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Guias e Dicas
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A Dialética Negativa: A Subjetividade e a Alienação, Esquemas de Filosofia

Este texto discute a dialética negativa, uma abordagem filosófica para entender a relação entre o conhecimento, a realidade e a subjetividade. O autor examina como a consciência humana se relaciona com a realidade, como a diferença entre o senhor e o escravo influencia a consciência e como a experiência pode ser expressa subjetivamente. O texto também aborda a importância de reconsiderar a relação entre a mimese e o pensamento sistêmico.

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Saloete
Saloete 🇧🇷

4.6

(116)

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Baixe A Dialética Negativa: A Subjetividade e a Alienação e outras Esquemas em PDF para Filosofia, somente na Docsity! 4 Dialética Negativa como perspectiva para o pensamento Um dos cernes da polêmica que venho empreendendo até agora no presente trabalho é a imagem esclarecida da objetividade enquanto mera atualidade radicalmente outra que o sujeito e o pensamento. Em lugar de tal imagem, Hegel pretende indicar que a objetividade e o pensamento encontram-se intrinsecamente relacionados. No entanto, verifiquei que seu programa para tanto consiste em estabelecer a imagem de uma identidade entre o pensamento e a realidade; no âmbito de meu estudo sobre a subjetividade nos Capítulos I a IV da Fenomenologia, compreendi que este programa tende à realização através de um ataque à própria forma da diferença entre o pensamento e aquilo para o que ele se dirige. Como vimos, na passagem para além da figura do Cético, no Capítulo IV, este ataque se apresenta como um repúdio ao contraste ou jogo entre a imagem intelectual da realidade e de si mesmo, de um lado, e a consciência da variedade do que é meramente mundano, de outro. Ora, o próprio repúdio em si depende, dialeticamente, do movimento entre os dois extremos, mas Hegel termina propositalmente confundindo este movimento com um dos lados dele: o meramente mundano, a experiência. Hegel, por um lado, não permite que a consciência repouse em sua própria falta de repouso e, por outro, toma o vário em sua unificação como um problema a ser tratado numa perspectiva meramente gnosiológica. Há um momento de falsidade fundamental no gesto identificador de Hegel, um desrespeito ao sentido dos conceitos de variedade, multiplicidade empírica e, por fim, do próprio conceito de experiência. Enquanto conceitos do que não é conceitual, eles envolvem uma postura contraditória com relação a si mesmos – algo que se aplica a uma grande parte dos conceitos que podemos formar, estando, neste fato, a base da idéia de uma Dialética Negativa1 –, e não se pode permitir 1 “Seu nome [o da dialética], para começar, não diz nada além de que os objetos não desaparecem em seus conceitos, que estes terminam em contradição com a norma da adaequatio. A contradição não é aquilo no que o idealismo absoluto de Hegel inevitavelmente a transfigurou: não é a essência 182 que sirvam à causa da abstração ou, no âmbito da descrição da subjetividade, ao apaziguamento da mesma em seu contato com o mundo. Hegel mal se dá o trabalho de indagar o que é que está especificamente subsumido ao conceito de multiplicidade empírica. Ele opera com o mundano como se este não tivesse qualquer positividade teórica além do fato de sua alteridade com relação à consciência, sendo que esta alteridade, devido ao caráter reconciliativo atribuído a toda teoria que lhe diz respeito, é intolerável à consciência. A consciência mantém como auto-imagem a forma do Senhor satisfeito – ou satisfazível – que emerge da submissão do que lhe é outro à forma do ser-para-o-mesmo, que destrói a alteridade através do consumo e, assim, não é capaz de sequer conceber positividade no outro, apenas relatividade a si mesma e falsidade. Ora, sendo assim, a problemática da reconciliação e da alienação – do estabelecimento de uma afinidade entre a racionalidade e a objetividade – reduz-se à problemática do enquadramento forçado do objeto a uma situação compatível com a autonomia exclusiva subjetiva. A subjetividade hegeliana, para a qual o movimento é inadmissível2 aceita, assim, a distinção radical do Esclarecimento entre o ser e o pensar, a existência e a razão, e a suprime a partir dela mesma, tomando-a como uma distinção do próprio pensamento ou para-ele. Hegel deixa inquestionada ou simplesmente aceita – e impõe ao leitor como única opção3 – a idéia de uma subjetividade fundamentalmente fechada em si mesma e autoconsciente. Na verdade, ele a expande para englobar, além de si mesma, o problema de si mesma frente a seu outro (o mundo), projetando a imagem da totalidade autoconsciente formada pela combinação de sua autoconsciência e sua alteridade como sua nova imagem, simplesmente dissolvendo conceitualmente a objetividade na subjetividade. Cria-se, assim, pela hipóstase ou objetivação forçada da reconciliação do mundo com o Eu4, a imagem de uma intersubjetividade que é ao heraclítica. Ela é o índice da inverdade da identidade, do sumiço do não-conceitual no conceito.” ND 16. 2 FE 206: “A falta de pensamento sobre si mesmo do ceticismo deve passar porque é, em fato, uma consciência que contém em si os dois modos.” Adicionei os itálicos para marcar o que – conforme expus na parte 2 do capítulo anterior – considero o momento da arbitrariedade e da parcialidade ideológica de Hegel, que simplesmente não quer reconhecer a experiência do ponto de vista dela própria, mas sempre como experiência de uma subjetividade substancial: a experiência do Senhor. 3 Esta é a função retórica do “deve” que frisei na citação na nota anterior. 4 A hipóstase da reconciliação, ou a representação da identidade entre o objeto e o conhecimento – quer dizer, a apresentação desta identidade como ela mesma um conhecimento, de tal forma que se despreza precisamente a objetividade do objeto, aquilo nele que o constitui enquanto algo que está fora do conhecimento – também pode ser encontrada na definição de Idéia que Hegel dá na Enciclopédia, I, Ciência da Lógica, III, Teoria do Conceito, C, “A Idéia”: “A Idéia é o Verdadeiro 185 apontar para qualquer coisa que está na iminência de ser pensado6: e daí que, por conseqüência, não se deva parar nele. Este é um dos lados da dialética, talvez o mais valorizado por Hegel: a dimensão especulativa do pensamento. O outro lado da dialética é a lembrança de que tudo que acontece para além do objeto ou depois dele é determinado pelo objeto. Sem objetividade, sem o momento receptivo, sem o critério do que o trabalho intelectual tenta atingir, a dialética não seria possível, e nem concebível, o que talvez seja o mais importante para se entender seu aspecto não-metodológico. De fato, é como se a dialética, então, fosse, em parte, um materialismo, e estivesse, em seus desenvolvimentos, fundamentalmente determinada pelo objeto7. Em contraste com a dimensão especulativa do pensamento, o materialismo do pensamento é uma elaboração ou um trabalho que, ao invés de ultrapassar o objeto, sempre conduz ou retorna a ele. E isto também é muito razoável: tudo aquilo que o pensamento determina ou encontra a partir do imediato ou da perspectiva que lhe é oferecida, ele o faz a modo de elaboração sobre ou a respeito do objeto. Pois bem: a Dialética Negativa é aquela que enfatiza o momento materialista, é aquela que surge num contexto – o da racionalidade esclarecida – em que o que se impõe é ressaltar que os objetos não desaparecem em seu conceito, e que este acaba em contradição com a norma tradicional da adequação.8 Nesta perspectiva, é necessário notar uma mudança de postura – em relação a Hegel – diante da contradição. Ela não trabalhará mais como o motor da especulação, mas como “índice da inverdade da identidade, do sumiço do não- conceitual no conceito” (DN 17). A contradição também não será, ela mesma, um elemento externo ao pensamento, algo que devemos carregar sempre conosco como um acessório ou um equipamento fundamental à produção de um resultado final almejado para toda nossa atividade intelectual: e isto é algo que se faz tão 6 Talvez, algo da mesma natureza daquilo que Foucault designava com sua famosa alusão ao evanescente momento imediatamente anterior àquele em que se coloca a caneta no papel. 7 Como um salutar argumento de autoridade, vale a pena mencionar que a interdependência entre o materialismo e a dialética é explicitamente discutida por Althusser no Materialismo histórico e materialismo dialético. Na página 46, o autor delineia como o primeiro princípio do materialismo a “primazia do real sobre o conhecimento” e, na página 47, por análise deste princípio, chega à conclusão de que “o materialismo é necessariamente dialético”. Vale frisar que a primazia do real sobre o conhecimento, mesmo aliada à inadequação do conceito ao objeto, não significará que a realidade e o conhecimento – o ser e o pensar – estão radicalmente dissociados, como veremos mais adiante, na discussão de um posicionamento sobre a questão da realidade que pode ser extraído da Dialética Negativa. 