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Guias e Dicas
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Renovação e Expansão do Estilo Românico na Arquitectura Portuguesa: Sculptura e Decoração, Notas de aula de Arquitetura

História da ArteArte RomânicaArquitectura RomânicaHistória da Arquitectura

Entre o final do século x e o início do século xi, a europa ocidental sofre uma lenta renovação, mas é na segunda metade do século xi e início do século xii que uma série de transformações políticas, sociais, económicas e religiosas propiciam o aparecimento e expansão do estilo românico em portugal. Este documento explora as tendências da escultura românica, modelos arquitectónicos e decoração de igrejas em portugal, como as de são salvador de ganfei, sanfins de friestas e são joão de longos vales.

O que você vai aprender

  • Quais igrejas em Portugal seguem modelos do transepto da Sé de Tui e outras tipologias difundidas na Galiza?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Baixe Renovação e Expansão do Estilo Românico na Arquitectura Portuguesa: Sculptura e Decoração e outras Notas de aula em PDF para Arquitetura, somente na Docsity! Índice 13 31 33 35 39 45 53 62 69 71 73 77 77 79 81 83 Prefácios Abreviaturas Capítulo I – A Arquitectura Românica e a Paisagem A Arquitectura Românica O Românico em Portugal O Românico no Vale do Sousa Dinâmicas do Património Artístico na Época Moderna Território e Paisagem no Vale do Sousa nos séculos XIX e XX Capítulo II – Os Monumentos da Rota do Românico do Vale do Sousa Igreja de São Pedro de Abragão 1. A Igreja na Época Medieval 2. A Igreja na Época Moderna 2.1. Arquitectura e organização do espaço 2.2. Talha e pintura 3. Restauro e conservação Cronologia 35A Arquitectura Românica Entre o final do século X e o início do século XI, a Europa Ocidental acusa uma lenta renovação acom- panhada por um notável surto construtivo. Nesta época, as diferenças regionais, no que diz respeito à arquitectura, são ainda muito acentuadas. Enquanto a Sul se desenvolve a designada primeira arte românica meridional, no Norte de França e no território do Império Otoniano predominam as grandes construções cobertas de madeira, de tradição carolíngia. É, no entanto, ao longo da segunda metade do século XI e do início do século XII, que uma série de transformações políticas, sociais, económicas e religiosas irá propiciar o aparecimento e a expansão do estilo românico. Uma maior estabilidade política é então acompanhada de um lento mas significativo crescimento de- mográfico. No século XI, os progressos nas técnicas agrícolas irão permitir melhores colheitas e uma acentuada melhoria na alimentação e nas condições de vida das populações. Ao mesmo tempo desenvolvem-se, na Europa, dois fenómenos fundamentais para a compreensão do aparecimento, do desenvolvimento e da expansão da arquitectura românica: o monaquismo e o culto das relíquias. O monaquismo do século XI apresenta características muito diversas do monaquismo de origem Orien- tal, mais antigo e centrado em práticas ascéticas e de isolamento. A Regra de São Bento aliou a vida con- templativa ao trabalho manual, repartindo-se, as horas do dia do monge, entre a oração e o trabalho. São Bento (c. 480 – c. 547), fundador e abade do mosteiro de Monte Cassino, aí compôs a Regra que recebeu o seu nome. Apesar da influência desta Regula Monachorum ser já nítida no monaquismo caro- língio, é a partir da Época Românica que se torna o documento fundamental da vida monástica, servindo de modelo a um grande número de ordens religiosas que a adopta ou que nela se inspira. 38 A arquitectura românica não resultou de grandes princípios directores nem foi fruto de teorias elaboradas. A diversidade é um dos seus aspectos mais característicos e mais importantes para o seu entendimento. Entre 1060/1080 e os meados do século XII, a arquitectura românica afirma-se plenamente de forma mais elaborada e articulada, apresentando sistematicamente escultura arquitectónica. A escultura arquitectónica que o românico desenvolve, sobretudo a que se enquadra nos capitéis e nos portais é radicalmente uma invenção e uma novidade desta época. Nos séculos da Alta Idade Média, a escultura quase desaparecera, sobretudo no que diz respeito à escultura figurativa, muito conotada então com a idolatria e o paganismo. Será muito lentamente que reaparece no Ocidente medieval em lugares de peregrinação como invólucro de relíquias ou nos inícios do século XI, já em peças da arquitectura, como capitéis e molduras de vãos. A escultura românica figurativa nasce no quadro do capitel coríntio. A multiplicação de colunas imposta pela utilização do pilar cruciforme, elemento de suporte que nasce e se desenvolve no âmbito do abo- badamento em pedra das várias partes da igreja, resulta na existência de uma grande quantidade de capitéis. Na arquitectura românica, a renovação do capitel coríntio, herdado da tradição romana, irá resultar na adaptação das figuras à forma daquele capitel. Uma das principais características da escultura românica reside precisamente no facto de ser o quadro, o espaço que existe para ser esculpido, o primeiro elemento organizador da composição. Daqui decorre a tendência da escultura românica para apresentar deformações morfológicas, posições acrobáticas ou pouco habituais, figuras pequenas em espaços curtos e figuras alongadas em espaços compridos. Se é certo que a lei do quadro corresponde a soluções adoptadas noutras épocas, como por exemplo nas esculturas grega e romana, a verdade é que no caso de um frontão clássico as figuras nunca perdem as suas proporções canónicas. A forma triangular do frontão conduz a que as figuras na parte central, porque é a mais alta, possam estar em pé, e que as figuras situadas junto aos ângulos se apresentem deitadas. A singularidade da arte românica é que ela encolhe, estende, dobra ou alonga as figuras, ou seja, deforma-as para que elas se adaptem ao espaço que devem ocupar. São disso exemplo os tímpanos e as arquivoltas dos portais românicos cuja forma semicircular impõe uma composição adaptada a essa forma. Na Igreja Românica a escultura concentra-se, exteriormente, nos portais, nas aberturas de iluminação, com especial relevo para a fresta ou frestas da cabeceira, nos cachorros que, por norma, sustentam as cornijas e nos capitéis e bases de colunas adossadas. No interior é igualmente nos capitéis, com espe- cial relevo para os capitéis do arco triunfal que se concentra a escultura e também nas bases. Como já escreveu C. A. Ferreira de Almeida importa conhecer a antropologia do portal principal das igrejas românicas já que é aí que se concentra uma boa parte da escultura. O portal ocidental das igrejas, por norma orientadas canonicamente, ou seja, tendo a cabeceira voltada a Oriente e, logo, a fachada principal, a Ocidente, era concebido como Porta do Céu ou como Pórtico da Glória. A vontade de proteger a entrada da igreja é que terá conduzido à representação de figuras ou programas sagrados, à inclusão de escultura como a de animais assustadores e a sinais de valor apo- tropaico, ou seja, motivos escultóricos como cruzes e rodas solares, capazes de defender as entradas e de proteger a igreja. 39 O Românico em Portugal O estilo românico surge, em Portugal, nos finais do século XI no âmbito de um fenómeno mais vasto de europeização da cultura, que trouxe para a Península Ibérica a reforma monástica clunicense e a liturgia romana. A chegada das Ordens religiosas de Cluny, Cister, dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho e das Ordens Militares, Templários e Hospitalários, também deve ser enquadrada no processo da Re- conquista e da organização do território. A conquista de Coimbra (1064) aos mouros, por Fernando Magno de Leão, deu uma maior segurança às regiões do Norte, propiciando importantes transformações sociais e económicas. Esta época é marcada por um crescimento demográfico, por uma muito mais densa ocupação do território e por um habitat mais estruturado. A expansão da arquitectura românica, em Portugal, coincide com o reinado de D. Afonso Henriques. Foi nesta época que se iniciaram as obras das Sés de Lisboa, de Coimbra e do Porto e que se construiu o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, que incorporaria na sua torre-pórtico o panteão da 1.