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Guias e Dicas
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Donald Winnicott: Um Pensador Nômade - A Relação Mútua entre Vida e Arte, Notas de estudo de Comunicação

Desenvolvimento HumanoPsicanálisePsicologia da Criança

Donald winnicott foi o primeiro pediatra a se dedicar à prática psicanalítica. Sua escrita oferece testemunho da relação dependente e vivificante entre vida e arte. Winnicott sublinhou a importância da relação entre mente e corpo, a evolução do indivíduo a partir das necessidades corporais e a importância do ambiente na formação da personalidade. Além disso, ele destacou a importância de lidar com a agressividade primitiva e a necessidade de criar condições para que a criança se desenvolva.

O que você vai aprender

  • Como Winnicott descreve a relação entre mente e corpo?
  • Quais foram as pequenas loucurdas legítimas, segundo Winnicott, que derivam de transições?
  • Quais foram as ideias de Winnicott sobre a agressividade primitiva?
  • Qual foi a contribuição de Donald Winnicott à psicanálise?
  • Como Winnicott descreve a importância do ambiente na formação da personalidade?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Pernambuco
Pernambuco 🇧🇷

4.2

(47)

113 documentos

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Pré-visualização parcial do texto

Baixe Donald Winnicott: Um Pensador Nômade - A Relação Mútua entre Vida e Arte e outras Notas de estudo em PDF para Comunicação, somente na Docsity! 64 3. Donald Winnicott: um pensador nômade Ele é louco, mas é genial! (Decobert, apud Clancier & Kalmanovitch, 1984, p. 13, sobre Winnicott). (...) um psicanalista como Winnicott mantém-se realmente no limite da psicanálise, porque tem o sentimento de que este procedimento não convém mais num certo momento. Há um momento em que não se trata mais de traduzir, de interpretar, traduzir em fantasmas, interpretar em significados ou em significantes (...). Há um momento em que será necessário partilhar, é preciso colocar-se em sintonia com o paciente, é preciso ir até ele partilhar seu estado. Trata-se de uma espécie de simpatia, de empatia, ou de identificação?” (Deleuze, 1973/1997, 322, grifos nossos).34 Qual é a principal contribuição winnicottiana para o traçado de um conceito de corpo? Ou ainda, por que revisitar a obra de Donald Winnicott para pensar o gesto e o afeto na clínica contemporânea? Winnicott ressurge intensamente nas últimas duas décadas como um importante autor no cenário psicanalítico, em função da forma pela qual aborda a vida subjetiva. Podemos afirmar que o mesmo ocorre em relação a Ferenczi. Para dar conta dos chamados casos limítrofes, a teoria de Winnicott produz dois movimentos fundamentais que sugerem a transformação do olhar sobre o mundo e sobre as coisas. Primeiramente, ela dissolve a idéia de uma mente pensada em termos representacionais, isto é, aquela que espelha o mundo, destacada de um corpo, e também rompe com a afirmação de que o sujeito, via de regra, “representa” o seu entorno. Para Winnicott, não é o indivíduo que é o núcleo ou célula, mas o conjunto constituído pelo ambiente e pelo indivíduo. Assim, o centro de gravidade do ser tem bases num todo formado por esse par. O sujeito existe no mundo a partir do campo de afetações que se estabelece no “espaço intermediário” que, como veremos, não é, nem interior, nem exterior ao mundo e ao homem. Fica evidente um continuum não hierárquico entre o indivíduo e o ambiente. Uma perspectiva não dualista como essa refuta convicções em geral, sobretudo aquelas que estabelecem fronteiras entre interioridade e exterioridade, sujeito e objeto, e, para nós a mais cara, mente e corpo. Para escapar dessas armadilhas dicotômicas é necessário se deixar levar pelos ventos das artes e 34 Percebe-se essa modalidade de atendimento, a de se colocar em sintonia com o paciente, partilhar seu estado no manejo clínico, tanto em Ferenczi quanto em Winnicott. 65 propiciar um espaço para dimensão estética e afetiva da clínica. E o que seria essa dimensão estética? Se a mais simples tradução da palavra estética é “um estudo das condições e dos efeitos da criação artística”, em termos clínicos a obra de arte seria nada mais, nada menos, do que a vida35 e suas condições, a “atmosfera” afetiva do setting experimentada pelos corpos ali envolvidos. Fazer da vida uma obra de arte é um projeto político de existência, que afirma a vida como potência de criação: pensar “a existência não como um sujeito, mas como uma obra de arte (...) esse último estágio, é o pensamento artista” (Deleuze, 1990/2003, p. 131). O trabalho de quem cuida se direcionaria, então, menos às pessoas e mais ao campo de afetação entre os corpos envolvidos na atmosfera clínica. Principalmente, se tivermos em mente a experiência da regressão aos estados iniciais ou impessoais do amadurecimento. Numa carta datada de 13 de novembro de 1946, dirigida a Ella Sharpe, Winnicott vacila em torno da possibilidade de que a psicanálise seja uma arte. “Quando a ouço falar da psicanálise como uma arte vejo-me em dificuldades, não desejando discordar completamente, mas temendo que se dê a esse seu comentário importância excessiva” (Winnicott, 1946/2005a, p. 14). Em outro momento, ele titubeia mais uma vez: A idéia da psicanálise como uma arte deveria ceder seu lugar gradualmente ao estudo da adaptação ambiental referente à regressão dos pacientes. Mas enquanto o estudo científico da adaptação ambiental não se desenvolve, suponho que os analistas deverão continuar a agir como artistas em seu trabalho [ele quis dizer, num parágrafo acima, quando agem intuitivamente]. Os psicanalistas podem ser realmente bons artistas, mas (conforme perguntei diversas vezes): que paciente deseja ser o poema ou o quadro de alguém? (1954/2000, p. 389). Essas frases resumem uma característica que acompanha toda a argumentação winnicottiana: um posicionamento intermediário de hesitação, que pode ora oscilar para uma afirmação, ora para uma negação. Nesse caso específico, de que a psicanálise seja, ou não, uma arte. De qualquer maneira, para ele, um indivíduo saudável é um artista que cria e recria o mundo a cada instante. “O estilo, em um grande escritor, também é sempre um estilo de vida, de maneira alguma uma coisa pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, 35 Ver também o texto deleuziano sobre os escritos de Foucault, intitulado “A vida como obra de arte”. In: Pourparlers: 1972-1990. 68 Segundo Winnicott, para inventar uma língua própria, seria necessário destruir aquela que a antecedeu. Sobre Winnicott, e o seu estilo exemplar, é interessante imaginar e apontar resumidamente o seu percurso, já que a sua formação de base foi em medicina. Na época, ainda não havia a especialidade em pediatria, mas era essa a sua área. Parece que as crianças têm muito para ensinar e, junto a elas, Winnicott abriu as janelas para um novo mundo dentro da psicanálise. Mesmo sem negar a influência de seus mestres diretos e indiretos, Winnicott não verteu a sua pesquisa sobre uma teoria pronta, mas foi a sua própria experiência que lhe serviu de sustentação para criar novos paradigmas. Depois de muito observar os bebês e suas mães, ele elaborou a chamada “teoria do desenvolvimento emocional primitivo”, que deu título a um artigo que marca um movimento tangencial no que se refere à prática psicanalítica clássica. No entanto, dois pontos devem ser ressaltados: Winnicott não se considera autor de uma nova técnica e tampouco achava necessário qualquer alteração no modelo proposto por Freud para um trabalho de análise bem-sucedido. De forma sub-reptícia, ele parece abrir mão dessa autoria. O seu trabalho “foi uma progressão natural para a psicanálise, envolvendo uma nova compreensão, mas não uma nova técnica” (Winnicott, 1945/2000, p. 219). Para Winnicott, a técnica clássica já seria suficiente para precipitar elementos primitivos na cena clínica, a partir de mudanças na situação de transferência. As mudanças as quais sugere estão na esfera do manejo, que podem acontecer também em estágios de regressão a um “(...) ponto em que haviam falhado na primeira infância, exigiam [os pacientes] um ambiente de apoio como um corretivo de onde poderia ser retomado o desenvolvimento” (Rodman, 2005. p. 38, grifo nosso). Concordamos com Rodman que, para lidar com os estágios de regressão em análise, temos que fornecer um ambiente consistente, que sirva de amparo para o analisando, a partir de uma atitude mais afetiva e menos insípida diante de seu sofrimento. Porém não com o intuito de corrigir algo, como se fosse possível uma obturação, nem de retomar um determinado momento da vida do paciente, mas, talvez, de propiciar outros começos, que não fossem falhos em sua precocidade e sua precariedade. 69 Na esteira de Ferenczi, Winnicott atentou às fases que antecedem ao estabelecimento do Complexo de Édipo, contemplando os chamados casos difíceis que, em suma, não se encaixavam no modelo histérico e neurótico. A partir da capacidade de se comunicar com níveis mais arcaicos da personalidade, foi possível para eles dar conta de tipos psíquicos diferentes das neuroses clássicas. Alguns aspectos nos chamam a atenção nessas modalidades de fazer psicanálise, entre eles: uma visão monista, não teleológica, do acontecer emocional e do psique-soma. Para Winnicott, qualquer que seja o lado físico da questão, há sempre o lado emocional (1945/2000, p. 221). “Quando falamos da mente que influencia o corpo ou do corpo que influencia a mente, estamos meramente usando uma linguagem taquigráfica conveniente (...)” (Jones, apud Winnicott, 1949/2000, p. 333). O estilo “exemplar” de Winnicott é dotado de uma plasticidade que permite infinitas possibilidades de leitura. A multiplicidade de aberturas nele contidas promove um espaço para que cada um tenha o seu “próprio Winnicott”. Quero dizer que nem todos os winnicottianos compactuam com o fato de que o autor adota uma visão monista entre psique e soma. É o caso da assídua comentadora Dias, como podemos perceber na seguinte afirmação: A tese de Winnicott de que a existência humana é essencialmente psicossomática não implica um monismo, que obscurecesse as especificidades do soma e da psique assimilando um ao outro. O que há, sim, é um dualismo (...). Não se pode, contudo, de modo algum, aproximar o dualismo winnicottiano, que tende naturalmente à integração, da dicotomia cartesiana mente e corpo (Dias, 2003, p. 112, grifos nossos). Retomaremos mais adiante essa questão por sua grande pertinência para o estudo do tema aqui proposto, quando abordarmos o estágio de personalização. Por ora, adiantamos que nossa percepção monista do psique-soma se apóia no conceito de substância38 em Spinoza, isto é, psique e soma seriam dois modos de apresentação uma mesma substância. Costa (2004) parece comungar com o nosso posicionamento, ao afirmar que: 38 “Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado. Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência. Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual também é concebido” (Spinoza, 2007, p. 13). 70 Psique, soma e mente não são fragmentos do organismo humano, exteriores uns aos outros e colocados como peças de uma engrenagem imaginária. Fraccionar intelectualmente a psique-soma em “partes” é uma forma cômoda de isolar facetas de relação organismo-meio, relevantes para certos propósitos em certos contextos (Costa, 2004, p. 106). Outros pontos de coincidência entre Winnicott e Ferenczi a serem destacados são: a qualidade da escuta no setting; a disponibilidade oceânica do analista em perceber a criança que está presente em todo adulto, que inclui a técnica da regressão; e, ao que tudo indica, a sustentação do paradoxo, já que a sua solução implicaria a perda de seu valor. Os paradoxos desvanecem o sentido único. São entidades escorregadias por serem impossíveis, e opacas por serem oscilantes. Escapolem do princípio de contradição porque se caracterizam pela afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo (...). O paradoxo dissolve a solidez do sentido e é a semente do indiscernível. Exprime o sensível incondicionado e, como paixão do pensamento, estabelece que não pode ser instaurado em um único sentido, mas sim que a linguagem o carrega para o imprevisível e irreconciliável (Cangi, 2005, p. 24 e 25). De fato, falar de “previsibilidade”, no que se refere ao encontro que se estabelece na clínica e no ambiente maternante, é cair em normas que nem sempre, ou nunca, dão conta dos acasos que brotam dessas situações. Ademais, o laboratório de Winnicott foi a sua prática, que, certamente, o estimulava ao improviso. Winnicott foi o primeiro pediatra a enveredar para a prática psicanalítica (Phillips, 1988/2006, p. 27). É interessante assinalar que ele nunca abandonou a pediatria em prol da psicanálise. Sem dúvida, esse fato aparece ora escamoteado, ora mais evidente, nas suas produções. O contato contínuo com a clínica pediátrica o levou a observar cada vez mais profundamente o comportamento entre os bebês e as suas mães, tornando-o cada vez mais íntimo da misteriosa atmosfera que reina no mundo interpessoal do bebê. A própria percepção do corpo do bebê é contaminada pelo seu olhar atento, curioso e perspicaz, essencial não só para um pesquisador como para aquele que pretende cuidar do outro. (...) Winnicott não vê nenhum contra-senso em permanecer psicanalista ao mesmo tempo em que, apoiado na sua experiência paralela com bebês e com psicóticos (...). Imposto pelos novos fenômenos clínicos, esse questionamento visa pôr em pauta diferenças teóricas na concepção de doença e saúde psíquicas, fundadas, por sua vez, nas diferenças conceituais sobre psiquismo e natureza humana (Dias, 2003, p. 76). 