8 Ver citação da nota 93. 186 mais necessário enfatizar em vista do fato de que o projeto da Dialética Negativa preconiza a ênfase em um aspecto do pensamento, de tal modo que tratar-se-á, em alguma medida, de reorientá-lo, instrumentalizá-lo. É por isso que Adorno se refere a seu modo de proceder no esforço do conceito como anti-sistemático e antimetodológico: sua orientação do pensamento, seu esforço por direcioná-lo, tomando-o como um todo, começa no reconhecimento de que o pensamento já procede como uma totalização de si mesmo e, conseqüentemente, como manipulação de sua própria experiência, de tal modo que, como já sugeri diversas vezes, esta experiência termina por desaparecer enquanto tal. A elaboração do antimétodo é o procedimento paradoxal de criar para o pensamento uma disciplina que o permita emancipar-se enquanto experiência – emancipar-se de todo método e disciplina heterônomos, ou seja, que não se imponham a partir da própria experiência. E como o conceito mesmo desta experiência, do mero fluxo de conceituação, não pode admitir nem método nem disciplina, mas, como o Tolo, ou o Cético, simplesmente trabalha, vivendo à mercê de cada objeto, trata-se de uma não-disciplina, a disciplina de atentar às disciplinas e evitá-las. A contradição e a inadeaquatio como critério geral de toda conceituação não é mobilizada aqui para reduzir todo conteúdo pensado à mera forma da contradição, de modo a repetir o Caos temido por Sócrates e restabelecido por Hegel, na figura do Entendimento, com a forma universal da diferença ou relação infinita. Ao contrário: “o pensamento é levado, a partir de sua inevitável insuficiência, sua culpa por aquilo que pensa, em direção à contradição” (DN 17). A Dialética Negativa é a filosofia que valoriza esta culpa, a consciência da insuficiência – e não da eficácia, como Hegel, no fim, parece pretender – que marca o pensamento quando ele subsume indistintamente o diferente, o vário, os conteúdos. Isso quer dizer, então, que a contradição surge justamente não da negação do pensamento totalizante: não é exatamente uma alternativa a ele, mas é justamente um traço de sua tentativa de estender-se indefinidamente. Não se trata de buscar um outro pensamento, mas de colocá-lo em uma certa perspectiva. Mais do que contestar a racionalidade, trata-se de buscar, por baixo dela mesma, ou a despeito dela mesma – a despeito da maneira como ela vem se comportando –, seu objeto. Podemos entrever para onde dirige-se este esforço considerando os exemplos do fracasso de seu oposto que procurei apresentar nos capítulos 187 anteriores. A relação entre o pensamento e a realidade foi, através deles, exibida como uma constante e repetida imposição do primeiro sobre a segunda. Por genérico, impreciso e abstrato que possa parecer o conceito desta imposição, espero ter mostrado como ela pode ser caracterizada com razoável precisão desde predisposições teóricas bem-definidas, tais como a tese sobre a separação primordial entre o pensar e o ser9, e a decorrente sistematicidade dupla que ela implica e a qual, de qualquer modo, é só o reflexo da predisposição do próprio pensamento a (esclarecidamente) compreender-se como um todo fechado em si mesmo, autônomo, auto-idêntico, auto-coerente. A Dialética Negativa procura quebrar esta sistematicidade, tornando o pensamento permeável ao real – ou, antes, permeável ao fato de que o pensamento já é permeável ao real: tornando o pensamento ciente de sua realidade. Dialética Negativa e ideologia sistêmica Aqui ressurge sob outras vestes o aspecto materialista da Dialética Negativa: ela aparece como a realização de um potencial do pensamento historicamente determinado. A antiinstrumentalização do pensamento realizada pela Dialética Negativa, a disciplina que ela tenta estabelecer, e que parece apontar, tanto quanto aquilo a que ela se opõe, para um “empobrecimento da experiência (...), se revela inteiramente apropriado para a monotonia abstrata do mundo administrado” (DN 18). Quer dizer: a Dialética Negativa não se opõe de fora, ou como uma alternativa teórica, ao pensamento esclarecido tradicional, o qual, aliás, é ele mesmo o reflexo de uma condição material determinada. Quando tal pensamento é tomado enquanto processo cognitivo real, ou considerado – como em Hegel – desde sua experiência, seu projeto e a tese que o sustenta revelam-se como insistente e consistentemente esforçados em obscurecer justamente o momento da submissão do objeto ao pensamento sistêmico. A atenção a esta submissão, ao gesto de conquista da alteridade pela singularidade do pensamento que repete a si mesmo em toda parte, é algo que a prática do pensamento reprime, mas é também algo de que ela depende intrinsecamente. Basta pensarmos na dependência mútua e a co-implicação dialética entre as teses de Sócrates e Cálicles, exposta por 9 Tese esta que, de fato, pode assumir a forma de uma mui acertada constatação, como sugeri no fragmento sobre a “Relevância da crítica de Hegel”, na parte 1 do Capítulo 2. 190 expressão subjetiva das ânsias e consternações do indivíduo pensante.13 A Dialética Negativa propõe que se abandone o pensamento sistêmico na tentativa de estabelecer uma disciplina para o pensamento crítico, a qual depende de uma experiência subjetiva semelhante à que Hegel reprime no Capítulo IV da Fenomenologia, quando abandona o Cético: a experiência do conflito entre o pensamento e a realidade, a experiência da própria contradição14. O pensamento, na proposta da Dialética Negativa, precisa disciplinar a si mesmo para empreender sempre o retorno materialista ao objeto: precisa, então, voltar-se contra si mesmo, contra sua própria capacidade de urdir, com sua coerência arquitetada, véus por sobre o real descontente. Reação à limitação da experiência Se é preciso criar uma disciplina do pensamento para permitir a expressão subjetiva, é porque, de início, há condições que atuam contra esta expressão. Tais condições estão concentradas justamente nas teorias sobre a subjetividade e sobre o ser, o imediato: é isto que Adorno expressa na Primeira Parte da Dialética Negativa, “A relação com a ontologia”. O esforço de se buscar encontrar o “puro ser”, o mero fato, ou o absolutamente fundamental – a insistência no imediatismo que Hegel despacha no Capítulo I da Fenomenologia – é caracterizado como um procedimento cognitivo inadequado ao nosso estado de coisas. O pressuposto destas posturas é a extinção da dialética – uma dialética, lembremo-nos, que não é um procedimento opcional do pensamento, mas uma imposição interna de toda experiência, ou melhor: a condição para que a experiência dialética reconheça a si mesma como dialética. A dialética torna-se um capricho opcional ou um equipamento arquitetônico para edificação do sistema quando – como vimos na análise da Fenomenologia – o paralelismo mimético entre o pensamento e a realidade dá lugar a um relacionamento intrínseco entre o sujeito e o objeto – um relacionamento regido pela projeção sistêmica do sujeito e sua auto-instauração como a própria relação entre ele mesmo e o objeto, conforme indiquei na análise do movimento hegeliano para além do Cético. A predisposição gnosiológica 13 Sobre a valorização do momento subjetivo como fundamental para o pensamento de Adorno, cf. WIGGERHAUS, pp. 633ss. Também terei mais a dizer sobre isso logo abaixo. 14 Vale notar que, em sua História da Filosofia, Hegel emprega a expressão “dialética negativa” para definir o modo de atuar do cético grego. 191 imediatista parte, então, de uma submissão do objeto às formas da substancialidade: ela é esta submissão. O “objeto em-si”, o mero fato, o puramente não-conceitual, é um artefato metodológico que, no entanto, pretende justamente aparecer como o que está fora de todo método. Conforme espero ter mostrado na análise da introdução do Fé e Saber15, tal imediatismo é, na verdade, a submissão do pensamento ao estado de coisas vigente – ao Wirklichkeit –: é, então, a aceitação de determinados conteúdos já existentes como formas absolutas do objeto – como as próprias raízes da objetualidade do objeto. A dialética, no entanto, emerge de dentro desta postura imediatista, a despeito do juízo que ela faz dela própria. Pois ela se baseia em um paradoxo fundamental: o que Wittgenstein formulou como a tentativa de dizer o que não pode ser dito (DN 21). Para Adorno, “a evidente contraditoriedade deste desafio é a da própria filosofia, que portanto é qualificada como dialética antes mesmo de enrolar-se em contradições específicas. O trabalho da auto-reflexão filosófica [eu diria: da disciplina do pensamento] consiste em destrinchar este paradoxo” (DN 21) – não de modo a esquecê-lo, ou superá-lo, mas eximindo-o de sua aura de vacuidade epistemológica e não-conhecimento, na qual foi envolvido por um pensamento sistêmico para o qual valia antes de tudo o princípio do terceiro excluído (DN 17). Assim, “a utopia do conhecimento seria abrir o não-conceitual com conceitos, sem torná-lo um mesmo para com eles” (DN 21). A tensão entre os objetos e seus conceitos precisa ser mantida em vista sempre, e não de modo a isolar os primeiros dos últimos, mas para torná-los criticáveis um através do outro. Promover a valorização do paradoxo e da tensão passa, portanto, por promover um “Desencantamento do Conceito” (DN 23-24): é desfetichizar o conceito, desprovê-lo de sua falsa autarquia (DN 23), de sua autonomia enquanto elemento imanente a um âmbito espiritual radicalmente dissociado do plano objetivo – o qual, então, é muitas vezes compreendido como natureza. O conceito autárquico é auto-idêntico, monolítico, é como uma forma que, a partir de si mesma, é julgada funcional, e então aplicada sobre o real informe, da mesma maneira como uma fôrma é aplicada sobre uma massa para moldar biscoitos. É impossível não pensar no projeto do pensamento kantiano como exemplo do procedimento que resulta em uma tal autarquia conceitual, e a atenção a tal projeto ressalta, ainda – em continuidade a algo que já sugeri em minha análise do 15 Parte 1 do meu Capítulo 2. 