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Guias e Dicas
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a criança - desenvolvimento infantil, Manuais, Projetos, Pesquisas de Psicologia

livro - livro

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

Antes de 2010

Compartilhado em 21/11/2009

milena-fraga-12
milena-fraga-12 🇧🇷

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Baixe a criança - desenvolvimento infantil e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Psicologia, somente na Docsity! Outras obras de interesse: HISTÓRIA D A ORIGEM D A CONSCIÊNCIA Erich Neumann A T IPOLOGIA DE JUNG Marie-Louise von Franz e James Hillman T O C A R - Terapia do Corpo e Psicologia Profunda Deldon Arme McNeely O COMPLEXO DE CASSANDRA Laurie Layton Schapira ENSAIOS DE SOBREVIVÊNCIA - Anatomia de uma Crise da Meia-idade Daryl Sharp TIPOS DE PERSONAL IDADE - O Modelo Tipológico de Jung Daryl Sharp O ESPECTRO DA CONSCIÊNCIA Ken Wilber O A T O DA V O N T A D E Roberto Assagioli PSICOSSÍNTESE Roberto Assagioli C O G N I Ç Ã O E APRENDIZAGEM H U M A N A Richard E. Mayer COMPLEXO, ARQUÉTIPO, SÍMBOLO Jolande Jacobi ESTRATÉGIAS DO PENSAMENTO Larry E. Wood FREUD E A A L M A H U M A N A Bruno Bettelheim DIC IONÁRIO TÉCNICO DE PSICOLOGIA Álvaro Cabral e E. Nick FREUD E SEUS DISCÍPULOS Paul Roazen ERICH N E U M A N N A CRIANÇA Estrutura e Dinâmica da Personalidade em Desenvolvimento desde o Início de sua Formação Tradução DR. PEDRO RATIS E S ILVA Membro Analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica E D I T O R A C U L T R I X São Pau lo Titulo do original: Das Kind Struktur und Dynamik der Werdenden Persönlichkeit Copyright © 1980 by Verlag Adolf Bonz GmbH, Fellbach. Edição Ano 1-2-3-4-5-6-7-8-9-10. 91-92-93-94-95 Direitos de tradução para a língua portuguesa adquiridos com exclusividade pela ED ITORA C U L T R I X L T D A . Rua Dr. Mário Vicente, 374 - 04270 - São Paulo, SP - Fone: 272-1399 que se reserva a propriedade literária desta tradução. Impresso nas oficinas gráficas da Editora Pensamento. S U M Á R I O CAPITULO UM A Relação Primal Mãe-Filho e as Primeiras Fases do Desenvolvimento da Criança 7 CAP ÍTULO DOIS Relação Primal e Desenvolvimento da Relação Ego-Self 23 CAP ÍTULO TRÊS Distúrbios da Relação Primal e suas Conseqüências 49 CAP ÍTULO Q U A T R O Do Matriarcado ao Patriarcado ..... 77 O Uroboros Patriarcal e a Mulher 80 A Criança e o Masculino na Fase Matriarcal . ... 84 A Crescente Independência do Ego e o Surgimento de Conflitos 89 O Desmame 92 Higiene, Postura Ereta é o Problema do Mal ....... 94 CAP ÍTULO CINCO Os Estágios no Desenvolvimento do Ego da Criança 109 Os Estágios Fálico-ctônico e Fálico-Mágico do Ego 113 A Transcendência do Matriarcado pelo Ego Mágíco-Guerreiro e pelo Ego Solar 126 Conclusões a Serem Tiradas desse Mito 131 Totemismo e o Desenvolvimento Patriarcal . 135 CAPÍTULO SEIS O Patriarcado.. 141 O Arquétipo do Pai e o Princípio Masculino......... 148 N O T A S À GUISA DE CONCLUSÃO Notas 165 Fontes 173 B i b l i o g r a f i a . . . 179 10 idade, a criança vai sendo moldada pela cultura humana, uma vez que a mãe 2 vi- ve imersa num coletivo cultural, cujos valores e linguagem influenciam, incons- cientemente mas de modo efetivo, o desenvolvimento da criança. A atitude do coletivo em relação à criança, ao seu sexo, à sua individualidade e ao seu desen- volvimento, pode ser uma questão de vida ou de morte. 0 fato de ser menino ou menina, ou gêmeos, a aparência física da criança ou as circunstâncias do seu nascimento, se avaliados negativamente pelo coletivo, demonstra-se tão desas- troso para o futuro da mesma quanto ser portador de uma deformidade física ou de uma deficiência mental. Por isso, já na fase pré-natal existe uma evidente adaptação à coletivida- de, relacionada com a atitude que esta mantém, de aceitação ou rejeição, de ca- da um de seus indivíduos componentes. Ao lado, porém, desta tendência à adap- tação, encontramos já bem desde o início o automorfismo do indivíduo, uma necessidade de formar seu próprio ser a partir dos elementos particulares que o constituem, no interior da coletividade e, se necessário, independentemente de- la ou em oposição a ela. Quando a Psicologia Analítica tenta formular as leis que dirigem o desen- volvimento da personalidade, precisa inventar uma nova terminologia, visto que tomar emprestados os termos criados por Freud e sua escola pode tornar indis- tinguíveis as diferenças profundas entre as direções das duas psicologias profun- das. Os adeptos da Psicologia Analítica até agora negligenciaram essa imposição e a conseqüência tem sido ocorrer uma perda na clareza. Postular a necessidade dessas correções na terminologia tem um fundamento teórico, além do que, o uso de termos inadequados freqüentemente leva a interpretações redutivistas de fenômenos psíquicos e, daí, a mal-entendidos que tornam difícil, se não im- possível, uma abordagem terapêutica compreensiva. Em nosso esforço para descrever com clareza a relação primal mãe-filho, confrontamo-nos com a interligação, central para a psicologia da criança, entre o desenvolvimento do ego e o desenvolvimento da personalidade como um todo. Qualquer discussão que se coloque na perspectiva da Psicologia Analíti- ca a respeito do desenvolvimento da personalidade e, de modo especial, da per- sonalidade da criança — deve começar assumindo o fato de que o que vem pri- meiro é o inconsciente, e que só depois é que surge a consciência. A personali- dade como um todo e o seu centro diretor, o Self, existem antes de o ego tomar forma e desenvolver-se como centro da consciência; as leis que regem o desen- volvimento do ego e da consciência estão subordinadas ao inconsciente e à per- sonalidade como um todo, que é representado pelo Self. Damos o nome de centroversão 3 à função da totalidade, que na primei- ra metade da vida leva, entre outras coisas, à formação de um centro de cons- ciência, posição esta que gradualmente vai sendo assumida pelo complexo do ego. Com a formação deste centro, o Self estabelece um "derivado" de si pró- prio, uma "autoridade", o ego, cujo papel é representar os interesses da totali- dade, defendendo-os das demandas particulares do mundo interior e do meio ambiente. Simbolicamente, a relação do ego com o centro da totalidade é uma relação de filho. O centro da totalidade, ou Self, enquanto relacionado com o desenvolvimento do ego, encontra-se estreitamente ligado aos arquétipos paren- tais. Durante a primeira metade da vida predomina a psicologia do ego e da cons- ciência, e a personalidade é centrada no ego e na consciência. No processo de in- dividuação da segunda metade da vida, ocorre um deslocamento de foco do ego para o Self. Todos esses processos, assim como a ampliação e a síntese da cons- ciência e a integração da personalidade, ocorrem sob o comando da centroversão. Enquanto o conceito de centroversão se aplica à relação entre os centros da personalidade, o conceito de automorfismo 4 dá conta do desenvolvimento não tanto de centros psíquicos mas de sistemas psíquicos: o consciente e o in- consciente. Abrange as relações de um com o outro; por exemplo, a relação com- pensatória do inconsciente com a consciência, e também os processos que ocor- rem apenas no inconsciente ou apenas na consciência, mas que servem ao desen- volvimento da personalidade como um todo. A relação primal mãe-filho é decisiva nos primeiros meses da vida de uma criança. É neste período que o ego da criança se forma, ou pelo menos começa a se desenvolver; é então que o núcleo do ego, que já estava presente desde o início, cresce e adquire unidade, de tal modo que podemos falar num ego infan- til mais ou menos estruturado. Essa fase mais precoce da existência, anterior ao ego, só é acessível para o adulto de forma duvidosa, pois nossa experiência adulta é normalmente uma experiência de ego, contingente à presença da consciência, enquanto que o es- tado pouco desenvolvido do ego nesse período inicial parece apontar para a im- possibilidade de uma experiência que possa ser considerada como tal. Só quan- do as relações entre o ego e o Self se tiverem tornado mais claras será possível entender que, mesmo nessa mais precoce das fases, é possível existir experiên- cia, e mais ainda: que essa experiência inicial é de importância crucial para a hu- manidade tanto quanto para o indivíduo. Numa outra obra 5 descrevemos essa fase como realidade mitológica e ten- tamos elucidar os símbolos a ela vinculados. Foi escolhido o termo urobórico para designar o estado inicial pré-ego, porque o símbolo do uroboros, a serpen- te circular que morde a própria cauda, "engolindo-a", portanto, caracteriza a unidade sem opostos dessa realidade psíquica. É assim que o uroboros, como o Grande Círculo em cujo centro, à maneira de um útero, o germe do ego re- pousa protegido, é o símbolo característico da situação uterina na qual não exis- te ainda uma criança com uma personalidade delimitada de forma suficiente- mente clara para permitir um confronto com um meio ambiente humano e ex- tra-humano. Esse estado não delimitado, característico da situação embrionária uterina, preserva-se em grande parte, se bem que não inteiramente, após o nas- cimento. Na fase embrionária, o corpo da mãe é o mundo no qual a criança vive, ainda não possuidora de uma consciência capaz de percepção e controle, e ain- da não centralizada pelo ego; além disso, a regulação da totalidade do organis- mo da criança, que designamos pelo símbolo do Self Corporal, ainda está como que abarcada pelo Self da mãe. Ao mesmo tempo, esses fatores que consideramos constitucionais e indi- viduais no embrião desenvolvem-se de acordo com a autonomia do Self indivi- dual da criança; mas esse desenvolvimento automórfico ocorre no interior da realidade estranha da mãe, que age sobre o embrião como uma realidade sobre- determinada. É só com a conclusão da fase embrionária pós-uterina que pode- 11 mos demonstrar o completo estabelecimento da instância autodeterminante que a Psicologia Analítica denomina Self individual. Para a mais precoce manifestação do Self, aquela que tem suas raízes no biológico, demos o nome de Self Corporal. 6 Constitui-se na delimitada e única totalidade do indivíduo, já considerada à parte de seu implante no corpo da mãe; ele surge como ser compondo a unidade biopsíquica do corpo. Com o nascimento do corpo, a ligação da criança com sua mãe em parte é rompida, mas a importância da segunda fase embrionária específica do homem é precisamente o fato de, após o nascimento, a criança permanecer parcialmen- te retida na relação embrionária primal com a mãe. A criança ainda não se tor- nou ela mesma. Ela só se torna ela mesma ao longo dessa relação primal, cujo processo se completa normalmente apenas após o primeiro ano de vida. No estágio pré-ego característico da primeira infância, no qual o ego e a consciência encontram-se ainda em processo de desenvolvimento, a experiência polarizada do mundo com sua dicotomia sujeito-objeto ainda não está presente. Essa experiência infantil, pela qual todos os indivíduos passam, é a corporifica- ção ontogenética da realidade unitária primal, na qual os mundos parciais do interior e do exterior, do mundo objetivo e da psique não existem. Nessa fase embrionária pós-natal, a criança ainda está contida em sua mãe, apesar de seu corpo já haver nascido. Nessa fase, o que existe é uma unidade primária compos- ta da mãe e filho. No processo de tornar-se ela mesma, a criança emerge dessa unidade com a mãe para transformar-se num sujeito apto a confrontar o mun- do como " t u " e como objeto. 