta. Há ainda o grito recorrente do marinheiro Jim Barns (“4h0-0-0-0-0-0-0- 0-0- 0-0 - yyyy... /Schooner ah0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0 — yy yy...” [Idem, p. 324]), que a certa altura se confunde inclusive com aquelas que seriam as vozes do ar, das ondas do 82 A percepsáo desse diálogo explícito, dessa irrupgáo de uma voz alheia no poema, é facilitada e acentuada por uma leitura que - tal como a do ator portugués Joáo Grosso - de fato entoe a cansáo, destacando-a do resto do poema. 83 “A voz humana é, na verdade, o espaco privilegiado (eidético) da diferenca (...). A psicanálise coloca esse objeto sempre diferente na categoria dos objetos de desejo: náo há nenhuma voz humana que náo seja objeto de desejo” (BARTHES, 1990, p. 248) se Que chegam pela lembranga da tia e também pela confusáo entre a grito do mar e “(...) um aroma, uma voz, o eco duma cangáo/ Que fosse chamar ao meu passado/ Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter”(PESSOA, 1969, p. 329). 91 mar etc, - evocadas e dramatizadas no momento mais extático do poema, quando onomatopeias e distorcóes e exageros ortográficos reproduzem o instante em que “Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos,/ Marés, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!” (Idem, p. 328); acrescente-se: e o mar, e o mar, pois, neste poema (bem como em tantos outros versos seus), o lugar da voz é o mar, o oceano: “Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no MA-A-A-AR!/ Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EH-EH-EH-EH! No MA-A-AA-AR!” (Idem, ibidem). Veja-se, a título de exemplo, o caso de “As ilhas afortunadas”, poema de Mensagem, no qual se descreve uma voz vinda do mar - mas que náo se confunde com a voz do próprio mar. Em sua análise desse texto, Paulo Borges relaciona-o, a certa altura, ao célebre soneto “Na máo de Deus”, de Antero de Quental. É curioso, no entanto, que náo o aproxime de “Oceano nox”, no qual o poeta oitocentista - tal como Pessoa - descreve uma tentativa de escuta diante do mar: “Junto do mar, que erguia gravemente/ A trágica voz rouca (...)” (QUENTAL, 1943, p. 277), lé-se nos dois primeiros versos; em seguida, o poeta segue inquirindo o que quer dizer essa voz (que é do mar, da Natureza, e que deve ter, portanto, algo do Divino). Mas isso de nada adianta, pois só se ouve “Um bramido, um queixume, e nada mais...” (Idem, ibidem). No poema de Pessoa, por sua vez, o que se nota é uma alteracáo do interesse diante da voz: náo importa escutar ou entender o que ela diz, mas saber quem a emite: “Que voz vem no som das ondas/ Que náo é a voz do mar?” (PESSOA, 2007, p. 64). O foco se volta, portanto, ao sujeito que diz. Além disso, a voz sai da esfera da Natureza (e do Divino, talvez) e entra no ámbito mais restrito da História85 - já que ela é, obviamente, a voz do Encoberto. Desse modo, enquanto Antero náo consegue distinguir o aspecto significante na voz do Mar, Pessoa pode 85 E também do Mito. Sobre isso, ver a nota 10, nesse mesmo capítulo. 92 No relogio que diz que é meio-dia A'toda a gente que aqui perto mora. (O commentario é do Camóes agora:) "Triste o que espera! Triste o que confia!" Como o nosso Camóes, qualquer podia Ter dito aquillo, até outrora. E ainda é uma grande coisa a ironia (PESSOA, 2004, p. 34). “Triste o que espera! Triste o que confia” é a voz de Camúes posta a ressoar explicitamente entre os versos de Pessoa. O interesse desse poema aumenta na medida em que o observamos como um desdobramento do trato de Pessoa com a voz de Camóes tal como aparecera na Mensagem - se antes era dissimulada, agora surge explícita por meio da citagáo. No entanto, como já se fez notar, evocar a fala da tradigáo náo é um mero recurso para confirmacáo de um suposto lugar bem assentado e resolvido que ela ocuparia. Camóes, neste poema, e o confirma o próprio Pessoa em seu último verso, é chamado ao diálogo por meio da ironia. “Triste o que espera! Triste o que confia” é como se encerra o soneto cujo verso de abertura é “Quando os olhos emprego no passado” e cujo tema, um tanto grave, é o arrependimento diante do tempo e da energia mal-empregados nos dias idos da juventude. A consciéncia temporal de Pessoa, exposta nos trés primeiros versos, é já uma proposta de rebaixamento do tema de Camóes: se este o encara dentro de um longo prazo, no ámbito mesmo de toda uma vida, aquele o concentra numa