192 Fé e Saber –, de que maneira, à solidez subjetiva-conceitual, é coetânea a imagem de uma natureza radical, indeterminada, indiferente. As doze categorias que Kant apresenta em sua Analítica Transcendental, os conceitos “a priori” em função dos quais todos os nossos juízos são montados, são obtidos em atenção aos juízos conforme já os realizamos. Toda a filosofia transcendental consiste em um “passo atrás”, desde a prática cognitiva que já se dá ou que já se sabe ser possível, para a investigação das suas condições. Assim, Kant eleva a prática do conhecimento humano conforme desempenhada numa determinada situação da história ao status de “transcendental”, ou seja, à condição a-histórica. Esta a-historicidade que marca os conceitos a priori transforma-os em estruturas que estão além de toda transformação. Por um lado, é razoável que – por exemplo – o conceito de substância seja imprescindível ao nosso procedimento cognitivo porque não podemos passar sem ele se quisermos construir juízos sobre objetos quaisquer e – segundo o que se tem nas Analogias da Experiência – se quisermos ser capazes de reconhecer objetos enquanto razoavelmente permanentes no tempo. Na perspectiva da Dialética Negativa, não me parece necessariamente duvidoso que somos capazes de experimentar objetos permanentes: o que mas parece questionável é que devamos tomar abstratamente sua permanência como o ponto de partida para nosso pensamento sobre o reconhecimento dos objetos que são, assim, postos sempre em função de sua própria conceituação, da extinção de sua multiplicidade intrínseca. Se trata aqui de estabelecer as possibilidades de toda experiência, sendo que, no entanto, toma-se como modelo um certo tipo de experiência particular – o experimento científico, como admite o próprio Kant.16 No experimento científico, o sujeito circunscreve um objeto em função das provocações que faz à natureza17 – o experimentador “puxa o rabo do leão”, nas palavras de Bacon – e então obtém os resultados de suas provocações, e 16 “Quando Galileu fez com que bolas cujos pesos já havia determinado anteriormente, rolassem em um plano inclinado; quando Torricelli fez com que o ar carregasse um peso que ele anteriormente havia determinado como sendo igual ao de uma certa coluna de água; ou, em tempos mais recentes, quando Stahl transformou o metal em cal, e então de volta em metal, pela retirada de algo e a subseqüente reintrodução da mesma coisa, fez-se uma luz para todos os estudantes da natureza. Eles aprenderam que a razão só consegue apreender aquilo que ela produz de acordo com um plano dela mesma, e que ela não pode permitir-se a si mesma ser mantida nas correias da natureza, mas precisa, ela mesma, mostrar o caminho, com princípios de juízo baseados em leis fixas, constrangendo a natureza a dar as respostas a questões determinadas pela própria razão” (CRP Bxii–xiii). 17 Cf. Dialética do Esclarecimento, p. 24: “O homem da ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las”. 195 a partir dos próprios conceitos, do modo como se opera com eles. A sistematicidade é a forma mestra desta operação – e ela consiste, como vimos, na substituição de toda operação pela própria forma, da elevação da negligência da experiência ao princípio mesmo da prática cognitiva. E os conceitos obedecem tanto mais a estes princípios quanto mais pretende-se que eles digam respeito à realidade nua e crua. “Conceitos tais como aquele do Ser, no começo da Lógica de Hegel, indicam, em primeiro lugar, o que é enfaticamente não-conceitual; eles significam, conforme a expressão de Lask, para além de si mesmos. É de sua natureza não se darem por satisfeitos com sua própria conceitualidade, embora na medida em que incluem o não-conceitual em seu significado [Sinn – “sentido”, definição, e o objeto para o qual apontam], tendam a torná-lo idêntico a si mesmos e, portanto, a permanecerem presos em si mesmos. Seu conteúdo é tanto imanente [aos próprios conceitos], ou seja, espiritual [já que os conceitos são algo do âmbito espiritual], quanto ôntico, ou seja, transcendente [ao conceito]. Através da autoconsciência deste fato, eles têm a capacidade de descartar seu fetichismo. A auto-reflexão filosófica se assegura da não-conceitualidade do conceito” (DN 23). Este procedimento de “desencantamento do conceito” é um “antídoto da filosofia”, o qual “evita que ela cresça excessivamente e se torne absoluta para si mesma” (DN 24). Esta é uma precaução contra o idealismo absoluto, de fato: contra o soerguimento de um pretenso conhecimento absoluto sistêmico, mas também uma negação do academicismo, do enclausuramento da filosofia como uma disciplina cujo objeto é ela mesma. Quer dizer: algo na própria operação da conceituação parece exigir que mantenhamos em vista o fato de que o pensamento não deve se deixar tomar a forma de um pensamento sobre si mesmo apenas, mas precisa, ou deveria, – e não apenas pode – entender de que maneira incide no real. Ademais, desafiar a autarquia do conceito não significa – como já vimos – prescindir do conceito, mas manter em vista sua tensa dialética com a coisa. Sob um outro ângulo, tal tensão assume a forma de um amoroso assentimento à infinitude das possibilidades de expressão do objeto. Isto poderia servir de princípio para a justificativa teórica da escolha por um procedimento filosófico que, ao mesmo tempo, fosse ensaístico e não-diletante. A idéia, aqui, é que a filosofia não deve “reduzir o fenômeno a um conjunto mínimo de axiomas, exaurindo-o de acordo com o uso científico (...). Ao contrário, ela deve querer literalmente afundar no que lhe é heterogêneo, sem reduzi-lo a categorias pré- 196 fabricadas” (DN 24), às quais um pensamento que se queira libertar de seu pacto autopreservativo com um estado de coisas para além do qual ainda há muito o que se ver não precisa mais pagar qualquer homenagem. Adorno aponta para a experiência da interpretação de obras de arte como o paradigma deste procedimento emancipado do pensamento: nela, “o conhecimento não apreende nenhum de seus objetos completamente; não se supõe que ele prepare o fantasma de um todo. (...) A tarefa de uma interpretação filosófica das obras de arte” não pode ser “estabelecer a identidade delas com o conceito” pois, neste caso, a experiência mesma, que é tudo o que importa em se tratando da apreensão de uma obra de arte – já que a obra considerada em termos históricos ou físicos não aparece enquanto obra de arte – desapareceria, e o objeto perderia o que tem de mais próprio. É quase como se o desenvolvimento conceitual, neste caso, fosse supérfluo e impreciso. Assim, a filosofia, “a princípio, pode sempre desencaminhar-se, e só por isso pode alcançar algo” (DN 25). A filosofia, “contra a dominação total do método, mantém, como um corretivo, o momento da brincadeira (...). O pensamento não-ingênuo sabe quão pouco engloba o que é pensado e, no entanto, precisa comportar-se como se o tivesse completamente à mão. Por isso, aproxima-se da clowneria”, do jogo imitativo do palhaço (DN 25). Tal imitação do comportamento cognitivo auto-idêntico, sistemático, o qual tem a coisa porque a produz (como indiquei na menção ao experimento científico, logo acima), parece uma afronta à recriminação socrática à figura no tolo, no Górgias. O tolo aparece, aqui, quase integralmente: na perspectiva da Dialética Negativa, como no Górgias, trata-se de valorizar a experiência mesma mais do que o finalismo produtivo; também de hesitar na aceitação de um procedimento unívoco de determinação dos resultados da atividade – no presente caso, da atividade cognitiva. No entanto, nem de longe o que Adorno pretende indicar é uma espécie qualquer de irracionalismo, de