7 Mas essa realidade que abrange mãe e filho não é apenas uma realidade psíquica, é também uma realidade unitária, na qual, aquilo que nossa consciên- cia discriminante chama de "dentro" e de " fora" , para a criança nâ"o tem dife- renciação. Da mesma forma que para o ego, por exemplo, existe uma conexão imediata entre a vontade de fazer um movimento e a sua execução, para a crian- ça, uma privação ou um desconforto tais como a fome ou o frio vinculam-se ime- diatamente à sua satisfação ou alívio por parte da mãe. Essa unidade, da qual depende a existência da criança, consiste numa identidade biopsíquica entre cor- po e mundo, na qual criança e mãe, corpo faminto e seios que aplacam a fome, tudo é uma única e mesma coisa. A criança mantém-se normalmente em repouso, imersa na segurança dessa realidade unitária. Quando surge uma tensão, sinaliza-a com o choro; à medida que sua necessidade vai sendo satisfeita com maior ou menor rapidez, a tensão se alivia, com o que a criança volta a emergir no sono. Mesmo mais tarde, durante o primeiro mês de vida, à medida que o ego vai adquirindo, cada vez com maior freqüência, uma consciência como que in- sular — de início por breves momentos, depois por períodos maiores — e vai se posicionando no mundo, não existe ainda diferenciação entre o próprio corpo e a mãe que propicia o prazer e exorciza o desprazer. Para o ego da criança, com uma experiência fundada no prazer e desprazer, sua experiência do mundo é a experiência da mãe, cuja realidade emocional determina a existência da criança. Para a criança nessa fase, a mãe não está nem dentro nem fora: para a criança, os seios não fazem parte de uma realidade separada de si e externa; seu próprio corpo não é experimentado como seu. Mãe e filho continuam tão interligados 12 15 Só quando interpretamos corretamente o simbolismo da condição de es- tar contido " n o Redondo" podemos entender por que o termo autismo não se aplica a essa fase. Como o ego ainda não se desenvolveu, a tendência a relacio- nar-se e o caráter de Eros da relação primal manifesta-se cósmica e transpessoal- mente, e não de forma pessoal. É por isso que o Paraíso, o Lar Original, o Cír- culo, o Oceano ou o Lago, figuram entre os símbolos do passado remoto. Estar contido nesse mundo cósmico é uma expressão da forma embrionária de exis- tência anterior ao ego, na qual a mãe continente manifesta-se nos símbolos de uma realidade abrangente, ou seja, da realidade unitária. O termo autismo, signi- ficando um estado no qual o objeto encontra-se totalmente ausente, só é inte- ligível numa perspectiva que suponha a relação sujeito-objeto do ego adulto. Deixa de ser um termo correto uma vez que tenhamos compreendido a realidade uni- tária primária da relação primal embrionária pré e pós-natal. Na fase pós-uteri- na da existência na realidade unitária, a criança vive numa participation mystique total, num fluido-mãe psíquico, no qual tudo se encontra ainda em suspensão, dele não se tendo ainda cristalizado os pares de opostos, ego e Self, sujeito e obje- to, indivíduo e mundo. É por esse motivo que esta fase é associada ao "sentimen- to oceânico", que sempre torna a aparecer, mesmo em adultos, quando a realidade unitária complementa, substitui ou irrompe na realidade consciente do dia-a-dia caracterizada pela polarização entre sujeito e objeto. Na Psicanálise, a antítese entre a situação psíquica do recém-nascido e a tendência a formar relações objetais de um ego mais tardio é explicada com a ajuda de conceitos tais como "identificação" e "narcisismo primário". Contras- tando com esses, termos como "adualismo".(Baldwin) e "união dual" (Szondi) expressam a situação primária da criança com precisão. A Psicologia Analítica emprega os termos mais universais participation mystique e "identidade incons- ciente" (Levy-Bruhl). A condição psíquica da criança, se formulada nesses ter- mos, não é interpretada como um ato de identificação, mas como uma identi- dade inconsciente, ou seja, como um estado passivo. Só podemos falar em identificações e em atos de identificação quando já existe um ego desenvolvido. Tais identificações realmente ocorrem, por exemplo, em todos os rituais de iniciação. A instância iniciatória conscientemente produz uma identificação com os ancestrais, com o animal totêmico, etc. Mas quando falamos de atos inconscientes de identificação, estamos projetando injustifica- damente a atividade de nosso ego sobre o inconsciente, que na realidade se caracte- riza por uma identidade primária, isto é, uma identidade que simplesmente está ali, presente como tal. Neste sentido, a união dual da relação primal é uma cons- telação de identidade, e não uma identificação de um ego ainda não existente de uma criança com a mãe. Esse "estar ali presente como tal" é precisamente o que caracteriza a realidade unitária e a existência num estado cósmico não subjetivo. Conseqüentemente, o caráter primário de Eros da relação primal - no qual primeiro a ocorrência de uma interpretação, seguida de coexistência e confronto, é inerente à vida da espécie, de modo que toda a existência da criança depende da realização dessa constelação do Eros - coloca-se em oposição direta ao nar- cisismo primário de Freud ou a outro qualquer narcisismo primário imaginável. Não importa quanto possam parecer convincentes as razões que levaram Freud a 1 6 colocar em oposição narcisismo e relação objetai; mesmo assim ele errou no en- foque da colocação, pois foi incapaz de compreender a constelação do relacio- namento a-pessoal da relação primal. Esse relacionamento — e foi isso que levou Freud a formular uma oposição entre narcisismo e amor objetai - não é uma relação propriamente dita, pois esta pressupõe tanto um sujeito como um objeto. Nem um e nem o outro estão presentes na fase pré-ego da relação primal. É isso o que torna a relação primal diferente de todas as demais e posteriores relações. No entanto, o caráter de Eros da participation, ou relacionamento recíproco, é mais forte do que o que é possível em qualquer relação que pressuponha um oposto. Na Psicologia Analítica, o estágio urobórico do desenvolvimento infantil com todas as suas implicações arquetípicas descritas em meu livro Ursprungsgeschichte [A História da Origem da Consciência]* corresponde à fase de narcisismo pri- mário, ao estado ainda não-objetal da personalidade infantil. Neste livro, não vou mais empregar o termo narcisismo em suas acepções tanto positivas como negativas, que foi o que fiz em certa medida no Ursprungsgeschichte, mas o re- servarei para uma atitude e um desenvolvimento do ego específicos e negativos. Na união dual da relação primal ainda não existe tensão intrapsíquica en- tre o ego e o Self. O desenvolvimento posterior do eixo ego-Self da psique, a co- municação e oposição entre ego e Self iniciam-se com a relação entre, por um lado, a mãe e Self, e por outro, a criança enquanto ego. A essa altura, a fusão entre mãe e filho, entre Self e ego é constelada pelo relacionamento mútuo e pela dependência do Eros. Assim, quando falamos em uma divisão em dois do Self na relação primal, estamos tentando expressar, do ponto de vista da nossa consciência polarizadora, a condição paradoxal prevalente na relação primal. Ao mesmo tempo desejamos lançar luz sobre a relação dinâmica entre mãe e fi- lho, e sobre o desenvolvimento do ego e da personalidade da criança dentro dessa relação. A relação primal é o fundamento de todos os relacionamentos, dependên- cias e relações subseqüentes. A união dual, conquanto garantida pela natureza na fase embrionária uterina, após o nascimento emerge como necessidade pri- meira do mamífero, especialmente do filhote humano. Eis por que em todas as criaturas que se desenvolvem no início dentro do corpo da mãe impõe-se a de- pendência do pequeno e infantil em relação ao grande vaso continente, no co- meço de toda existência. Para a nossa consciência discriminadora, a duplicação se manifesta pelo fato de a totalidade psicobiológica da criança, o seu Self Corporal, ser o funda- mento automórfico do seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a existência da mãe é a pré-condição absoluta da existência do filho, em termos de doação e regulação da vida, a única que torna seu desenvolvimento possível. Aqui temos novamente o conceito de realidade unitária, uma realidade que transcende a divisão corpo/psique e se encontra de tal modo ligada ao cor- po e ao mundo que psique, corpo e mundo tornam-se indistinguíveis. Assim, na relação primal da criança com sua mãe, aquilo que a consciência posterior- mente tenta manter separados e distintos como opostos - o físico e o psíqui- * Editora Cultrix, São Paulo, 1990. 17 co, o biopsíquico e o objetivo — ainda constituem uma só e única unidade. À primeira vista, pode-se supor, como Freud o fez, que o Self Corporal é o repre- sentante do organismo e de seu mundo inconsciente e instintivo, que o incons- ciente é o representante do organismo 1 1 e que a mãe representa o mundo enquan- to meio ambiente e sociedade humana. Mas, no que se refere à situação original, uma divisão e classificação assim são impossíveis. Self Corporal e mundo encon- tram-se tão estreitamente ligados quanto mãe e psique. O que depois surge para o ego como o inconsciente representa em igual medida tanto a reação do orga- nismo biopsíquico como o mundo contido nessa reação, pois ambos ainda per- manecem indistinguíveis. A situação real é arcaica e, por isso, de difícil compreensão para a nossa consciência. Dividir em interno e externo é uma simplificação que proporcio- na bastante satisfação à nossa consciência. Só ao fim de seu desenvolvimento embrionário pós-uterino, quando a criança definitivamente já nasceu, ela pas- sa a viver como um indivíduo dotado de um ego, que já começou a reagir de mo- do próprio a um mundo do qual se separou e que confronta. Só então a mãe, enquanto mundo, torna-se meio ambiente ou inconsciente. Mas nessa fase o in- divíduo já adquiriu completamente o seu Self. O Self Corporal e o Self Racio- nal, presente na mãe, tornaram-se um só. Ao longo do desenvolvimento da criança, o Self encarnado na mãe da re- lação primal, ou, para formulá-lo de maneira mais cautelosa, o aspecto funcio- nal do Self encarnado na mãe, que na relação primal torna-se experiência for- mativa para a criança, deve gradualmente "deslocar-se" para o interior da crian- ça. A independência da criança enquanto ego e indivíduo começa ao fim mes- mo da fase embrionária pós-uterina e coincide com a sua emergência para fora dos confins estreitos da relação primal. A criança então se torna aberta para ou- tras relações, torna-se um ego apto para o confronto com um " t u " tanto inter- na como externamente. Só aí, com a dissolução parcial da participation mystique entre filho e mãe, a criança deixa de ser apenas um Self Corporal e transforma-se em uma totalidade individual, detentora de um Self completo e aberta para rela- cionamentos. Com seu "verdadeiro" nascimento, o indivíduo humano torna-se, muito caracteristicamente, não apenas um indivíduo da sua espécie, mas também uma parte do seu grupo. A criança passa a ser não apenas "ela mesma", mas este "ela mesma" manifesta-se simultaneamente tanto interna quanto externamente co- mo uma relação "eu-tu". Daí por diante, o eixo ego-Self, a relação do ego com o Self, surge como um fenômeno fundamental no interior da psique, ao mesmo tempo em que, exteriormente, a separação entre eu e tu, entre sujeito e objeto, torna-se discernível, tanto como uma relação com o tu quanto como uma rela- ção com o mundo enquanto um oposto. Para deixar mais simples, falamos de um Self completo, que se consolida apenas ao fim do período embrionário. E de um Self que consegue unir o Self Corporal e o Self Relacionai externalizado na mãe. "Logo, estas não são partes e sim aspectos do Self que estão presentes desde o início mas que se tornam dis- cerníveis apenas ao longo do desenvolvimento. A Psicologia Analítica atribui ao Self, enquanto totalidade do indivíduo, a qualidade de um dado existente a priori e que se desenvolve no decorrer da rante o funcionamento formativo da relação primal com todas as suas conseqüên- cias vitais para o desenvolvimento da criança. Falar no caráter cósmico da imagem corporal, em que a criança se funde numa unidade com a mãe e com o mundo, equivale a dizer que a relação primal acontece num campo unificado onde não existe delimitação corporal como sím- bolo de individualização. A participation mystique entre mãe e filho orienta um através do outro. O filho inconscientemente " l ê " o inconsciente da mãe na qual vive, da mesma forma que — normalmente - a mãe exerce uma função regula- dora ao reagir inconscientemente à conduta inconsciente do filho. Nessa situação a psique ainda não se incorporou a um corpo individual mas se mantém suspensa no campo da realidade unitária, que contém dentro de si algo que é em certo sentido pré-psíquico e pré-físico, que é ainda psíqui- co e físico conjuntamente (no Self Corporal). A união com a mãe só vai se dissolvendo gradualmente, à medida que a individualidade e a consciência de ego da criança se desenvolve. C. G. Jung atri- bui muitos dos distúrbios da psique infantil a distúrbios psíquicos dos pais. Isto significa que, até a puberdade, existe normalmente uma união parcialmente in- consciente entre filho e pais, especialmente entre filho e mãe. A situação de participation mystique expressa-se por exemplo no fato de um estado de ansiedade da mãe passar para o filho sem necessidade de haver ne- nhum tipo de comunicação direta ou indireta. Enquanto que para a Psicologia Analítica a constelação de identidade da relação primal e o desenvolvimento do ego a partir dela desempenha um papel importante e talvez decisivo, Sullivan concentra-se quase que exclusivamente na transmissão da ansiedade da mãe pa- ra o filho.13 Realmente esta participation mystique manifesta-se em um gran- de número de fenômenos que se não fosse por ela permaneceriam incompreen- síveis, fenômenos esses que têm sido relatados por pacientes portadores de es- quizofrenia. Se, como atualmente parece provável, certas formas de esquizofrenia sig- nificam uma regressão à fase da relação primal, 1 4 facilmente podemos compre- ender por que, em estados de agitação, os esquizofrênicos podem captar e par- ticipar dos conflitos interiores das pessoas que lhes estão próximas, 1 5 por que, como já foi amplamente relatado, demonstram uma extraordinária percepção do inconsciente do terapeuta, e por que, freqüentemente, são mais capazes do que as pessoas normais de entender o inconsciente e seu simbolismo nos seus companheiros de doença. 