73 final, continua aberto para futuras indagações. Não existe uma falta de ordem, nem de rigor, mas o seu modo de organização é paradoxal e inexato. A sua percepção não progressiva do acontecer emocional é fruto dessa maneira de construir uma teoria, e vice-versa. A própria noção de desenvolvimento que transita por toda a sua obra não está implicada numa progressividade: princípio, meio e fim. Os estágios winnicottianos se interpenetram e paradoxalmente não se completam. Winnicott percebe o indivíduo como uma multiplicidade e não como uma totalidade39 encerrada. Para ele, a derradeira marca da saúde, que jaz na idéia de completude, não faz parte da vida. As tarefas que decorrem da tendência ao amadurecimento nunca se dão por concluídas. Tanto em Ferenczi, quanto em Winnicott, a vida é marcada por lutas sem fim que incluem o devir, isto é, acontecimentos. Compactuamos40 com Dias, quando afirma: Considero-o [o termo amadurecimento] preferível a “desenvolvimento” ou “maturação”, pois estes termos costumam ser usados (...) de forma indiscriminada (...). Além disso, a língua inglesa não tem, como o português, um verbo como “amadurecer”, que, a meu ver, guarda o sentido eminentemente pessoal que Winnicott confere a esse processo (Dias, 2003, p. 93). A obra winnicottiana pode ser considerada um “rizoma” em que se agenciam as invenções conceituais. O conceito de “rizoma” vem de encontro ao pensamento arbóreo cartesiano, que pressupõe uma origem, um meio, quer dizer, um centro e um fim. O rizoma funciona por proliferação e não exatamente por ligação. Para Deleuze e Guattari, o pensamento da diferença não é arborescente, é rizomático: (...) diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza (...). Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio [em Winnicott, um entre] pelo qual ele cresce e transborda (Deleuze & Guattari, 1990, p. 32, grifos nossos). 39 O autor utiliza a expressão “pessoa total” (1975, p. 46) para caracterizar um determinado estágio do desenvolvimento, e não uma totalidade, já que nomeamos este estágio de rumo à independência, que traz em si a idéia de processo e não de completude. 40 Embora, porventura, possamos utilizar, no decorrer do texto, os termos “amadurecimento” e “desenvolvimento”, descartamos uma possível tradução dos mesmos, calcada numa dimensão progressista, privilegiando, assim, um sentido que inclui o devir. 74 Como Ferenczi, Winnicott pode ser considerado um pensador que marca com a sua postura um diferencial prático e teórico. Para direcionar os seus escritos, Winnicott fazia uma espécie de bricolage41, um trabalho manual, ou ainda, um mosaico, contendo pedaços de sua autoria e outros não. O exemplo do mosaico é interessante, pois ao terminar a obra de arte, com os pequenos pedaços colados entre si, já não se sabe mais o que pertence a quem, ou seja, uma espécie de caleidoscópio que sugere a morte do autor, tão cara e preciosa para quem pratica a escrita, e por que não dizer, para quem experimenta os processos de criação. Sem deixar de mencionar que, mesmo aparentemente completo, o mosaico tem pequenos espaços entre as peças, sugerindo a sua incompletude. A imagem do mosaico vem corroborar com a idéia filosófica de que os conceitos não têm um contorno regular. E, justamente por isso, não são passíveis de formar um encaixe de quebra-cabeça42 (Deleuze & Guattari, 1991/2005, p. 35). Numa carta para Melanie Klein, referindo-se de forma crítica a uma frase da “sra. Riviere”, Winnicott escreve: “dá a impressão43 de que há um quebra- cabeça do qual existem todas as peças; o trabalho adicional consistirá apenas em juntá-las” (1952/2005a, p. 44). O autor nos participa sua maneira de trabalhar, que, embora possa sugerir, não forma um quebra-cabeça, pois os encaixes, em função de seus “contornos irregulares”, não se dão de forma precisa: “O que acontece é que saio catando isso e aquilo, aqui e acolá, concentrando-me na experiência clínica, formando as minhas próprias teorias e então, depois de tudo, me interesso em descobrir de onde eu roubei o quê” (Winnicott, 1945/2000, p. 218). 41 Sobre o bricoleur, ver Deleuze & Guattari, 1972, p. 22. 42 “Os conceitos, como totalidades fragmentárias, não são sequer os pedaços de um quebra-cabeça, pois seus contornos irregulares não se correspondem. Eles formam um muro, mas é um muro de pedras secas e, se tudo é tomado conjuntamente, é por caminhos divergentes. Mesmo as pontes, de um conceito a um outro, são ainda encruzilhadas, ou desvios, que não circunscrevem nenhum conjunto discursivo. São pontes moventes” (Deleuze & Guattari, 1991, p. 35 e 36); as vezes até movediças, daí a necessidade de uma certa “prudência” no ato de derrubar ou atravessar um muro ou uma encruzilhada conceitual. Veremos mais adiante que a prudência tem um íntimo parentesco com a experiência do concern. 43 O que lhe deu essa impressão de um quebra-cabeça foi a seguinte frase de Riviere: “Klein produziu na verdade algo novo na psicanálise: a saber, uma teoria integrada que, embora ainda esquemática, leva em consideração todas as manifestações psíquicas, normais e anormais, do nascimento à morte, e não deixa nenhum golpe intransponível e nenhum fenômeno que se destaque em relação inteligível com o resto” (apud Winnicott, 1952/2005a, p. 47). 75 É fato que o autor nem sempre conseguia descobrir exatamente de quem roubou o quê. Ele apontará que a criança anti-social, quando rouba um objeto, o faz porque algum dia lhe pertenceu; no caso das suas idéias, elas parecem não ter uma autoria ou um dono preciso. Um depoimento oral ou escrito sempre relata uma experiência polifônica onde não existe só um eu que fala44. Seu texto vibrátil mostra como seria a sua prática atentando ao fato que para ele o cuidar tem primazia sobre o curar, ou seja, o que vale é a experimentação no processo analítico, seus meios e não o seu fim. Um método ensaísta não teleológico, ou ainda, um antimétodo? Podemos considerá-lo – como sugeriu Gilles Deleuze (1973/1997) em “Ilha Deserta e outros textos” – um “pensador nômade”, que conseguiu estrategicamente atravessar os modelos teóricos pouco arejados, coagulados, em ultima análise, no teatro edípico. Ser nômade é ter um olhar de espreita que desconfia do que já está pronto, e, a partir daí, obter o fôlego para nadar contra a corrente. O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso, de início, apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga visão (Deleuze & Guattari, 1991/2005, p. 262). Ao nos debruçarmos sobre os escritos de Winnicott notamos que não existe propriamente uma teoria da sexualidade no acontecer humano. Encontramos uma teoria do amadurecimento emocional, que inclui a sexualidade, mas não é o seu núcleo. De modo que não privilegia a progressão das zonas erógenas, as conhecidas fases oral, anal e fálica. “Não se deve supor, entretanto, que Freud põe de lado todos os fatores patogênicos que não sejam de caráter sexual.” (Ferenczi, 1908a/1991, p. 21). Procede aqui afirmar que, entre Freud e Winnicott, passando por Ferenczi, existe um trajeto da teoria sexual à objetal. Conforme nos adverte Ferenczi, “é possível que a predominância da sexualidade na etiologia das doenças do psiquismo possa ser atribuída mais à nossa organização social do que à natureza específica dessa causa patogênica” (Ferenczi, 1909a/1991 p. 46). A visada winnicottiana estava mais direcionada para 44 “Existem muitas paixões em uma paixão, e todos os tipos de voz em uma voz, todo um rumor, glossolalia: isto porque todo discurso é indireto, e a translação própria à linguagem é a do discurso indireto” (Postulados da Lingüística, Deleuze & Guattari, 1980/2002b, p. 13). 78 personagens que para se manterem vivos devem estar sempre num equilíbrio instável, tal qual o Humpty Dumpty de Lewis Carroll45. Podemos perceber uma sintonia fina entre sua vida pessoal e profissional que deságua num inquietante questionamento: de que maneira esse autor manteve um diálogo polifônico entre teoria, clínica e experiência pessoal? Tudo indica que a sua espontaneidade infantil, da qual nos fala Khan, é mola desse processo. A partir da importância atribuída ao ambiente, Winnicott cunhou os conceitos de “objeto”, “fenômeno” e “espaço transicional”, traçando a sua própria linha de fuga. Nesse sentido, Winnicott trapaceou a sua própria língua materna, ou seja, a língua de seus mestres. Para ele, os “fenômenos transicionais” são universais, todavia, a experiência que cada indivíduo adquire a partir deles é singular. “É universal e de variedade infinita” (Winnicott, 1975, p. 10). Dentre as várias contribuições de Winnicott, a que importa para o tema aqui tratado é que a sua teoria nos inspira a criar novas modalidades para se pensar e fazer psicanálise, valorizando a plasticidade gestual e o seu veículo, isto é o corpo, presentes em toda a sua obra. Como num jogo de rabiscos, onde duas crianças brincam juntas, a partir de seus traços, elaborarmos o nosso próprio desenho sem o intuito de acabá-lo. “Nesse jogo, rabisco um tipo qualquer e impulsivo de traços e convido a criança que estou entrevistando a transformá-lo em algo; depois, ela também faz um rabisco para que eu, por minha vez, o transforme em algo” (Winnicott, 1975, p. 32). Em outras palavras, dar novos contornos às noções por ele apresentadas, pintar com elas, para que possam surtir novos efeitos nos quadros atuais. Para tal, é preciso todo um cuidado e uma atenção para com o texto, colocando as nossas idéias à disposição como um suporte (holding) para a escrita e atentar para não cair em traços estereotipados, que também chamamos aqui de decalques. Uma teoria é original na medida em que está afinada com vida, afeta e é afetada pelo mundo sensível, ou que se mantém viva “(...) já que não há nada pior do que uma linguagem morta” (Winnicott, 1952/2005a, p. 42). Ainda sobre o jogo de rabiscos Winnicott afirma: 45 Essa personagem trata-se de um “ovo” que se equilibra em cima do muro. Porém equilibrar-se em cima do muro não é se omitir diante de um posicionamento; é adotar uma posição mais extática do que estática, suscetível a um “equilíbrio instável” (Gil, 2003). Winnicott também se utiliza do Humpty-Dumpty para apresentar as primeiras etapas de integração do Eu-Sou, e, quando a mãe não se dedica ao bebê, quer dizer, ao “ovo”, ele acaba por se espatifar no chão. Ver também: Dias, 2003, p. 257. 79 (...) me sinto relutante em dar início a uma técnica (...). Seria uma derrota do principal objetivo do exercício, caso devesse surgir algo estereotipado (...). A liberdade absoluta é essencial para que cada modificação, se adequada, possa ser aceita. Talvez um traço distintivo seja não tanto o uso do desenho, mas a participação livre do analista que atua como psicoterapeuta (1954/2005, p.85). As nuances dos desenhos também apresentam movimentos, que incluem o prazer e a expressão do corpo, conjugam passado e presente num instante, num aqui e agora, e não necessariamente um material para interpretação. Sabe-se que Winnicott foi contemporâneo de uma época de grandes mudanças no campo da medicina. A psiquiatria infantil, por exemplo, em seus primórdios, além de ter como referencial a psicopatologia dos adultos, evidenciava uma grande preocupação com os fatores hereditários, negligenciando, assim, a importância do ambiente na etiologia dos distúrbios psicossomáticos; e, o que é pior, estava com a sua atenção mais voltada para as doenças do que para as pessoas. A partir do pensamento winnicottiano, procede afirmar que, as doenças psíquicas, às quais costuma ser atribuído um caráter hereditário ou constitucional, não são doenças no sentido usual do termo. Esta hipótese etiológica não é aceitável nem quando a constituição é pensada em termos psicológicos, como é o caso da psicanálise tradicional. A psicose não se define nem pela herança de algum processo degenerativo familiar nem é fruto de uma constituição desequilibrada das forças pulsionais (Dias, 2003, p. 73). Os conceitos criados por Winnicott estavam atrelados ao momento sócio- histórico que ele vivia, e não podem ser explicitados a não ser em função desse contexto. Temos como exemplo clássico as crianças com as quais trabalhou, que sofreram as conseqüências da ausência dos pais em função do afastamento de seus lares durante a Segunda Guerra Mundial. Winnicott teve a sutileza de perceber que, para alguns de seus pacientes, seria melhor estar longe de casa, com um cuidado especial, do que em seus lares conflituosos. Foi justamente nessa época que surgiu uma maior preocupação de Winnicott com o trato jurídico em relação à pessoa delinqüente ou anti-social: “Parece-me que há certos tipos de crime em que a sociedade está pronta para tratar em vez de punir – a homossexualidade, por exemplo, e as perversões em geral, a tentativa de suicídio, o infanticídio” (1950/2005a, p. 30). O autor só não foi feliz aí ao abrir uma possível brecha para uma comparação entre o homossexual e um criminoso. 80 Ainda em relação às questões políticas e sociais, que incluem possíveis reformas nos esquemas manicomiais, Winnicott formula uma crítica confessa sobre a prática da lobotomia comumente adotada nessa época, não se dispondo a “assumir a responsabilidade por transformar a pessoa que sofre em alguma outra coisa, num ser humano parcial que não sofre, mas que tampouco é a pessoa que foi trazida para o tratamento” (Winnicott, 1990a, p. 71). Outro fato importante foi a sua inspiração na teoria de Darwin sobre a origem das espécies. Se a espécie para sobreviver deveria se adaptar ao ambiente, em Winnicott, para que a criatividade, sinônimo de saúde, não se torne inibida, é o ambiente que deve se afinar com o indivíduo. Após examinar alguns trabalhos de Winnicott a respeito da técnica psicanalítica, veremos a sua utilidade no que se refere ao manejo numa prática atual, tendo como foco a importância do corpo e a sua linguagem gestual no âmbito clínico. 