falta de rigor, de ludicidade antiintelectual ou estetizante, como marca do pensamento filosófico. “A filosofia que imitasse a arte, que quisesse se tornar uma obra de arte, cancelaria a si própria” (DN 27). Trata-se – estas são as palavras de Adorno – de fazer funcionar a filosofia como uma filosofia que interpreta obras de arte. O irracionalismo diletante prega uma espécie de imediatismo: ele considera que não há elaboração conceitual necessária e precisa e que, portanto, as categorias previamente dadas, os costumes intelectuais, instituições, ou dados da experiência, são atômicos, irrelacionados, 197 indiferentes uns aos outros, porque plenos. O imediatismo envolve a mecânica sistemática, como vimos, e isto é tudo contra o que a Dialética Negativa se ergue. Por outro lado, a interpretação filosófica das obras de arte parte de uma espécie de comunidade entre o objeto e o pensamento: a própria obra é intrinsecamente espiritual, e a conceituação, portanto, não se lhe incide de fora. Ao mesmo tempo, na medida em que interpretar a obra não é prerrogativa única do seu autor – e, de fato, para interpretá-la, o próprio autor precisa se colocar como um observador, como que alienando-se dela –, o pensamento não se reconhecerá integralmente nela – ou seja, não se trata de montar, aqui, uma teoria da reconciliação. Adorno quer nos situar no espaço propositalmente impreciso entre um idealismo e um materialismo – talvez, no caminho entre a realização dos dois, na experiência. A interpretação filosófica é algo que não pode ser identificado com os conceitos mesmos de que dispõe, por um lado, e tampouco com a objetividade cuja pureza, na verdade, nunca se mantém – lembremo-nos do momento negativo do imediato na Certeza Sensível hegeliana. E se, além disso, os conceitos mesmos devem perder sua auto-suficiência, se devemos contestar o momento de sua adequação, então, negativamente (ou seja, por negação de todas as demais alternativas) somos obrigados a encarar o ato mesmo da interpretação: nem qualquer um de seus supostos resultados – um conceito adequado a uma coisa – nem a asseveração retrospectiva de seu ponto de partida – a mediação para o imediato, da qual o próprio Hegel já demonstrara a ingenuidade na discussão da Percepção. Enquanto ato ou experiência – quer dizer, na medida em que é valorizado seu aspecto dinâmico – é que o fazer filosófico tange a mimese. “O conceito só pode sustentar a causa daquilo que ele desalojou, a mimese, apropriando-se do seu modo de comportar-se, sem perder-se nele” (DN 26). No que a filosofia mais ou menos finge ter seu objeto completamente à mão, ela imita, em seu jogo clownesco, a própria identidade entre o conceito e a coisa. Termos como “jogo”, “imitação” ou “brincadeira” querem evocar, por um lado, a consciência da não-identidade – pois quem brinca de imitar sabe que o que está fazendo não é se não uma imitação que de modo algum substitui a própria atividade – pois a brincadeira, ainda que imite a realidade, não deseja tornar-se idêntica à realidade que imita (crianças brincando de perseguir-se e caçar-se umas às outras com armas de plástico nem sempre desejam realmente parar de brincar e matar-se umas às outras – ou, se o fizesse, não estariam mais brincando; da 200 é. Não é à toa que, então, miticamente, já seja atribuída ao homem uma imagem de poderoso e semelhante a Deus, a qual já era identificada por Xenófanes quando zombava da religião antropomórfica de seu tempo (DE 20-21). “Enquanto soberanos da natureza, o deus criador e o espírito ordenador se igualam”, e daí que, mesmo enquanto tal, “o mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade” (DE 24). Este é o aspecto da dialética do Esclarecimento que Hegel não valoriza no Fé e Saber, ou valoriza apenas parcialmente. Sua preocupação só vai até o ponto de defender que a objetividade ou imediatidade precisa ser readmitida no âmbito racional e, portanto, concebida em sua mediatidade intrínseca, o que é impossível enquanto se mantém uma separação entre o que está naturalmente dado e sua elaboração racional. Isso significa buscar aquilo que, na Fé, já diz respeito também à Razão – porém, não significa, reciprocamente, procurar aquilo que a própria Razão, enquanto algo da mesma ordem da Fé, coloca fora de si e trata com indiferença mesmo quando luta, através do esforço conceitual do próprio Hegel, para resolver racionalmente a Fé que excluíra. Mostrar unicamente que a Fé já tem algo de racional – este, o esforço hegeliano – é tomar a Razão, que expurgou de si a Fé, como uma Razão que não o tivesse feito e que, então, não fosse, de fato, Razão. O movimento de exclusão da Fé de dentro da Razão, realizado por esta última, determina a Razão pelo que ela exclui: a Razão, nas palavras de Hegel, torna-se “a serviçal da Fé novamente”. A conseqüência disso é a irreconciliação racional com o real imediato. No entanto, tanto a Razão quanto a Fé, no modelo hegeliano, só conseguiam lidar com a experiência a partir de sua generalização – seja pelo meramente imediato posto pela Fé, seja por aquilo a respeito do que, em geral, se deve admitir a necessidade de reconciliação, posta pela Razão –, generalização esta que marca o ponto cego do idealismo absoluto, como vimos, e que, no fim das contas, revela-se o problema real por trás da discussão esclarecida, a despeito da idéia que ela faz de si mesma: é isto, pelo menos, que procurei sugerir no trajeto até aqui. Assim, podemos dizer que subjaz às observações antimetodológicas da Dialética Negativa uma perspectiva nova e alternativa sobre alienação: o Esclarecimento, inicialmente, ignora seu compromisso com o que lhe é outro; isto exige que se coloque a questão da alienação, pois o eudaimonismo esclarecido revela-se uma teoria de pretensões 201 medíocres e conservadoras; torna-se clara a necessidade de pensar a determinação do real pelo pensamento desde um ponto de vista mais amplo e ilimitado; a reconciliação absoluta, contudo, não só pressupõe aquilo que, na realidade como está dada, deve ser antes considerado precisamente como o que não há, e deveria, na verdade, ser tomado como meta – a reconcialiação de facto, a atuação dos indivíduos na determinação da realidade – como também destrói a possibilidade de pensarmos justamente a natureza completa desta meta, uma vez que subsume toda a experiência, através de artimanhas do conceito, sob a imagem de um real monolítico, negligenciando-a enquanto tal. A valorização da experiência permitiria, então, pensar justamente a diferença entre o estado de coisas em que não há nem justiça nem conciliação e o que supostamente deveria ser – e, dialeticamente, de fato já é, como queria Hegel – sua verdade, a extinção de toda alienação, a tomada das rédeas do destino humano por cada um dos homens. É evidente que, ainda que valorizar a experiência e aquela diferença não possa ser confundido com a estratégia de extinção processual da diferença, ela é de certo um pressuposto metodológico para a formulação de tal estratégia – é, então, se não a própria práxis, a base para sua formulação, e uma base indispensável se tomarmos como ponto de partida a necessidade de ultrapassar o paradigma idealista, amparado naquilo que ela combate. Então, dar possibilidade à diferença mesma entre o conceito e a realidade, as coisas, ou a coisa, não significa, por um lado, um retorno ao paradigma da Razão versus objetividade absoluta, transcendido por Hegel, nem aceitar o resultado desta transcendência, a identidade total, mas manter em vista a tensão entre os pólos desta diferença. A tensão é tal que não se dissolve nem na separação definitiva nem na identidade final e, por isso, pode ser pensada através do conceito de semelhança, segundo evocado pela mecânica da mimese. Ora, a mimese é, por um lado, “aquilo que o conceito substituiu”, como vimos. Por outro lado, a própria idéia de uma dialética do Esclarecimento subentende que tal substituição não pode ser uma substituição – senão uma reafirmação – e, se o for, deve ser uma substituição parcial. Somam-se, a tais observações, as alegações de Adorno de que o fazer filosófico, ainda que mimético, não deve se deixar tornar inteiramente lúdico, ainda que não deva tampouco confiar no impulso esclarecido de identificação. O que se impõe, então, é pensar a forma como as três etapas do desenvolvimento do aparato cognitivo humano, mencionadas acima, coabitam ou 202 devem coabitar o pensamento contemporâneo. Mimese e experiência cética A posição hierarquicamente superior do discurso com relação à experiência, que se dá mesmo quando aquele não assume – como em Platão, por exemplo – a forma de uma tese metafísica positiva, condiciona o pensar esclarecido na medida em que este depende, em sua sistematicidade, da autarquia conceitual. Esta supremacia espiritual já é marca do procedimento mágico que precede o Esclarecimento. No entanto, a determinação absoluta do real – e a representação deste último como algo em si mesmo indistinto