ª dinastia. Esta Ordem, de origem francesa e favorecida por D. Afonso Henriques, estabeleceu-se na cidade do Mondego em 1131, tendo rapidamente irradiado as suas fun- dações para o Norte e para o Sul do território e estabelecido a sua presença em Lisboa, no mosteiro de São Vicente de Fora, logo depois da conquista desta cidade aos mouros. Sendo uma arquitectura predominantemente religiosa, o românico está muito relacionado com a organi- zação eclesiástica diocesana e paroquial e com os mosteiros das várias ordens monásticas, fundados ou reconstruídos nos séculos XII e XIII. 1. As Ordens religiosas contam-se entre os principais encomendadores da arquitectura românica. 40 Os principais encomendadores da arquitectura românica foram os bispos das dioceses então restaura- das – Braga, Coimbra, Porto, Lamego, Viseu, Lisboa e Évora – e os priores e abades dos mosteiros. A Época Românica é coeva, em Portugal, do período em que se estrutura o seu habitat, com as fregue- sias e toda uma organização religiosa e vicinal de aldeamentos. De facto, a expansão do estilo românico não corresponde propriamente à Reconquista, mas antes à organização do território. As dioceses divi- dem-se em paróquias que têm, no Entre-Douro-e-Minho, uma rede muito densa. Nos séculos XII e XIII surgem novas paróquias, não somente nesta região, mas também em Trás-os-Montes, no Alentejo e no Algarve, acompanhando as linhas de força da demografia medieval. Na segunda metade do século XI, a região de Entre-Lima-e-Ave contava com 576 freguesias às quais devem ser acrescentadas as 90 das terras de Guimarães e Montelongo. O território de Entre-Lima-e-Mi- nho apresentava uma densidade semelhante à da rede paroquial, que diminuía a Sul do Ave e a Norte da bacia do Douro. No entanto, no século XIII, o termo do Porto, dividido em 7 julgados e 173 paróquias, nos quais se incluíam os julgados de Penafiel e Aguiar, acusava já um denso povoamento. De uma maneira geral, a paróquia do Entre-Douro-e-Minho delimita-se pelos cumes das elevações que a cercam, por velhos caminhos e pelas vias fluviais mais importantes. A sua área é relativamente pequena. Quando se organizam nos séculos XII e XIII, as freguesias exigiam uma média de 15 a 20 agricultores, necessários para assegurar económica e religiosamente uma vila eclesial. Nesta altura a freguesia já se apresenta como um espaço muito bem definido, englobando uma área, contígua ou não, destinada a campos de cultivo, o ager, outras áreas ocupadas por soutos de carvalhos e de castanheiros, reservada à criação de gado suíno, fundamental na economia e na alimentação, e outras de monte, ou seja, áreas de matos destinadas à pastorícia e à criação de gado. As comunidades rurais organizam-se à volta de uma igreja, com o seu espaço dedicado ao cemitério. A igreja é o pólo sacralizador de todo o espaço da freguesia. Simbolicamente, ela é uma cidadela contra o mal porque guarda os santos com as suas relíquias invencíveis, triunfantes e gloriosas. Aí se concentram as cerimónias que asseguram a protecção de Deus e dos santos. Como já expressou C. A. Ferreira de Almeida, a arquitectura românica portuguesa mais do que em qual- quer outra região, tem de ser apreciada in situ. Só inserida na paisagem e no habitat local é que ela é verdadeiramente compreensível e rica de ensinamentos. Relativamente às igrejas da Alta Idade Média, a igreja românica mostra uma organização diversa das massas arquitectónicas, um espaço interno mais contínuo e uma modelação que corresponde à nova liturgia romana. 2. Apesar das alterações ocorridas ao longo do tempo, o habitat disperso da região do Vale do Sousa estrutura-se na Época Românica. 3, 4 e 5. A paróquia, na Época Românica, delimita-se pelos cumes das elevações que a cercam, por velhos caminhos e pelas principais vias fluviais. 43 A Sé de Braga e a igreja do antigo mosteiro beneditino de São Pedro de Rates (Póvoa de Varzim) corres- pondem a estaleiros românicos onde se caldearam e a partir dos quais se difundiram modelos formais e temáticos que irão chegar a várias igrejas da região de Braga e Guimarães e da Bacia do Ave. O actual edifício românico da Sé de Braga, que teve sucessivas alterações ao longo do tempo, deverá ter tido início na década de 30 do século XII, como demonstram as bases e os capitéis das parcelas mais antigas. O portal axial, parcialmente alterado nos inícios do século XVI, apresenta um programa escul- tórico da segunda metade do século XII, com capitéis muito originais na forma do cesto e na decoração fitomórfica. Na Sé de Braga há igualmente capitéis de ascendência provençal e borgonhesa, como aliás acontece em São Pedro de Rates. A igreja de Rates teve uma atribulada construção, muito demorada, e patenteia bem as alterações que foram modificando o seu programa inicial. Os capitéis das parcelas correspondentes aos meados do século XII onde estão figurados quadrúpedes e aves afrontadas na esquina, correspondem a modelos franceses, talvez da região da Borgonha. Os modelos de capitéis, bases, aduelas, impostas e frisos, bem como a escultura dos tímpanos que ve- mos na Sé de Braga e em São Pedro de Rates tiveram uma larga difusão nas áreas circundantes a estes dois estaleiros que, desta forma, funcionaram como pólos irradiadores de modelos muito repetidos e tam- bém muito regionalizados, em vários exemplares de igrejas românicas já de expressão tardo-românica. Na margem esquerda do Douro, principalmente no aro da cidade de Lamego, a arquitectura românica exem- plificada pelas igrejas de São Martinho de Mouros e de São Pedro das Águias, embora utilize uma linguagem algo particular no arranjo de portais e alçados, tem elementos que a aproximam do românico bracarense. No concelho de Cinfães destaca-se o mosteiro de Tarouquela que apresenta uma capela-mor muito elaborada e rica de ornamentação. No concelho de Resende, a igreja de São Martinho de Mouros é um edifício singular que acusa um carácter defensivo pela inclusão de um maciço turriforme que serve de fachada ocidental e que, no interior, forma um pórtico abobadado. Na Ermida de Paiva, em Castro Daire, os temas decorativos têm paralelos no românico das bacias do Sousa e do Tâmega. No Alto Douro e nas dioceses de Viseu e da Guarda há uma vasta série de igrejas cujas soluções tardias acusam um românico de resistência. Muitas delas, como a de Nossa Senhora da Fresta (Trancoso) ou a de Póvoa de Mileu (Guarda), apesar de habitualmente serem classificadas de românicas, correspondem, no entanto, à Época Gótica. Se a mancha da arte românica é muito densa no Entre-Douro-e-Minho, sempre muito povoado, já na região de Trás-os-Montes ela é muito mais rarefeita, correspondendo a um habitat aglomerado e a uma fraca den- sidade populacional. As igrejas românicas transmontanas correspondem, na sua maioria, a construções bem mais tardias devendo ser, muitas delas, consideradas já protogóticas ou mesmo da Época Gótica. A igreja de Nossa Senhora da Azinheira de Outeiro Seco (Chaves) apresenta um portal muito simplificado onde já sentimos que os capitéis resultam de uma longa repetição de modelos. A igreja matriz de Chaves, que só parcialmente é da Época Românica, acusa influências do românico galego, leonês e castelhano. Já o caso da remanescente cabeceira do antigo mosteiro beneditino de Castro de Avelãs (Bragança) é de clara ascendência leonesa. Construída em tijolo, caso muito singular no românico português que chegou até hoje, deve ser classificada dentro da expressão mudéjar da arquitectura românica. Ainda na região transmontana é de realçar o programa escultórico da pequena igreja de S. Salvador de Ansiães (Carrazeda de Ansiães), onde domina a representação do Pantocrator (Cristo em Majestade) 9. Igreja de São Pedro de Rates (Póvoa de Varzim). Portal ocidental. 