3.1. O acontecimento emocional em Winnicott Dias (2003) subdivide a obra de Winnicott em três momentos: (...) deixando de lado os textos da década de 1930, em que ele escreve como pediatra, pode-se distinguir três fases na sua obra: a que vai de 1940 até a publicação, em 1951, do artigo seminal sobre os objetos transicionais; a fase da década de 1950, em que a decisão de desenvolver sua própria perspectiva teórica fica mais explícita; e, finalmente, a fase que começa na década de 1960, sobretudo com a publicação do artigo “A integração do ego no desenvolvimento da criança” de 1962, no qual ele introduz os conceitos centrais de tendência inata ao amadurecimento e de objeto subjetivo (Dias, 2003, p. 18). Comentadora atenta e precisa da obra winnicottiana, Dias complementa o seu argumento, numa nota de pé de página, afirmando que embora desde a década de 1940 já fosse evidente o seu diferencial diante da técnica mais tradicional, Winnicott só se sentiu mais livre para propagar a sua postura teórica após o falecimento de Melanie Klein em 1960. Podemos concordar com a autora, no que se refere à subdivisão da obra winnicottiana em três etapas, ressaltando que, tal como ocorre nas fases do desenvolvimento emocional, não podemos pensá-las separadamente, mas num fluxo rizomático, contínuo e dinâmico, no qual as divisões são estabelecidas para 83 ambiente, representado e apresentado, inicialmente, em pequenas doses pela mãe (Winnicott, 1982). As experiências do bebê vão estar impressas no seu corpo como microcicatrizes, imperceptíveis, porém determinantes no conduzir de sua vida. O tempo de gestação também vai influenciar no desenvolvimento infantil, Winnicott percebeu grandes diferenças entre bebês prematuros e pós-maduros. Sugiro que, ao final dos nove meses de gestação, o bebê torna-se maduro para o desenvolvimento emocional, e que se um bebê nasce depois do tempo, ele atingiu este estádio no útero, forçando-nos a considerar seus sentimentos antes e durante o nascimento. Por outro lado, um bebê prematuro não vivencia muitas coisas importantíssimas até alcançar a época em que deveria nascer (...) (1945/2000, p. 222). As necessidades ambientais e a maneira como foram supridas vão acompanhar o indivíduo desde esses primeiros momentos, até que surja a morte “como derradeira marca de saúde”. Quando o autor afirma “eu quero estar vivo na hora da minha morte”, ele quer dizer que estar vivo depende do sentimento de sentir-se real e de que a vida vale a pena. Quando o que predomina é um sentimento de futilidade e uma falta de sentido para a vida, a pessoa sobrevive, mas não existe criativamente no seu estar no mundo. Nesse sentido, a saúde não se restringe a um bom funcionamento (silencioso) dos órgãos: a vida deve ser digna de ser vivida. Winnicott aproxima as dificuldades iniciais do bebê às sentidas pelos indivíduos que apresentam distúrbios esquizofrênicos. O comportamento psicótico seria proveniente de um desvio no processo de maturação ou, se quisermos, de um corte abrupto na linha de continuidade do ser (continuity of being), e, nos bebês, por sua evidente imaturidade, fragilidade e dependência absoluta de um ambiente adaptado. Daí a importância de um estudo profundo das primeiras relações entre o indivíduo e o ambiente para o tratamento de distúrbios emocionais delas oriundos. Para pintar o quadro sobre o desenvolvimento emocional, Winnicott se baseou em sua experiência pediátrica e teve como inspiração o comportamento de uma “mãe dedicada comum”. Segundo Winnicott, a organização psíquica interna da criança vai se dando de acordo com a qualidade ambiental provida nesse início pela mãe. E a mãe funciona como um importante operador nesse processo, mas o 84 estímulo ambiental que se imprime no bebê não se esgota na sua figura, ela é um “indutor qualquer” 47. De todo modo, a percepção empática da mãe devotada se baseia numa “razão afetiva” que não é aprendida em livros. A normalidade para Winnicott, como vimos, inclui algum grau de psicose na infância. É a organização posterior em torno de uma linha defensiva que pode ser detectada como uma doença. (...) é da psicose que um paciente pode recuperar-se espontaneamente, enquanto a psiconeurose não permite a recuperação espontânea, tornando o psicanalista realmente necessário. (...) a psicose tem um vínculo estreito com a saúde, pelo qual um grande número de falhas ambientais congeladas pode ser recuperado e descongelado pelos muitos fenômenos curativos da vida cotidiana, tais como as amizades, os cuidados recebidos durante uma doença física, a poesia etc. etc.” (Winnicott, 1954/2000, p. 381). Além disso, lembrando as palavras de Shakespeare: “nós somos muito pobres se não formos um pouco loucos” (Winnicott, apud Clancier & Kalmanovitch, 1984, p. 20). Esse é outro ponto que converge com o pensamento de Ferenczi discutido no capítulo anterior. Os psicanalistas experientes concordariam em que há uma gradação da normalidade não no sentido da neurose, mas também da psicose, e que a relação íntima entre depressão e normalidade já foi ressaltada. Pode ser verdade que há um elo mais íntimo entre normalidade e psicose do que entre normalidade e neurose; isto é, em certos aspectos. Por exemplo, o artista tem a habilidade e a coragem de estar em contato com os processos primitivos aos quais o neurótico não tolera chegar, e que as pessoas sadias podem deixar passar para o seu próprio empobrecimento (Winnicott, 1959/1990, p. 121). Teórico da relação objetal precoce, Winnicott se notabilizou por reconhecer a importância e valorizar da vida do bebê e do ambiente que o cerca, desde a vida intra-uterina. Segundo ele, o que vai definir a natureza humana48 é a relação que vai sendo estabelecida com o ambiente. 47 “Daí a idéia de que os estímulos não são organizadores, mas simples indutores: (...) indutores de natureza qualquer. Todos os tipos de substâncias, todos os tipos de materiais, mortos, fervidos e triturados têm o mesmo efeito. Os começos do desenvolvimento tinham permitido a ilusão: a simplicidade do começo, consistindo, por exemplo, em divisões celulares, podia fazer crer numa espécie de adequação entre o induzido e o indutor” (Deleuze & Guattari, 1972/1973. p. 121-2, grifos nossos). Num ambiente satisfatório, uma adequação entre o indutor (a mãe-ambiente) e o induzido. 48 O grifo deve-se a dois importantes fatores: natureza humana é título de uma obra fundamental do acervo winnicottiano, que segundo Dias, é o único livro em que encontramos uma apresentação global do processo do amadurecimento humano. Embora afirme que o bebê nasça com tendências 85 No início do desenvolvimento da criança, o que ela busca sem ter consciência é uma satisfação motora que não é necessariamente descarga. Na nomenclatura freudiana, o princípio de realidade e de recalcamento ainda não foi acionado. Em Winnicott, motilidade e instinto (ou “algo que chamamos de força vital que deve se exteriorizar”) estão intimamente relacionados (Winnicott, 1919/2005a, p. 5). A partir do gesto espontâneo os bebês visam a descobrir o ambiente. Em breve, comportamentos corriqueiros entre os bebês e suas mães se tornaram a sua “matéria-prima”, levando em conta que “(...) o comportamento do ambiente faz parte do próprio desenvolvimento pessoal do indivíduo e, portanto, deve ser incluído.” (Winnicott, 1975, p. 75). O autor valoriza o ambiente a tal ponto que o considera uma continuidade do indivíduo e vice-versa. Indivíduo e ambiente seriam feitos de uma mesma substância. Padrões de comportamentos da fase inicial da gênese emocional se tornam parte da criança e do futuro adulto. Logo, o inicial é constitutivo na formação do indivíduo. A relação mãe-bebê, foco dos estudos winnicottianos, é o que vai matizar os diversos tipos de afetos ao longo de uma vida. Segundo Winnicott, o ser humano é descrito em termos de olhos, boca, nariz, biótipo (o que seria da ordem do “universal”). Mas, mesmo que de gêmeos, dois rostos nunca são iguais. Quando em repouso, talvez sejam até mais semelhantes, mas, “tão logo se animam”, se tornam diferentes. Eu diria que nenhum rosto é igual, nem nossas expressões e percepções, porque, “de uma maneira geral, não há uma única posição do corpo que seja estática. O corpo mexe-se sempre imperceptivelmente porque está sempre em equilíbrio tensional (Gil, 2002, p. 76). “Tudo é singular e por isso coletivo e privado ao mesmo tempo, particular e geral, nem individual, nem universal” (Deleuze, 1969/1975, p.155). Assim, o que é universal só pode ser pensado em relação com o singular. Para Winnicott (1975, p. 95), a continuidade do ser se dá no plano da capacidade criativa primária. Ser é ter a capacidade de brincar inventando a realidade. Nesse sentido, o não ser criativo, ou o não saber jogar ou brincar, é da inatas à maturação, cada acontecer no mundo é singular, logo, o autor não crê que exista uma essência da natureza do homem. 88 3.2. O processo de integração do eu Winnicott postula a noção de não-integração primária que caracteriza o “início teórico”50 da personalidade. Teórico, pois a importância atribuída ao ambiente no desenvolvimento emocional não pode ser datada de forma específica, ou seja, é imanente à existência antes mesmo do nascimento a termo. “(...) a idéia de que quanto mais próximos nos colocarmos de um início teórico haverá menos falhas pessoais, e de certo ponto em diante ocorrerão apenas falhas ambientais de adaptação” (Winnicott,1954/2000, p. 380). Não se pode detectar ao certo o início de uma vida psicológica. A expectativa da mãe, e o seu amadurecimento emocional, desde o momento da concepção, afetará de alguma forma a vida daquele futuro bebê. O autor afirma que existe uma tendência inata à maturação, porém não reduz essa última ao evolucionismo biológico, tal como apresentado na teoria darwiniana. A não-integração é marcada por uma ausência de noção espaciotemporal. Sua conhecida frase “não existe essa coisa chamada bebê” (1990, p. 40) nos ajuda a compreender esse processo. O bebê existe no agenciamento entre a mãe e o ambiente. O desenvolvimento emocional é sempre pensado em termos de acontecimentos num plano relacional de composição que é, de início, o ambiente maternante. Doravante, podemos dizer que o bebê se encontra num estado de fusão com a mãe e com o ambiente, fusão que não significa perda de singularidade. A dinâmica sui generis de comunicação nesse espaço fusional – onde ainda não existem definições do que é dentro/fora, eu/outro – é o que dará consistência ao espaço potencial. Nos estágios iniciais, o ambiente é externo somente do ponto de vista do observador, e não para o bebê, que ainda não tem condições de separar o eu do não-eu. O mesmo ocorre entre a díade mãe-bebê, que formam um só corpo, ainda que não para aquele que os observa. O bebê ocupa corporalmente um lugar no tempo e no espaço, mas ainda não tem meios de sabê-lo. Se não houver uma pessoa que cuide do bebê, geralmente a mãe, ele não sobrevive devido à sua fragilidade diante do meio que o sustenta. Winnicott insinua que o melhor é que uma pessoa cuide do bebê, podendo ser, ou não, a mãe 50 O mesmo se dá quando o autor utiliza a expressão “primeira mamada teórica”, que seria a soma dessas primeiras experiências. 89 genética. Normalmente51, o pai entra na cena do cuidado infantil como um terceiro elemento, propiciando um ambiente confortador para a mãe. Winnicott sublinha que a psicologia da criança surge a partir das “necessidades corporais [que] gradualmente tornam-se necessidades do eu (...) a partir da elaboração imaginativa da experiência física” (Winnicott, 1945/2000, p. 234, grifo nosso) É o que será denominado de personalização, um processo permanente que exploraremos a seguir. Não podemos separar o emocional do físico já que as necessidades iniciais do bebê se dão nesses dois níveis simultaneamente: são psicossomáticas. No início da vida de bebê, o que está em jogo é um campo de forças em tensão, um processo sempre a se perfazer, hecceidades ou acontecimentos. A experiência corporal da criança não atrelada a significações e totalizações é o que lhe dará subsídios a um futuro brincar ou existir. O que existe é um bebê qualquer, na relação com a mãe-ambiente, ou, se quisermos, a existência do bebê se dá nesse campo de forças afetivas e pré- intelectuais entre ele e a mãe. Daí a necessidade de se desenvolver outra linguagem que não a verbal para perceber a criança presente no adulto em análise nos estágios de regressão. E o que são, afinal, essas hecceidades? São os acontecimentos que decorrem do efeito do encontro entre um corpo e outro, mergulhados no tempo do devir: Aion52. Pensar sob a ótica do acontecimento é recusar a concepção platônica de essência. Embora Winnicott afirme que o bebê nasce com tendências inatas, não são, de modo algum essências. O pensamento rebatido na categoria de essência que se pretende universal não dá conta do desenvolvimento primitivo, pois cada acontecimento se dá em função de determinadas circunstâncias que não cabem num modelo padronizado, nem idealizado. Uma estação, um inverno, um verão, uma data têm uma individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e de ser afetado (...) (Deleuze e Guattari, 1980/2002a, p. 52) 51 Levando em conta as novas configurações familiares entre pessoas do mesmo sexo, lamentavelmente consideradas como “terroristas” pela instituição da Igreja (O Globo, 24 de abril de 2007), ene quadros podem ser desenhados no ambiente maternante. 52 Sobre Aion, ver Deleuze, 1969/1975. 90 Embora sem noções espaciotemporais, nada falta ao bebê, porém certas condições são necessárias para que o psiquismo individual se forme de maneira satisfatória, ou seja, um ambiente que propicie a capacidade do indivíduo de criar. A qualidade das experiências mais primitivas do bebê o acompanhará, ou melhor, se atualizará durante toda a sua vida. O ambiente maternante pode ser pensado como um plano de afetações que transforma e é transformado pelos elementos envolvidos, inclusive o ar. A repetição do ato do cuidar gera a experiência de continuidade com diferentes nuances, é um continuum que também contém o imprevisível e as pequenas falhas. Winnicott assinala que “(...) a saúde, no desenvolvimento inicial do indivíduo, leva a uma continuidade de existência” (1949/2000, p. 335). Consideramos aqui que também o inverso: a experiência de continuidade gera saúde, e a sua fragmentação, uma existência mais frágil. Para Winnicott a “saúde física” depende de dois fatores fundamentais: de uma hereditariedade (nature) e de uma criação (nurture), ambas boas o suficiente. Ser suficiente aqui é habitar justamente o meio do caminho entre o demasiado presente e o excessivamente ausente; em termos mais qualitativos do que quantitativos. Saúde não equivale necessariamente à ausência de doenças. A saúde psicossomática se traduz na possibilidade de desenvolver o potencial criativo nas condições existentes num determinado momento, incluindo as possíveis limitações, sejam impostas pelo social ou por alguma deficiência inata. Uma pessoa com uma limitação física pode ampliar as suas condições aproveitando ao máximo as suas capacidades, se tornando um atleta, um dançarino, ou viver na conformidade do sedentarismo. Não quero dizer com isso que para existir criativamente no mundo seja necessário se tornar um atleta, ou estar sempre em movimento; podemos ser nômades e criativos sem sair do lugar, tudo dependerá da qualidade da experiência. Didaticamente, o amadurecimento emocional pode ser dividido em três fases: “dependência absoluta”; “dependência relativa” e “rumo à independência”. Esses estágios, como já dito, não devem ser pensados destacados uns dos outros, mas num movimento dinâmico e contínuo; mesmo porque tudo o que se refere aos estágios iniciais reverbera os demais, inclusive a idade adulta. 