e alienado que é o “preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder” (DE 24), como vimos na discussão do interesse no Górgias, do eudaimonismo no Fé e Saber e do desejo na Fenomenologia – não estava em jogo na ritualística pré-esclarecida. O xamã, que imita o espírito que quer dominar, o imita justamente porque “ainda não se declarou à imagem e semelhança do poder invisível. É só enquanto tal imagem e semelhança que o homem alcança a identidade do eu que não pode se perder na identificação com o outro, mas toma definitivamente posse de si como máscara impenetrável” (DE 24). Além disso, se o xamã reconhece algo que imitar, é porque ainda não instaurou o Caos da indeterminação absoluta ao qual se antepõe a absoluta capacidade de determinar do sujeito.18 O mesmo reconhecimento do 18 Alguns trechos do capítulo “O feiticeiro e sua magia”, da Antropologia Estrutural de Lévi- Strauss, chamam atenção em sua adequação para ilustrar a relação entre imitação ou mimese e ritual mágico apontada por Adorno e Horkheimer. Descreve-se, aí, um ritual de auxílio ao parto, praticado por indígenas andinos, o qual consistia principalmente na recitação de um longo cântico no qual “tudo se passa como se o oficiante tratasse de conduzir uma doente, cuja atenção ao real está indubitavelmente diminuída – e a sensibilidade exacerbada – pelo sofrimento [provocado justamente pelas dificuldades do parto], a reviver de maneira muito precisa e intensa uma situação real. Vai-se, pois, passar da realidade mais banal ao mito, do universo físico ao universo fisiológico, do mundo exterior ao corpo interior. E o mito, desenvolvendo-se no corpo interior, deverá conservar a mesma vivacidade, o mesmo caráter de experiência vivida” O cântico utiliza-se de “um ritmo ofegante, uma oscilação cada vez mais rápida entre os temas míticos e os temas fisiológicos, como se se tratasse de abolir, no espírito da doente, a distinção que os separa”, mas não através da supressão da especificidade fisiológica – a especificidade do real experimentado –, e sim de sua confusão com os conteúdos míticos que a representam. “Como a doente, os muchu [figurinhas ritualísticas esculpidas pelo xamã para ajudá-lo, e que são animadas no plano da narrativa mítica] jorram sangue; e as dores da doente tomam proporções cósmicas.” Ademais, conforme figura no cântico, “a penetração da vagina, por mítica que seja, é proposta à doente em termos concretos e conhecidos. (...) A técnica da narrativa visa, pois, reconstruir uma experiência real, onde o mito se limita a substituir os protagonistas” reais, fisiológicos, por seus equivalentes míticos, substituição esta que só é possível pela semelhança de seu comportamento representado (pp. 223–225). 205 imutável. Talvez possamos dizer que, tomada positivamente, a experiência do Cético poderia, então, ser reformulada exatamente como um questionamento da transcendência do imutável, a dúvida frente à própria imutabilidade do imutável, inspirada pelo reconhecimento de identidade, de especificidade entre as coisas mundanas. O Cético, compreendido nesta perspectiva, é de fato aquele que compreende o vazio dos pensamentos, sua vacuidade, sua falta de conteúdo, seu distanciamento com relação às coisas. Do ponto de vista das coisas – e não da Idéia – parece mesmo, então, que a Fenomenologia é o desenvolvimento de uma suposição previamente imposta. “A distância do sujeito com relação ao objeto, que é o pressuposto da abstração, está fundada na distância em relação à coisa, que o senhor conquista através do dominado” (DE 27-28), com o qual realiza em si mesmo o imutável hipostasiado. Ora, este distanciamento só vem à tona no Senhor-Escravo, ainda que já tivesse sido formulado no Capítulo III da Fenomenologia, com o Entendimento e o prenúncio do infinito caótico onde tudo poder ser tudo, pois está essencialmente em relação com tudo. O que se nos afigura, através da discussão sobre a evolução do conhecimento na Dialética do Esclarecimento, é que a discussão sobre o infinito caótico não pode prescindir de uma tese sobre o sujeito senhoril; que Hegel a empreenda somente como uma explicação ou reapropriação subjetiva do que já havia acontecido é uma estratégia ardilosa, e um prejuízo às coisas. Mas tratava-se, já para o Hegel dos três primeiros capítulos da Fenomenologia, de descrever a teoria do conhecimento esclarecida, de modo que, se ele talvez não faça senão introjetá-la no sujeito como um traço estrutural dele, a crítica ao momento da displicência diante da sensibilidade a este fato – a crítica à passagem para além do Cético – e a reapropriação da mimese como corretivo para o pensamento sistemático acabam reconhecendo-se em sua função comum. Dualismo e dialética A autopreservação que a magia buscava, com seu caráter funcional de ferramenta para dominação da natureza, não acarretava em sistematicidade para o com uma certa estabilidade perante a consciência de si.” Hyppolite, p. 201. Podemos dizer que, então, este momento da independência e da estabilidade, precisa existir, mesmo que por um momento efêmero. A leitura hegeliana do ceticismo – talvez possamos dizer – prega exatamente o esquecimento deste momento efêmero. 206 pensamento, pelas mesmas razões porque, à experiência cética, o momento da substancialidade e da auto-identificação – da subjetividade em sentido enfático – sobrevem de fora. É fato que a magia não pode ser considerada tão realmente eficaz quanto a técnica esclarecida, as ciências de provocação e dominação da natureza: contudo, sua pretensão intelectual de explicação e expressão pode ser considerada positivamente, de qualquer maneira, para entendermos a postura espiritual que ela envolve: para entendermos a tese a respeito da realidade que sua prática subentende. Para o Freud de Totem e Tabu23 (DE 25), a prática da magia baseia em uma “confiança inabalável na possibilidade de dominar o mundo”. No entanto, esta caracterização leva a cabo a supressão da experiência mágica mesma em nome da enunciação de seu princípio lógico genérico, supressão esta que ela mesma ainda não realiza, mas que é, ao contrário, projeção anacrônica das capacidades de “uma dominação realista do mundo [que tem lugar] graças a uma ciência mais astuciosa do que a magia” (DE 25). É que “a magia é a pura e simples inverdade24, mas nela a dominação ainda não é negada, ao se colocar, 23 É evidente que a caracterização do conhecimento científico como um terceiro estágio, posterior à magia imitativa e ao mito, deve muito a este texto de Freud, especialmente o ensaio “Animismo, magia e a onipotência dos pensamentos.” Pode ser interessante observar que a visão de Adorno e Horkheimer sobre a imitação ou mimese difere da de Freud, o que se torna tanto mais marcante em se tratando das (breves) análises deste último sobre a brincadeira. Para Freud, “se as crianças e os homens primitivos acham o brinquedo e a representação imitativa suficiente para eles, isto não constitui um sinal de que sejam despretensiosos, em nosso sentido, ou de que aceitem resignadamente sua impotência real” (pp. 90-91). Ou seja: Freud não considera a brincadeira positivamente, mas apenas em alusão ao que poderíamos chamar de “a coisa séria”, aquilo que está sendo imitado. Mas isso só vem nos lembrar de que o ponto, na Dialética do Esclarecimento, não é valorizar a brincadeira por si mesma como um momento da filosofia. Penso que podemos dizer que a prescrição de um momento mimético para o conhecimento subentende que se vai brincar a sério; que a brincadeira da criança ainda não atingiu a maturidade que a Dialética Negativa procura realizar ao associar-se ao jogo imitativo. 24 Talvez seja realmente falsidade, mas tal falsidade não parecerá tão simples se atentarmos, por exemplo, aos estudos sobre a “eficácia simbólica” da magia feitos por Lévi-Strauss – os quais, é verdade, não estavam disponíveis para os autores da Dialética do Esclarecimento. Na Antropologia Estrutural, no capítulo “O feiticeiro e sua magia”, figura um momento de algo que poderíamos compreender como aquela falsidade, de qualquer maneira: a “condição intelectual do homem” é que “o universo não significa jamais bastante, e que o pensamento dispõe sempre de demasiadas significações para a quantidade de objetos nos quais ele pode enganchá-las. Dilacerado entre esses dois sistemas de referência, o do significante e o do significado, o homem exige ao pensamento mágico que lhe forneça um novo sistema de referência, no seio do qual os dados até então contraditórios possam se integrar. Mas sabe-se que esse sistema se edifica às custas do progresso do conhecimento, que teria exigido que, dos dois sistemas anteriores, um apenas fosse manejado e aprofundado até o ponto (que estamos ainda longe de entrever) em que tivesse permitido a absorção do outro” (p. 212; os itálicos são por minha conta). No capítulo seguinte, “Eficácia simbólica” é discutido um interessantíssimo exemplo de um estudo sobre um xamã norte-americano que é consciente da “pura fraude” (p. 221) envolvida em seus rituais curativos, e que, de fato, questiona-se sobre sua própria honestidade, mas, da mesma forma, vê-se impressionado diante da eficácia curativa destes mesmos rituais, e até analisa o quanto esta eficácia diminui na medida em que os elementos ludibriadores são eliminados de sua ritualística. 