10. Igreja de São Pedro de Rates (Póvoa de Varzim). Portal sul. 44 rodeado pelo Tetramorfo. Nas arquivoltas representou-se um apostolado e o tema das cabeças em bico acusa influências do românico bracarense. As influências forâneas, muitas vezes regionalizadas, são uma constante na escultura românica portu- guesa e a sua origem é muito variada. A Sé do Porto é disso um exemplo. Apesar das grandes alterações que sofreu na Época Moderna e do profundo restauro de meados do século XX, a Sé do Porto patenteia, tanto no programa arquitectónico como na escultura, influências da zona francesa do Limousin. As fres- tas apresentam sempre toros diédricos e os capitéis são desprovidos de ábaco, próprios daquela região do Centro-Oeste de França. No entanto, há também capitéis que se reportam a modelos da Sé Velha de Coimbra. As intensas relações comerciais entre a cidade do Porto e La Rochelle, já na Época Românica, explicarão a chegada de mestres daí originários. Na catedral do Porto trabalhou também Mestre Soeiro, vindo do estaleiro da Sé Velha de Coimbra. Coimbra é um centro de notáveis exemplos de arquitectura românica. Por razões históricas cedo rece- beu influências eruditas vindas de França, às quais se miscigenaram reportórios e técnicas próprias da artesania moçárabe, que tinha antecedentes bem enraizados na região, criando uma linguagem decora- tiva muito original, para a qual contribuiu também a existência de inúmeras pedreiras de calcário. A igreja de Santa Cruz, reformada na época manuelina, deixa ainda perceber as influências vindas da Borgonha tanto na arquitectura, como nas soluções decorativas dos capitéis. A Sé Velha, um dos melho- res edifícios românicos portugueses, desenvolve uma espacialidade que recorda a Catedral de Santiago de Compostela. As galerias de circulação são muito semelhantes às utilizadas nas igrejas da Normandia. Esta solução deve ser atribuída a Mestre Roberto que, trabalhando na Sé de Lisboa, se deslocou várias vezes a Coimbra para orientar as obras da Sé. Já a igreja de São Salvador apresenta soluções espaciais próprias do Sul da Península Ibérica. O româ- nico de Coimbra irá ter uma notória influência em construções do Centro e do Norte de Portugal. A Sé de Lisboa, muito alterada por desastres naturais e por atribulados restauros, é ainda um testemu- nho dos influxos românicos do Norte da Europa. Mestre Roberto, já referido a propósito da Sé Velha de Coimbra, foi o responsável pela catedral de Lisboa. Segundo C. A. Ferreira de Almeida, a Sé de Lisboa representa, em Portugal, um grande avanço nas soluções arquitectónicas e decorativas. Os seus alça- dos, a torre-lanterna, a luminosidade e o arranjo da fachada com duas torres fazem desta igreja a mais europeia e setentrional das construções românicas portuguesas. No contexto da arquitectura românica portuguesa deve ainda ser destacada a Charola do Convento de Cristo, em Tomar, sofisticado exemplar da arquitectura religiosa dos Templários, em planta centralizada à maneira do Templo do Santo Sepulcro de Jerusalém. O românico cisterciense, exemplificado pela magnífica igreja do mosteiro de São João de Tarouca, acu- sa claramente a sobriedade e a funcionalidade que a acção de São Bernardo imprimiu à arquitectura da Ordem. Praticamente isenta de decoração, a sua arquitectura, que utiliza preferencialmente cabeceiras rectas, mostra um acentuado rigor na concepção do seu programa. 11. As Ordens religiosas instalaram-se no seio das melhores terras agrícolas. 45 O Românico no Vale do Sousa No contexto do românico português, a arquitectura românica do Vale do Sousa apresenta características muito peculiares e muito regionalizadas. Nas Bacias do Sousa e do Baixo Tâmega, a escultura românica mostra uma personalidade muito própria optando, quase sistematicamente, por elementos vegetalistas. A sua singularidade reside na escultura vegetalista, patente nos capitéis e em longos frisos, muito bem desenhada e plana, na qual se utilizou a técnica do bisel. Esta forma de esculpir, uma vez que recorre ao corte feito obliquamente, favorece muito a clareza dos motivos porque potencia os efeitos de luz e de sombra. Utilizada nas épocas visigótica e moçárabe, a escultura talhada a bisel, bem como os motivos vegetalistas e geométricos que utiliza, é retomada nas igrejas do Vale do Sousa. Correspondendo, quase sempre, a reformas românicas de igrejas anteriores – é de notar que a maior parte dos mosteiros e igrejas românicas da região corresponde a funda- ções muito mais antigas do que a arquitectura que apresenta – as novas construções do século XIII utiliza- ram modelos patentes nas antigas igrejas pré-românicas, então reformadas. A estes modelos juntaram-se os reportórios decorativos caldeados e difundidos pelos estaleiros da Sé Velha de Coimbra, da Sé do Porto e da Sé de Braga/São Pedro de Rates, formando uma nova sintaxe, muito própria e muito regionalizada. Acresce ainda referir que nestas igrejas poucas vezes pontua a figura humana. Já no que diz respeito aos temas animalistas, eles surgem, no Vale do Sousa, sustentando os tímpanos dos portais e tendo, claramente, a função de defender as entradas do templo. A arquitectura desta região adopta, a maioria das vezes, cabeceiras de perfil rectangular, embora haja exemplos mais eruditos que utilizam absides semicirculares, como em Paço de Sousa, Pombeiro e São Pedro de Ferreira, e fachadas onde se encaixam portais bastante profundos, mostrando quanto a sua 13. O portal ocidental da igreja românica é entendido como Porta do Céu. Igreja de São Vicente de Sousa. 12. Escultura talhada a bisel. Igreja de São Gens de Boelhe. 48 Situada na freguesia de Eja, no concelho de Penafiel, a Igreja de São Miguel de Entre-os-Rios é um exem- plar que se insere no românico de resistência, característica que tanto marca outras igrejas românicas da área do Baixo Tâmega. Esta Igreja situa-se num importante território que se enquadra na reorganização político-militar conduzida pelo rei Afonso III das Astúrias, com o objectivo de criar condições de seguran- ça que permitissem a fixação da população no vale do Douro. A região do Baixo Tâmega pertencia, nos primórdios da Reconquista, em grande parte, ao território da civitas Anegiae. O rio Douro era já, nessa época, uma importante via fluvial. Neste território passavam igualmente dois importantes caminhos que ligavam o Norte ao Sul. A criação do território Anegia está documentada em cerca de 870, sendo contemporânea das presúrias de Portucale (868) e de Coimbra (878) e, segundo A. M. de Carvalho Lima, dos primeiros sinais de dinâmica populacional na área deste território, correspondente aos actuais concelhos de Cinfães, Penafiel, Marco de Canaveses, Castelo de Paiva e Arouca. O territorium da civitas Anegia corresponde a um corredor natural, orientado a NO/SE e definido, a oriente pelo Marão e Montemuro, a sul pelo maciço da Serra da Freita e a ocidente por uma cumeada que na Idade Média era designada de Serra Sicca. Esta barreira natural era fortificada, sobre o rio Douro, pelo Monte do Castelo em Broalhos e o Alto do Castelo, em Medas (Gondomar). Sobre o rio Sousa dominava o Castelo de Aguiar (Paredes) tomado por Almançor em 995, e sobre o rio Ferreira o Alto do Castelo, em Campo (Valongo). Entre os inícios e os meados do século XI regista-se uma fragmentação do território com origem, tanto no abrandamento das razias muçulmanas como na pressão social exercida pelas famílias de infanções, desejosas de uma maior repartição de poderes militares, administrativos e judiciais, o que conduziu à divisão do território numa série de terræ, cada uma encabeçada por um castelo. São estas poderosas razões que conferiram à região uma importante posição estratégica, sendo domi- nada por uma das mais notabilizadas famílias portucalenses, os Riba Douro. A família dos Riba Douro manteve estreitas relações com o Mosteiro beneditino do Salvador de Paço de Sousa (Penafiel), que foi cabeça de um couto doado pelo Conde D. Henrique, tendo vindo a tornar-se um dos mais afamados mosteiros do Entre-Douro-e-Minho. A construção do Castelo de Aguiar de Sousa deve ser enquadrada no fenómeno de encastelamento que decorreu a partir dos meados do século XI, substituindo a mais antiga estruturação do território penin- sular em civitates. Segundo C. A. Ferreira de Almeida, as frequentes invasões que, a partir do século VIII, afectaram quase toda a Europa Ocidental, provocaram fugas temporárias ou mesmo definitivas, das populações. No en- tanto, a partir dos meados do século XI, as comunidades começam a construir castelos e recintos amura- lhados com o objectivo de defender o local onde viviam. Entre os séculos X e XII, toda a Europa Ocidental se cobriu de uma densa rede de sítios fortificados, fenómeno que se designa por encastelamento. A partir de meados do século XI, acompanhando o crescimento e a afirmação da nobreza rural e regio- nal, bem como o progresso do regime senhorial, desenvolve-se uma organização territorial em unidades mais pequenas, as terras, encabeçadas por um castelo e pelo seu senhor, que irá adquirindo direitos judiciais e fiscais. A implantação das terras de Aguiar de Sousa, de Penafiel, de Benviver, de Baião e de Castelo de Paiva, anteriormente englobadas no antigo território da civitas de Eja, é um exemplo muito significativo que ilustra esta evolução. 