93 existência de forma criativa. No entanto, no âmbito da patologia, nos diz Winnicott: O caos é, primeiramente, uma quebra na linha do ser, e a recuperação ocorre através de uma revivência de continuidade (...). O caos se torna significativo exatamente no momento em que já é possível discernir algum tipo de ordem, e ao mesmo tempo em que o próprio caos pode ser vivenciado pelo indivíduo, ele já se transformou numa espécie de ordem, um estado que pode se tornar organizado como defesa contra ansiedades associadas à ordem (...). A desintegração (...) é caótica (Winnicott, 1990a, p. 157). Fechando os comentários sobre o caos. Dependendo do ponto de vista, não podemos adentrá-lo; considerando que ele antecede a qualquer tipo de ordem e de existência; o caos da não-integração seria, então, imanente à existência. Já o caos ligado ao colapso, como vimos, está implicado num mínimo de integração e engendra uma postura defensiva. Para “baixar a guarda” do paciente, faz-se necessário um manejo singular que propicie um estado de regressão. Quando falamos de regressão na psicanálise, estamos implicitamente presumindo uma organização [defensiva] do ego e uma ameaça do caos. Há muitas coisas a estudar aqui sobre o modo como o indivíduo armazena memórias, idéias e potencialidades. É como se houvesse uma expectativa de que surjam condições novas, justificando a regressão e oferecendo uma nova chance para que o desenvolvimento ocorra, esse mesmo desenvolvimento que havia sido inviabilizado ou dificultado inicialmente pela falha do ambiente (Winnicott, 1954/2000, p. 378). A integração se dá processualmente a partir de uma vivência de continuidade no tempo. Essa vivência só acontece satisfatoriamente se o meio que sustenta o bebê, inicialmente apresentado pela mãe, está ativamente adaptado a partir do holding (sustentação) e do handling (manejo). “A tendência a integrar-se é ajudada por dois conjuntos de experiência: a técnica pela qual alguém mantém a criança aquecida, segura-a e dá-lhe banho, balança-a e a chama pelo nome (...)” (Winnicott, 1945/2000, p. 224). Desde os últimos meses de gravidez até os subseqüentes após o parto, a mãe é tomada de um estado denominado preocupação materna primária. A mãe que desenvolve o estado que chamei “preocupação materna primária” fornece um contexto para que a constituição da criança comece a se manifestar, para que as tendências ao desenvolvimento comecem a desdobrar-se, e para que o bebê comece a experimentar um movimento espontâneo e se torne dono das sensações correspondentes a essa etapa inicial da vida. A vida instintiva não 94 precisa ser mencionada aqui porque o que eu estou descrevendo tem início antes do estabelecimento de padrões instintivos. (Winnicott, 1956/2000, p. 403, grifos nossos). A mãe deve abrir o seu corpo (Gil, 2002) para dar espaço aos afetos e demandas intensivas do bebê. Seria esse momento marcado por pequenos estados de transe? Possibilitar a abertura do corpo é percebê-lo metamórfico na relação com o bebê, que também é um mundo de sensações. Muitas vezes os profissionais de clínicas neonatais ignoram o aspecto singular de cada bebê, sugerindo atitudes nem sempre favoráveis. “A ‘abertura’ do corpo não é nem uma metonímia nem uma metáfora. Trata-se realmente do espaço interior que se revela ao reverter-se para o exterior, transformando esse último em espaço do corpo” (Gil, 2002, p. 57). Abrir o corpo é fazer com que as falhas, que se mostram como pequenas lacunas ou gaps 54, em breve, se tornem um espaço potencial entre mãe e bebê, espaço que não é físico, mas dotado de variações de intensidade. As lacunas, ao contrário de uma concepção de falta, são poros de onde brota o gesto criativo, sem a intenção de preenchê-los, mas sim de povoá-los. Desses espaços surge a possibilidade de a mãe ser contagiada afetivamente pelo bebê. O prazer em cuidar do bebê se contrapõe a uma possível mecanização desse gesto. “É freqüente, presumir-se que na saúde o indivíduo encontra-se sempre integrado, vivendo dentro do próprio corpo e sentindo que o mundo é real” (Winnicott, 1945/2000, p. 225). Contudo, se a mãe não tem prazer em cuidar e não age espontaneamente, fecha o seu corpo num momento inadequado, e, assim, o bebê não tem em quem confiar para juntar os seus pedaços ainda não- integrados. A mãe boa comum induz à experiência de continuidade, constância e simplicidade. “Através da segurança de que essa continuidade não será interrompida, ou pelo menos, não interrompida fora dos limites suportáveis; a mãe costura com os fios do tempo as partes não integradas do mundo interno do bebê”, observa Guimarães (1998, p. 12). E são justamente esses fios que vão compor a percepção do bebê em relação ao tecido de seu corpo. O quadro da preocupação materna primária pode ser considerado patológico, em casos de gravidez psicológica, por exemplo, ou 54 Sobre os intervalos ou gaps, ver o capítulo seguinte. 95 ainda, quando a criança já tem meios para se virar e a mãe continua atendendo tout de suite às suas demandas, sem dar brechas ou, nas palavras de Winnicott, sem se ausentar em doses suportáveis pelo o bebê. O fator tempo é protagonista nesse ir-e-vir da mãe. O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe ficar distante mais do que x minutos, então a imago se esmaece e, juntamente com ela, cessa a capacidade de o bebê utilizar o símbolo da união. O bebê fica aflito [estado excitado], mas essa aflição é logo corrigida, pois a mãe retorna em x + y minutos. Em x + y minutos, o bebê não se alterou. Em x + y + z minutos, o bebê ficou traumatizado (Winnicott, 1975, p. 135). O trauma se apresenta como uma ruptura do sentimento de confiança e de continuidade no e do ambiente. No lugar da confiança surge um sentimento de despedaçamento, ou, um desfiar ao invés de integrar. A mãe comum sofre de uma espécie de “enlouquecimento” e passa a se ocupar de um novo ser, o seu bebê, afastando-se do mundo “real” e desenhando esse mundo “mágico” que é o ambiente maternante. A mãe suficientemente boa é aquela que se sintoniza com uma potência de agir num nível, nem maior, nem menor, do grau de existência do bebê. “Quando a mãe se aproxima de seu bebê, ela o faz por meio de seu corpo, que é corpo transfigurado. Não é simplesmente um organismo biológico, é um corpo banhado por inúmeros encontros, desencontros” (Safra, 1999, p. 46, grifo meu). Desenrolando esse fio de pensamento proposto por Safra, podemos afirmar que o autor nos fala do corpo organizado (biológico) e do corpo intensivo (dos encontros e desencontros) que formam um só corpo: o da mãe e o do bebê. O corpo da mãe se transfigura, pois é também o corpo do bebê. O bebê experimenta o seu corpo a partir desse encontro com a mãe inseparável dele e do ambiente. Gradualmente, ele vai perceber que tem um corpo diferenciado, podendo nele investir afetivamente. O conceito de narcisismo primário de acordo com o seu uso dentro de uma teoria específica se modifica inevitavelmente. Quando Winnicott recorre a esse termo, refere-se aos estágios anteriores à relação objetal, isto é, antes da percepção objetiva do entorno pelo bebê. “A regressão de um paciente organiza-se como um retorno à dependência inicial ou dupla dependência. O paciente e o 98 continuidade harmoniosa, mas não necessariamente da existência. É justamente a partir do sentimento de frustração, proveniente da ruptura entre o indivíduo e seu entorno, que haverá a possibilidade de investimento afetivo em seu eu. Essa visão balintiana se aproxima do estágio de concern em Winnicott, quando o bebê já tem consciência dos cuidados a serem dispensados com o seu próprio corpo e o de sua mãe. Sabe que se cair vai se machucar, mas essa sensação é distinta da agonia em cair para sempre que ocorria antes da sua capacidade imaginativa. Retomando a posição winnicottiana sobre o conceito de narcisismo, ela nos parece, como de costume, ora imprecisa, ora flexível. “A comunicação silenciosa está relacionada ao conceito de narcisismo primário? Na prática há algo que precisamos deixar para o nosso trabalho, a não-comunicação do paciente como uma contribuição positiva” (Winnicott, 1990, p. 171, grifo nosso). E quando o autor trata da passagem do estado de fusão entre o bebê e a mãe para uma percepção do meio (e da mãe) como algo distinto, faz a seguinte colocação: Quase sempre se faz referência a isso [a passagem da fusão para o domínio do eu- sou] como sendo o ponto em que a criança, pelo crescimento, se liberta de um tipo narcísico de relação de objeto; abstive-me, porém de utilizar essa linguagem porque não estou seguro de que é isso que eu quero dizer. Ademais, ela exclui a idéia de dependência, tão essencial nos estádios mais primitivos, antes que a criança se tenha certificado de que pode existir algo que não faz parte dela. (Winnicott, 1975, p.172, grifos nossos) Para perceber esse algo a mãe (e o analista) abandona o estado de adaptação quase perfeita para dar início à fase das primeiras frustrações. Para que isso ocorra, a mãe, de tão identificada com o bebê – num processo de devir bebê – intui as suas necessidades. Muitas vezes esse estado não é lembrado. O que dá consistência a essa fase é a experiência que a mãe teve em seu próprio ambiente maternante e até mesmo com o brincar de bonecas em sua infância. Em suma, o modo de lidar com o seu próprio narcisismo. Devemos lembrar sempre (...) que a conclusão final sobre o desenvolvimento do ego é o narcisismo primário. No narcisismo primário, o ambiente sustenta o indivíduo, e o indivíduo ao mesmo tempo nada sabe sobre ambiente algum – é uno com ele (Winnicott, 1954/2000, p. 380). 99 Essas palavras soam docemente quando tudo corre bem em relação ao estado emocional da mãe, ou da pessoa que cuida. Winnicott sugere que no início o cuidado dispensado ao bebê seja efetuado por basicamente uma única pessoa. O cuidado é suficientemente bom quando silencioso, enquanto que um ambiente que fracassa ecoa, alude, também no sentido de avalancha55, sob os mais diversos tipos de sintomas. A mãe suficientemente boa visa a não desapontar o bebê, assim, “(...) começa com uma adaptação quase completa às necessidades do bebê, à medida que o tempo passa, adapta-se cada vez menos (...) segundo a crescente capacidade do bebê em lidar com os fracassos dela” (Winnicott, 1975, p. 25). Há de se reconhecer a interferência capitalística e tecnológica na maternagem contemporânea. A questão que se coloca para reflexões futuras é: como o holding pode ficar comprometido nesse processo que inclui superexposição do bebê (e da mãe) a informações e a imagens via televisão e/ou internet; emancipação profissional feminina; licença-maternidade; inseminação artificial; etc.? “O êxito no cuidado infantil depende da devoção, e não de ‘jeito ou esclarecimento intelectual’.” Assim, Winnicott (1975, p. 25) ressalta que não se aprende a cuidar de um bebê em livros, ou seja, não existe uma receita pronta no que se refere, tanto ao cuidado infantil, quanto ao manejo clínico. Se forem cinco filhos são cinco (ou mais) mães diferentes. Um quê de improviso é necessário nesse jogo, mas improvisar é ir ao encontro do mundo, ou confundir-se com ele (...). Nas linhas motoras, gestuais, sonoras que marcam o percurso costumeiro de uma criança, enxertam-se ou se põem a germinar “linhas de errância”, com volteios, nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes (Deleuze & Guattari, 1980/2002a, p. 117, grifos nossos). A mãe, se confundindo com o bebê, percebe a sua linguagem tenra, ora silenciosa, ora estridente, como sendo a sua própria e vai ao encontro do mundo do bebê que a inclui. O que seria confundir-se com o mundo do bebê senão 55 A imagem da avalancha é interessante, pois significa: “grande massa de neve e gelo que se desagrega das montanhas e despenha”. No amadurecimento, é a psique que não se agrega de forma satisfatória no soma. 100 experimentar instantes que antecedem a percepção do que é interno e externo ao eu? A percepção entre o que é interno e externo vai sendo tecida entre os estados tranqüilos e os excitados. Winnicott denominará estado excitado um desconforto que é sentido pelo bebê. O seio ou mamadeira lhe é oferecido proporcionando-lhe a ilusão de ter criado o objeto ou estado de onipotência absoluta. Entre a fome e a saciedade ocorrem, portanto, os estados excitados e os tranqüilos. Tais estados se alternam continuamente, o que mais importa nas fases iniciais é como se dá a passagem de um para o outro. Enquanto os estados tranqüilos são mais claramente a ocasião para a tarefa de integração, no tempo e no espaço, e de alojamento da psique no corpo, os estados excitados são mais diretamente relacionados com o início do estabelecimento do contato com a realidade (...) (Dias, 2003, p. 174, grifos nossos). A ilusão56 faz parte da fase da dependência absoluta, na qual existe um estado de fusão entre a mãe e o bebê, não comportando a idéia de espaço intermediário, pois não há nada entre, é tudo um só corpo. O espaço dos objetos e dos fenômenos transicionais já é do domínio da dependência relativa. É um espaço potencial que dá uma forma intensiva e não concreta, à área de ilusão. É a intensidade afetiva que preenche a fenda que surge entre a mãe e o bebê. O valor da ilusão é o que nos dará subsídios para uma futura e inevitável desilusão. A passagem da dependência absoluta à relativa é marcada pela consistência que a área da ilusão adquire para devir um espaço potencial. Podemos afirmar, portanto, que o espaço potencial é uma decorrência da área de ilusão. A área de ilusão nos acompanhará por toda a vida, mas com nuances diferentes daquela que comportava a onipotência absoluta dos estados iniciais. A separação entre eu e não-eu vai se dando nessa dissolução da dependência absoluta através de movimentos corporais no ambiente, movimentos que mesmo sem a intenção de destruir carregam uma agressividade vital: as raízes da agressividade fundamentais para o estar vivo e sentir-se real. A