207 transformada na pura verdade, como a base do mundo que a ela sucumbiu” (DE 24). Em outras palavras, a magia não subentende a total identidade do real com o racional que assinalei, já desde a primeira parte de meu Capítulo 3, como sendo tanto um dado para a teoria da reconciliação, para aquele idealismo absoluto que é inadequado à realidade irracional, injusta, alienada em que vivemos, quanto a conseqüência de todo eudaimonismo, para o qual o sujeito e suas categorias devem triunfar no final. Ao mesmo tempo, entretanto, a magia subentende alguma comunidade entre o espírito e a natureza, enquanto a dominação esclarecida, em contradição com sua própria exigência de que o pensamento possa ser a princípio realizado, mantém que este último deve ser separado do real. Discuti esta situação quando enunciei a idéia do paralelismo sistêmico entre o pensamento e a realidade, em minha avaliação do esforço fenomenológico de Hegel, de modo que se trata, agora, de compreender mais o que antes chamei de paralelismo mimético25 a fim de justificar a retomada do pathos da mimese pela Dialética Negativa, e então prosseguir para compreender como tal retomada não é uma espécie de retorno ao mito, mas uma possibilidade da própria razão. Para tanto, comecemos por uma interessante citação da Dialética do Esclarecimento: No mundo luminoso da religião grega perdura a obscura indivisão do princípio religioso venerado sob o nome de ‘mana’ nos mais antigos estágios que se conhecem da humanidade. Primário, indiferenciado, ele é tudo o que é desconhecido, estranho: aquilo que transcende o âmbito da experiência, aquilo que nas coisas é mais do que sua realidade já conhecida. O que o primitivo aí sente como algo de sobrenatural, não é nenhuma substituição espiritual oposta à substituição material, mas o emaranhado da natureza em face do elemento individual (...). A duplicação da natureza como aparência e essência, ação e força, que torna possível tanto o mito quanto a ciência, provém do homem, cuja expressão se converte na Diz Lévi-Strauss: “É cômodo desembaraçar-se dessas dificuldades, declarando que se trata de curas psicológicas. Mas este termo permanecerá vazio de sentido, enquanto não se defina a maneira pela qual representações psicológicas determinadas são invocadas para combater perturbações fisiológicas, igualmente bem-definidas” (p. 221). Vale observar, ainda, que os termos nos quais Lévi-Strauss discute tal maneira de invocação no capítulo sobre “O feiticeiro e sua magia” parecem-me em muito comunicar-se com aqueles de subjetividade, espírito, racionalidade objetiva, etc., que integram o pano de fundo da argumentação de Adorno e Horkheimer, de modo que, a princípio, creio que esta antropologia mais recente que aquela disponível quando da redação da Dialética do Esclarecimento, ao contrário de criar-lhe problemas, teria muito que acrescentar a ela. 25 Ver acima, Capítulo 2, parte 2, seção B, subseção a, “Comportamento sistêmico na perspectiva do duplo caminho fenomenológico”. 210 como esforço de apreensão da realidade que vê a mimese e a não-identidade que ela mantém para com seu objeto como falibilidade. Quer dizer: é só na medida em que se ergue contra o pensamento sistêmico e conscientemente sistêmico, que a dialética é negativa. Na perspectiva de um pensamento liberado de sua função de pôr objetos adequados a ele próprio segundo uma dinâmica conservadora das categorias cognitivas em voga, a dialética revelará a comunidade que Hegel já evocara entre ceticismo e especulação, à qual Adorno se refere em uma nota de pé-de-página28. Assim como o xamã produz sua versão do demônio que quer dominar, também o filósofo erguerá, no plano dos conceitos, sua imagem intelectual para o objeto que se lhe é oferecido. A diferença entre o objeto e a imagem intelectual caracteriza esta última como um produto da criatividade do pensador, e não tanto de algum rigor formal ou metodológico de que ele seria capaz, uma vez que é justamente do questionamento da capacidade cognitiva das formas preexistentes que o modo de pensar proposto pela Dialética Negativa surge. Já sugeri que a crença em um fundamento último, uma realidade imediata em última instância, deve ser compreendida como a manutenção ideológica, irrefletida, de formas inquestionáveis de determinação de realidade, as quais agiriam não a priori, a partir dos recônditos do sujeito, mas a partir do próprio real já pré-formado, por debaixo dos panos. Na medida em que leva isto em conta, a Dialética Negativa concorda com o momento da figura do Cético no qual se tem a experiência de que não há qualquer solidez entre as coisas finitas29. Além deste elemento, o pathos geral do pensamento enquanto sendo o de ultrapassar a coisa, expresso na Fenomenologia, também participa da definição da Dialética Negativa. Lá, entretanto, tratava-se de devorar as coisas30, enquanto que aqui o pensamento acaba deixando de lado esta tendência autopreservadora de acordo com a qual ele é tanto o proponente de seus objetos quanto um resultado de seu processamento – como se fosse o produto de uma manufatura –, e atém-se mais ao seu aspecto de trabalho sempre em processo. É que ultrapassar o objeto não é motivo de orgulho para um pensamento que está ciente de sua falta de consideração para consigo afinal, são externos ao pensamento. Farei mais uma observação a este respeito, mais adiante, através de um referência à neurose. 28 DN 27, n. 1. 29 Aliás, também vale notar que é aí que o ceticismo moderno – especialmente Hume – diverge do ceticismo antigo: enquanto um, na alvorada do cientificismo, busca os facta bruta por trás de nossos preconceitos, o outro está convencido justamente da impossibilidade de tê-los. 30 Como se tem na já citada metáfora dos animais e da realidade evanescente, FE 109. 211 mesmo, no que sabe que sua tarefa é conhecer o objeto, e não apenas permanecer falsamente autônomo (na verdade, indiferente) e cuidar do soerguimento de uma subjetividade senhoril. A modesta especulação que o pensamento deve realizar, então, não deve prescindir de culpa, ao mesmo tempo, entretanto, em que não se deixa iludir com a imediatidade das coisas, e reconhece, aí, a verdadeira violência feita a elas, seu verdadeiro obscurecimento indevido, e o real momento de autotraição do pensamento: o momento de sua cristalização. Ora, sob este ponto de vista, o momento criativo não dirá respeito a ultrapassar as formas de pensar o objeto que estão cristalizadas ao redor dele, que o mascaram como a imprescindibilidade das categorias físico-fenomênicas do sujeito transcendental kantiano mascaram as coisas e as colocam, ao mesmo tempo, como um além e como dotadas de relevância garantida, fixa e limitada para nós. Todas essas objeções somam-se para construir uma imagem do existente como algo em si mesmo complexo – mas não caótico e sem sentido intrínseco, como a Vida que a consciência desejante tem diante de si –, impregnado de espírito – mas não como o real inerentemente racional para o qual Hegel quer apontar – e afim ao pensamento, mas sem se deixar identificar com ele, pois o pensamento em ato é experiência, e o pensamento objetivado, passado, que a experiência descobre, de fato, como uma parte do real – nas instituições, por exemplo, ou simplesmente no sentido da história –, está fixado, e só permanece assim enquanto não é apropriado pelo “moinho dialético” da experiência. “O poder do existente constrói as fachadas contra as quais a consciência se choca. Ela deve tentar quebrá-las e ultrapassá-las. (...) O momento especulativo sobrevive em uma tal resistência: o que não se permite ser governado pelos fatos dados, os transcende mesmo no contato mais próximo com os objetos e na renúncia à transcendência sacrossanta. O que, no pensamento, vai além daquilo a que ele está preso em sua resistência, é a sua liberdade, e segue a necessidade expressiva do sujeito” (DN 29). Tal poder do existente, entretanto, depende da qualidade específica deste existente. O real em que forças concretas, materiais, sob a forma de dispositivos e instituições atuam sempre na determinação de condições para a sua própria reprodução – o real sistemático, cuja imagem teórica, como vimos, subjaz ao discurso esclarecido sobre o sujeito e o eudaimonismo – é aquele onde o poder do existente se faz sentir como uma resistência ao pensamento enquanto experiência e à expressão subjetiva. Não quer dizer que esta expressão seja o objetivo último 212 da Dialética Negativa: a expressão, em si mesma, é apenas a condição intelectual de um questionamento teórico a respeito do estado de coisas sistêmico, e se sua natureza