1 6 Isto é apenas uma referência feita de passagem a uma ocorrência isolada de fenômenos parapsicológicos autênticos na esquizo- frenia.17 Esses fenômenos baseados em participation mystique 1 8 confirmam o ca- ráter de Eros dessa fase em que ainda não se completou a centralização da per- sonalidade individual psicofísica da criança ou, como numa patologia psíquica regressiva, encontra-se em suspenso. O vínculo da união dual é uma situação específica na qual um ser ainda não individualizado, na fase pré-ego, encontra-se unido a um ser que funciona transpessoal e arquetipicamente dentro de um campo unificado. Uma mãe com seu filho não evoca a imagem de uma mulher individual com seu filho individual, mas a de um arquétipo comum a toda a humanidade. 2 0 Desde tempos imemoriais os homens têm-se sentido profundamente tocados por esse fato e o consideraram suprapessoal. Para a consciência da mãe, com certe- za, um filho, é claro, também é algo individual que faz parte do seu próprio des- tino. Ainda que na realidade da relação primal, da maneira como a vivencia, ca- da mãe é a mãe, cada filho é o filho, e o relacionamento entre eles é a relação primal, que se "realiza" de acordo com um padrão arquetipicamente prescrito. O fato de o controle e a regulação do desenvolvimento da criança serem de início exercidos exclusivamente pela mãe, que representa o Self, não se re- fere à mãe enquanto ego e indivíduo. É exatamente o seu comportamento não diferente da média do comportamento humano, bastante inconsciente e instin- tivo dentro da relação primal que garante o desenvolvimento humano da crian- ça e do ego da criança. Quando falamos em papel transpessoal da mãe, manifes- to na relação primal, estamo-nos referindo precisamente às suas reações incons- cientes instintivas, pois o instinto não é individual mas um produto do incons- ciente coletivo. As reações em grande parte instintivas da mãe são o fundamen- to essencial da relação primal. Garantem a estabilidade e o auto-evidente cará- ter de vinculação de Eros unindo a mãe ao filho; e até no reino animal expres- sam-se por gestos de ternura e disponibilidade para sacrificar-se, e pela determi- nação de defender a vida de sua cria. A mãe constela o campo arquetípico e evoca a imagem arquetípica da mãe na psique da criança, onde permanece em repouso, pronta para ser mobilizada e funcionar. Essa imagem arquetípica evocada na psique, 1 9 põe então em mo- vimento uma complexa interação de funções psíquicas na criança, que se encon- tra no ponto de partida dos desenvolvimentos psíquicos essenciais entre o ego e o inconsciente. Esses desenvolvimentos, como aqueles que ocorrem no inte- rior do organismo, permanecem relativamente independentes do comportamen- to individual da mãe, supondo-se que a mãe esteja vivendo com seu filho de acor- do com seu papel arquetípico. 2 0 No homem essas reações também são provocadas em conformidade com um sistema que domina amplamente o reino animal: um processo instintivo é mobilizado por um "padrão de estímulo" específico. Assim descobriu-se que a forma típica da cabeça do bebê mobiliza o ins- tinto parental. As condições são: " U m rosto pequeno em relação a uma testa grande, bochechas proeminentes e movimentação corporal def ic iente. " 2 1 Sem- pre que essas características estiverem presentes — mesmo que seja em animai- zinhos — liberam sentimentos de ternura parental, quando faltam, a reação não se produz. Inquestionavelmente ainda temos muito o que aprender a respeito desses fenômenos instintivos que são sempre a expressão de um relacionamen- to arquetipicamente determinado entre indivíduos da mesma espécie. Enquanto na primeira fase da relação primal a mãe aparece como mundo continente e nutriente, a segunda fase caracteriza-se pela forma distintamente humana do arquétipo da mãe. Aqui, de novo, com toda certeza, a mãe é um ar- quétipo e não apenas uma mãe pessoal, individual; isto é, ela é a Grande Mãe, a Deusa Mãe; mas ao mesmo tempo tomou-se uma mãe humana. As funções que previamente eram desempenhadas pelo mundo anônimo e sem forma no qual a criança ainda não delimitada "flutuava" — as funções de continente, nutrien- te, aquecimento e proteção — agora tornam-se humanizadas. Isto é, são expe- 21 r i m e n t a d a s n a p e s soa d a m ã e , q u e , a p r i n c í p i o e m m o m e n t o s i s o l ados e d e p o i s c o n t i n u a d a m e n t e , é v i v e n c i a d a e r e c o n h e c i d a c o m o um ser h u m a n o ind i v i dua l . Só g r a d u a l m e n t e , c o n f o r m e a c r i ança va i l e n t a m e n t e s e d e s e n v o l v e n d o em di- r e ç ã o a t o rnar -se u m a p e r s o n a l i d a d e d o t a d a de consc i ênc i a de e g o , é q u e c o m e - ça a p e r c e b e r a m ã e c o m o u m a f i gura pessoa l , i n d i v i d u a l , e t rans fo rma-se n u m s u j e i t o c u j o o b j e t o é a m ã e . A t é e n t ã o a m ã e p e r m a n e c e t o d o - p o d e r o s a ; a rela- ç ã o p r i m a l c o n s t i t u i a i n d a t o d o o c a m p o da v i d a da c r i ança , até a cr iança t o r - nar-se i n d i v i d u a l i z a d a e seu e g o d e s e n v o l v e r - s e . Surge e n t ã o u m a r e l a ção eu- tu . Na fase a n ô n i m o - c ó s m i c a , a r e l a ç ã o p r i m a l d e t e r m i n a i n t e i r a m e n t e o sen- t i m e n t o d e ex i s t i r d a c r i ança n o m u n d o , m a s q u a n d o a m ã e torna-se u m ind i v í - d u o s u p e r - h u m a n o , a e x i s t ê n c i a soc i a l d a c r i ança c o m e ç a . N a fase u r o b ó r i c a d a r e l a ç ã o p r i m a l , m ã e e f i l h o f o r m a m u m a u n i ã o dua l d e n t r o d a r ea l i dade unitá- r ia , m a s a par t i r desse p o n t o o d e s e n v o l v i m e n t o n o r m a l da c r i ança d e p e n d e da h a b i l i d a d e de seu S e l f e do seu e g o r o m p e r e m aos p o u c o s a l i g a ç ã o c o m a uni- d a d e d a r e l a ç ã o p r i m a l . D a í p o r d i a n t e o d e s e n v o l v i m e n t o a u t o m ó r f i c o d a cr ian- ça e das suas p r e d i s p o s i ç õ e s e s p e c í f i c a s v ê m p a r a p r i m e i r o p l a n o . 0 a r q u é t i p o da m ã e c o n t i n u a d o m i n a n t e , o q u e s i gn i f i ca q u e o d e s e n v o l v i m e n t o da c r iança , nesse e s t á g i o , d e p e n d e a inda d a r e l a ç ã o m ã e - f i l h o . A g o r a , p o r é m , a c r iança e m e r g e c a d a v e z m a i s d a es fera m a t e r n a l pa ra enra i zar -se n u m m u n d o u n i v e r s a l m e n t e h u m a n o . • inseparavelmente ligado à mãe, e este fato constela a inseparabilidade do auto- morfismo e da relação com um " t u " , que é característico do desenvolvimento humano mais precoce. É muito próprio da natureza do automorfismo que desde o início gran- des quantidades de libido sejam dirigidas para o desenvolvimento independente da criança. Conforme o ego vai-se tornando independente, sua orientação visa esse desenvolvimento, e isto não deve ser considerado como uma tendência in- fantil e muito menos patológica. O equilíbrio característico da relação primal normal, antes de as partes componentes e do núcleo do ego se terem juntado para formar um ego consciente, já contém implicitamente a tensão produtiva entre o eu e o " tu " , a partir da qual se desenvolve uma personalidade sadia. Já falamos em outro lugar1 da importância do Self Corporal e do simbo- lismo metabólico da fase urobórica para a psicologia primitiva e para a mitolo- gia e os rituais da humanidade, além de já termos assinalado que essa fase filo- genética tem seu correspondente ontogenético na primeira infância. O Self Cor- poral, a totalidade da unidade biopsíquica, é uma instância reguladora que ope- ra a serviço da totalidade e que dirige, quase que com exclusividade, o desenvol- vimento biopsíquico da criança, inclusive sua progressão através das fases arque- tipicamente condicionadas. No estágio mais precoce, como vimos, a mãe como Self externalizado, como Self Relacionai, complementa o Self Corporal da crian- ça. Ambos encontram-se ainda indiferenciados na realidade unitária caracterís- tica da relação primal. Uma das dificuldades essenciais no desenvolvimento da criança consiste no fato de o ego precisar ir se instalando gradualmente no corpo único, próprio, individual da criança. Este processo, que caminha lado a lado com o desenvol- vimento do ego da criança, é responsável pela extraordinária importância de to- da experiência corporal na primeira fase da infância. Paralelamente a esse processo, ocorre a remoção do Self que se desloca da mãe para a pessoa da criança, um desenvolvimento com o qual se logra com- pletar a primeira configuração de autonomia da criança; é quando se atinge essa formação de um Self unitário que a criança humana verdadeiramente nasce.2 Na relação primal a experiência da personalidade da criança ocorre em grande parte, se bem que não inteiramente, no nível do corpo, através dos corpos tan- to da mãe como da criança. Por isso, as funções corporais elementares passam a constituir-se como focos apropriados de experiência: respirar, chorar, engolir, urinar e defecar - pelo lado ativo, enquanto pelo lado passivo: ser aquecido, aca- riciado, banhado e l impo. A superfície do corpo com suas zonas erógenas é o palco principal da experiência da criança, tanto de si mesma como dos outros; quer dizer, a criança ainda vivencia tudo na própria pele. A pele, pela qual a crian- ça entra em contato com o mundo externo, é o campo de sua experiência do mundo, e o superenfatizado trato alimentar, com suas zonas oral de ingestão e ano-uretral de ejeção, é o campo de sua experiência interna. Estas zonas de fronteira, nas quais se dão as trocas entre o interno e o externo, são muito ati- vas, e a criança torna-se extremamente consciente delas. Sobre um pano de fun- do de um sentimento corporal total, com ênfase genérica no prazer, e de um go- zo alimentar que se coordena com o instinto da fome e proporciona a todo o corpo uma sensação de repleção equivalente a um orgasmo alimentar (Rado ) , 26 27 as zonas corporais gradualmente dividem-se em pontos de concentração de ex- periência. A primeira fase do desenvolvimento da criança, por ser dominada pelo ins- tinto de autopreservação e pelo impulso para o autodesenvolvimento, é pontua- da pelo simbolismo da nutrição, pois alimento é não só a substância concreta de que se constrói o corpo, como também significa ao mesmo tempo vida, ale- gria de viver e intensificação do processo vital. Assim, o leite materno é muitís- simo mais que apenas alimento concreto. É símbolo de um mundo amistoso, e, o que dá na mesma, do arquétipo da Grande Mãe. Simboliza a essência da união dual positiva e sua nutrição, satisfação da sede, segurança, calor, proteção, pra- zer, não-estar-sozinho, relacionamento, superação da dor e do desconforto, pos- sibilidade de repouso e sono, um sentimento de estar em casa no mundo e na vida como um todo. Ao enfatizar as zonas oral e anal, Freud reconheceu a importância do tra- to alimentar, suas portas de entrada e saída. Mas confinar sua teoria a zonas eró- genas e descrever a constelação de instintos conectados a essas zonas como uma fase preliminar do desenvolvimento sexual, provou-se bastante inadequado. Só ao compreender a conexão entre o desenvolvimento biopsíquico específico do homem e seu correspondente simbolismo, torna-se clara a ligação entre a fase arquetipicamente condicionada, por um lado, e o desenvolvimento de ego e Self por outro. 