separação não remete a uma oposição radical entre o que é interno e o que é externo. O mundo 56 “(...) O latim cobre todo o terreno do jogo com uma única palavra: ludus, de ludere, de onde deriva diretamente lusus. (...) sua etimologia parece residir (...) particularmente na [esfera] da ‘ilusão’ e da ‘simulação’. (Huizinga, 1996, p. 41). A ilusão parece ter um parentesco direto com o jogo, aqui, no jogo de criação e invenção de si mesmo ou do self. 103 distância da mãe é insuportável, pois não tendo a capacidade de criá-la imageticamente, quando ausente, é a mãe que não existe para o bebê. Desde muito cedo, antes mesmo do nascimento, os bebês se atêm a determinadas partes do corpo, como punhos e polegares, numa espécie de brincadeira e descobertas. Posteriormente, junto ao desenvolvimento sensório – motor, eles passam a utilizar objetos dos mais macios aos mais duros, os chamados objetos transicionais. O modo como se dão as separações, entre a mãe e o bebê, se reflete diretamente no uso do objeto58. A capacidade que a criança pequena tem de se lembrar da mãe tem um “prazo de validade” que quando não cumprido é como se ela não existisse mais. Sendo assim, os fenômenos transicionais vão perdendo o sentido de mediador para o bebê. Daí a importância da textura e do cheiro do objeto; os sentidos de tato e olfato são ainda mais fortes quando o corpo ainda não é percebido como delimitado, o que não impede, ou até maximize, uma memória de sensações e de afetos corporais. A criança sem noção de seu próprio corpo precisa fazer contatos. “A criança no colo ou deitada no berço não está consciente de estar a salvo de uma queda infinita. Uma leve falha em ser segura, contudo, traz à criança a sensação de uma queda sem fim” (Winnicott, 1957/1990, p. 105). Winnicott observa que o uso exagerado do objeto é uma forma de negação e defesa da separação. Quando não existe mais um sentido para o bebê, o objeto se torna uma coisa em si, concatenando uma deformação no uso do objeto (Winnicott, 1975, p. 20). Nessas circunstâncias, embora confortador, ele não foi subjetivamente concebido, funciona como uma muleta para manter a sustentação que não foi proveniente do meio ambiente. A idéia do corpo como objeto transicional gera controvérsias. No livro intitulado O vestígio e a aura, Costa (2004) faz a seu modo menção a essa questão: “(...) não podemos reduzir imaginariamente o corpo à função de objeto transicional sem causar danos físicos e mentais a nós mesmos” (p. 123). O autor investe na idéia de que o uso do corpo como objeto transicional se apresenta sob a égide de intensos conflitos emergentes de um grande desconforto, e, também, do não reconhecimento em relação à imagem de corpo. 58 Veremos em Balint que existem pelo menos dois funcionamentos para o uso do objeto: filobático e ocnofílico. 104 Costa faz uma extensa diferenciação entre imagem e esquema de corpo, a qual merece uma investigação mais detalhada num trabalho futuro. A esse respeito faremos aqui apenas um breve comentário. O esquema corporal seria formado por sensações “proprioceptivas” que dariam ao organismo informações sobre a sua posição corporal no ambiente. “Por meio de receptores sensitivos localizados na pele, nos músculos, nos tendões e articulações, e pela ação concertada destes receptores (...) o corpo estaria apto a agir ou reagir aos estímulos do meio” (Costa, 2004, p. 59, grifo nosso). Agir ou reagir aos estímulos do meio, dependeria justamente da qualidade do ambiente maternante: agir seria a expressão do verdadeiro si-mesmo e reagir uma forma falsa e submissa de estar no mundo. Já a imagem corporal seria um fato mental, “em última instância, lingüísticamente organizada, de modo reflexivo ou pré-reflexivo, consciente ou inconsciente” (idem). A possibilidade de imaginar o corpo seria decorrente do processo que estudaremos a seguir, denominado de personalização. Após expor diferentes matrizes teóricas sobre a questão, Costa afirma que “esquema e imagem são variações na maneira de o corpo se situar no tempo, no espaço vertical e horizontal, na relação do todo às partes e na relação com os fenômenos ambientais” (p. 62). Assim, o fosso teórico que separa estas instâncias perde o seu valor. Para ele, existe uma compulsão ao êxtase regida pela moral das sensações, engendrando um desequilíbrio na economia afetiva, principalmente, em relação às questões relativas à imagem do corpo. Ou seja, ancorar-se no corpo a partir de sua imagem como a única via de felicidade possível seria: o passo mais curto entre o ideal psicológico e o sintoma (...) Infatigáveis na rotina de sacrifícios impostos ao corpo [os sujeitos contemporâneos], são absolutamente astênicos, se convidados a deixar no mundo a marca de suas histórias irrepetíveis. De um lado, tenazes, disciplinados e afirmativos; de outro, entregues a lassidão, à negligência e à autocomiseração. Prestes a se queixar de tudo e de todos, que recusam o que lhes falta [ou sobra?] para serem felizes, são lentos em admitir que ninguém pode dar aquilo que lhes cabe encontrar e recriar (Costa, 2004, p. 125). Costa tece alguns comentários acerca do corpo nas formas de subjetivação contemporâneas, sobretudo, ao apresentar a idéia de transtornos de imagem corporal como “um efeito imprevisto da moral das sensações” (p. 89). Compartilhamos das opiniões do autor no sentido de não conferir um tom 105 nostálgico ao cenário atual em relação às outras épocas culturais. Segundo ele “(...) não temos como mostrar que os indivíduos contemporâneos são mais ‘hedonistas’ ou ‘narcisistas do que quaisquer outros em quaisquer períodos históricos ou circunstâncias culturais” (p. 92). Para Costa, o uso do corpo como objeto transicional seria da ordem da patologia. Contudo, aqui afirmamos que tudo vai depender da qualidade do uso do objeto, no caso o corpo, e como ele virá a ser compartilhado no mundo. De qualquer maneira, partes do corpo, o punho, por exemplo, podem ser pensadas como precursoras dos objetos transicionais nas primeiras fases do desenvolvimento emocional. A criança considerada normal é capaz de brincar, ficar excitada quando brinca, e se sentir satisfeita com o brinquedo, sem se sentir ameaçada pelo orgasmo físico de excitação local. Em contraste, uma criança impelida de fazer alguma coisa, com tendência anti-social, ou qualquer criança com a marca da inquietação maníaco defensiva é incapaz de aprecia o brinquedo porque o corpo se tona fisicamente incluído (Winnicott, 1990, p. 37). E a intensidade expressa pelo corpo, na brincadeira, seria um fenômeno transicional? Ora, se o que dará uma forma provisória àquela intensidade da área de ilusão são justamente os objetos e os fenômenos transicionais, e não existe ainda uma delimitação precisa entre o corpo e o ambiente (dependência relativa), o corpo pode ser pensado, em termos de saúde, como um objeto que habita esse mundo entre. Em seu belíssimo texto “O lugar em que vivemos”, Winnicott tem como gatilho disparador de sua argumentação uma série de questões que já se insinuam no título: Que espaço é esse que habitamos a maior parte de nossas vidas? Ele responde, em parte, a essa questão – o que condiz com o seu estilo em que lança um argumento e não conclui para nos fazer pensar –, afirmando a existência de um espaço intermediário que não é interno nem externo. Seria algo próximo do espaço de limiar de José Gil, um espaço que aceita o paradoxo sem o intuito de resolvê-lo e sim experimentá-lo, como veremos na parte seguinte do presente texto. No decorrer do desenvolvimento do bebê, ele passa a explorar um terceiro mundo, um mundo entre que não é realidade interna nem um acontecimento externo. Esse terceiro mundo é ocupado pelos objetos transicionais. Em última 108 espaciais, nem possuindo uma membrana limitante (da pele), um pequeno deslize pode ser sentido como um cair para sempre pelo bebê. Ser lavados, embalados, acariciados, pegos, massageados, constitui para os bebês, alimentos tão indispensáveis senão mais que vitaminas, sais minerais e proteínas. Se for privada disso tudo e do cheiro, do calor e da voz que ela conhece tão bem, mesmo cheia de leite, a criança vai-se deixar morrer de fome (Leboyer, 1976/1996, p.23) O handling ou manejo é a forma pela qual ele é banhado, alimentado, vestido... Não basta estar limpo e alimentado, e sim, como o bebê é afetado por e nesse processo, sem deixar de mencionar a forma que ele afeta a mãe-ambiente. Nesse sentido, Winnicott frisa que a mutualidade, a reciprocidade e, por último, mas não menos importante, a sensibilidade, são peças de engrenagem para um bom funcionamento do ambiente maternante. A mãe deve se oferecer sensivelmente para lidar com a comunicação da primeira infância expressa através de pequenos gestos, lembrando que a palavra grega infans quer dizer “sem fala”. A comunicação pré-verbal entre a mãe e o bebê é feita pelos corpos envolvidos. Se a mãe é o bebê, de início, não existe o outro: paradoxalmente é um só corpo. Por vezes, o predomínio do intelecto faz com que a sensibilidade seja diminuída e, junto a ela, a percepção acerca das necessidades do bebê. Sentir e se movimentar são modos de comunicação do eu com o mundo (Straus, 1935/ 2000, p. 275). Daí, retomamos a afirmação winnicottiana de que não se aprende a cuidar de um bebê em livros, o aprendizado se dá na experimentação. Quando não há essa percepção afetiva para compreender a linguagem silenciosa do bebê ocorre o que Ferenczi intitula esterilidade científica (1931/1988, p. 333), que vale tanto para o ambiente maternante quanto para o clínico. Quanto a mim, preferiria ser antes lembrado por sustentar que entre o paciente e o analista está a atitude profissional do analista (...). Afirmo isto agora sem receio porque não sou um intelectual e na verdade (...), executo meu trabalho muito mais a partir de meu eu corporal (Winnicott, 1960a/1990, p. 148, grifos nossos). O autor a partir dessa colocação deixa algumas lacunas que podemos preencher ao afirmar que existe um saber do corpo que é anterior ao pensamento. 109 Para estar aberto para esse campo, o analista não deve se pretender “um salvador, professor, aliado ou moralista”. Winnicott ressalta que pessoas comuns podem desempenhar esse papel do cuidar, no qual a simplicidade e a continuidade devem ser uma constância. O ir-e- vir da mãe quando sintonizado com a capacidade do bebê em tolerar a sua ausência é sentido pelo bebê como um brincar. A mãe e o bebê vivem uma experiência juntos. Esse processo se dá como (...) se duas linhas viessem de direções opostas, com a possibilidade de se aproximarem uma da outra. Se elas se sobrepõem, há o momento de ilusão – uma experiência que o bebê pode tomar, ou como uma alucinação sua, ou como algo que pertence à realidade externa (Winnicott, apud Khan, 2000, p. 20). A mãe deve em algum momento compactuar do estágio pré-individual no qual o bebê se encontra para poder falar a sua língua. A mãe é o bebê, portanto ela atende às suas necessidades através do holding. O holding proporcionado pela mãe envolve os cuidados primordiais: higiene e alimentação, sem os quais o bebê não sobreviveria. Nessa fase [do holding], o eu se transforma de um estado não integrado em uma integração estruturada de modo que o latente se torna capaz de experimentar a ansiedade que é associada à desintegração. A palavra desintegração começa a ter um sentido que não possuía antes de a integração se tornar um fato (Winnicott, 1960/1990, p. 44). Mas a questão como vimos, não é “só” sobreviver. Não basta sobreviver, é preciso existir, isto é, ter tido a possibilidade real de experimentar a ilusão de criar o mundo. A criação, para Winnicott, não é necessariamente uma obra de arte, a não ser que consideremos, como ele o faz, uma respiração enquanto tal. Ora, se o respirar é considerado um gesto, pode ser também um fator que potencializa as formas de agir no mundo, inclusive um suporte imperceptível para a invenção de estratégias de resistência aos mecanismos coercitivos de poder. Vimos que a qualidade da respiração pode apresentar um estado de ânimo (ou de desânimo). A maneira como a mãe respira, embala, cantarola ou grita, está alegre ou triste, dá banho e refeições, é a chave fundamental para a abertura de um caminho fértil para o ser criativo e lidar com as futuras e inevitáveis frustrações que vão caracterizar o período da desilusão. O período da desilusão pode ser 110 exemplificado e sintetizado na situação do desmame. Contudo, “o que o bebê deixa para trás, ao amadurecer, não é a ilusão básica, que permanecerá se houver saúde, mas a ilusão de onipotência” (Dias, 2003, p. 228). A desilusão já marca o período da dependência relativa, no qual pequenos registros de eu já estão sendo definidos. A palavra “eu” ou ego, nos textos de Winnicott, faz parte de uma trama complexa, tendo em vista que nem sempre o autor faz distinções entre os termos eu e self 60. Winnicott ora utiliza a expressão falso eu, ora falso self, como sinônimos. Nas suas palavras: Para mim o self (...) é a pessoa que eu sou (...) que possui uma totalidade baseada no processo de maturação. Ao mesmo tempo, o self tem partes e, na realidade, é constituído dessas partes (...). O self acaba por chegar a um relacionamento significante entre a criança e a soma das identificações que (após suficiente incorporação e introjeção de representações mentais) se organizam sob a forma de uma realidade psíquica interna viva (Winnicott, 1970/2005, p. 210, grifos nossos). O desenvolvimento do eu se caracteriza por várias tendências. A partir da tendência à integração no tempo e no espaço, o eu vai se ancorar num eu corporal, e, assim, se iniciam as relações objetais. O sentimento de eu nasce de um estado não-integrado, que, embora não seja lembrado intelectualmente, pode ser experimentado a partir do repouso e do relaxamento. O eu teria uma função de proteger o self verdadeiro, numa modulação suficientemente boa para não desencadear uma postura submissa diante da vida e dos acontecimentos. Para Armony, o self é (...) impulsão para a vida, para a expansão, para a conquista de novos territórios. Já o eu refere-se ao aspecto do lidar com o ambiente de modo a nele sobreviver da melhor maneira possível. O eu tem uma filiação darwiniana (adaptação) e o self uma filiação nietzschiana (vontade de potência, expansão) (...). Visualizo o self como um fluido que tem a