mesma volta-se contra tal questionamento, não quer dizer que o mero questionamento causa a dissolução do estado de coisas. Os problemas com que o pensamento se depara, e o próprio problema da possibilidade do pensamento para além do Esclarecimento que reverteu em obscurantismo, dizem respeito às condições sociais e materiais da produção deste pensamento. Erguer-se teoricamente contra a violência com a qual a racionalidade, em sua forma atual, está imiscuída, não é acabar com a violência: tal movimento teórico, ao contrário, tem sua origem mesma na violência, é a experiência de tal violência, mas é a experiência da violência vista enquanto tal, e não sob sua forma mistificada em verdade última do mundo e alternativa última do homem. Neste sentido, a Dialética Negativa é um certo tipo de propedêutica: é o estudo de como tornar possível aquela experiência. Ao mesmo tempo, ela também carrega, em si, a promessa da possibilidade da extinção da violência, uma vez que esta última é questionada em seu pacto com a razão, que por sua vez é exercida, enquanto experiência, em instantes efêmeros em que o sujeito encontra seu lugar junto à justiça, à verdade, negativamente projetando-as para si mesmas mediante a consciência de sua insatisfação com relação ao mundo. Para que a Dialética Negativa tenha sentido, é necessário que o caráter efêmero da experiência negativa da racionalidade não seja nem hipostasiado como a salvação última nem desvalorizado em face dela: qualquer das duas sínteses ou pontos finais do pensamento trairia a inquietude da dialética e arrastaria o pensamento para sua cumplicidade com a subjetividade substancial que é contrapartida, no âmbito individual, do existente cuja força é hostil ao sujeito, e hostil sobretudo à consciência de tal hostilidade. O paradoxo, mas também a circularidade da qual tais formulações dependem, e à qual a racionalidade vigente é ao mesmo tempo tão afim, em sua sistematicidade, e tão antipática, na linearidade de seu teleologismo, não são, na verdade, nem tão circulares nem tão paradoxais assim. O sujeito substancial que resultaria do alívio de se postular uma salvação final não é o mesmo sujeito para quem esta salvação interessaria, pois a salvação seria o simples poder viver, e o sujeito substancial só se dá mediante a totalização da vida – no momento da morte, como já sabia Aristóteles (para quem o ser de um homem se define e determina somente depois de sua morte, conforme se tem na Ética a 215 mediano, mas que também tivesse o mesmo tipo de apelo instintivo que ainda tem hoje (se muito, em uma maior intensidade): a vontade de revidar, de atacar aquele que nos atacou – se tivermos força suficiente – está entranhada nos nossos mecanismos de defesa mais animais. O mérito de Hamurabi, então, talvez tenha sido o de atribuir ao aparato legal a função de reger o revidar, de tal modo que a vítima, ainda que mais fraca e desprotegia, sempre tenha a força de dar o troco: algo que a natureza, por si só, evidentemente nem sempre assegura. De qualquer modo, a diferença entre a razão elaboradora e a agressividade imediata, para o exercício da qual é necessário pouca mediação espiritual, é muito tênue. Ademais, é importante atentar para a eficácia específica de tal justiça. É razoável dizer que, quem tem seu olho furado, além da dor física, entristece-se pelas dificuldades práticas que sua perda o fará passar, além de talvez lamentar o fato de que, de então em diante, não poderá mais se identificar inteiramente com as pessoas à sua volta, que sempre verão nele a feia marca de uma violência sofrida, ou talvez, ainda, um sinal de sua fraqueza; de modo semelhante quem perde um ente querido, tem razões pragmáticas para se lamentar – especialmente se considerarmos a maneira como o trabalho e a sobrevivência estão ligados à estrutura da família –, e também afetivas: mas acionar o Estado para que o agressor tenha o olho furado, ou para que seu filho seja morto, não poderá restabelecer a perda que causa tais preocupações e sofrimentos. A satisfação proporcionada por tal conceito de justiça está ligada ao prazer da vingança. Trata- se – já dizia Nietzsche, mas com intenções outras que as minhas – de colocar o fraco no lugar do forte, de propiciá-lo uma experiência de exercício de violência da qual ele não seria capaz por si mesmo. O indivíduo que é beneficiado por uma tal justiça move-se, através dela, para a esfera do injusto: para a esfera daquilo que é outro que sua humanidade ferida que talvez devesse ser o interesse da justiça, em primeiro lugar, mesmo que isso implicasse a aporia de seu simples reconhecimento do irreparável. O contraste entre a atenção à humanidade do humano, o real interesse subjetivo – a felicidade, se quisermos –, de um lado, e a justiça, de outro, pode ser ilustrado pela conclusão do processo dos atenienses contra Sócrates: seu assentimento à pena de beber cicuta. No Crito, Sócrates é exortado à fuga da pressuposição de que os impulsos proibidos encontram-se presentes tanto no criminoso como na comunidade que se vinga.” 216 prisão pelo discípulo que dá nome ao diálogo, mas se nega a tanto, respondendo-o com uma apologia do Estado ateniense. Colocando-se como alguém “cuja natureza sempre foi ser guiado pela razão: qualquer que seja a razão que, através da reflexão, me tenha parecido a melhor” (Crito 46), Sócrates desenvolve um raciocínio segundo o qual deve lealdade às leis de sua cidade, da qual é escravo, “uma vez que foi trazido ao mundo e nutrido e educado” por ela (50), e com a qual tem um “contrato”, uma vez que nunca escolheu deixá-la, mesmo estando ciente de suas leis e da natureza de seu governo (51). Sócrates realiza a defesa da submissão do indivíduo à força estabelecida do existente, o que pode parecer surpreendente para uma figura que, em toda parte, ergue-se contra as “doutrinas da multidão” (48). Não é precisamente o poder da multidão que é exercido contra ele através da justiça ateniense? Sócrates não é justamente uma vítima do obscurantismo e do irracionalismo do populacho contra o qual pretensamente luta todo o tempo, com sua consistência intelectual e desprezo pela regra interna do corpo (como vimos no Capítulo 2)? Pode ser que seu assentimento à própria pena de morte (a qual, na Apologia, 37, ele declara preferir ao exílio) deva ser lido como uma vitória do pensamento consistente contra o modo de pensar da multidão, algo que pode ser sustentado em face das alusões, feitas ao longo do Crito, à “doutrina da maioria”, segundo a qual deve-se “pagar o mal com o mal” (Crito, 49). Assim, Sócrates renuncia à própria vida como que para poder dar uma gargalhada final frente à tolice32 da multidão, como que revidando a violência social com uma violência no âmbito da qual ele é mais forte e mais capaz do que ela, numa lógica semelhante – ainda que veladamente semelhante –, à do “olho por olho”: trata-se de, através da justiça, proporcionar ao sujeito a experiência do poder. A isto liga-se o sentido da afirmação de que “não a vida, mas a boa vida, deve ser valorizada” (48): a vida absolutamente regrada pela razão sistêmica que Sócrates pregava não pode ser vivida em uma cidade injusta; no entanto, paradoxalmente, a obediência às regras injustas da cidade mostram uma oportunidade de afirmar o poder do pensamento sistêmico a despeito da realidade. De fato, “a despeito da realidade” é o lema do pensamento sistêmico, como vimos: é uma tal desvalorização do real – do dado, da matéria, do corpo, da 32 No sentido definido na Parte 2 do meu Capítulo I. O tema do tolo, de fato, se repete no Crito, onde Sócrates refere-se às massas como incapazes tanto do maior mal quanto do maior bem porque “tudo que fazem é um resultado do acaso” (44). 