0 " l e i t e " pertence naturalmente à esfera oral, mas o oral aqui é símbolo de toda troca com o mundo. A boca tem implicações cósmicas, e mais tarde so- ciais, que ultrapassam muito o significado local, concreto e material de uma mem- brana mucosa erógena. Como todo o corpo, mas em especial suas zonas de algu- ma forma destacadas, a boca nessa fase - e em grande parte daí por diante tam- bém — é uma unidade psicológica. Faz parte de um mundo simbólico e de uma apercepção simbólica do mundo. Não é por acaso que o beijo como expressão de uma situação inter-humana é algo mais que a estimulação de uma membra- na mucosa. O fator essencial do beijo consiste na experiência simbólica funda- mental de uma abertura para o exterior, para o mundo e para o " t u " e numa conexão com o " tu " . Receber e ingerir, ou comer, estão ligados à boca, da mesma forma que respirar e falar. Oral não é apenas sugar e lamber, mas também balbuciar, falar e cantar. Daí, quando se diz que determinada coisa é oral, não se trata, como acreditam os psicanalistas, da expressão de um estágio infantil da libido, mas do ponto de emergência de um mundo arquetípico de símbolos da maior impor- tância. Na criança, claro, esse mundo consiste em seu próprio tornar-se um ser e está estreitamente ligado com sua existência; mas toda existência humana, tan- to na esfera espiritual como na psíquica, contém um significado simbólico cru- cial que não pode ser reduzido ao infantil. Quando falamos de um uroboros alimentar, queremos dizer que para a criança a totalidade da existência humana manifesta-se no mesmo nível básico do instinto de alimentar-se e do simbolismo da nutrição. Nunca é demais subli- nhar que comer e o alimento — como o demonstra incontáveis vezes o simbo- lismo da linguagem e do mito, do sonho e dos contos de fadas — significam uma maneira de interpretar o mundo e de integrar-se nele. Como vimos, uma criança que se vê privada de sua mãe — e da relação pri- mal — adoece. Esta doença não é primariamente física, mas psíquica, e reflete-se numa diminuição progressiva de seu interesse pela vida; não pode ser curada por alimentação material, mas unicamente pela restauração da relação primal que nutre sua totalidade. Conseqüentemente, quando dizemos que o " co rpo " da re- lação primal é simbólico e abrange o mundo, estamos apenas tentando dar uma formulação para a unidade original real do dentro e do fora, que é a realidade tanto filogenética como ontogenética do homem considerado em seus primór- dios. E nossa consciência polarizadora que primeiro tenta — freqüentemente de forma bastante inadequada — quebrar essa realidade unitária, dividindo-a em física e psíquica, em elementos concretos e abstratos. Para o ego, que de início "desperta" de modo apenas intermitente do tor- por de uma existência pré-ego respondendo a intensas cargas de libido, a realida- de existe apenas como fragmentos isolados. Esses fragmentos de realidade neces- sariamente devem estar intensamente carregados, uma vez que é a sua carga ener- gética que os traz à percepção do ego. Entre os focos de realidade nesta fase ini- cial encontram-se as zonas erógenas descobertas por Freud; elas podem ser tam- bém com toda justiça denominadas de gnoseógenas, uma vez que não só trans- mitem prazer como também conhecimento a respeito da realidade.3 Só chega- remos a uma compreensão adequada do desenvolvimento da criança se conside- rarmos esses fenômenos à luz da situação humana como um todo. Também no mito, no ritual e na linguagem - que conserva seu caráter simbólico até hoje — o conhecimento mais precoce do mundo expressa-se através do simbolismo do corpo. Em alemão, os radicais, básicos dos termos que vêm a seguir são claramen- te os mesmos. Apreender é "engol ir" e "assimilar"; "compreender" é "prender usando as duas mãos", "ingerir", "digerir"; negar é "rejeitar", "jogar fora", "eje- tar", "eliminar" - e muitos outros exemplos que poderiam ser acrescentados, relacionados com o conhecimento humano prístino do mundo através do sim- bolismo do corpo. 4 Esse conhecimento inicial do mundo e o desenvolvimento do corpo, acon- tece em ligação estreita com a mãe, não apenas com o seu corpo, que fornece alimento, calor e proteção, mas também com todo o seu amor, consciente e in- consciente, pelo filho e pelo corpo do mesmo. Também aí a relação primal é decisiva para o destino do indivíduo, uma vez que na primeira fase do desenvol- vimento o amor e o conhecimento, o desenvolvimento do ego e a relação com o " t u " encontram-se intimamente ligados. Um distúrbio radical na relação primal pode levar a criança à idiotia, s ao passo que uma relação primal positiva propi- cia uma base essencial — não decerto a única - de abertura paia o mundo, in- dispensável para o subseqüente desenvolvimento intelectual da criança. Esta é mais uma razão pela qual a "Grande Mãe" em seu aspecto positivo é não ape- nas aquela que dá vida e amor, mas também, em sua forma mais elevada, é So- fia, a deusa do conhecimento e da sabedoria. Nesta fase, todo o processo psicofísico decorre ainda da relação primal positiva e é promovido pela mãe enquanto Self. Normalmente não existe ainda divisão entre um pólo positivo da cabeça e um pólo negativo inferior compre- endendo todos os processos anais, uretrais e mais tarde genitais, que vem a ser questionada e mesmo rejeitada. Nesta fase, todos os processos biopsíquicos, tan- 28 entendemos essa equação corpo-mundo-natureza em toda a sua extensão e em sua conexão natural com a relação primal é que se torna possível uma aborda- gem fiel e não redutivista da psique da criança, e também da do homem primi- tivo. De início o mundo é sempre um mundo-mãe; bem no começo mesmo, é na verdade um mundo-corpo-mãe. Melanie Klein escreve a respeito do mundo da criança: "A multiplicidade das coisas jaz no interior do corpo da mãe" ; e quan- to à relação com o interior do corpo desta mãe: "Esta parte torna-se uma epí- tome da pessoa toda como um objeto e simboliza ao mesmo tempo o mundo externo e a realidade." 1 2 Chegando com isso à equação corpo-vaso-mundo de que falávamos. 0 equívoco, entretanto, que distorce muitas de suas descobertas e conclu- sões, é o que a faz adotar uma perspectiva concretista do mundo simbólico-mi- tológico da criança e da humanidade em seus primórdios. É claro que a crian- ça pensa que seu mundo é real; no entanto, é um mundo simbólico. Por esta ra- zão as falas de uma criança devem ser tomadas sempre simbolicamente e não interpretadas racionalmente do ponto de vista de uma consciência adulta. 1 3 Por exemplo, quando uma criança expressa o desejo de ter, de possuir, de introje- tar os objetos do mundo, como se os quisesse comer, tal expressão não deve ser interpretada como sadismo agressivo. A criança não deseja comer sua mãe — mes- mo quando se expressa usando essas palavras — mas quer assimilar, apreender, compreender o mundo, que nessa fase ainda não se diferenciou da mãe; em ou- tras palavras, quer " comê- l o " . 1 4 O simbolismo da primeira experiência do mundo deriva em grande parte do instinto da fome, é pré-sexual e pré-genital. Nessa fase quase tudo é expres- so com ajuda do simbolismo alimentar, em termos orais e anais. Dissemos que a psique da criança apreende mitologicamente, que sua apreen- são do mundo faz-se em categorias por nós conhecidas através dos mitos. A vi- são infantil do mundo e a mitológica são tão semelhantes que chegam a ser qua- se idênticas, 1 5 e isto aplica-se em especial às suas concepções de criação, gera- ção e nascimento, à afinidade entre as teorias infantis a respeito do nascimen- to e os mitos de criação. Mais tarde, o simbolismo do instinto alimentar é sexualizado; ocorre en- tão o oposto. Se antes entrar e desaparecer dentro do corpo significava comer, agora o coito, observado ou descrito, pode ser interpretado como o ato de a mãe comer o pênis e como o pai dando de comer à mãe. Tais equações, caracterís- ticas da linguagem do uroboros alimentar, e perfeitamente naturais nessa fase precoce, podem vir a transformar-se em neuroses e psicoses, como a neurose de ansiedade centrada no medo de ter o pênis mordido e arrancado pela vagina. To- das as teorias infantis — e primitivas — que assimilam a fecundação ao comer e o parto ao defecar pertencem ao mesmo nível do simbolismo alimentar. Há porém mais aspectos a comentar a propósito do simbolismo anal e de sua conexão com a morte, bem como, a partir daí, com o pecado. Alguns dos rituais de fertilidade e todos os rituais de renascimento da humanidade têm co- mo fundamento essencial a relação próxima e positiva daquilo que é anal com a terra e sua fertilidade. É aí que encontramos a lei básica segundo a qual, no desenvolvimento, o componente pessoal quase sempre deriva do transpessoal 31 e torna-se compreensível nos termos do seu simbolismo. "A terra não imita a mulher", diz Platão, "é a mulher que imita a terra." E isto aplica-se à conexão primária entre fezes e a terra. Como Adol f Jensen demonstrou, é crença essen- cial de certos cultos agrícolas predominantemente matriarcais que a fertilidade do mundo vegetal pressuponha a morte e o auto-sacrifício de um deus. 1 6 A co- nexão entre a vida e a morte centraliza-se em torno do simbolismo da decadên- cia, do escuro, da terra, das regiões inferiores, como sendo a fonte da vida. Ao decompor-se, o corpo "transforma-se de novo em terra", e é dessa mesma ter- ra que rebrota a vegetação viva sobre a qual os homens vivem. O símbolo mais perfeito desse contexto pertencente originalmente à dimensão ctônica do femi- nino é o corpo assassinado de Osíris, o Verdejante, de onde germina o trigo. Posteriormente, em especial no mundo patriarcal, a ênfase desloca-se para o sig- nificado luminoso do pão da vida, em suas conexões com o sol e o trigo já dou- rado; na origem, porém, o que se nos depara é o útero escuro dos mistérios, a negra decomposição da morte, domínio necessário para a fertilidade da terra, da mãe. Na Alquimia, o mito da fertilidade torna a repetir-se na seqüência de transmutações do putrefato para o verde e deste para o dourado. O corpo hu- mano é detentor também dessa numinosidade; tanto para o homem primitivo como para a criança, as fezes mantêm uma conexão com o simbolismo de fer- tilidade da escuridão. Na psique infantil, desde que não tenha ocorrido uma avaliação negativa do pólo inferior, ambos os pólos do corpo, tanto o inferior como o superior, são igualmente valorizados, sendo isto uma característica da primeira fase da relação primal. Nessa fase, a ênfase recai nos símbolos e mistérios ctônico-ma- triarcais, e não ainda naqueles referentes ao reino celeste, patriarcal, que corres- ponde à valorização cada vez maior da consciência, que se tornará dominante num momento posterior. Da mesma forma que cada um dos sentidos constitui-se num mundo em si mesmo, da mesma forma que a dimensão motora ultrapassa a capacidade in- dividual para lograr a criação de todo um mundo tecnológico, que não é, essen- cialmente, nada mais que o desdobramento do primeiro de todos os implemen- tos, ou seja, o pedaço de pau que o macaco segura, aumentando com isso o ta- manho de seu braço, assim também o mundo oral e o mundo anal situam-se co- mo pontos de concentração dessa totalidade corpo-mundo da fase mais preco- ce do desenvolvimento. O prazer experimentado nessa fase chegou a ser corre- tamente denominado de "orgasmo alimentar", por tratar-se de uma satisfação interna que abrange todo o trato alimentar, da boca ao ânus. Em função dessa vivência, a saciedade é experimentada como "preenchimento-como-tal" e a fo- me como "falta-como-tal", porque nesses casos a relação com o arquétipo da mãe, e suas implicações emocionais, automórficas e sociais, está em plena atua- ção. Quando falamos em fome psíquica ou espiritual, estamos nos remetendo a essa fase precoce, na qual a fome é ainda uma experiência total, porque alma, corpo e espírito encontram-se ainda unificados, e todas essas dimensões da vi- da, que mais tarde virão a diferenciar-se e desabrochar, encontram-se ainda "en- volvidas" no broto do símbolo alimentar. Não chega a ser exagero demais, nem concretização materialista dizer que o " l e i t e " da Grande Mãe contém o símbolo supremo, o "leite de Sofia" que ali- 32 33 menta os fi lósofos; 1 7 tal afirmação apenas expressa e ressalta as implicações de uma realidade simbólica, válida para todos os níveis da vida, a saber, que todas as coisas e seres individuais são nutridos pela Grande Mãe da Vida, sem cuja abun- dância fluente toda existência haveria de perecer. Uma vez que indigestão, di- gestão e excreção constituem as condições alquímicas fundamentais para todo crescimento e transformação da criança, então sugar e engolir, nesse estágio pré-ge- nital, equivalem a conceber, enquanto que defecar passa a ser dar à luz. Por essa razão o simbolismo do uroboros alimentar amplia-se lingüisticamente até atin- gir os mais altos níveis da vida espiritual. Os conceitos de assimilação, digestão e rejeição, de crescimento e de parto são, como inumeráveis outros símbolos ligados a essa zona, indispensáveis para a descrição do processo de criação e trans- formação. Essa função corporal, que é essencial para a relação primal e para o desen- volvimento da criança, progride através de fases características da espécie hu- mana. Na fase mais precoce, a urobórica pré-genital, o instinto alimentar e seu simbolismo são dominantes. De início, o desenvolvimento realmente sexual e genital encontra-se também assimilado a esse simbolismo alimentar. É por es- sa razão que não classificamos essa fase como de sexualidade infantil, pois é um simbolismo especificamente diverso o que prevalece, mobilizado princi- palmente por um outro instinto, o alimentar. Esta fase, como todas as demais, é todo-abrangente; expressa tudo em termos de seu próprio simbolismo. Quan- do mais tarde os órgãos genitais ganharem a primazia e o instinto sexual tor- nar-se predominante, mobiliza-se um simbolismo sexual que por sua vez tudo apreende e interpreta a partir de seu próprio ponto de vista, ou seja, sexualizan- do tudo. Esta última fase não pode ser derivada da primeira. A sexualidade não é uma diferenciação posterior do instinto alimentar, nem o instinto alimentar é um estágio preliminar da sexualidade. É característico dos estados de transição que uma fase posterior neste caso, a sexual — seja apreendida inicialmente por meio do simbolismo da anterior - no caso, a fase alimentar. Conseqüentemen- te, é inadmissível interpretar a fase oral, a mais precoce de todas, como sádica. Um homem que morde um pedaço de alguma coisa para comer não é mais sá- dico do que um canibal etnológico. E isso permanece válido mesmo quando mais tarde, no estágio sexual do desenvolvimento infantil, os conteúdos e funções do estágio alimentar forem sexualizados. 