capacidade de banhar todas as partes da pessoa (1999, p. 1 e 4.) Muitas vezes Winnicott faz uso de termos psicanalíticos sem referência estrita ao seu significado original como é o caso do narcisismo primário. Logo, o significado da palavra “eu” não deve estar ancorado somente na psicanálise 60 “Tradutor, traidor”. Aqui nos deparamos mais uma vez com um problema de tradução, logo, no decorrer do texto, utilizarei a palavra eu. 113 “O eu encontra a si mesmo situado naturalmente dentro do corpo mas, em certas circunstâncias, pode vir a dissociar-se do corpo no olhar da mãe e em sua expressão facial, e no espelho, pode vir a representar o rosto da mãe” sustenta Winnicott, 1975, p. 154) O que o bebê vê no rosto da mãe? Ele mesmo. A mãe é um espelho onde o bebê se reconhece. É uma via de mão dupla, já que o desenvolvimento e o olhar do bebê também fazem parte de sua vida. Daí a importância do humor da mãe na constituição desse novo ser. A mãe deprimida, por exemplo, pode lançar um olhar de Medusa que petrifica (ou congela) a capacidade criativa de seu filho. O olhar da mãe como um espelho opaco, um rosto inexpressivo e sem vida, comprometeria todo esse processo, pois o bebê irá internalizá-lo como sendo seu próprio. O olhar especular da mãe deve ser dotado de uma aquosidade, ou seja, de um movimento talássico, que é vital para o bebê. O olhar é uma forma privilegiada de comunicação, daí a sua importância não só no ambiente maternante, como também na clínica. “O mundo possível não existe à margem do rosto que o expressa, e sempre oscila entre o expressado – como qualidade ou potência – e a expressão – como ação” (Cangi, 2005, p. 13). Quando o rosto da mãe não é sentido como um espelho em que o bebê se reconhece, pode emperrar os processos criativos, isto é, na capacidade de a criança inventar um mundo que, afinal, já estava lá. O bebê pode desenvolver comportamentos deprimidos, hiperativos, ou expressar um desenvolvimento intelectual precoce. A criança precisa estar diante de um olhar afetuoso, confiável e empático. O sentimento de existir é um derivado dessa experiência. O eu do bebê é forte ou fraco dependendo do eu auxiliar da mãe. É claro que o bebê não tem consciência de sua imaturidade e dependência. O bebê, bem cuidado, amado e confortável, não possui meios de saber o que está sendo provido. Isso vale também para as falhas ambientais. Quando não atendidas, suas necessidades serão sentidas sob a forma de ruptura na linha de continuidade do ser. Os traumas precoces têm sérias implicações nos processos de singularização. As doenças físicas, a depressão, as grandes dificuldades objetivas (ausência de um companheiro, penúria econômica, confronto com graves tensões sociais...) 114 serão capazes de impedir, ou pelo menos dificultar, uma mulher de exercer a sua função propiciadora de um ambiente facilitador (Coutinho, 1997, p. 102). Inicialmente, o ambiente facilitador é promovido pela figura materna, porém, ao longo de toda uma vida, aspectos econômicos e socioculturais influenciam e fazem parte da potência criativa. Um ambiente hostil e violento numa fase posterior é simultaneamente um componente e um produto dos processos de subjetivação. Retomaremos essa questão ao diferenciar agressividade de violência. No ambiente maternante, o limite ou, as regras do cuidar vão ser construídas na experimentação, num jogo entre a mãe e o bebê ao viverem juntos (n)uma experiência. Assim, a palavra “limiar” nos parece mais propícia do que “limite”, por trazer em si a idéia de elasticidade. A mãe apresenta o mundo a esse novo ser em pequenas doses, daí a necessidade da prudência em não ir além do que o bebê pode suportar em função de seu estágio de amadurecimento no tempo e no espaço. Em última análise, o ritmo do bebê deve ser respeitado, e, para que isso seja possível, a mãe deve ter um termômetro rítmico para sintonizar com as demandas do bebê. Assim como o mercúrio, deve ser dotada de uma consistência fluida para não engendrar falhas insuportáveis para o bebê. 3.3. A capacidade de estar só na presença de alguém Como ser isolado sem ter que ser solitário? (Winnicott, 1990, p. 170) Curiosamente, solidão e preocupação foram dois temas desenvolvidos nos últimos anos da vida de Donald Winnicott. No artigo intitulado “A capacidade para estar só” (1958), o autor investe na idéia de que a solidão é um importante sinal de amadurecimento no desenvolvimento da criança. Em termos clínicos, ele supõe que essa experiência se evidencie em momentos de silêncio, ressaltando que a capacidade de se comunicar, que inclui o não-comunicar, está intimamente ligada às relações objetais precoces. Para Winnicott, o indivíduo emerge “não do inorgânico, mas da solidão” (1990a, p. 155). 115 Winnicott chama a atenção para um “silêncio” no que tange à produção intelectual sobre o estado de reclusão como um comportamento saudável. Chaim Samuel Katz62 vem dar voz a essa questão em seu livro Coração Distante: ensaio sobre a solidão positiva. “Viu-se que a solidão se impõe ou é conquistada. Mas que existe, por referência à fundamentação do que denominamos de pré-subjetivo, uma pré-solidão (...)” (Katz, 1996, p. 183). Estar “positivamente só” tem base nas primeiras experiências de vida. Nesse sentido, parece ser uma conquista e não uma imposição. Katz sugere que a quantidade e a velocidade de informações a que somos submetidos a todo tempo na atualidade tem um contraponto na possibilidade de estar sozinho, o que nem sempre é fácil (ou possível) de ser atingido; vide as imagens as quais estamos o tempo todo sendo bombardeados. Sem imagens externas, a tendência seria viver um cotidiano monótono e insípido. No que se refere ao ambiente maternante, tanto o excesso de presença quanto de ausência da mãe, ou da pessoa que cuida do bebê, podem comprometer a capacidade de estar só. Porém podemos ter essa sensação no meio de uma multidão, e/ou durante um concerto musical. “(...) estar só é uma decorrência do eu sou, dependente da percepção da criança da existência continuidade uma mãe disponível cuja consistência torna possível para a criança estar só e ter prazer em estar só (...)” (Winnicott, 1958/1990, p. 35). É importante frisar que a partir dessa experiência é que se tem a oportunidade de relaxar, de ter momentos de não- integração e de devaneios imprescindíveis para uma vida mais potente e mais intensa. A capacidade de estar só é mais um paradoxo que encontramos nas (entre) linhas winnicottianas, já que essa experiência emerge nas primeiras relações entre a mãe e o bebê. Tal experiência perdura no decorrer da vida do indivíduo como um fenômeno sofisticado: Estar só na presença de alguém. Na fase adulta, o relaxamento e a possibilidade de criar só serão possíveis na solidão positiva. Aqueles que são realmente originais (...) são seres solitários e potentes que excedem qualquer forma explicável. Eles lançam traços de expressão brilhantes que marcam a obstinação de um pensamento sem imagem, de uma questão sem 62 Outros autores também apresentam uma perspectiva afirmativa sobre o silêncio, inclusive dentro do grupo dos independentes, como Balint em seu texto “A falha Básica”, que faz parte do livro As vias da regressão (1972). 118 do funcionamento físico. A postura do corpo evidencia uma ou várias características emocionais. Winnicott nos apresenta dois tipos “opostos” de comunicação. Contudo, para nós, não se trata exatamente disso. Eles seriam, talvez, tipos de linguagem que contrastam não pela oposição, mas pela diferença: a não-comunicação simples e a não-comunicação que é ativa ou reativa. A primeira seria oriunda dos estados de repouso e relaxamento. A segunda já seria fruto do mecanismo de um falso si- mesmo, que pode ser adotado tanto em termos de patologia quanto de normalidade, dependendo de sua modulação. Na sua exposição, Winnicott (1963/1990, p. 167) parte do patológico para estudar o normal. Faremos aqui o inverso, já que, mesmo em Winnicott, o habitual é partir da saúde para, assim, problematizar a doença; ainda com a seguinte ressalva: uso sadio da não-comunicação é aqui considerado ativo, e o outro tipo, sim, é que seria passivo, ou reativo, já que uma reação não é ativa, por fazer parte de uma dinâmica de submissão perante a vida não é autêntica. Resumindo, “(...) tal comunicação com o mundo como ocorre com o falso self não parece ser real; não é uma comunicação verdadeira porque não envolve o núcleo do self, aquele que poderia ser chamado de self verdadeiro” (Winnicott, 1990, p. 167). Por outro lado, a não-comunicação, quando equivalente a um estado de repouso, é a capacidade vital e real de devanear sem proteções, nem pretensões, em relação ao meio. Refutando a hipótese de silêncio como forma de resistência ou “organização defensiva significando uma expectativa de perseguição” (p. 31), a ausência de palavras seria, para Winnicott, uma conquista por parte do analisando ou o “uso sadio da não-comunicação” (1990, p. 168); talvez a primeira vez que ele tenha sido efetivamente capaz de estar só (na presença do analista) e de elaborar esse processo. “Aí a comunicação é não verbal; é como a música das esferas (...). Pertence ao estar vivo. E normalmente é daí que se origina a comunicação” (p. 174). Para Winnicott, existe um elemento para sempre incomunicável, mas não por isso, uma forma de retração e, sim, uma parte do self que permanecerá sem comunicação, o que, para Phillips, “encaixa-se de forma incômoda (...) com a noção de psicanálise ser, em primeiro lugar, uma prática interpretativa [verbal]” (1988/2006, p. 24). 119 Abordar o silêncio de forma afirmativa e não reativa é retirá-lo do campo transcendente, da falta, da ausência e da privação e situá-lo no plano da imanência. Sublinhando o fato de que “só silêncio ou o vazio permite a concentração mais extrema de energia, energia não-codificada, preparando-a, todavia, para escorrer-se nos fluxos corporais” (Gil, 2002, p. 16). A necessidade de não se comunicar se evidencia em momentos de silêncio. O silêncio pode ser um caminho fértil para expressão do afeto, do gesto e para o ato da fala, numa dimensão mais sutil. O silêncio pode ser uma via para que a abertura do corpo se torne consciência corpo. Portanto, é preciso respeitar esse “branco de palavras” e ter a prudência de esperar que o paciente o descubra criativamente no lugar de interpretar, pois, um período de silêncio pode ser a contribuição mais positiva que o paciente pode fazer, e o analista fica então envolvido num jogo de espera. Pode-se naturalmente interpretar movimentos e gestos de todos os tipos, e detalhes do comportamento, mas (...) é melhor que o analista espere (Winnicott, 1963/1990, p. 171, grifo nosso). Mais uma vez é preciso ter tato. Quando o ambiente é invasivo, pode acontecer um silêncio “não-sadio”, ou ainda uma incapacidade de lidar com o próprio silêncio. O mesmo pode se repetir na cena clínica quando não é possível suportar o silêncio do analista ou de quem está lá para ser cuidado. “De fato, nesses momentos [de silêncio], qualquer observação casual do analista, qualquer gesto ou movimento, pode significar muito, assumindo uma importância muito além de qualquer coisa que realmente se tivesse pretendido” (Balint, 1993, p. 17, grifos nossos). Complementando com as palavras de Winnicott: “Não é de interpretações que se necessita aqui, e na verdade qualquer fala ou movimento pode arruinar todo o processo e causar profunda dor ao paciente” (1993, p. 386). Por outro lado, no âmbito da patologia, o silêncio aparece como uma “fala” do falso si-mesmo no corpo. Como poderíamos traduzi-la? Se o ambiente é falho além do estágio de maturação, o bebê cria um split, ou um corte na sua personalidade. Uma parte se comunicaria de forma submissa, e a outra se relacionaria com “o objeto subjetivo, ou com fenômenos simples baseados em experiências corporais, sendo estes dificilmente influenciados pelo mundo percebido objetivamente” (Winnicott, 1963/1990, p. 167). Assim, abrem-se novas janelas para a apreciação dos movimentos autistas que seriam, sem dúvida, uma 120 forma de comunicação subjetiva, considerando que nem sempre a verbalização pode ajudar ou fazer algum sentido nesses casos. Ele [Winnicott] sabe que, no campo experiencial, envolvendo bebês e psicóticos, a compreensão não acontece por via exclusivamente intelectual ou mental, mas exige um tipo de proximidade e de comunicação com o paciente, semelhante ao contato entre a mãe e o bebê. A essa linguagem pertencem, essencialmente, o silêncio, a comunicação pré-verbal e a pré-representacional (Dias, 2003, p. 155). Embora, ao edificar a sua teoria, Spinoza não faça menção direta ao ambiente maternante, suas idéias fermentam e potencializam as nossas e facilitam uma visão política sobre a clínica e o cuidar que a perpassa. Aliás, de maneira quase imperceptível, a questão política está presente em todo arsenal winnicottiano, principalmente na coletânea de suas correspondências com colegas e redatores de jornais e revistas, em que surge a preocupação quanto à maneira de lidar judicialmente com delinqüentes e anti-sociais. O comportamento anti-social seria um afeto passivo na medida em que obscurece o verdadeiro self. A idéia de criação em Winnicott está ligada ao gesto espontâneo que é uma experiência do verdadeiro self. A atividade em Spinoza é uma expressão direta do conatus, quer dizer, da tendência a perseverar no próprio ser. Somos uma vibração dessa relação entre movimentos e repousos do corpo. Tecendo uma dobradiça entre Spinoza e Winnicott a criatividade aumenta a potência de agir no mundo. Reagir a um ambiente denunciaria um afeto passivo diante das circunstâncias da vida. Nesse sentido, saúde seria o aumento da potência de agir, e doença, um enfraquecimento da intensidade relacionada ao corpo; em outros termos, a predominância de um sentimento de futilidade no existir. Qualquer forma de vida, por mais precária que seja, carrega uma potência. Na Proposição 1 de sua Ética, diz Spinoza. A nossa mente [e o corpo], algumas vezes, age [expressão do verdadeiro si- mesmo]; outras, na verdade, padece [atuação do falso si-mesmo]. Mais especificamente, à medida que têm idéias adequadas, ela necessariamente age; à medida que tem idéias inadequadas, ela necessariamente padece [reage] ” (Spinoza, 1675/ 2007, p. 165). Voltando à visão winnicottiana a respeito da delinqüência, ato