18. O território da Civitas Anegia foi de grande importância estratégica no processo da Reconquista. 49 Ao longo do século XI também vários mosteiros foram dotados de um recinto defensivo, que lhes estava associado, como nos casos dos Mosteiros de São Pedro de Cête (Paredes), que dispunha do castelo de Vandoma, e do Salvador de Paço de Sousa (Penafiel), defendido pelo Castro de Ordins. A maioria destes locais de defesa, os castelos rurais, era muito elementar na sua construção, aprovei- tando as condições naturais, em locais altos e com afloramentos graníticos, que dificultavam o acesso. No caso de Vandoma, o recinto defensivo era composto por um muro, sem torres, à maneira de cerca, circundando uma área muito vasta. Aguiar de Sousa desempenhou, desde muito cedo, um papel importante na região, apresentando-se como um dos mais poderosos Julgados de Entre-Douro-e-Minho, gozando de um considerável poderio e riqueza. O território abrangido por este Julgado era muito vasto, desde o Porto até às proximidades de Penafiel. Nesta região do Entre-Douro-e-Minho, a família dos Sousas era uma das mais antigas com implantação no Julgado. O seu primeiro representante, Gonçalo Mendes de Sousa, possuía propriedades a Sul, que doou aos mosteiros de Santo Estêvão de Vilela (Paredes) e de São Pedro de Ferreira (Paços de Ferreira). A Norte, o seu património situava-se nas terras altas e nos vales dos afluentes Eiriz e Mesio. A família da Maia, igualmente há muito implantada em Aguiar de Sousa, e cujo mais antigo representante no Julgado foi Soeiro Mendes da Maia, o Bom, era detentora de uma Honra no vale médio do rio Ferreira. A existência do património das duas famílias no Julgado estará relacionada com as necessidades de defesa do território contra os Mouros, como atesta o Castelo de Aguiar. Na segunda metade do século XIII, os grandes proprietários nobres que não pertenciam às mais impor- tantes famílias, ligam-se a elas por laços matrimoniais. Entre eles, destacam-se Gil Vasques de Severosa, Gil Martins de Riba Vizela e Rodrigo Froiaz de Leão. Este último casou-se com Châmoa Gomes de Tou- gues que herdaria e administraria todo o património da família. Rodrigo Froiaz de Leão tornou-se o senhor do património dos Tougues e dos Barbosas que se estendia por Aguiar de Sousa, Felgueiras, Penafiel, Marco de Canaveses e Foz do Douro. A presença, nesta região, de importantes famílias da aristocracia não se limitava aos cargos que detinha na defesa e organização do território. Do seu património faziam igualmente parte, como era habitual nos séculos XI e XII, direitos sobre mosteiros e igrejas. Como já foi esclarecido por José Mattoso, a família detinha o direito de padroado sobre a casa monás- tica o que significava, por um lado, a doação de bens fundiários necessários à vida da comunidade monástica e assegurava, por outro, que os monges fossem obrigados a facultar aos membros da família os direitos de aposentadoria e de comedoria, bem como o direito de se fazerem tumular no mosteiro, implicando a realização de cerimónias por intenção dos patronos. Ao patrono cabia ainda proteger o mosteiro defendendo-o de qualquer violência ou abuso. No século XI, os ataques muçulmanos, normandos ou mesmo entre senhores rivais, eram frequentes. Aliás, nesta épo- ca de grande instabilidade muitos mosteiros possuíam um recinto defensivo, que lhes estava associado. Este sistema de padroado explica a razão pela qual existe sempre uma relação, entre uma ou várias famílias da aristocracia e os mosteiros e igrejas da região, como será referido no tratamento monográfico de cada exemplar. A igreja do Mosteiro de São Pedro de Ferreira (Paços de Ferreira) é um edifício muito singular, de grande qualidade construtiva e decorativa. Na cabeceira há capitéis derivados de modelos do Alto Minho, a que já nos referimos, embora de tratamento menos volumoso. No portal principal as impostas glosam mode- 50 los de palmetas, originários da Sé de Braga e a escultura das arquivoltas tem sido comparada tanto com o Portal del Obispo da Catedral de Zamora, como com modelos adoptados em San Martín de Salamanca e ainda, com soluções decorativas próprias da arte almóada. No Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro (Felgueiras), um dos mais importantes mosteiros beneditinos do Norte de Portugal, o portal axial é um exemplo de notável qualidade da escultura das arquivoltas, numa das quais se adopta aduelas com escultura própria de capitéis, na sequência dos portais da Sé de Braga e de Rates, onde este modo se forjou. A igreja de Pombeiro é um imponente testemunho de arquitectura românica regional onde se miscigenaram todas as nuances do românico tardio minhoto do Sul do Lima: arquivoltas e palmetas de influência bracarense e temática floral já protogótica. A Igreja do Salvador de Unhão (Felgueiras) constitui um assinalável testemunho da arquitectura românica portuguesa. O portal principal, de excelente qualidade, apresenta um conjunto de capitéis vegetalistas considerados entre os melhor esculpidos de todo o românico do Norte de Portugal. Em Unhão encontramos uma miscenização de soluções decorativas próprias desta região, com outras, provenientes de Braga. A Igreja de São Vicente de Sousa (Felgueiras) corresponde a um testemunho muito significativo da corren- te que se forjou no Mosteiro do Salvador de Paço de Sousa (Penafiel), com base na tradição pré-românica e influenciada por temas originários do românico de Coimbra e da Sé do Porto. Na Igreja de Santa Maria de Airães (Felgueiras), o portal principal tem um arranjo similar aos portais das Igrejas de São Vicente de Sousa, Salvador de Unhão e São Pedro de Ferreira. Glosando soluções românicas da região do Vale do Sousa, esta Igreja, dado o aspecto tardio de alguns elementos, como os capitéis do portal axial e as molduras e capitéis da cabeceira, deverá datar dos finais do século XIII ou 19. No Mosteiro de São Pedro de Ferreira conjugam-se elementos provenientes do Alto Minho, da Sé de Braga e de Zamora ou Salamanca. 20. Portal ocidental. Capitéis. No Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro há modelos provenientes do Alto Minho, da Sé de Braga e do mosteiro de São Pedro de Rates (Póvoa de Varzim). 53 Dinâmicas do Património Artístico na Época Moderna Para o entendimento do património artístico português da Época Moderna é necessário atender a alguns factores tanto geoestratégicos como geopoliticos e culturais, que timbram, indelevelmente o perfil social de Portugal dos séculos XVI, XVII, XVIII e que serão substituídos por novos ideais que se vislumbram já a partir de inícios do século XIX. Entre 1500, ano da descoberta do Brasil, e 1807, ano em que os factos consequentes da Revolução Francesa pressionam já as decisões do aparelho central nacional precipitando a fuga da corte portugue- sa para o Brasil, o país vive uma conjuntura particular em que as decisões colectivas são dominadas pela interpenetração normativa dos universos político e religioso. Do papel do Estado e do papel da Igreja saem, sem dúvida, os condimentos mais fortes e estruturantes da sociedade Moderna. No país político, que é o mesmo que dizer, no Portugal do poder central, vive-se a gestão da Expansão Ultramarina e os proventos que daí podem advir para a economia nacional. Primeiro, o ciclo das especia- rias, consequência directa da dobragem do cabo Bojador e da retoma do fornecimento desses produtos, oriundos das longínquas terras do Oriente, nos mercados europeus, principalmente nos do Norte da Eu- ropa. A esse ciclo seguiu-se o tráfego humano, o ciclo da escravatura. À luz do tempo, carregar os navios com negros nos portos da costa africana, trazê-los para a Europa onde eram vendidos como mercadoria, fazia parte de um processo de actuação em que o sentido de Homo Universalis estava longe de estar assimilado. Se bem que o humanismo renascentista, cultivado por mentores como Erasmo de Roterdão, Thomas More, Shakespeare, Martinho Lutero, Maquiavel, Luís de Camões ou Francisco de Holanda, era já uma prática institucionalizada nos