0 ato de comer, enquanto significa incor- porar, nada tem a ver com castração, e a imagem da mãe boa ou má, ou do seio bom e do seio mau, não surgem como projeção de sentimentos positivos ou agres- sivos da criança com relação à mãe, mas é a expressão de uma situação objetiva não ligada a agressão ou sadismo infantis; estes são sempre secundários na sua origem; são a expressão de um ego ferido. Quando Melanie Klein escreve: "0 corpo da mãe é por isso uma espécie de armazém onde se encontra estocada a gratificação de todos os desejos e a tran- qüilização de todos os t e m o r e s . . . " 1 8 está descrevendo um elemento objetivo genuíno da relação primal, não uma projeção infantil. Da mesma forma, a ima- gem da mãe negativa é uma imagem de ansiedade secundária a uma situação pe- rigosamente prejudicial produzida por uma relação primal insatisfatória, e não uma projeção de agressões infantis primárias. natural." 2 1 Há provas de que isso vale também com relação ao desenvolvimen- to humano. A criança está aparelhada para viver em sociedade pela sua capaci- dade fundamental de estabelecer relações eróticas em seu sentido mais amplo. Essa preparação, por sua vez, tem suas raízes na proteção da relação primal, que é o fundamento de toda a sensação de sentir-se em casa, à vontade, num grupo social. A relação pessoal posterior da criança com a mãe, como base de toda re- lação amorosa subseqüente, e na verdade de toda relação humana, se estabelece de acordo com a relação primal. Só o inquestionável senso de segurança confe- rido pela proteção no amor de uma mãe, que capacita a criança em desenvolvi- mento a suportar desagradáveis tensões durante o processo de diferenciação, po- de deixá-la apta para suportar a redução do automorfismo infantil, imposto ine- vitavelmente pelo processo de crescimento no mundo e na sociedade. Só atra- vés da experiência de que ao desconforto seguir-se-á um alívio proporcionado por compensação e apaziguamento trazidos pela intervenção da Mãe Boa, é que a criança vai adquirir a habilidade, tão necessária para o homem e tão caracterís- tica do homem, para suportar tensões desagradáveis prolongadas e para desen- volver seu ego num rumo tal que agüente esse tipo de tensão, ao mesmo tempo em que se submete às demandas sociais. A reação instintiva em geral seria de evi- tar o desconforto ou abreviá-lo tanto quanto possível. Deste modo, o fundamen- to do desenvolvimento humano enquanto ser social não é o ódio - como os psi- canalistas que falham em reconhecer o caráter positivo da relação primal matriar- cal supõem — mas a segurança; não a ansiedade e o retraimento do amor, mas a relação primal positiva com a mãe, na qual a segurança, o envolvimento emo- cional e o amor são predominantes. 2 2 Só por meio da experiência emocional- mente satisfatória de confiança e segurança é que a criança adquire a capacida- de de suportar desconforto e de trocar conforto por desconforto quando as re- lações sociais o requerem — em outras palavras, de fazer sacrifícios erótico/sociais. Uma relação primal negativa, caracterizada pela retirada do amor e pela ansiedade que a acompanha, propicia o surgimento de agressões e é a pior ba- se possível para um comportamento social sadio. Nesses casos, certamente, uma superacentuação da ansiedade na consciência pode resultar numa conduta éti- ca, mas uma análise psicológica mais profunda mostra que qualquer desenvol- vimento do comportamento social através da consciência é perigoso. A experiência precoce, de um amor genuíno leva, ao contrário, a uma es- trutura psíquica que é capaz de amar e, conseqüentemente, está apta a desen- volver seus componentes de relacionamento ao lidar com a sociedade. Não é somente a relação da criança com o " t u " , com a sociedade, mas tam- bém a sua relação consigo mesma que é determinada pela relação primal. Jus- tamente porque na fase urobórica o Self está externalizado na mãe, e a criança depende inteiramente dela para o melhor e para o pior, uma situação de vida positiva reflete-se na apercepção inconsciente, simbólica e mitológica da crian- ça, mediada pelo amor e aceitação da Grande Mãe, enquanto que situação de vida que seja negativa reflete-se mediada pela rejeição e condenação da Mãe Ter- rível. Já havíamos enfatizado isso quando comentamos a atitude da mãe com relação ao corpo da criança. Mas justamente pelo fato de o corpo da criança coin- cidir com o seu Self corporal, a aceitação do corpo, que nesta fase ocupa vir- 36 37 tualmente toda a cena em que transcorre a vida da criança, torna-se aceitação absoluta. A possibilidade de vislumbrar a experiência dessa fase encontra-se nas ima- gens simbólicas da mitologia, que expressam sempre a totalidade da psique e não apenas um aspecto parcial da consciência. Nas fases posteriores do desenvolvi- mento infantil essa realidade simbólica é demonstrável; nas fases precoces, po- rém, do desenvolvimento da humanidade e do indivíduo, só pode ser inferida a partir de certas indicações. É um dos fatos básicos do desenvolvimento humano que a auto-afirma- ção, uma atitude afirmativa em relação a si mesmo, à própria personalidade, não seja inata — embora também aqui fatores constitucionais de natureza tanto po- sitiva quanto negativa pareçam intervir — mas que se desenvolva ao longo da re- lação primal, que é interpessoal num sentido mais significativo. Numa terminologia mais antiga, todos os sentimentos positivos, todas as atitudes orientadas para o indivíduo — auto-afirmação, autoconfiança, etc. - e, conseqüentemente, todas as atitudes automórficas não relacionadas primaria- mente com um " t u " , ou não derivadas de uma avaliação de parte de um " t u " , são consideradas narcisistas. A despeito de todas as tentativas de modificar essa impressão, esse termo denota sempre excessos de auto-admiração e auto-erotis- mo. Uma compreensão real da forma especificamente humana da existência só é possível se captarmos a relação dialética permanente entre o relacionamento com um " t u " e o automorfismo que faz do indivíduo um indivíduo único e o capacita a vivenciar o crescimento de sua individualidade como o verdadeiro sen- tido de sua existência. A importância do homem criativo para a sociedade co- mo um todo mostra que existe uma conexão dialética significativa entre a ne- cessidade de um indivíduo buscar seu próprio desenvolvimento automórfico e sua habilidade para desempenhar um papel produtivo na vida da coletividade. 2 3 Por outro lado, a adaptação do indivíduo ao coletivo, sem consideração por suas próprias necessidades, não apenas castra o indivíduo como também põe em pe- rigo a comunidade, pois uma adaptação assim incondicional à coletividade trans- forma homens em componentes de uma massa e, como a história da humanida- de tem repetidamente demonstrado, torna-os uma presa para qualquer tipo con- cebível de psicose de massas.2 4 O fundamento de uma consciência do Self automórfico é um eixo ego-Self positivo, uma experiência inicialmente inconsciente da harmonia do ego indivi- dual com a totalidade da sua natureza, com seu formato constitucional ou, em última análise, com o Self. Mas na relação primal essa experiência toma a forma de harmonia com a mãe. Autoconfiança que, quando lesada, demonstra-se em todos os distúrbios neuróticos e em muitos distúrbios psicóticos, depende qua- se que inteiramente da relação primal com a mãe - e aqui outra vez encontra- mos a interpenetração fundamental de automorfismo e relacionamento com um " tu " . Por um lado, uma relação primal normalmente positiva numa atitude de confiança no meio ambiente humano e no próprio corpo e, por outro lado, nu- ma inquestionável confiança no Self: essa confiança é indispensável para a esta- bilidade do eixo ego-Self, que é a coluna dorsal do automorfismo individual e, posteriormente, de uma consciência e um ego estáveis. Um ego estável, seguro, devemos sublinhar, não deve ser contundido com um ego rígido - um fenôme- no de cujos detalhes iremos tratar mais adiante. Um ego seguro é capaz de en- tregar-se com confiança ao Self, por exemplo, para dormir, enfrentar situações de perigo, mergulhar no processo criativo. Um ego rígido é, por outro lado, pre- cisamente um ego inseguro que, por ansiedade, vê-se compelido a fixar-se em si próprio. 0 desdobramento das relações entre o ego e o " T u " , e entre ego e Self que na relação primal encontram-se inextricavelmente ligados, encontra-se entre os processos essenciais do desenvolvimento da criança; em grande parte a doença ou a saúde do indivíduo e seu sucesso ou fracasso posteriores na vida dependem desse processo. Desde o início, não só o desenvolvimento do ego, mas a viabi- lidade geral do indivíduo dependem da natureza das relações entre ego e Self. Uma identidade-com-o-próprio-Self que não sofra distúrbios desenvolve-se em paralelo com uma relação segura com o próprio corpo, a qual é atingida na fase mais precoce do desenvolvimento psíquico, da mesma forma que inseguran- ça que se manifesta em experiências de alienação corre em paralelo com uma sensação de insegurança em relação com o corpo e com o Self, freqüentemente remontando à experiência infantil mais precoce. A habilidade para estabelecer contatos, que se manifesta quando a relação ego-Self é positiva e cujo desenvol- vimento normal baseia-se na constelação de Eros da relação primal, tem a ver com o contato em seu sentido mais amplo e não apenas o contato com o meio ambiente humano. O estabelecimento de contato começa com a identidade en- tre mãe-mente-corpo e o próprio corpo da criança. A partir desta unidade dife- renciam-se subseqüentemente os contatos com a mãe enquanto um " t u " e o con- tato com o próprio corpo. O contato com a sociedade e com o mundo em ge- ral desenvolve-se sobre o alicerce do contato do Eros da criança com a mãe, en- quanto que o contato com seu próprio corpo e com o Self Corporal está intima- mente relacionado com o desenvolvimento de um eixo ego-Self estável. Desta maneira, uma relação seguramente alicerçada capacita a persona- lidade da criança a formar um vínculo não apenas com a parte do Self que de- nominamos Self Corporal, mas também com a parte do Self que foi originaria- mente vivenciada através da mãe. Como vimos, a formação de um Self unifica- do (o verdadeiro "nascimento" da criança) depende de uma experiência posi- tiva da relação primal durante o primeiro ano de vida. Esse desenvolvimento, normal para o homem, isto é, arquetipicamente determinado, é garantido pela Grande Mãe e pela confiança nela, que gradualmente se desenvolve, à medida que a criança vai rompendo a sua identidade original com ela. O desenvolvimento não só de um ego saudável, mas também de um Self unificado sadio e de uma relação sadia entre ego e Self, depende do rumo to- mado pela relação primal. Paradoxalmente, o Self é vivenciado pelo ego simul- taneamente como aquilo que lhe é mais próprio e como um " t u " alheio, e esse paradoxo desenvolve-se através da relação do ego com o Self Corporal e com a mãe enquanto Self. 2 5 Não só a segurança do ego e sua percepção do Self, mas também a capa- cidade do ego de fazer contato com o Self e com o inconsciente dependem de um contato positivo propiciado pela relação primal. Pois o inconsciente também confronta o ego e a consciência com um " tu " . Da mesma forma que o contato 38 41 um distúrbio psíquico ou em estado de êxtase. Ao retornar à consciência vígil vindo de um estado de ausência, o ego é capaz — potencialmente - de recupe- rar a experiência de um estado em que se encontrava em suspensão, quer dizer, aparentemente não-existente. Quando o ego volta do estado inconsciente da constelação pré-ego, pode não trazer nenhuma recordação, como depois de um sono aparentemente sem sonhos ou depois de sugestão hipnótica; pode voltar possuidor de traços de me- mória relativamente claros, ou pode vir a adquiri-los, como quando alguém lem- bra de repente, ou de forma gradual, de fragmentos de um sonho; ou pode ter uma gradual ou uma rememoração total relativamente imediata, na qual fica evi- dente que os conteúdos do inconsciente são recuperáveis, isto é, capazes de se- rem trazidos à tona da consciência. Em qualquer dos casos, a ligação essencial entre o ego e o Self, expressa na noção do eixo ego-Self, torna o ego capaz, através do Self, de adquirir conhe- cimento de experiências que deixaram suas marcas na personalidade como um todo numa situação em que o ego ainda não é ( como na criança) ou já não é mais (como no adulto) capaz de experiência. 