manhá qualquer, curta como todas as manhás, que se encerra com o som do badalar cotidiano de um relógio de praga. E é nesse contexto que o verso camoniano é introduzido, por meio da citagáo - para, logo em seguida, ser alvo de outra desfeita, talvez ainda mais dura: pois, ainda que o tenha dito o nosso Camóes (pronome que já serve para rebaixar Camóes de uma dimensáo épica a um 95 patamar folclórico), esse verso é banal a tal ponto que poderia ter sido dito por qualquer um. Observe-se, contudo, que a ironia náo denota, necessariamente, uma postura de reacáo ou de desprezo - afinal, a voz foi evocada e encontrou seu lugar no novo poema, a citacáo precisou ser feita. Como diz Compagnon, a citacáo na escrita pressupóe uma excitacáo na leitura: “A citagáo tenta reproduzir na escrita uma paixáo da leitura, reencontrar a fulguragáo instantánea da solicitacáo, pois é a leitura, solicitadora e excitante, que produz a citagáo” (COMPAGNON, 2007, p. 29). Retomando uma ideia explorada no capítulo anterior, segundo a qual a crítica de Pessoa é, sobretudo, uma crítica de eleigáo, e em geral direcionada, segundo o próprio poeta, áqueles nos quais ele enxerga valor, essa relacáo irónica se torna ainda mais ambígua: “Triste o que espera! Triste o que confia!” seria, entáo, um verso indigno do engenhoso soneto camoniano? Esse desdobramento - que vai da presenga difusa de Camóes em Mensagem á sua evocacáo explícita por meio da citagáo - náo indica, contudo, uma elevacáo no grau da relacáo entre os poetas (e o trato irónico dispensado a Camóes, no segundo caso, é mais uma evidéncia disso). Basta uma rápida observacáo no “Intertexto: Os lusíadas”, preparado por Gagliardi para a sua edigáo da Mensagem, para que se conclua que a presenca fantasmal de Camóes, neste poema, é muito mais significativa do que a presenca explícita em “Já ouvi doze vezes dar a hora...”. Esse trato sutil que Pessoa dá ao tema da voz pode ser muito bem ilustrado por uma análise de “O mostrengo”, poema que, como anota Gagliardi, ecoa o “Canto V” dos Lusíadas. Curiosamente, “O mostrengo” é um poema em que se repete o expediente de ceder a voz por meio das aspas, portanto de uma citacáo - o poeta deixa falar o mostrengo, que é, afinal, o gigante Adamastor cuja voz se ouve nos 96 Lusíadas. Eis, entáo, um modo curioso de fazer soar a voz de Camúes na Mensagem: fazer soar a voz de um personagem de Camóes. Na sua leitura de “O mostrengo”, Sadlier aponta para uma possível relacáo deste com “O Corvo”, traduzido por Pessoa em 1918, mesmo ano em que escreveu o seu próprio poema. Segundo a estudiosa norte-americana, “(...) the dark, forbidding atmosphere of the poem, with its series of exchanges between the birdlike creature and a lone helmsman” (SADLIER, 1998, p. 55) remetem diretamente a um débito de Pessoa para com o poema de Poe, No entanto, mais do que débito (termo que talvez conduza a um debate preso a questóes de fonte e influéncia), essa insuspeitada intromissáo do poeta norte-americano parece ideal para que Pessoa dé ainda mais dramaticidade e profundidade ás suas experiéncias com vozes alheias - afinal, nesse poema de trés estrofes, em que o mostrengo voa, roda e fala trés vezes, trés vozes soam: a de Pessoa, a de Camóes, a de Poe - todas sob o controle do próprio Pessoa, que, á maneira de El-Rei D, Joáo Segundo, controla o leme e pode dizer “Aqui ao leme sou mais do que eu” (PESSOA, 2007, p. 81). Outra presenga provável - mas também algo escondida, dissimulada - na Mensagem é a de Guerra Junqueiro, poeta bastante apreciado e louvado por Pessoa, e autor de Pátria, uma obra de fundo histórico-nacional que tem sua estrutura baseada no drama em versos, em diálogos%, Massaud Moisés, escrevendo sobre as relacóes entre Camóes, Junqueiro e Pessoa (e náo sem algum exagero), observa que “Um cotejo entre Os lusíadas, a Pátria e a Mensagem o diria claramente: pelo tom, pela intuigáo e, de certo modo, pela matéria, a Mensagem se aproxima mais da Pátria do que de Os lusíadas” (MOISÉS, 1988, p. 184). O crítico brasileiro, no 90 Recorde-se ainda, de Guerra Junqueiro, Finis Patriae, outro conjunto de poemas de temática nacional (e profundamente pessimista) formulado com base em falas alheias. Isso já está indicado no título de quase todos os poemas: “Falam as escolas em ruínas”, “Falam as estátuas de heróis”, “Uma voz natreva” etc. 97
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