núcleos mais eruditos e avançados da Europa culta, a assimilação desses princípios revolucionários como preocupação de Estado levaria ainda séculos para ser assumida como princípio regulador das actuações dos governos nacionais da velha Europa. E desse comércio negreiro floresceu também a economia portuguesa, pois na Costa de Marfim carregaram as embarca- ções de humanos que depois eram transaccionados por metal sonante nos principais centros comerciais europeus. Da mesma origem chegaram remessas humanas para colonização das Terras de Vera Cruz. E dessas terras americanas definiu-se um novo ciclo económico para a coroa portuguesa. Aí foram explo- radas jazidas de ouro e diamantes que contribuíram para o enriquecimento das terras portuguesas, defi- nindo-se em finais do século XVII o ciclo do ouro e dos diamantes como uma alavanca para o desenvol- vimento económico de Portugal. Recorde-se que nesta altura já a presença portuguesa estava enraizada pelos quatro cantos do mundo: África, Ásia e América. Se de todos esses continentes a coroa portuguesa recebeu dividendos, em todos esses locais do mundo deixou a marca da sua passagem e da integração e assimilação dos vectores culturais desses povos, até então estranhos ao velho continente europeu. E a arte portuguesa da Época Moderna acusa também essa nova herança que resultou da miscigenação. Esta alavanca espacial acarretou uma nova dimensão ao universo cientificamente conhecido. Do dog- matismo medieval, o experimentalismo dos herdeiros de Henrique, rasgaram uma nova dimensão para a compreensão do homem universal: a alargada dimensão da terra habitada; a diversidade étnica e cultu- ral, e acima de tudo as formas plurais do agir do homem nas suas concretizações e anseios espirituais. O Portugal da Época Moderna contribuiu de forma indelével para a aceitação da pluralidade. Foram os rituais religiosos e mágicos do homem africano e do indígena, como o foram os complexos sistemas de uma centenária religião instituída com que se confrontaram nas Terras do Sol Nascente, e sobre todos 54 esses sistemas tradicionais os homens de Portugal souberam levar o horizonte do seu crer. Ora fanático, ora esclarecido, ora humanizado, ora religioso, ora economicista, assim souberam entretecer relações com o estranho. A disseminação da língua portuguesa no mundo é, sem dúvida, o melhor facto que comprova a pluralidade assente na comunicação, como a absorção de formas estranhas e, entretanto, plasmadas nos objectos do ritual mais profundo do homem português são reveladoras de uma capaci- dade invulgar para receber e absorver símbolos de outras culturas. Foram tempos em que o espaço de actuação do homem português era dilatado para além das fronteiras da terra lusa. Em África estabeleceram entrepostos comerciais, no Oriente afirmaram-se com as feitorias, e no Brasil uma colonização extensa e intensa em todo o território dominado. Aí assistiu-se a uma verda- deira simbiose entre o peso esmagador do Ocidente cristão e a organização das culturas locais. É na voragem do século XVII que as terras do Brasil se afirmam como porto seguro para onde se dirigiram as populações excedentárias do Minho e do Alentejo, numa procura desenfreada de melhores condições de vida. O Brasil impôs-se no imaginário do homem setecentista como o oásis da construção. Para aí par- tiram e aí se fixaram, muitos dos quais nunca mais regressariam ao Continente. Levaram modos de vida, levaram cultura, levaram arte. E aí construíram um património artístico que faz parte também do patrimó- nio português: organizaram terras, fundaram aldeias, freguesias e cidades, construíram casas, quintas e solares, e tal como no país de origem levantaram as suas igrejas, onde materializaram o desígnio da vontade colectiva. Homens que se constituíram em instituições piedosas como confrarias, irmandades e ordens terceiras, tal como os laicos do Reino faziam para garantir o bem-estar da alma no Além. E a Igreja, enquanto espaço e instituição, foi sem dúvida o horizonte mais intenso do homem moderno português. Foi tutelado pela Igreja que Portugal partiu para a aventura da Expansão. A missionação e a evangelização foram sem dúvida pedra de toque na actuação da afirmação de Portugal no mundo. Sobre as vontades dinásticas impunha-se o beneplácito imanado da cadeira papal de Roma, para sancionar as actuações portuguesas em terras de infiel, ou seja, de não cristão. Mas daí, desse novo mundo, foram incorporados formas e técnicas que timbram também a arte portuguesa da Época Moderna. A redescoberta do humanismo levaria também a alterações profundas no seio da Igreja. Se numa primei- ra fase são muitas as vozes discordantes entre a norma e a prática, para obviar esse desiderato, a Igreja Católica reúne-se em concílio para definir um renovado programa de actuação. A legislação difundida na sequência do Concílio de Trento (1545-1563) foi profundamente absorvida pela sociedade portuguesa do século XVII e XVIII. Das mais altas esferas do poder público à actuação que norteava o pregador, quando do alto do púlpito da igreja paroquial, formava e informava os anónimos camponeses das paró- quias de Portugal: era todo um contingente dos cargos dirigentes da nação que aferiam a sua conduta pelos princípios morais imanados da força da lei tridentina. E os ecos dessa legislação enformavam o quotidiano do homem português a tal ponto que ainda no ano de 1781 se justificava ainda a tradução do latim para a língua oficial das notas principais das sessões desse dilatado concílio, publicando-se um livro com o título O Sacrosanto e Ecuménico Concilio de Trento, dedicado por João Baptista Reycend aos Arcebispos e Bispos da Igreja Lusitana, onde se pode ler na nota de abertura o seguinte: «Sendo o Concilio de Trento aquele sacrosanto Thezouro, em que a Igreja tem depositado as santíssimas Leis, os augustissimos Cânones sobre os Dogmas e Mysterios de nossa Religião, e sendo Vossas Excel- lencias os sagrados Ecónomos deste Thesouro, a quem incumbe a gloriosa obrigação de apascentar as Ovelhas, commettidas ao seu Pastoral cuidado, conferindo-lhes o saudável pasto da doutrina Christã; 24. O retábulo-mor (1770 e 1773) é da autoria de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça. Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro. 25. Retábulo-mor e tecto da Época Barroca. Igreja de São Miguel de Entre-os-Rios. 55 e sendo hum quasi impossível communicarem Vossas Excellencias a cada huma dellas em particular aquelle pasto, ou instrucção de que necessitão para regularem o seu comportamento pela doutrina do mesmo Concilio». Imbuída do espírito tridentino, a Igreja portuguesa segue a mesma linha de reforma interna, realizando, ao nível das dioceses variados Sínodos do Clero para elaborar um conjunto de normas que deveriam guiar os destinos da vida religiosa, desde a igreja catedral à igreja paroquial, do mosteiro à ermida. De resto, as decisões do Concílio de Trento serão prontamente subscritas pelo poder central, levando o rei D. Sebastião a consagrar em alvará logo no ano de 1574, todo o apoio à concretização desse postulado. Para a elaboração destes códigos convocam-se Sínodos Diocesanos que tinham como missão actualizar ou reformar as Constituições dos respectivos bispados, aumentando o seu número ao longo do século XVII. Por seu turno, para fazer cumprir essas regras, periodicamente as igrejas locais eram alvo de visi- tação pelo próprio bispo ou seu delegado, onde eram passados em revista todos os equipamentos que compunham o espaço sacro, ordenando novas aquisições sempre que se considerasse esses objectos velhos ou fora do gosto da época. A par da regulamentação da prática religiosa, essa legislação, expressa sob a forma de Constituições Si- nodais, reserva particular atenção à fundação e renovação de templos, definindo princípios norteadores da arquitectura religiosa, como também às artes que modelavam o clima artístico do espaço sacro, onde se inserem a paramentaria, ourivesaria e, acima de tudo, a escultura/imaginária, a pintura e a arte retabular. O Concílio de Trento ao legislar sobre o papel que desempenhavam as imagens e as pinturas de santos na formação dos fiéis católicos, atribuindo-lhes um papel mediático entre o devoto e o transcendente, definiu uma função concreta para o uso desses componentes artísticos do espaço sacro, levando à pro- liferação de estudos