3 2 Toda entrada num campo arquetípico leva a um abaissement. du niveau mental, a uma diminuição de consciência, a uma intensificação de fenômenos que podem ser descritos como participation mystique, nos quais os limites en- tre sujeito e objeto acessíveis à consciência ficam borrados e a realidade unitá- ria toma o lugar da realidade normal situada pela nossa consciência. A cada mo- vimento do ego em direção ao Self, o aspecto da realidade unitária torna-se mais proeminente; a cada movimento em direção ao ego, o mesmo aspecto retrocede. Não só a experiência infantil da relação primal, mas também a experiên- cia religiosa do êxtase — neste ponto da discussão, deixaremos de incluir a "Gran- de Experiência" da arte 3 4 - é uma experiência da "realidade unitária". Esse fe- nômeno fica ainda mais fácil de ser observado quando, como no Budismo Z e n , 3 5 não existe unio mystica com uma imagem de Deus, mas a experiência mística abre caminho para a percepção de uma realidade transformada. Tais experiên- cias individuais e coletivas são características, não apenas de místicos, mas tam- bém do processo criativo, independentemente do fato de quase todos os povos da história terem tentado induzir ritualmente essas experiências, mediante o au xí l io de substâncias tóxicas. A base dessa constelação psíquica é um deslocamen- to no eixo ego-Self: o ego é puxado de volta para o interior do Self e a consciên- cia normal, centralizada pelo ego, fica suspensa. Aqui se torna uma questão de importância crucial saber se o eixo ego-Self se desenvolveu normalmente, se o supracitado desenvolvimento do Self unifica- do foi ou não realmente efetuado na infância. Se isso tiver ocorrido, o desloca- mento do ego para o Self dentro de uma psique integrada, o ego e a consciên- cia — como ocorre todas as noites — são colocados de novo naquilo que chama- mos de o inconsciente, e retornam indenes. A despeito de sua bem conhecida semelhança formal com as psicoses, os sonhos não são psicóticos — mantêm-se numa relação compensatória significativa com a personalidade como um todo e com a consciência, e estrutura a totalidade psíquica. Mas quando um desen- volvimento deficiente tiver enfraquecido ou lesado o eixo ego-Self, como por exemplo no caso de um desenvolvimento deficiente do Self unificado na infân- cia, o resultado é uma patologia, não apenas no desenvolvimento do ego e da consciência, mas também na relação entre o ego e o Self. Uma relação primal insegura e a correspondente instabilidade do eixo ego-Self se expressam numa auto-representação negativa e num exagerado mecanismo de defesa do ego. Um deslocamento do eixo ego-Self na direção do Self pode levar a uma desintegra- ção da personalidade com todos os fenômenos destrutivos característicos da psi- cose. A inundação pelo inconsciente, que em geral ocorre quando o ego se des- loca em direção ao Self, é nesse caso substituída por uma entrega da persona- lidade que destrói a unidade da personalidade e é expressa pela imagem da Mãe Terrível. Nesse caso, a função de totalidade do Self falha em exercer sua ação compensatória normal. Uma conseqüência dessa situação é que os sonhos com freqüência perdem seu caráter compensatório orientado para a totalidade. Dissemos que a relação primal é o fundamento ontogenético do ser-no-mun- do. Só agora o sentido pleno dessa afirmação torna-se claro. O relacionamento emocional da criança com sua mãe, que, como vimos, de início é para ela não apenas o " t u " e o Self mas também o mundo, propicia à personalidade em de- senvolvimento da criança o experimentar-se a si própria num mundo coerente e ativo. Como é do nosso conhecimento, toda criatura viva possui muitos meios ambientes, diferentes em tipos e em objetivos; o que chamamos "estrutura de mundo" depende sempre da constelação da psique e, no homem, primariamen- te da constelação do eixo ego-Self. Conforme o ego ou o Self, as forças polari- zadoras da consciência ou a tendência do Self à unidade, predominarem, dife- rentes aspectos da realidade vêm para o primeiro plano. Mas o próprio fato de a apreensão da realidade ser ordenada — não uma justaposição morta de coisas sem relação entre si, mas uma estrutura na qual os elementos subjetivos da rea- lidade de alguma forma se relacionam — é uma contingência do caráter erótico da libido, que se manifesta, em primeiro lugar, na relação primal. Ao contrário da Psicanálise, a Psicologia Analítica adota uma perspecti- va monista. Sua teoria da libido não implica uma oposição especulativa entre Eros e Tanatos, mas sustenta que a libido de um indivíduo é originariamente uma unidade e que sua polarização é um fenômeno secundário; enquanto "in- teresse" essa libido investe em todos os conteúdos objetivos e subjetivos e os liga ou à totalidade da psique ou ao ego como centro da consciência. Da mes- ma forma que na relação primal da infância o laço positivo do amor é vivencia- do como algo primário, assim também a libido enquanto fonte de vitalidade é a base de toda experiência de vida e de toda expansão de experiência. Só quan- do um distúrbio da relação primal resulta numa deficiência ou perda da libido é que encontramos fenômenos secundários tais como os sentimentos de ansie- dade e a morte, que numa relação primal positiva são sempre mantidos sob con- trole pelo Self, a mãe, e pelo ego integral da criança que a segue. Fazendo equivaler libido a "interesse psíquico", Jung esclarece tanto seu caráter relacionai como sua conexão com a relação primal. É a integração da crian- ça dentro do campo arquetípico vivo da relação primal que por primeiro a ca- pacita a desenvolver uma possibilidade de relacionamento que abrange suas re- lações com seu corpo, consigo mesma e com seu meio ambiente humano e não humano. 0 crescimento especificamente humano do interesse da criança pela 42 43 vida, por si mesma e por seu ambiente, alimenta-se de seu interesse por sua mãe, cujo amor, ternura e cuidado são o leite psíquico e a libido de que depende sua existência não apenas física, mas também psíquica e espiritual. Por essa razão, a destruição da relação primal conduz a um declínio psíquico e espiritual, e à destruição da criança. Ê o fluxo da libido da mãe para a criança que anima e ati- va os canais especificamente humanos e as predisposições através das quais uma criança humana chega a um comportamento humano em um mundo apreendi- do a partir de uma perspectiva humana. Assim como a experiência humana começa com a experiência totalmen- te inconsciente do mundo como um "Grande Redondo" , também ontogeneti- camente a totalidade da relação primal e da unidade mãe-mundo é o fator de- terminante na vida da criança. Para a criança, como vimos, a mãe é não somen- te o mundo mas também o Self. Assim é que a criança acha-se em. um mundo ordenado no qual pode viver e desenvolver-se. Sua sensação de abrigo e seguran- ça é a expressão de uma existência em um mundo ordenado. Desamparo e in- segurança, por outro lado, são sempre sintomas de uma experiência para a qual um mundo ordenado daquele tipo não existe ou desintegrou-se. Essa ordem - como veremos de forma mais completa mais adiante - é necessariamente antro- pocêntrica e do Self (autocentrada) em seu mais verdadeiro sentido; em outras palavras, é experimentada como se a criança fosse o seu centro. O fator mais pe- riférico nessa ordem é a estrutura cultural do grupo que através da mediação da mãe afeta de maneira intensa a vida da criança desde o seu começo, com as suas normas de comportamento que regulam os cuidados com as crianças; horários de alimentação, de dormir, etc. Mas na base dessa muitíssimo importante "or- dem do mundo", encontra-se um mundo de estruturas e interesses libidinais que, totalmente despercebidas por mãe e filho, proporcionam à criança a experiência do mundo como um todo ordenado, integrado. Todo o desenvolvimento da crian- ça do estágio pré-ego até o ego, da incapacidade de articular a fala, de uma crian- ça passiva, desamparada e inteiramente dependente, até chegar a uma criança capaz de movimentar-se no mundo, tudo isso encontra-se imerso na relação viva da mãe com seu filho, em seu interesse vivo que modela e determina os interes- ses e os direcionamentos do interesse da criança. A "ordem cósmica" retém o caráter libidinal seja ele sentido pelo homem moderno ou primitivo, por uma criança ou por um adulto. Mesmo um adulto moderno adota uma postura grandemente antropocêntrica do mundo. A expe- riência da "unidade cósmica" obtida na realidade unitária da relação primal (cu- jo caráter de Eros já enfatizamos) pressupõe um fluxo livre da libido entre a crian- ça (o inconsciente) e o mundo (a mãe). Do estar contido, da coexistência e di- ferenciação inicial característicos da relação primal da criança com sua mãe, a partir disso desenvolve-se um relacionamento análogo com o mundo como um todo. Por toda a sua ênfase antropocêntrica, esse mundo do ego integral da crian- ça está aberto à coletividade, porque normalmente caracteriza-se por uma atitu- de de busca de relacionamento que impede que a posição central da criança ve- nha a tornar-se solipsista e narcisista. Essa conexão entre mãe e mundo explica porque na mitologia o arquéti- po da Grande Mãe assume a forma de uma aranha que tece a teia (isto é, a mul- tiforme estrutura do mundo e da vida) e posta-se em guarda sobre ela. A ordem tece quando uma relação assim não é o que prevalece. Uma relação primal per- turbada ou destruída parece ser uma das principais causas da psicose conheci- da como esquizofrenia. O início dessa doença é freqüentemente marcado por um fenômeno que o paciente interpreta corno o fim do mundo. Em suas visões e sonhos, e posteriormente em sua experiência consciente, a unidade do mun- do se despedaça. O mundo cessa de existir, desintegrando-se em partes isoladas, mortas, ou, se resta um mundo parcial, sua degeneração se manifesta por um conflito de coisas e de forças hostis. Normalmente, o mundo consiste em relações dinâmicas, ordenadas, vivas que constituem uma unidade de vida na qual como na perspectiva óptica as coi- sas são vistas lado a lado, à frente ou atrás umas das outras, isto é, umas em re- lação com as outras. Estão sujeitas a uma ordem hierárquica. Todas essas ordens e relações pressupõem uma animação libidinal da psique que mantém uma re- lação inconsciente de identidade com o mundo. Mas quando, não importam as causas, ocorre uma falência da relação primal, constela-se para a criança a Mãe Terrível e surge um distúrbio no desenvolvimento (tão indispensável para o de- senvolvimento normal) da relação da criança com o seu corpo, com o seu Self e com o " t u " em todos os seus aspectos. É essa destruição do mundo-"tu" que se manifesta na esquizofrenia, com sua regressão ao mundo da Mãe Terrível. A realidade unitária simbólica, que na esquizofrenia é freqüentemente animada por visões e alucinações, desintegra-se, e a conseqüência é o fim do mundo, que é visto como um caos, ou seja, a disso- lução em uma confusão sem sentido de fragmentos isolados, amorfos, ou como a ordem e a rigidez de um sistema morto, vazias e coercitivas, comparável a um sistema de coordenadas sem o conteúdo vivo que se espera que coordene. O arquétipo da Mãe Terrível liga-se à morte, ruína, aridez, penúria e es- terilidade; preside o mundo da esquizofrenia sempre que exista uma separação radical demais das forças produtivas básicas do maternal ou hostilidade contra as mesmas. Essa desintegração do mundo e da personalidade por uma reversão do princípio de Eros, contrasta com o desenvolvimento natural da personalida- de da criança, na qual o princípio de Eros manifesta-se como a preponderância da mãe boa sobre a Mãe Terrível como integração de todos os relacionamentos entre a criança enquanto ego e o " t u " enquanto corpo, Self, outro ser humano e mundo. O desenvolvimento normal da criança, garantido por uma relação primal segura, culmina na formação de um ego integral, que emerge durante o perío- do em que a criança vive numa situação de identidade com a Grande Mãe e tem o poder de, até certo ponto, assimilar experiência negativa ou de descarregá-la. Isto vem a constituir-se, gradualmente no pólo do ego do eixo ego-Self, o Self sendo o solo no qual a psique está enraizada. Em geral a situação humana é tão equilibrada e compensada pelo jogo mú- tuo entre o comportamento biopsíquico natural e as reações sociais representa- das pela mãe, que o processo de maturação prossegue como algo espontâneo — a menos que circunstâncias inusitadas perturbem essa constelação. O desenvolvimento do ego integral começa na primeira fase urobórica da relação primal, mas é apenas na segunda, estritamente falando, fase matriarcal dominada pelo arquétipo da mãe que o ego integral atinge sua posição central. 