de roubar, embora se assemelhe a uma atividade, nada mais seria do que uma reação a uma privação, quer dizer, um gesto passivo. A origem da tendência anti-social está 123 Aparecerão em pensamentos e em sonhos, e nesse caso representarão [ou apresentarão?] o corpo do analista, seus seios, braços, mãos, etc., numa infinita variedade de formas. Na medida em que o paciente está regredido (por um momento ou por uma hora, ou por um longo período de tempo), o divã é o analista, os travesseiros são seios, o analista é mãe em certa época do passado (Winnicott, 1954/2000, p. 385). O analista deverá, portanto sobreviver ao seu paciente. Winnicott adota uma postura singular no que se refere à motilidade e à agressividade nos primeiros momentos de vida. Para ele, agressividade equivale a uma atividade indispensável à vida. Quando ele afirma que travessura normal não é um ato de delinqüência (apud Khan, 2000. p.36) o que quer nos dizer com essa colocação? A travessura da qual nos fala sugere a idéia de um desenvolvimento psicomotor que visa a descobrir o ambiente que nos cerca, não necessariamente de forma violenta: é pelo prazer do movimento, sem uma intenção, seja ela qual for; mesmo porque a capacidade de se movimentar é anterior ao nascimento. Nesse sentido, não existe separação entre a motilidade e as funções erógenas. A ligação entre erotismo e movimento pode ser uma forma de desejo na modulação intransitiva65, isto é, o prazer pelo movimento e não de almejar alguma coisa. Fazer uma articulação comparativa entre agressividade em Winnicott e pulsão de morte em Freud seria ir além do escopo do presente trabalho, portanto, nos restringiremos a apontar uma diferença fundamental e dar uma consistência maior ao posicionamento winnicotiano, já que é esse o nosso propósito. “Na teoria ortodoxa, continua a suposição de que a agressividade é reativa ao encontro com o princípio de realidade, ao passo que, aqui, é o impulso destrutivo que cria a qualidade da externalidade” (Winnicott, 1975, p. 130). O indivíduo não nasce com tendências destrutivas, mas com uma agressividade primária que faz parte dos domínios iniciais, incluindo o apetite, mesmo sem ter consciência do mesmo (seria o desejo spinozano?). A agressividade é um veículo vital de transformação de si e do mundo. A maneira de exteriorizar a agressividade muda conforme a qualidade do ambiente em que a criança cresce; num ambiente favorável, ela é integrada ao seu desenvolvimento; força que nos leva a perseverar na nossa existência. Mesmo em situações adversas, em algum lugar existe a possibilidade do ser criativo. Em contrapartida, 65 Intransitivo: “Diz-se do verbo cuja ação ou estado não transita do sujeito a nenhum objeto” (Ferreira, 2001). 124 a agressividade pode se tornar destrutiva, podendo se evidenciar em comportamentos anti-sociais. Sem dúvida, a sua percepção com a agressividade também foi fundada em sua experiência clínica. O texto “Privação e delinqüência” é fruto de seu trabalho com crianças que tiveram que ser abruptamente separadas de seus familiares. “Em suas origens, a agressividade é quase sinônimo de atividade” (Winnicott, 2000, p. 356). A questão da motilidade é fundamental antes mesmo do nascimento. O bebê, ainda na barriga da mãe, demonstra a sua vitalidade sob a forma de chutes e inquietações. A mãe deve sobreviver ao amor voraz do bebê para que ele possa atingir o estágio do concern (Winnicott, 1990), ou seja, a capacidade de se preocupar com o corpo da mãe e com o seu próprio. Segundo Winnicott, “preocupação indica o fato do indivíduo se importar, ou valorizar, e tanto sentir e aceitar como responsabilidade (...) a capacidade de se preocupar está na base de todo brinquedo e trabalho construtivo (p. 70). Paradoxalmente, Winnicott destaca ainda que amar envolve destruição, tudo leva a crer que não no sentido estrito do termo, já que a mãe sobrevive, ou deveria sobreviver, aos impulsos do bebê. A simultaneidade dos sentimentos de amor e ódio deve ser acolhida pela mãe para que o bebê participe de forma criativa no mundo. O mesmo ocorre na cena clínica. Winnicott subdivide a agressão em três estágios: o inicial; o intermediário; e o da personalidade total. No primeiro estágio (não-integrado), a criança não tem ainda noção de sua capacidade de destruição e de causar danos no corpo da mãe; no estágio intermediário, no qual já existe um mínimo de integração, e, conseqüentemente, de eu, a criança já tem noções de sua destrutividade e se preocupa com a mesma; finalmente, no terceiro estágio da agressão, já existe o que Winnicott denomina de “pessoa total”. O autor faz uma importante ressalva: “os problemas do mundo não se devem à agressividade do homem, mas à agressividade reprimida no homem (...)”. E avança na sua argumentação dizendo que a agressividade não tem como remédio um controle pelo viés da educação, que seria uma espécie de tamponamento do potencial agressivo, mas sim a abertura de territórios nos quais fosse possível admitir e experimentar aquele potencial vital como parte integrada do si-mesmo. Ou seja, criar condições para lidar com “o ávido amor primitivo, a destrutividade, a capacidade de odiar, etc.” (Winnicott, 2005a, p. 16). 125 Com o seu amor implacável (ruthness) o bebê ao mesmo tempo agride e protege a sua mãe, testando a sua capacidade de sobrevivência. Em função da sobrevivência da mãe, abre-se um espaço para o gesto criativo, que inclui a agressividade, isto é, uma potência vital. Nessa etapa, a capacidade de se preocupar já vem sendo reconhecida pelo bebê (Winnicott, 1990a) Quando tudo corre bem, a voracidade ou o “amor de boca” (mouth love), como chama Winnicott, não faz parte de uma dimensão patológica, podendo assim retornar no decorrer da vida em forma de gula, luxúria, tendência ao uso de drogas, etc., ou de forma invertida, como anorexia, por exemplo. A agressividade é um impulso imanente e inerente do bebê que visa a se relacionar com o meio, e não destruí-lo. Sob esse espectro, a agressividade não está ligada ao instinto de morte proposto por Freud. Ao contrário, é um sinal de vida. A agressividade é uma das fontes de energia vital. 3.4. O processo de personalização e as falhas ambientais: o holding e a importância da pele na relação mãe e bebê (...) a pele é mais do que um órgão, é um conjunto de órgãos diferentes. Sua complexidade anatômica fisiológica e cultural antecipa no plano do organismo a complexidade do Eu no plano psíquico. De todos os órgãos dos sentidos, é o mais vital: pode-se viver cego, surdo, privado de paladar e de olfato. Sem a integridade da maior parte da pele, não se sobrevive (Anzieu, 2000, p. 29). René Descartes foi considerado o primeiro filósofo moderno, influenciado pelo ceticismo, humanismo e idéias de sua época. A mítica expressão penso, logo existo é emblemática no seu pensamento, traduzindo em poucas palavras a cisão entre corpo e alma e o privilégio do pensamento em detrimento da sensação ou da experiência.“(...) existe muita diferença entre espírito e corpo, pelo fato de ser o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito, totalmente indivisível” (Descartes, 1641/1999, p. 329). Herdeiros e tributários do dualismo cartesiano, mesmo querendo desmanchar essa divisão, muitas vezes somos fadados a carregar a sua marca. O homem de Descartes seria, portanto, um misto de duas substâncias separadas: Recorrendo ao método da dúvida sistemática, o filósofo só podia confirmar a existência de uma “substância imaterial” de importância fundamental para o ser 128 internalizados, e tomados como seus, em função da constância de um ambiente satisfatório; incluindo aí os seus impulsos vitais de agressividade. Em toda a sua teoria se encontra a idéia de que o que vale para os estágios iniciais, com as suas devidas ressalvas, também se aplica a todos os momentos ao longo de uma vida. Na sua experiência clínica, Winnicott nota que alguns pacientes, embora tenham desenvolvido brilhantemente as suas capacidades intelectuais, carregam uma eterna demanda em relação à mãe real, isto é, um comportamento anaclítico, que visa a um cuidado e a um acolhimento ambiental o tempo todo, havendo, assim, a ameaça ou a ocorrência de um colapso, porque o indivíduo está o tempo todo precisando achar outra pessoa que torne real esse conceito de “meio ambiente bom”, de modo a poder retornar ao psique-soma dependente, que forma o único lugar a partir do qual ele pode viver. Neste caso, o estado “sem mente” passa a ser desejado (Winnicott, 1949/2000, p. 337). Em situações anaclíticas, as dificuldades no lidar com as frustrações são evidentes, podendo até transparecer em comportamentos persecutórios. São esses casos que solicitam durante o trabalho analítico atingir o estado de regressão, para que seja possível se deparar com experiências extremamente primitivas, não satisfatórias, marcadas por uma descontinuidade de existência. O inter-relacionamento da criança com o seu corpo deflagra a qualidade da experiência de personalização, ou seja, a aquisição da morada psicossomática a partir da percepção do corpo e do seu funcionamento. E se existir uma deformidade física, congênita ou adquirida, como fica esse processo? No artigo intitulado Sobre as bases para o self no corpo (1970/2005), Winnicott apresenta alguns de seus casos clínicos, nos quais a queixa principal seria proveniente de uma deformidade física. O primeiro trata de um menino de nove anos que sofre de sindactilia. Nessa condição “os dedos (...) se acham soldados entre si”, mas nem sempre é um caso para cirurgia. Alguns pontos devem ser destacados: por ser uma doença hereditária, compromete o comportamento da mãe, por sentir-se, porventura – como aconteceu de fato, nesse caso – responsável e culpada. 129 O que nos chama atenção, também, é que, no início, a criança não se sente anômala, e, gradualmente, reconhece a sua anormalidade em função de se perceber diferente das demais pessoas e, também, por estas olharem para ela com um tom de desaprovação. Se a criança não se sente aceita, tampouco se sentirá amada. “A criança tem um diagrama de normalidade que é em grande parte uma questão da forma e do funcionamento de seu próprio corpo” (Winnicott, 2005, p. 205). Num outro caso, se trata de uma menina de 18 anos que nasceu com ligeira espinha bífida, isto é, “uma inchação ao final da espinha”, e que gostaria de ser “perfeita em seu corpo”. Sem a pretensão de transcrever aqui a entrevista feita com a paciente, o que se mostra relevante é que Winnicott, mesmo sabendo que os seus sintomas eram irreversíveis, procura propiciar uma relação melhor entre a paciente e sua imagem corporal, assim como com seus parentes próximos, pois, “distorções do eu podem provir de distorções na atitude daqueles que cuidam da criança” (Winnicott, 1970/2005, p. 210). Em situações adversas, que também podem ser oriundas de uma deformidade, no lugar de um psique-soma a pessoa desenvolve uma mente-psique que é um mecanismo patológico. “(...) a mente-psique é localizada pelo indivíduo e colocada dentro ou fora da cabeça, em alguma relação espacial com ela, e isto fornece uma importante fonte de dor de cabeça como sintoma” (Winnicott, 1949/2000 p. 415). Uma dor de cabeça pode fazer com que a pessoa se sinta existindo. Esse movimento tem nítidas semelhanças com o processo denominado por Ferenczi internalização da figura do agressor (1933). Em outras palavras, o indivíduo se responsabiliza pelas adversidades ambientais que cindiram a linha de continuidade do desenvolvimento. Em se tratando de Winnicott, essas adversidades seriam provenientes de uma falta de cuidado (ou tato?) ambiental, e, em Ferenczi, de abusos sexuais ocorridos em estágios precoces do amadurecimento. Segundo Winnicott, não podemos saber ao certo o porquê da localização (a mente na cabeça), porém, ele arrisca duas possíveis respostas. A mente tornada um inimigo, ou ainda um estranho, a sua localização seria uma maneira de ter um controle sobre ela. Além disso, ressalta que durante o processo de nascimento a 130 cabeça passa por experiências especiais passíveis de serem memorizadas. Inclusive, o nosso autor relata a necessidade de uma de suas pacientes de reviver a experiência do parto em estados regredidos. “(...) através da atuação [de um parto qualquer ou do seu parto propriamente dito], a paciente informava acerca do pedaço de realidade psíquica ao qual era difícil chegar naquele momento, mas do qual ela precisava muito tomar consciência” (Winnicott, 1949/1990, p. 339). Duas palavras nos causam ruídos nessas últimas argumentações: memorização e consciência. Como o indivíduo poderia se lembrar do mo(vi)mento do nascimento senão pelo viés da memória corporal? Indo mais além, como ter consciência desse ocorrido num estágio tão precoce? Uma resposta provisória para essas duas interrogações pode acalmar nossos espíritos: através da consciência do corpo (Gil, 2002) torna-se possível uma lembrança não intelectual de um acontecimento traumático. Ora, ter consciência dos movimentos internos produz dois efeitos: a consciência amplia a escala de movimento, experimentando (...) a sua direção, a sua velocidade e a sua energia como se se tratassem de movimentos macroscópicos; a própria consciência muda deixando de se manter no exterior do seu objeto para o penetrar, o desposar, impregnar-se dele: a consciência torna-se consciência do corpo, os seus movimentos enquanto movimentos de consciência adquirem características dos movimentos corporais. Em suma, o corpo preenche a consciência com a sua plasticidade e continuidade próprias. Forma-se assim uma espécie de “corpo da consciência”: A imanência da consciência ao corpo emerge à superfície da consciência e constitui doravante o seu elemento essencial” (Gil, 2002, p. 109, grifos nossos). No que concerne à falha ambiental existe a possibilidade do ambiente falho desencadear um colapso – estado que subjaz à organização defensiva. “O paciente precisa ‘lembrar’ isto [o colapso], mas não é possível lembrar algo que não aconteceu, e esta coisa do passado não aconteceu ainda, porque o paciente não estava lá para que ela acontecesse” (Winnicott, 2005, p. 74). É aí que surge a função crucial do manejo da transferência, pois é sobre esse alicerce que será possível lembrar o “não ocorrido”. A doença psicossomática, inclusive diferentes tipos de dermatoses que aí se encontram, pode ser um meio