e tratados teológicos sobre a imaginária religiosa, tratados que serviram de norte para a assunção do controlo que as igrejas locais dispensaram à produção artística dos componentes do espaço sacro pós-tridentino. Textos como Dialogo degli errori dei pittori, de Andrea Gilli da Fabriano, publicado em 1564, ou De picturis et imaginibus sacris, de Jean Ver Meulen, datado de 1570, ou então o celebérrimo tratado de S. Carlos Borromeu, Instructiones fabricae et supellectilis ecclesiasticae, são alguns dos trabalhos publicados depois do Concílio de Trento, que concorrem para o protagonismo da arte como veículo pedagógico e persuasivo da igreja contra-reformista. «Cada Diocese através de legislação própria põe em prática as determinações tridentinas, nomeada- mente as que promovem uma nova maneira de encarar a imaginária religiosa, impondo normas que vão desde as condições que o artista deve satisfazer, à formação que possui, às temáticas que podem ser representadas e locais onde se podem expor as imagens, até à maneira como proceder com as imagens velhas e indecentes». Sobre a produção de imagens e respectivos temas, justifica-se a leitura das Constituições Sinodais do Porto, publicadas no ano de 1690: «Mandamos que nas Igrejas, Ermidas e Capelas de nosso Bispado não haja retabolo, altar, ou fora delle imagem, que não seja da Santíssima Trindade, e cada huma das três Pessoas della, de Christo Senhor nosso, e de seus Mistérios, Paixão, Morte e Resurreição, e da Virgem nossa Senhora, e seus Mistérios, dos Anjos ou Santos Canonizados, ou beatificados; e as que ouver sejão decentes que se conformem com os Mistérios, vida e milagres dos originais que representão, e assi na honestidade dos rostos, per- feição dos corpos, e ornato dos vestidos; sejão esculpidas, ou pintadas com muita decência, e conforme 58 representados em pintura cenas narrativas da vida do orago do templo. Mas o maior destaque é sem dúvida conferido ao retábulo-mor que podia dominar completamente a parede fundeira da capela-mor. Não raras vezes, a modernização de um templo concretizou-se apenas pela introdução de uma máquina retabular de gramática formal mais actualizada. O retábulo, sempre presente no espaço sacro, tornou-se no equipamento litúrgico mais emblemático da Época Moderna em Portugal. Executado em madeira dourada e policromada, serve de enquadramento cenográfico às imagens dos santos tutelares de cada igreja, acusando uma produção que testemunha o percurso da arte religiosa nos séculos XVI, XVII e XVIII, concorrendo para a teatralização do espaço sacro. Neste período assiste-se a uma contínua evolução da estrutura retabular, desde o enfeudamento aos princípios normativos das ordens arquitectónicas, até à imposição de uma gramática decorativa de forte pendor litúrgico – cachos de uvas, anjos e pássaros – passando pela assimilação do repositório de- corativo do barroco internacional ou do rococó, e posteriormente pela depuração de ornatos decorativos, impondo-se pela colagem da sua expressão formal à gramática arquitectónica. A talha, nos séculos XVII e XVIII, assume-se como a expressão mais avançada da arte religiosa portugue- sa. Na sua concepção, que envolvia um alargado escol de profissionais – desde o riscador ao entalha- dor, ao imaginário, ao pintor e dourador – colaboram os artistas mais qualificados de cada época, que se deslocavam dos grandes centros regionais – Porto, Braga e Barcelos – para trabalhar para as clientelas periféricas desses grandes centros produtores. Esta manifestação artística expressa-se também na concepção de cadeirais, púlpitos, órgãos, tectos, grades e outros objectos componentes do espaço sacro da Época Moderna, podendo inclusivamente dominar todo o espaço arquitectónico, criando uma verdadeira caixa dourada. Exemplos desta natureza, em que a talha domina todo o espaço, são frequentes na Escola portuense da talha, com oficinas que se impõem nos séculos XVII e XVIII. O exemplo mais completo do poder transformador da talha encontra-se na igreja do Convento de S. Francisco do Porto, onde a madeira entalhada e dourada cobre totalmente altares, tectos, colunas, molduras, transformando completamente a leitura arquitectónica medieval que define a espacialidade dessa igreja. Noutros casos as clientelas eclesiásticas e paroquiais, inseridas no contexto da igreja triunfalista, usam a pintura como forma de propagandear os princípios pedagógicos religiosos, criando imagens pictóri- cas e iconográficas em diversas partes do templo. Pintam-se tectos de capelas-mores e de naves das igrejas, como se utiliza o espaço arquitectónico do arco triunfal para representação icónica de valores referenciais da comunidade local. A pintura parietal e de tectos, seguindo um programa mais estático sobre caixotões, ou cobrindo a to- talidade das coberturas da capela-mor e nave, foi utilizada como expressão da religiosidade moderna, e como elemento da interpretação complexa do espaço sacro pós-reformista. Ao lado da escultura em madeira, a pintura foi uma das artes que materializou a produção de imagens religiosas que eram apadri- nhadas e afagadas cultualmente pelas diferentes paróquias. Desta forma, criaram-se ciclos narrativos da vida dos santos cujas imagens eram lidas e o seu valor simbólico reconhecido e apadrinhado como valor de elevação espiritual da comunidade local. Em quadros que compunham conjuntos iconográficos eram narrados passos da vida da Virgem ou de Cristo, como o eram dos santos titulares das igrejas. Exemplos destes abundam ainda na região em estudo. Noutros casos, são as imagens dos quatro Evangelistas que ladeiam com representações cristocêntri- cas, promovendo uma descodificação para a interpretação do espaço sacro. 59 São testemunhos desta natureza que ainda se encontram em muitas das igrejas paroquiais, de que serve de exemplo o programa pictórico da cobertura da nave e do arco triunfal da Igreja do Salvador de Aveleda. Nos bastidores desses objectos artísticos encontram-se os artistas e os encomendantes que patrocinavam financeiramente esses programas de renovação dos espaços sacros. E a qualidade artística dessas peças artísticas espelha o protagonismo económico e social do promotor no seio da comunidade local. Esta toada renovadora Moderna mescla-se, muitas vezes, com um património arquitectónico e artístico centenário. Lembre-se que muitos dos espaços cultuais da Época Moderna são oriundos dos tempos Medievais. Mas no ciclo dos homens, como no ciclo dos edifícios que continuam a desempenhar uma função estruturante na unidade paroquial, as transformações sugeridas pelo curso do tempo dão num amplexo entre passado e presente. Entre formas artísticas cristalizadas e absorvidas pela colectividade como espelho da sua identidade, e a introdução de novos acrescentos motivados pela evolução da ex- pressão artística, como pela alteração da manifestação de códigos da expressão do cerimonial litúrgico. A passagem do tempo desenrola-se nestes espaços numa articulação de passado e presente. Aos mosteiros foi já sobejamente reconhecida a sua importância como forças dinâmicas das comunida- des locais. Para além da sua função religiosa, impunham-se no meio geográfico com um protagonismo que concorria para o desenvolvimento social, cultural, artístico e económico da região onde se implan- tam. Muitos deles oriundos da Idade Média, atravessaram as vicissitudes do tempo, arrastando-se numa onda de alienação do seu ideário Regral que dominaram as instituições monásticas portuguesas no dealbar da Idade Moderna. Por decisão régia foram administradores de coutos, colocando debaixo da sua tutela jurisdicional igrejas paroquiais, santuários e capelas, bem como dilatados espaços onde a exploração agrícola era a actividade económica dominante. A área de influência da acção monástica dilatava-se, geograficamente, muito para além das paredes claustrais. Eram potentados culturais, económicos e políticos que concorreram para o avanço qualitativo da região onde se implantaram. Esta região viu-se povoada com várias unidades desta natureza: Cête, Paço de Sousa, Bustelo e Pombei- ro, são as principais unidades monásticas que conservam ainda um património artístico em quantidade e qualidade que testemunha a vitalidade dessas instituições no tempo longo e a forma como os religiosos foram concorrendo para a formação do seu legado patrimonial, visível nos