46 Em outras palavras, é somente após o primeiro ano de vida da criança, após o seu verdadeiro nascimento, que o desenvolvimento do seu ego, e com ele o de- senvolvimento do ego integral e da posição antropocêntrica da criança, vem pa- ra o primeiro plano. 47 DISTÚRBIOS DA RELAÇÃO PRIMAL E SUAS CONSEQÜÊNCIAS 3 modelo para a experiência de seu próprio Self. Graças a essa qualidade iniegra- dora da mãe, as crises e dificuldades do desenvolvimento da criança são, em cir- cunstâncias normais, compensadas. Até mesmo a separação física da mãe, o des- mame necessário para o desenvolvimento da criança, bem como a separação psí- quica da mãe, implícita na consolidação do ego da criança, são compensadas pe- lo amor e aceitação da mesma mãe que se vai distanciando da criança ou de quem a criança vai-se afastando. É como se essa separação apenas ampliasse a área de amor entre mãe e filho e a tensão a ser suportada em seu interior; trata-se de um degrau necessário que não ameaça a segurança da relação de amor. Um texto hassídico, no qual o papel da mãe é caracteristicamente assu- mido por Deus e pelo Pai, interpreta as palavras do Velho Testamento: "Noé foi com o Senhor", da seguinte maneira: Noé era tão devotado a Deus que cada passo que dava parecia ser dirigido por Deus, como se Deus se postasse à sua frente encarando-o e colocando o seu pé no lugar e conduzindo-o como um pai que ensina o filhinho a andar. De mo- do que, quando o Pai se retirou, Noé percebeu: "É para que eu possa aprender a andar." 1 Esta passagem não descreve, como poderia parecer à primeira vista, ape- nas uma atitude simples e infantil de fé confiante. Se fosse assim, as palavras te- riam de ser: "Deus foi com Noé . " A ordem inversa coloca ênfase na atitude de Noé e significa que a ligação de Noé com Deus era indissolúvel. Inquestionavel- mente é assim, pois a fé total de Noé abarca tanto a presença como a ausência de Deus. Noé aceita até mesmo os momentos de abandono por parte de Deus, quando Deus fica inteiramente eclipsado. Noé vai sozinho, é independente e não precisa de tutela, mas para ele até mesmo a solidão e o abandono constituem uma orientação, e por isso está apto para superar a extrema escuridão que advém de sentir-se abandonado por Deus. Seu Self, moldado pela sua relação com Deus, opera independentemente como uma luz guia. Em outra história hassídica: " U m jovem rabino lamentou-se ao Zaddick de R iz in : 'Nas horas em que me devoto ao estudo, sinto vida e luz, mas quando paro de estudar, tudo desaparece. Que devo fazer?' O Zaddick respondeu: 'É co - mo quando um homem atravessa uma floresta numa noite escura. Durante um certo t empo, um outro homem, segurando uma lanterna, o acompanha, mas na encruzilhada eles se separam e o primeiro homem tem de tatear seu caminho sozi- nho. Mas se um homem carrega sua própria luz, não precisa temer a escur idão ' . " 2 A situação religiosa desvendada nessa história é obviamente a constelação da relação primal deslocada para Deus. A atitude de Noé situa-se num plano su- perior, o do ego integral, que na segurança da relação primal adquiriu um rela- cionamento confiante com seu próprio Self. De acordo com a atitude e o desen- volvimento patriarcais do povo judeu, a figura da mãe, que é quem naturalmen- te ensina a criança a andar, é aqui substituída pela de Deus. A segurança que adquiriu durante uma relação primal bem-sucedida capa- cita o ego a integrar as crises que surgem no decorrer das fases naturais do de- senvolvimento transpessoal, assim como as perturbações pessoais e individuais que põem em perigo o curso natural de seu desenvolvimento — isso ocorre, com 53 maiores ou menores variações, não importando se os distúrbios emanam da es- fera da vida da criança ou da mãe, ou se provêm de eventos impessoais. Em qual- quer caso, uma relação primal positiva propicia a maior probabilidade de a crian- ça suplantar esses distúrbios. Isto levanta a questão do mimar a criança, que alguns estudiosos da psi- cologia infantil consideram ser tão importante quanto a das ansiedades que emer- gem ao longo da relação primal. Na verdade, amor demasiado por parte da mãe de modo algum é tão perigoso e destrutivo quanto um relacionamento mãe-fí- lho negativo, e amor de menos. No curso da relação primal, uma mãe não amorosa, como uma Mãe Ter- rível, pode destruir ou danificar seriamente as bases da existência da criança. Mimar, por outro lado, não produz distúrbios sérios, até tornar-se necessário pa- ra a criança afrouxar os laços com a mãe, e esse processo é impedido ou preve- nido pelo fato de a mãe ter mimado o filho. Isto pode fazer surgir um sem-nú- mero de distúrbios neuróticos causados pelo vínculo inadequado da criança com a mãe. Mas, via de regra, uma relação primal positiva na primeira fase de vida propicia uma personalidade sadia com excelentes chances para sobrepujar tan- to esse como outros distúrbios. Uma personalidade assim sadia é sinônimo de um eixo ego-Self normal e fornece uma garantia de que a relação compensató- ria entre consciente e inconsciente, que em certos distúrbios graves fica seria- mente prejudicada, continuará funcionando em certa medida. Além disso, a noção de mimar é, em grande parte, condicionada pela cul- tura. Uma mãe que, fiel ao arquétipo da mãe, trata afetuosamente o filho, é con- siderada em meios puritanos como mimadora, e onde a tendência patriarcal de endurecer a criança desde a mais tenra idade por meios sádicos prevalece, essa mãe chega a ser acusada de o estar tornando efeminado. Os desvios da relação primal normal condicionados pela cultura são bastante consideráveis e, na verdade, po- de-se até achar que uma relação primal normal não passa de uma ficção ideal. Conseqüentemente, quando nos referimos a um autêntico mimar, temos em men- te um desvio, não de um padrão culturalmente condicionado, mas daquilo que consideramos uma relação primal normal. A causa de um mimo verdadeiro com freqüência tem de ser buscada numa constelação ou situação individual da mãe. Assim, por exemplo, a mãe de um filho único, uma mãe que enviuvou, que não ama o marido ou não é amada por ele, ou cujo marido é velho demais para ela, muitas vezes não tem um comportamento normal. Privada de outras saídas, inunda o filho com seu amor; a conseqüência é um mimar verdadeiro, decorrente de uma ligação amorosa excessiva. Esse mimar pode obstruir ou parar o desenvolvimento de uma criança, mas isso não é obrigatório. Encontramos essa constelação num número não pequeno de indivíduos criativos, nos quais o amor materno excessivo, o sentimento de ser o filho favorito, produziu uma intensificação primária de seu senso vital e de segurança. Posteriormente na vida — Goethe é um bom exemplo — isto assume a forma de um sentimento per- manente de ser uma criança "nascida num domingo", especialmente dotada pela natureza, e de uma atitude de confiança em si próprio e no mundo exterior em todos os seus aspectos, que leva a uma abertura criativa geral. A t é mesmo esse mimar autêntico envolve o perigo de a mãe se apegar for- temente ao filho. Nesse caso, a constelação individual da mãe e a maturidade 54 55 de sua personalidade, independentemente da idade, são fatores decisivos. Vai depender de sua personalidade se ela vai ser capaz de liberar o filho superama- do ou se tenderá mais a "devorá-lo". Em geral supõe-se, ás vezes com razão, que a mãe que não priva o filho de nada, faz com que se tome mais difícil para o filho, à medida que cresce, suportar as frustrações que a vida inevitavelmente impõe, fraqueza essa que pode redundar em fracasso. Mas o perigo do mimar autêntico tem sido exagerado demais, porque uma relação primal positiva con- duz a um ego integral, capacitado, pela confiança no Self da mãe e depois no próprio Self, a aceitar privações. O automorfismo intensificado resultante de uma relação primal positiva demais implica um conflito com o " t u " social, mas no fim a abertura do indi- víduo criativo para o mundo torna-se fecunda para a coletividade porque, com sua realização criativa, traz para o coletivo algo que faltava a este e que este ten- tava excluir de si próprio. Mas quando uma mãe se agarra ao filho, o fato de mimá-lo dissimula al- guma coisa mais, que dificulta a identificação de um mimar. Em termos mito- lógicos, esse mimar " fa lso" é o da mãe-bruxa que atrai a criança para sua casa feita de chocolate (mimar com docinhos), e quando esta entra torna-se a Mãe Terrível que a "engole" . Mas nesse caso o motivo não é nunca um excesso de amor que não é canalizado em outras direções; trata-se de um desejo de poder que substitui o amor real e se disfarça de mimo. Existem mães cuja genuína capacidade de amar é subdesenvolvida, atro- fiada ou envenenada e que, como compensação de sua anti-realização, arremes- sam-se sobre seus filhos não para lhes dar um excesso de amor, mas para preen- cher seu próprio vazio através do filho. Este não é um mimar real mas um pseu- domimar. Uma mãe assim não pode soltar o filho "quer ido" porque, se o fizer, o que lhe restará não será um coração transbordante de amor, como no caso do mimo real, mas um coração faminto. O amor de uma mãe assim possessiva está sempre a exigir coisas do filho. Ela apresenta o seu amor como uma dádiva e exi- ge gratidão; é um amor que requer pagamento e que se transforma num instru- mento de pressão. Com freqüência, ela empurra o filho na direção de seus pró- prios afetos e desejos insatisfeitos, que o filho supostamente terá de preencher com amor. Pode-se perceber com mais clareza que essas mães pseudomimado- ras são na verdade mães "terríveis", por sua conduta impeditiva do automorfis- mo da criança, que as torna não apenas não-criativas, mas também impotentes ou frígidas. Quando nos deparamos com crianças mimadas incapazes de amar, pode- mos com virtual certeza inferir a existência de uma mãe "terrível", cujo cará- ter terrível manifesta-se indiretamente através do pseudomimo. Isto é apenas mais uma indicação de que, como dissemos acima e voltaremos a discutir com mais detalhes adiante, a relação de uma criança com o " t u " é quase que intei- ramente determinada pela relação primal, para o melhor ou para o pior. Quando o automorfismo é acentuado pelos mimos, o deslocamento do Self da mãe para o filho e a formação do Self total serão alcançados com êxito; a criança passará de uma relação segura primal para uma relação segura com o próprio Self e para todas as potencialidades e desenvolvimentos daí resultantes. Mas quando seu automorfismo é prejudicado pelos mimos, a criança manterá integral e um eixo ego-Self positivo. Esses desenvolvimentos se iniciam numa relação primal positiva e depois se ampliam; em outras palavras, uma boa parte das restrições e repressões podem ser impostas ao longo de uma relação primal positiva sem perturbar criticamente a psique da criança. Doutra parte, porém, quando a relação primal é negativa, nem mesmo as melhores condições exter- nas conseguem impedir que ocorram distúrbios psíquicos. Nesse último caso, restrições que são condicionamentos culturais podem transformar-se em peri- gosas doenças mentais. Nesse ponto precisamos dar uma indicação de como e quando um distúrbio pode tornar-se mortalmente perigoso. Toda adaptação cultural é uma adaptação a um conjunto de demandas internas e externas, que necessariamente deverão entrar em conflito com cer- tas tendências individuais. É necessário impor limites somente onde uma ten- dência individual não é adequada às exigências culturais. Desde o início existe uma tensão entre automorfismo e adaptação cultural. Se convencionarmos que a imaginação é a realidade interior e os requerimentos culturais a realidade ex- terior, torna-se dever do indivíduo reconhecer ambas as realidades e aprender a mantê-las em equilíbrio. Isto tanto se aplica ao indivíduo, com sua orienta- ção para o mundo exterior e para as demandas de sua