217 multiplicidade de coisas – que rege o desprezo pela regra interna do corpo enunciado no Górgias, e também o ingênuo ímpeto reformador e revolucionário do Esclarecimento. Mas o episódio da condenação de Sócrates ilustra como a pretensa desvalorização do real reverte na submissão do indivíduo ao estado de coisas vigente. Sócrates prefere a morte à vida ruim, e o diálogo é construído de maneira a nos mostrar como a razão saiu vencendo, conservando-se imaculada e correta de acordo com seus próprios parâmetros, ainda que deixando com que a vida permanecesse ruim. Mas manter a consistência da racionalidade é uma missão à qual Sócrates é empurrado pelas circunstâncias adversas do seu real. Não seria muito melhor ter uma boa vida do que ser obrigado pela raciocinação a preferir a morte? A razão está preocupada demais em estabelecer-se como algo autônomo e definido a partir de si mesmo para fazer-se tal pergunta. Por isso, no entanto, ela se torna indiferente ao seu oposto, o mundo, que, não obstante, continua seguindo seu próprio caminho, o que quer dizer que a razão acaba se comprometendo com o seu oposto, com a vida como é imediatamente oferecida: com o irrefletido, o natural, o meramente dado. Isto quer dizer que, reciprocamente, a força do existente inclui em si o momento da razão legisladora lado a lado com o da agressividade instintiva ou do próprio senso comum – o poder “da multidão que pode nos matar” (48), como o próprio Sócrates admite. É precisamente a aliança entre estes dois momentos que fundamenta a defesa Socrática da racionalidade de sua própria morte, no apelo à sua dívida para com a cidade que o gerou, à qual se mistura uma necessidade de aceitar sua justiça. É preciso dizer que, por maiores os malabarismos conceituais que isto exija, é relativamente fácil aceitar a racionalidade vigente e imbuí-la do status de produto da atividade da própria consciência individual. Agir no sentido oposto (sendo a terceira via o caminho oferecido pela Dialética Negativa), realmente produzir individualmente uma justiça por conta própria, com base em um modo- de-pensar individual, e então impô-lo objetivamente, é que é muito difícil e até mesmo impossível. Em primeiro lugar, porque o raciocínio não é algo do âmbito da massa, é algo que acontece no nível do diálogo tête-à-tête e afeta aqueles que podem realmente participar de sua formulação ou, no máximo, aqueles que estão em volta testemunhando isso. A postura passiva de um membro da massa que simplesmente adere às informações que lhe chegam – mesmo que essas digam respeito às doutrinas resumidas de figuras razoavelmente populares como eram os 220 necessidade de satisfação subjetiva (a consciência desejante) que não conhece limites, mas perpetuamente afirma tudo que lhe é outro enquanto destinado a se lhe submeter. O reles egoísmo da maioria, cuja epítome é o tirano Arquelau, formalmente idêntico ao instinto natural de autopreservação, está na raiz da possibilidade da experiência do Senhor e alimenta aquele sistematismo intelectual que, no fundo, é suicida, porque precisa mostrar-se independente justamente daquilo em que está apoiada a própria vida. Quanto ao eudaimonismo esclarecido moderno, a forma da posição que ele urde para o sujeito também é idêntica à do Senhor hegeliano: inconsciente de seu processo de assenhoramento. Podemos entender esta inconsciência através da acusação hegeliana em termos da qual o esclarecimento “fracassa” em sua tentativa de investir de poder e autonomia o sujeito e a Razão34 pois limita a atividade de ambos em termos de sua alteridade com relação à Fé e ao mundo compreendido como a natureza puramente dada e radicalmente não-espiritual. Na argumentação de Hegel, o próprio mecanismo de estabelecimento de tais alteridades é de responsabilidade da própria Razão, de modo que sua autonomia, enquanto indiferença à sua alteridade, é conquistada através de um esquecimento, como no caso do Senhor: o esquecimento do trabalho junto à materialidade, do compromisso com o outro. Este diagnóstico, no entanto, não se provou satisfatório, como procurei apresentar na parte 2 do Capítulo 3 do presente trabalho. Ele parece prescrever um assenhoramento total da Razão sobre sua alteridade, pecando pela indiferença ao existente enquanto tal. A falácia desta indiferença pode ser identificada em termos puramente gnosiológicos, como espero ter mostrado, mas também pela observação do mundo, conforme podemos experimentar na realidade contemporânea, como estando de fato fora do controle racional do homem. Procurei sugerir que o próprio Hegel parece estar comprometido com a figura do Senhor no que diz respeito às possibilidades do desenvolvimento de seu Idealismo Absoluto. Para evitar este comprometimento, e buscar a superação daquela indiferença, parece-me proveitoso compreender o eudaimonismo esclarecido através de um paralelo com certas características gerais da sociedade industrial contemporânea. É razoável admitir que o indivíduo que é membro de tal sociedade também se possa compreender como posto diante do mundo enquanto aquilo que lhe pode 221 satisfazer as necessidades. Este mundo, é verdade, rompeu os limites da natureza meramente dada, os quais existiam para o pensamento moderno que não dispunha ainda de todo o aparato científico de dominação da natureza do qual dispomos. De acordo com as presentes condições, entendemos a natureza já desde seu usufruto – como diz o Heidegger da Questão da Técnica, compreendemos o rio em função da usina hidroelétrica que ele poderia comportar. A natureza fundiu-se com o mundo de coisas humanas, como que realizando o sonho do Senhor: tudo já aparece desde suas mediações possíveis orientadas para nosso consumo: a terra em função de seus minérios e capacidades agrícolas, o ar em termos de sua capacidade de permanecer respirável a despeito dos poluentes, o próprio sol e os ventos em termos dos megawatts que podem nos render para alimentar nossas máquinas. E se tudo aparece desde sua mediação, isto se deve a que já dispomos de fato das tecnologias para controlar tudo, aproveitar tudo. Mas há um porém: não dispomos desta tecnologia enquanto indivíduos. Numa perspectiva otimista, poderíamos dizer que a possuímos enquanto espécie: na medida em que o homem acumulou, ao longo do tempo, saberes e recursos que o capacitam, como um todo, a explorar toda a Terra. Só que uma tal interpretação é por demais ingênua, uma vez que a espécie como um todo não exerce nem tem, nas condições atuais de nossa vida econômica, a capacidade de definir a direção do emprego de tais recursos e conhecimentos. Os países africanos, ou antes, os povos destes países, que tendem a desaparecer vitimados pela fome e pelas epidemias não têm poder sobre as tecnologias agrícolas ou biomédicas às quais a espécie teria chegado; tampouco as populações mais pobres vivendo nos próprios países desenvolvidos. De fato, são relativamente poucos os indivíduos que realmente detém o poder sobre os recursos e conhecimentos acumulados pela “espécie”. Esses indivíduos são os Senhores de fato da humanidade – senhores que não estão submetidos, até onde se sabe, a qualquer dialética da consciência, mas que usufruem da natureza mediada e realmente se satisfazem. Uma parte relativamente grande da humanidade, aquela parcela que vive a uma distância mediana entre os Senhores e os absolutamente miseráveis – distância esta que diz respeito ao aproveitamento das benesses da tecnologia, e não às capacidades de controle e direcionamento de seu emprego, o que só cabe realmente aos Senhores – ocupa o lugar do Escravo que não tem outra auto- 34 Ver parte 1 do Capítulo 2, acima. 222 imagem que a do Senhor. A persistência das capacidades desiguais de interferir no curso do emprego da tecnologia é suportada por essa classe em troca de um conforto material – a sobrevivência do Escravo, mais ou menos garantida, ainda que tensamente – que lhe é administrado por uma cultura industrializada amparada por uma ideologia do pensamento sistemático que, a despeito da desumanidade vigente, lhe envolve com um discurso sobre a justiça, a racionalidade, a civilização, de um lado, e a imagem da subjetividade poderosa, satisfeita, do outro, mas o imobiliza ideologicamente, assim, no estado de coisas corrente, a violência e a desigualdade, na verdade, fazem dele uma vítima, e imperam em perfeita compatibilidade com tudo que parece opô-las discursivamente, dado que, no fundo, seu conforto ilusório é uma conseqüência da relação real de submissão ao Senhor. O Escravo que se vê como Senhor, o cidadão mediano dos países industrializados – pessoas que, me parece, devem ser definidas não em termos de uma hierarquia de poderes aquisitivos, mas pelo fato de que possuem algum poder aquisitivo, e de que este poder é limitado –, vê a natureza toda permeada de humanidade, de técnica, de ciência, mas está alijado do controle desta técnica, e está também à margem desta humanidade cuja auto-identidade – como na fazenda de George Orwell – faz, de alguns, mais idênticos que os outros. A Dialética Negativa é uma disposição intelectual que pode tornar o Escravo sensível a esta contradição, à contradição intrínseca à dominação absoluta da razão sobre o real, a qual era vislumbrada com ansiedade pelo pensamento moderno e que os cientistas naturais, a serviço das elites, aos poucos vêm levando a cabo. No cerne desta disposição intelectual está uma mudança de foco quanto ao problema da racionalidade em relação ao que se tinha na tradição esclarecida: não se trata de trabalhar em prol da concepção de uma razão todo-poderosa, pois quem precisa de tal trabalho, quem deve ser convencido da justeza da Razão, deve sê-lo porque não tem contato com as reais benesses dela e, portanto, na verdade não colhe os frutos daquele poder. Trata-se de problematizar a impotência da razão e, positivamente, indagar pela felicidade. A felicidade acontece no âmbito que o pensamento autocentrado, sistêmico, que produz suas próprias perguntas e respostas, põe de lado: o mundo que o sistema hegeliano hipostasia através da estratégia de sua generalização. A complexa apologia da razão, com a qual a tradição vem se ocupando tão
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