testemunhos materiais que ainda subsistem e que espelham o protagonismo social que auferiram na região. Todos eles guardam ainda, nas suas arquitecturas modeladas ao sabor das alterações dos padrões estéticos, verdadeiras obras-primas do património artístico regional. A mesma onda renovadora atravessou estas casas monásticas ao longo de toda Época Moderna, até que as leis do poder central decretaram a sua extinção no ano de 1834. Casas centenárias constituíram-se numa clientela privilegiada para a produção de património artístico de nível estético superior. Para eles trabalharam os melhores artistas de cada época, afirmando-se como estaleiros de vanguardas artísticas. Na passagem do século XV para o século XVI, as instituições monásticas portuguesas atravessavam uma profunda crise de valores, onde era notório o distanciamento do normalizado na Regra que agiliza- va a actuação quotidiana dos que se afastavam da temporalização, para abraçar um modo de vida de verdadeiros seguidores de Cristo. A laicização e o desregramento ensombraram a vivência monástica, justificando a reorganização de diversas Ordens, através da criação de organismos centralizadores – as Congregações – e à rotatividade trienal do religioso que se encontrava à frente do governo espiritual e 60 material de cada unidade monástica. Esta situação mantém-se até ao desmembramento dessas institui- ções no século XIX. Dessa reorganização é também testemunho a qualidade do património construído da unidade monásti- ca, em grande parte proveniente dos séculos XVI, XVII e XVIII. Todavia o testemunho mais eloquente des- sas reformas e da qualidade de vida cultural que pautava o quotidiano monástico, encontra-se plasmado nas igrejas. As diversas artes que compõem a igreja – azulejaria, talha, pintura, imaginária, ourivesaria – são a prova indelével do protagonismo social dos mosteiros na Época Moderna. Para além das instituições que corporizam a religiosidade institucional, igrejas e mosteiros, encontram- se espalhados por todo o espaço português construções que factualizam o encontro popular com o divino. Os santuários que promovem os cultos cristológicos, mariológicos ou dos santos multiplicam-se nos séculos XVII e XVIII, como expressão da vivência religiosa que enformava o quotidiano do homem barroco. Para essas estações de expiação e de pagamento de tributos recebidos do transcendente, se dirigiam ciclicamente os peregrinos e romeiros, para homenagear o seu protector espiritual. Estações que eram compostas por igrejas, adros, fontes, escadórios e pequenas capelas ou cruzes que assinala- vam passagens da narrativa vivencial do santo cultuado, o patrono do espaço. Todos os componentes que compõem esse complexo arquitectónico, que define a estrutura do santuário, são justificados pela função material ou espiritual que assumem. Se a água – a fonte – está sempre presente no local da cons- trução do santuário e se tem a função primária de saciar a sede aos romeiros que de longe chegavam, por outro lado recebia uma conotação simbólica, pois era a água que purificava e libertava o pecado, tal como a água do baptismo. Por outro lado, para a cristalização de um local devocional no imaginário colectivo, impunha-se a força incomensurável do milagre: a manifestação do inexplicável, a manifestação terrena do divino, que po- larizava a atenção e arrastava a multidão a irmanar-se. E esta força colectiva promovia a construção do santuário, com o resultado das esmolas, transformando-se esses locais no melhor espelho da benesse divina recebida pela colectividade. Na doença ou na viagem, no nascimento ou na morte, no parto ou no aleitamento, o homem popular recorria ao poder curador do santo protector. E depois, dirigia-se a essa estação para liquidar a graça alcançada. O Santuário de Santa Quitéria, em Felgueiras, é, sem dúvida, na região, o exemplar mais complexo. Rasgando o declive da montanha, uma vereda serpenteada, ao longo da qual foram construídas várias capelas que narram episódios da vida da santa. No cimo, uma capela de planta centralizada, como era apanágio dos espaços sagrados construídos para abrigar as relíquias de um mártir, e um longo adro onde os romeiros se adensavam na data que assinalava a festividade da santa. A vivência do drama da Paixão de Cristo foi também prática de grande expressão nos séculos XVII e XVIII. O conjunto de Caramos (Felgueiras) é uma referência obrigatória nas terras do Vale do Sousa. A manifestação da religiosidade católica era transversal a todos os estratos da sociedade portuguesa da Época Moderna. Para além destes ancoradouros do colectivo, devemos ainda salientar a existência do espaço religioso junto da residência habitacional. Efectivamente, assiste-se a uma multiplicação de fundação de capelas privadas associadas a casas nobres ou nobilitadas em toda a região Norte do país. Esse fenómeno doméstico é o melhor testemunho de como o ideário da igreja reformista foi absorvido pelo homem português dos séculos XVII e XVIII. 63 quenos aglomerados concentrados onde predominam as arquitecturas tradicionais, algumas unidades de produção artesanal ou pequenas estruturas industriais, embora sejam de cariz rudimentar. Aurora Carapinha divide o Vale do Sousa em duas unidades de paisagem, a primeira localizada entre o Baixo Tâmega e o rio Sousa; a segunda localizada a Sul, estendendo-se pela freguesia de Eja (Penafiel), rio Douro e parte do concelho de Castelo de Paiva – Riba Douro. A autora define unidade de paisagem como uma área em que a paisagem se apresenta com um padrão específico, a que está associado um determinado carácter. Assim, a paisagem do Vale do Sousa apresenta um património natural rico, sendo frequente encostas com relevo acentuado e vales extensos. Na sua maioria, as explorações agrícolas, os povoados e a rede viária foram fomentados pelas comu- nidades monásticas e/ou pelo poder feudal da nobreza que se instalaram na região, durante a época medieval. São exemplo o vale do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro, em Felgueiras, e a Honra de Barbosa, em Penafiel. A agricultura permanece como base económica de toda a região até meados do século XIX, com a desamortização dos bens das Ordens religiosas e dos Morgadios da Nobreza, a pro- priedade rural sofre uma profunda fragmentação. Durante a época contemporânea, o crescimento demográfico, o aumento do número de núcleos habi- tacionais e industriais de carácter desorganizado e disperso que patenteiam no Vale do Sousa, só se fazem sentir em meados do século XX com a industrialização, transformando a produção agrícola num meio mais produtivo e rentável. A agricultura sofreu, assim, uma profunda transformação tecnológica que se repercutiu na organização do trabalho e no sistema de produção. O uso do tractor mecânico generaliza-se, os motores de rega destronam os aparelhos tradicionais de elevação de água, as trans- formações na sociedade rural fazem-se sentir nas novas aprendizagens e saberes, o abandono do tra- balho artesanal e dos ofícios (moleiros, tecelões, ferreiros, entre outros) perante a crescente conquista do mercado dos novos produtos industriais. É esta multiplicidade de paisagens culturais que caracteriza toda a Europa e que, ao mesmo tempo, nos confere a memória das relações do antigo e do actual, entre o Homem e o seu habitat natural e construído. O presente desenvolvimento das necessidades sociais antecipa a transformação das paisagens culturais europeias e pode produzir um impacte negativo na sua qualidade e uso. Como se viu anteriormente, é o quadro paroquial medievo que ainda define grande parte das comuni- dades locais, bem como a rede de caminhos e como estes se relacionam com a morfologia da paisa- gem e as formas de povoamento. As arquitecturas do Vale do Sousa caracterizam-se assim, por uma implantação ao longo das vias principais, traduzindo-se num povoamento contínuo. Nos meios rurais, as construções de elite e os edifícios religiosos são a base da configuração tradicional de um assentamento concentrado. Ainda hoje, as freguesias, enquanto unidades político-administrativas, correspondem aos limites da antiga paróquia, a igreja é o pólo aglutinador do núcleo habitacional. Carlos Alberto Ferreira de Almeida considera que «a Igreja com os seus Santos e, sobretudo outrora, com as suas relíquias, com os seus ofícios religiosos e com o seu sino é o pólo