para defender o psique-soma de um aniquilamento ou ansiedade inimaginável, ou ainda, uma maneira de lembrar corporalmente de um fracasso ambiental. A doença é uma via que (re) une soma e 133 Um desconforto ao respirar passa a fazer parte da vida do indivíduo, ocupando o lugar de um prazer no fluxo de movimento de troca com o ambiente, que é o inspirar e o expirar. Esse fato requer uma atenção especial no cuidado clínico, pois, tal qual a mãe que, para sentir as demandas do bebê, equaliza a sua respiração com a dele, a mesma atitude deve ser adotada no setting. Essa sintonia entre o par envolvido também compõe o holding. O analista terá como musa aquela que o transportará para uma região atemporal (...) a mãe que fala musicalmente com o seu bebê, esculpindo sons de inexcedível doçura (...), produzindo um mundo mágico de encantamento, uma ilha, um ovo cercado e penetrado por música (Armony, 1998, p. 15). O ritmo respiratório é, portanto, uma composição, ora mais fluida, ora mais fragmentada. Muitas vezes, a criança erotiza as partes irritadas da pele com o intuito de reverter o desprazer em prazer. Didier Anzieu (1988/2000) traça importantes considerações no que tange às doenças psicossomáticas a partir do conceito de eu-pele, ou de envelope psíquico; destacando a pele como uma instância corporal orgânica e imaginária. O pensamento de Anzieu se afina com as idéias aqui propostas em função da atenção atribuída ao corpo no ambiente ao longo de sua teoria. Durante quase todo o terceiro quarto do século XX, o corpo – o grande ausente, o desprezado, o negado no ensino, na vida cotidiana, na eclosão do estruturalismo, no psicologismo de muitos terapeutas e por vezes mesmo na puericultura; isto aconteceu, e permaneceu em grande parte, como dimensão vital da realidade humana, como dado global pré-sexual e irredutível, como aquilo sobre o qual as funções psíquicas encontram toda a sua sustentação (Anzieu, 1988/2000, p. 39). A partir do conceito de eu-pele, Didier Anzieu inaugura uma nova perspectiva sobre o corpo na modernidade, podendo ser de grande valia para estudar os estados limites e diferentes tipos de dermatoses. Para Anzieu, o que vai garantir a integridade do envelope psíquico é, justamente, um ambiente maternante adaptado às exigências do bebê, ou seja, um ambiente, nas palavras de Winnicott, suficientemente bom. A instauração do eu-pele seria resultado de uma necessidade de um envelope narcísico. Segundo Bernard Andrieu (2002), o conceito de eu-pele se situa numa zona de limites “colocados ao mundo contemporâneo, incertezas sobre as 134 fronteiras psíquicas e corporais nos estados limites, interface da pele que marca a fronteira do somático e do psíquico” (p. 102). Além de ser um sistema de proteção da nossa individualidade, a pele é o primeiro instrumento de troca com o mundo exterior. Tudo o que acontece com o bebê se dá a partir do manuseio de seu corpo, ou seja, de sua pele. Daí a importância da temperatura da água na hora do banho, do alimento na hora das refeições etc. A pele é uma superfície que abre para a profundidade; paradoxalmente o mais profundo é a pele (Paul Valéry, apud Anzieu, 1988). Assim, a dicotomia continente/conteúdo se torna porosa. “A pele é uma superfície atrás da qual o eu organiza a sua vida mental e seus investimentos libidinais” (Andrieu, 2002, p. 107). Na superposição dos contornos sensíveis da pele, existe um espaço que não é nem objeto, nem corpo, ou seja, um espaço intermediário. “Lembremos que a pele não é uma película superficial, mas que tem uma espessura e prolonga-se indefinidamente no interior do corpo: é por isso que a sensação do tato se localiza a alguns milímetros no interior da pele, e não à sua superfície. É isso que permite a formação da máquina espaço interior (ou matéria atmosférica) – a pele. Máquina interface entre um interior orgânico que tende a desaparecer e um exterior que tende a ocupá-la inteiramente (Gil, 2002, p. 62). Segundo Gil (1986, p. 15), a pele é um espaço de limiar, uma zona composta por um volume de intensidades e por uma interface paradoxal que se estende para o todo. É a partir da percepção da pele que se configura uma imagem integrada de si. A personalização é um processo altamente complexo, que se dá a partir de experiências corporais. Sob esse aspecto, lembro as palavras de Maurice Merleau- Ponty: “a criança compreende muito além do que sabe dizer, responde muito além do que poderia definir, e, aliás, com o adulto as coisas não se passam de modo diferente” (Merleau-Ponty, 1964, p. 24). As primeiras experiências corporais antecedem o domínio da fala. Assim, a comunicação arcaica é feita pelos canais sensoriais que reverberam na superfície da pele. A união simbiótica com a mãe é representada na linguagem do pensamento arcaico por uma imagem tátil (e aparentemente olfativa), onde os dois corpos, o 135 da mãe e o da criança, têm uma superfície em comum. A separação da mãe é representada pelo arrancar dessa pele em comum (Anzieu, 2000, p. 64). Segundo Anzieu (2000), as funções da pele são basicamente: 1. Bolsa que retém no interior o bom e pleno aleitamento, os cuidados, o banho de palavras acumuladas, fatores que chamamos de holding e de handling. 2. Superfície que (de) marca o limite com o fora e contém no exterior. É a barreira que protege as agressões provenientes dos outros, seres ou objetos; E, por fim, lugar de meio de troca com o ambiente. Podemos dizer com Pomey-Rey (apud Anzieu, 1988, p.55) que “a profundidade da alteração da pele é proporcional ao dano psíquico”. Se a intensidade do corpo é emanada pelos poros epidêmicos, qualquer alteração na pele seria fruto de uma obstrução dessa energia. O tempo que o bebê suporta ficar longe de sua mãe vai gradualmente aumentando, em função de sua capacidade de imaginá-la. As funções corporais vão sendo também percebidas pelo bebê. Esse pequeno ser vai se dando conta de que tem um corpo separado do de sua mãe. É o início do estágio de personalização ou assentamento da psique no corpo. “Isso significa que a criança começa a sentir, como conseqüência do manejo, que seu corpo é ele e/ou que seu sentido de self está centrado dentro de seu corpo” (Abram, 1997, p. 187). Retomando o início do processo maturacional em Winnicott, a integração do eu do bebê no tempo e no espaço depende da qualidade do holding da mãe, ou como ele é segurado, amparado. A personalização depende de um bom manejo ou handling. O tocar da mãe na pele do bebê é fundamental e faz parte tanto do holding quanto do handling. Não podemos pensar nessas instâncias separadamente já que é um conjunto de situações em dinâmica. A expressão membrana limitante, utilizada por Winnicott (1990, p. 45), vai ao encontro do conceito de eu-pele, que seria uma fronteira entre o eu e o não- eu. Torna-se agora necessário dar uma olhada na realidade psíquica interna do lactente e da criança. Esta rapidamente se torna um mundo pessoal em crescimento que é situado pela criança tanto dentro como fora do self, do self que está recém-estabelecido como uma unidade com uma pele. O que está dentro é parte do self, embora não lhe seja inerente, e pode ser projetado. O que está fora não é parte do self, mas também não lhe é inerente e pode ser introjetado. Na normalidade, uma troca constante ocorre à medida que a criança vai vivendo e 138 defesa sofisticada (...) contra a ansiedade inimaginável ou arcaica resultante da falta de segurança no estágio da dependência absoluta” (Winnicott, 1990, p. 60). A importância dada ao ambiente no desenvolvimento emocional primitivo é o que dará subsídios para lidar com pacientes que não se enquadram no modelo neurótico – público alvo da psicanálise clássica. A mãe deve respeitar e ao mesmo tempo orquestrar os estados de fome (excitados) e de saciedade (tranqüilos). Quando isso não ocorre, isto é, quando o ritmo é imposto e não composto mutuamente, pode concatenar o que Michel Balint denominará de falha básica. A falha básica incide no processo de ação no mundo na fase inicial do desenvolvimento. Os problemas oriundos de uma descontinuidade da “mistura harmoniosa” por serem insuportáveis para a estrutura psíquica ainda precária do bebê estão localizados nessa área da falha básica. É básico por ter acontecido nos alicerces do desenvolvimento, isto é, em momentos precoces. Embora altamente dinâmica, a força que se origina da falha básica não assume a forma nem de uma pulsão nem de um conflito. É uma falha, algo errado na mente (...). O adjetivo básico significa (...) não apenas que está relacionado com condições mais simples do que as que caracterizam o complexo de Édipo, mas também de sua influência que se estende amplamente, provavelmente por toda a estrutura psicológica do indivíduo, envolvendo tantos graus tanto a mente quanto o corpo (Balint, 1993, p. 19). Balint apresenta dois mecanismos de uso do objeto oriundos de atitudes defensivas ao trauma de descontinuidade da mistura harmoniosa. O primeiro, que seria o mais primitivo de todos, é o modelo ocnofílico; e o segundo, o filobático. Em linhas gerais, Balint aponta que no comportamento do tipo ocnofílico a relação com o objeto se estabelece de maneira que a sua proximidade promove a sensação de estar seguro e tranqüilo. A tendência é se prender aos objetos, caso contrário vem uma sensação de estar perdido e desamparado. O objeto funciona como uma âncora, ou ainda, uma muleta na qual o indivíduo se apóia para obter um equilíbrio psíquico. Já no comportamento filobático a dinâmica é inversa, a proximidade do objeto suscita uma ameaça. Balint, para ilustrar esse tipo de situação, recorre ao exemplo dos acrobatas e dos adeptos a esportes radicais, que passam a maior parte 139 do tempo livre de objetos, ou ainda, soltos no ar. A vertigem e o risco lhes oferecem a sensação de estar vivo. O sentimento que perpassa os dois modos de funcionamento é a busca de segurança “em uma tentativa de recuperar a anterior sensação de unidade dos primeiros estágios”, seja pela proximidade seja pela distância do objeto em relação ao corpo do indivíduo. Balint afirma que na normalidade podem ocorrer os dois tipos de comportamento. Resumidamente, protegem o indivíduo de uma possível desintegração, sendo que no mundo ocnofílico, o investimento primário, embora misturado com uma grande dose de angústia, parece aderir aos objetos emergentes; estes são sentidos como seguros e tranqüilizadores, ao passo que o espaço entre eles são considerados ameaçadores e terríveis. No mundo filobático, as expansões sem objeto retêm o investimento primário original e são consideradas como seguras e amistosas, enquanto que os objetos são percebidos como perigos traiçoeiros (Balint, 1993, p. 61). Sem dúvida, esses processos ocorrem como uma forma de negociação para conectar a psique, o corpo e o seu entorno. A falta de conexão com o corpo pode surgir em momentos posteriores da vida de um indivíduo, por exemplo, uma grande frustração, devido a uma relação não satisfatória com a sua imagem de corpo, ou mesmo, em habitá-lo, suscitando um descolamento entre psique e soma. A despersonalização seria a perda da união entre o corpo e o eu, como conseqüência de um ambiente invasor. O sintoma é justamente uma possibilidade de união dessas instâncias. Para Winnicott, o sintoma é uma espécie de “S.O.S.”, um grito de socorro, a única via que o sujeito encontrou para vincular psique e soma. Em função de um descompasso entre essas instâncias, o sintoma se instala. Nota-se que Winnicot dá um valor positivo às doenças psicossomáticas, propondo um olhar afirmativo sobre elas. Nas doenças psicossomáticas de certo tipo há, na sintomatologia, uma insistência na interação da psique com o soma, sendo isso mantido como defesa contra a ameaça da perda da união psicossomática, ou contra alguma forma de despersonalização (Winnicott, 1962/1990, p. 60). Três tópicos são apresentados para sintetizar o processo não progressivo funcional do ambiente, são eles: 1. o segurar ou sustentar (holding); 2. o manejar (handling); e 3. a apresentação dos objetos. Em função dos cuidados e do 140 ambiente facilitador, uma linha de continuidade de ser é traçada, podendo apresentar fendas ou rupturas no sentimento de existir da criança, no qual passa por um estado de dispersão de si mesmo como resultado de um fracasso ambiental. Vale aqui algumas palavras de Michael Balint sobre a categoria de falha nas ciências exatas: “(...) uma súbita irregularidade na estrutura total (...) em circunstâncias normais estaria escondida, mas se houver pressões ou forças podem levar a uma ruptura, alterando profundamente a estrutura total” (Balint, 1972, p. 19, grifo meu). A falha é inevitável e necessária. Quem escala uma pedra, por exemplo, precisa de suas falhas para fazê-lo, porém elas devem ser condizentes com as possibilidades e adereços do atleta. O mesmo ocorre com o processo de integração do bebê. De tudo isto é possível extrair um princípio fundamental da existência: tudo aquilo que provém do verdadeiro eu é sentido como real (...); e tudo aquilo que acontece ao indivíduo enquanto reação à intrusão ambiental é sentido como irreal, inútil (...) (Winnicott, 1954/2000, p. 389). Winnicott postula a idéia de um verdadeiro e um falso self. Num primeiro momento, ao adotar as categorias de verdadeiro e falso, podemos cair na cilada de uma visão dual objetivista. Todavia, a partir de um estudo pormenorizado, veremos que só podemos pensar em termos de verdadeiro e de falso selves um em relação com o outro. O verdadeiro e falso não quer dizer bem nem mal, isto é, não se situa em nenhum juízo de valor. O ambiente facilitador faz com que o ir-e-vir da mãe seja sentido como um brincar pelo bebê. Porém situações invasoras podem inverter aquele processo fazendo com que o bebê tenha que se defender do meio, instaurando um falso self. Contudo, o falso self, não patológico, mas contingente, é indispensável e funciona como proteção do verdadeiro self. Uma espécie de lente para poder enxergar o verdadeiro self em todo o seu esplendor. Tal qual a epifania, ou aparição divina, não suportamos enxergar o verdadeiro self na sua potência máxima, o mesmo acontece com o sol. Quando há um certo grau de fracasso na adaptação, ou uma adaptação caótica, o bebê desenvolve dois tipos de relacionamento. Um consiste num relacionamento
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