sacralizador de todo o espaço da freguesia». Presentemente, a visão sobre o Património não se resume exclusivamente à valorização do monumento isolado, a sua definição é muito mais vasta, envolve não só os objectos monumentais, mas também o património de menor escala ou anónimo que não deixa de ser testemunho de uma época ou de uma ac- 29. Vale do Sousa. Cultura do milho e condução de água. 64 tividade. Sentenciado durante muito tempo ao esquecimento e à desvalorização por parte da sociedade, estes patrimónios conservam valores materiais e intangíveis cuja memória urge preservar. Impera, no entanto, uma consciência de salvaguarda e protecção sobre o Património, que se encontra em risco, como atestam os princípios definidos pela UNESCO na Convenção para a Protecção do Património Mun- dial Cultural e Natural: «Constatando que o património cultural e o património natural são cada vez mais ameaçados de destruição, não só pelas causas tradicionais de degradação mas também pela evolução da vida social e económica que as agrava através de fenómenos de alteração ou de destruição (…)». O património construído do Vale do Sousa caracteriza-se não só pela sua raiz histórica mas também, pela alteração dos usos dessa arquitectura e, como tal, verifica-se uma crescente alteração dos seus valores simbólico, social e cultural. A multiplicidade das tipologias arquitectónicas da região manifesta-se nos monumentos isolados, nos centros históricos, nos conjuntos, nos edifícios vernaculares e de produção, e nas tradições e ofícios. Sendo a diversidade uma das principais características deste território, assistimos durante toda a Época Moderna a uma reforma dos espaços monásticos, a edificação de novas casas senhoriais em quintas, aliadas a estruturas dedicadas ao recreio e à produção agrícola. As quintas não só criam áreas contínuas de paisagem, como comportam espaços de residência de grande qualidade dentro da arquitectura da casa nobre dos séculos XVII e XVIII. A tipologia de casa nobre em Portugal ilustra, na maior parte dos ca- sos, o poder e a identidade aristocrática da região, de que são exemplo: a Quinta de Simães (Felgueiras), as Quintas da Fisga e da Boavista (Castelo de Paiva), a Quinta de Ronfe e a Casa de Juste (Lousada) ou a Casa de Cabanelas (Penafiel). Em suma, apesar das mudanças de gosto que decorrem ao longo do tempo, as quintas mantêm a sua estrutura base, caracterizando-se por construções de maior simplici- dade e contenção no seu programa ou por construções de grande aparato cénico, onde o denominador comum é o uso da pedra de armas da família e a edificação de capela. Esta preocupação com a com- ponente arquitectónica não era exclusiva do edifício residencial, desenvolvia-se também pelos jardins, hortas, pomares, caminhos, fontes, pátios e outros espaços de lazer ou produção. Ainda hoje são muitas as quintas ligadas à exploração agrícola na região, nomeadamente à produção de vinho verde, como é o caso da Quinta da Aveleda (Penafiel), ampliada na segunda metade do século XX por Manuel Pedro Guedes, responsável pelas obras de restauro da casa de habitação e capela, datadas do século XVI. Esta quinta, para além da área de produção vinícola, destaca-se pela qualidade dos es- paços de lazer, nomeadamente o jardim romântico com uma vegetação exuberante, espelhos de água, mobiliário e ruínas, como a Janela da Reboleira do período quinhentista. Os principais núcleos urbanos do Vale do Sousa correspondem na sua maioria às sedes de concelho. Apesar de serem aglomerados recentes, apresentam graves problemas de conservação e salvaguarda, sendo ainda visíveis na sua malha urbana alguns vestígios de um traçado anterior. Apontamos como exemplo os núcleos das cidades de Felgueiras e de Penafiel. A preexistência física da cidade medieva e moderna é uma realidade muito presente no traçado urbanís- tico da cidade de Penafiel, tanto pela morfologia que transmitiu ao aglomerado, como através de vários elementos arquitectónicos e construtivos que perduraram até aos nossos dias. Os topónimos de rua Di- reita, Cimo de Vila ou Paço vêm confirmar a raiz antiga da cidade. A rua Direita define-se como a artéria principal, estreita, com lotes de pequena dimensão ocupados por edifícios sobradados, com fachadas alinhadas e alguns logradouros, onde se concentram os principais edifícios, como a igreja matriz de São 65 Martinho, a Capela do Hospital, a Capela do Espírito Santo, a Casa dos Soares Barbosa e a Casa dos Garcez, testemunhado pela qualidade estética e poder económico da nobreza local ou mesmo da bur- guesia enobrecida. Ainda dentro do perímetro urbano salientamos os núcleos da igreja da Misericórdia, Casa da Câmara, Convento de Santo António dos Capuchos e o Palácio Pereira do Lago. O século XIX é marcado pela construção do Quartel Militar, da autoria de engenheiros militares, que viria a ser uma obra dispendiosa e morosa. Com a execução deste projecto, desencadeia-se uma nova fase para Penafiel. Iniciam-se outras obras de melhoramento urbanístico com a construção de novos arrua- mentos, do cemitério, do matadouro, da praça do mercado e do campo da feira. Para embelezamento da cidade contribui a obra do Jardim Público tendo como modelo o jardim francês, inaugurado no ano de 1883. Para além da construção destes equipamentos, Penafiel iria beneficiar ainda com a construção do Hospital da Misericórdia em 1890, projecto da autoria do arquitecto Pedro Pezerat. De arquitectura neoclássica, o hospital é constituído por planta em L, apresentando uma fachada simétrica ritmada por pilastras, rematada com uma platibanda de urnas. O pano central é mais destacado, encimado por um frontão triangular coroado com uma estátua, o tímpano é decorado com duas cartelas. É um edifício bem delineado, de grande qualidade construtiva, correspondendo a um projecto executado de um só ímpeto. O núcleo urbano de Felgueiras desenvolve-se em torno de três praças, a Praça da República, a Praceta do Foral e o Largo Manuel Baltazar, o que confere ao aglomerado uma centralidade singular. Na envol- vente urbana coexistem arquitecturas de diversas tipologias e funcionalidades, desde a arquitectura residencial com aproveitamento do primeiro piso para fins comerciais até ao «chalet de brasileiros» e de homens ricos, como observamos na Praceta do Foral. Do conjunto edificado salientamos pela sua qualidade arquitectónica, a Casa do Pão-de-ló de Margaride e a Casa de Belém datadas de inícios do século XIX, pela sua estética neoclássica, ainda que esta reflicta um traço provinciano no domínio desta linguagem. A Casa das Torres e a Casa Baía, construídas mais recentemente, são edifícios de igual refe- rência, assim como a igreja de grande volumetria são um bom exemplar de arte da sua época. No último quartel do século XIX assistimos ao regresso de um novo encomendador na arquitectura pri- vada, filantrópica e pública feita por iniciativa de brasileiros torna-viagem. Estes novos proprietários, que fizeram fortuna no Brasil, vão construir sobretudo na região Norte, casas de habitação que se destacam pela sua escala e pela sua expressão arquitectónica. Esta arquitectura apresenta exemplares de quali- dade, de expressão idiossincrática assinalável, de singularidade nos programas e nos materiais. Como exemplo no Vale do Sousa destacamos a Vila Maria (Paços de Ferreira), o Palacête do Visconde de Pa- redes e a Casa da Castrália (Paredes), Casa Alvura (Felgueiras), Casa do Barão do Calvário (Penafiel); estes modelos apresentam características arquitectónicas peculiares nos seus programas construtivos de grande aparato; no recurso a projectos de inspiração forânea; na variedade de materiais construtivos e no uso da cor na arquitectura; no arranjo do espaço doméstico com valores decorativos muito acen- tuados; na afirmação do poder económico do proprietário e no gosto por jardins que conjugam o jardim português com o exotismo dos trópicos. Para o brasileiro torna-viagem, homem endinheirado e benemérito, o regresso à terra natal significava também dotá-la de estruturas de vocação social, filantrópica e recreativa. A construção de escolas (In- fantário Visconde Sousela e Isabel Maria Sousela - Lousada), asilos (Casa-Sanatório do Seixoso – Fel- gueiras) e equipamentos culturais (Cineteatro Fonseca Moreira – Felgueiras), de estruturas religiosas
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