cultura, como para o in- trovertido, com sua orientação para o aspecto interior, subjetivo e objetivo, da psique. O perigo de que a psique seja inundada por uma invasão vinda de dentro ou de fora é prevenida pela centroversão, a tendência de estabelecer centros ou instâncias que viabilizam uma personalidade diferenciada. A centroversão está a serviço da personalidade como um todo e é um componente essencial do au- tomorfismo. A centroversão é uma tendência universal, presente em toda psi- que humana que conduz à formação do ego e do eixo ego-Self, à ênfase no po- sicionamento do ego como centro da personalidade na primeira metade da vi- da e a uma reversão dessa tendência exclusiva e específica de todo indivíduo pa- ra realizar suas potencialidades. Quanto mais bem demarcada e unilateral for a demanda cultural à qual a criança é submetida, mais numerosas serão as ini- bições que lhe serão impostas e maior a tensão entre sua consciência e o incons- ciente. Indubitavelmente, essa tensão favorece a adaptação cultural, mas dificil- mente se poderá dizer que favorece a realização criativa que viria a ser um be- nefício para a cultura, pois a realização criativa depende sempre do reconheci- mento do indivíduo e do automorfismo, que é posto em risco pela adaptação excessiva à cultura da época. Em condições normais, a educação de uma criança provoca um conflito entre seu automorfismo natural e a necessidade de adaptação cultural. Tal con- flito torna-se perigoso, freqüentemente de maneira crítica, quando uma relação primal negativa obstrui a capacidade de integração da criança. A capacidade de reagir automorficamente protege a autoconfiança do indivíduo frente às exigên- cias do mundo e os golpes do destino, aos quais o ser humano encontra-se ine- vitavelmente exposto. Numa escala pequena, fracassos e desapontamentos; nu- ma escala grande, infelicidade, doença e morte, são as provações que desafiam não só a "capacidade de interação com um 'tu' " mas também a "capacidade de interação com o S e l f de um indivíduo, com sua capacidade de ser "autên- t i co " , de ser um Self. Deste modo, a capacidade de um ser humano para supe- 58 rar essas situações cruciais da vida pressupõe um automorfismo não bloqueado, o poder de se integrar e a existência de um eixo ego-Self sadio, A posição antropocêntrica da criança no mundo está essencialmente liga- da à preponderância do ego integral que atua preventivamente contra o ego ne- gativo (aquela parte do ego que - seja por natureza ou reativamente — é suscep- tível, agressiva e destrutiva) impedindo este último de vir a predominar. As ini- bições impostas por uma relação primal negativa tornam-se criticamente peri- gosas quando a relação do ego com o Self e com o " t u " encontram-se perturba- das em seus fundamentos; nesse caso, nem a adaptação sócio-cultural, nem um desenvolvimento automórfico compensatório são possíveis. Como vimos, tanto a relação do ego com o Self como o desenvolvimen- to de sua relação com o " t u " dependem grandemente da relação primária mãe-fi- Iho. A ênfase antropocêntrica no indivíduo, que se baseia na relação do ego com o Self enquanto um " t u " interno/externo, é o fundamento de um desenvolvi- mento criativo do automorfismo e também de qualquer comportamento social positivo. Só um indivíduo que se leva a sério em sua dignidade antropocêntrica e que se vê a si próprio como um dos propósitos da Criação é capaz de levar a sério a dignidade do próximo e de reconhecê-lo também como um centro signi- ficativo do mundo. A tolerância amorosa que existe na relação primal e a for- mação de um ego integral tornam possível a tolerância que capacita um homem a amar ao próximo como a si mesmo, incluindo suas boas e suas más qualidades. Graças à combinação de automorfismo com uma relação primal positiva, o ego integral é sempre a expressão de um eixo ego-Self positivo, livre e criati- vo, adequado à disposição da criança de orientar-se criativamente para o " t u " , para seu Self e para o mundo. Esta "base de confiança" da personalidade total, representada pelo ego integral, torna possível um sistema psíquico aberto, no qual inexiste tensão in- superável entre o mundo e o ego ou entre o inconsciente e o ego. O ego está aber- to por todos os lados, percebendo, observando e expressando-se.4 Nesta fase pre- dominam uma consciência "que percebe matriarcalmente" e os processos que se originam no inconsciente. O ego integral domina ao mesmo tempo experiên- cias da personalidade como um todo, porque a separação final entre conscien- te e inconsciente num sistema claramente definido ainda não ocorreu entre o ego e o Self. Por essa razão, as reações de um ego não danificado, que ainda não foi intimidado, negativizado por interferência externa, são extremamente vigo- rosas. A consciência matriarcal da criança revela-se mais claramente no papel de- sempenhado pela fantasia e por seu parente próximo, o brinquedo. Fantasia não é de forma alguma a mesma coisa que princípio do desejo interior de prazer; é antes um órgão interno dos sentidos, que percebe e expressa mundos e leis in- teriores, da mesma forma que os órgãos externos dos sentidos percebem e ex- pressam o mundo exterior e suas leis. O mundo do brinquedo é de extrema im- portância não apenas para a criança, mas também para os adultos de todas as culturas; não é um mundo a ser transcendido. 5 Ele é especialmente importan- te para as crianças. Só um indivíduo imerso nessa realidade simbólica do brin- quedo pode vir a tornar-se um ser humano completo. Um dos principais perigos implícitos nesta moderna cultura ocidental-patriarcal, com sua superacentuação 59 da consciência racionai e sua adaptação extrovertida unilateral à realidade, é que tende a prejudicar, se não a destruir, esse mundo simbólico fértil e capaz de dar respaldo à infância. Imersão total no mundo mágico mítico simbólico da fan- tasia e do brinquedo é no mínimo uma expressão tão significativa da abertura da personalidade da criança, como o é a sua capacidade de assimilar impressões vindas do mundo exterior e da sociedade. As duas formas de abertura progridem em paralelo e normalmente uma contrabalança a outra. No desenvolvimento nor- mal do adulto o processo de crescimento em direção à consciência e a experiên- cia da realidade objetiva específica para a cultura a que a pessoa pertence não é menos importante do que o processo de crescimento em direção à religião, à arte, ao ritual e às leis do grupo, embora essas possam variar de grupo para grupo. Aqui não iremos tentar determinar sob que condições distúrbios do de- senvolvimento deixam cicatrizes duradouras e sob que condições são apenas aci- dentes passageiros; é suficiente apontar que o enraizamento da criança na socie- dade, efetuado através da relação primal, sempre inclui uma influência do câno- ne cultural, no qual a mãe e a família da criança vivem. Embora essa influência cultural chegue à consciência da criança somente mais tarde, quando o ego es- tá relativamente desenvolvido, comprovadamente exerce um efeito determinan- te, já desde uma idade muito precoce, sobre a relação primal e sobre a formação do ego e do eixo ego-Self. É de importância crucial, por exemplo, se numa dada cultura o sexo da criança é visto como desejável ou indesejável, como um valor dominante ou co- mo uma obrigação. A repressão e desvalorização da mulher no patriarcado pode dar à mãe um sentimento de inferioridade fundamental e de fraqueza do eixo ego-Self, que podem deixá-la incapaz de cumprir sua função de provedora de segurança na relação primal. Ou pode deixá-la num estado de protesto conscien- te ou inconsciente contra essa depreciação patriarcal. Cada uma dessas conste- lações é capaz de afetar a relação primal e em particular de influenciar a atitu- de da mãe em relação ao sexo do filho, desde o início. Uma mãe cuja auto-estima foi abalada pelo patriarcado reagirá de modo muito diferente com relação a um filho ou a uma filha. Pode preferir o filho e rejeitar a filha: ou inversamente, em função de um protesto consciente ou inconsciente, pode acentuar sua solidarie- dade com a filha e identificar o filho positiva ou negativamente com o pai. To- das essas atitudes, tão cruciais para a relação primal, assumem várias formas, va- riando conforme o caso individual. Mas também aqui as situações pessoais são apenas variantes de constela- ções que estão sujeitas a leis gerais e que, por serem em alto grau típicas de cer- tas situações culturais, podem ser demonstradas como sendo transpessoalmen- te condicionadas. A distinção fundamental entre as orientações patriarcal e ma- triarcal, consciente e inconsciente, fornecem uma base não só para a compreen- são da relação mãe-filho, mas também para o diagnóstico de nossa cultura e pa- ra a indicação de uma terapia. No Ocidente, a conscientização da situação da mulher em sua relação com os cânones culturais e suas conseqüências para a relação primal é de fundamen- ta] importância para o desenvolvimento da humanidade. Mas antes de abordar o efeito dos cânones culturais no desenvolvimento da situação primal, precisa- mos fazer um esboço das conseqüências de um distúrbio nessa relação. 6 0 Sempre que essa fase é negativa, isto é, quando não se forma o ego inte- gral, ou quando suas formações iniciais foram sufocadas, a situação negativa in- tensifica-se pela redução do ego da criança. Então surgem as agressões, que po- dem tomar a forma de autodefesa ou de alarme, quando o bem-estar da crian- ça é perturbado pela fome, pela dor ou pelo medo, ou de reações necessárias no início de fases novas, mas predeterminadas, do desenvolvimento psíquico, tais como o afastamento parcial e progressivamente maior da criança da relação pri- mal, ou o conflito que aparece na fase em que o sexo da criança se diferencia do sexo oposto e se estabiliza. Quando o filho está integrado com a Grande Mãe, ou mais tarde com a sua mãe pessoal, em geral ele consegue integrar suas pró- prias agressões. Ao sentir que suas agressões são aceitas pela mãe, mas também são limitadas e dirigidas pela mesma, ele aprende a aceitar, a limitar e a dirigir as próprias agressões; em outras palavras, aprende a subordiná-las ao ego integral. Um dos fatores essenciais na integração da criança é a absorção da agres- sividade infantil na sua estrutura psíquica total, pelo que essa agressividade tor- na-se um componente positivo na unidade psicodinâmica da criança. A ab-rea- ção afetiva de "distúrbios" de toda natureza através de berros e chutes é uma expressão normal da personalidade da criança e é aceita como tal por qualquer mãe normal. Mesmo quando, por alguma razão (isto é, por princípios educacio- nais), a resposta da mãe a esses distúrbios não é diretamente positiva, sua rea- ção, via de regra, é afetivamente positiva na sua simpatia e nas suas tentativas de sossegar a criança. Em certas culturas, tanto primitivas como modernas, essa atitude normal por parte da mãe é desencorajada pela coletividade. 6 Aí encontramos desvios culturalmente condicionados da norma. A conseqüência é que pessoas criadas nessas culturas sempre apresentam desvios, que continuam sendo desvios mes- mo se forem considerados normais em sociedades nas quais eles prevalecem. Um estudo abrangente de certas culturas e sua determinação de personalidade bási- ca (isto é, pela forma como se impõem à estrutura psíquica da criança) é impos- sível, a menos que tenhamos a coragem de avaliar aqueles desenvolvimentos que são contrários a um t ipo de desenvolvimento humano ideal. Uma mãe que ne- gligencia o filho a ponto de provocar-lhe uma mágoa que dure a vida inteira, de- ve ser considerada anormal, porque está falhando em cumprir seu papel arque- típico de propiciar as potencialidades especificamente humanas de desenvolvi- mento à criança, mesmo se dentro de sua cultura ela for considerada normal. As fases e formas particulares de distribuição dinâmica da agressividade entre o ego integral, o superego, a sombra e o Self serão um assunto de que trataremos posteriormente. A agressividade disponível para o ego integral é necessária na medida em que torna possível a auto-afirmação e a auto-realização do ego que interiormente é expressada como autocrítica e exteriormente como autocontrole. O jogo dinâmico entre Self, superego e inconsciente varia com cada constelação. Desta forma, a agressividade conduzida pelo Self é tão útil para o desenvolvimento do automorfismo, ou para o desenvolvimento do indivíduo em sua oposição ao am- biente e à cultura, como o é a agressividade disponível para o superego que, ao contrário, limita o indivíduo em sua adaptação ao meio e à cultura. No processo natural de diferenciação entre o filho e sua mãe, nos confli- tos entre o automorfismo individual e a relação primal, ódio e sentimentos de 63 agressão surgem como armas necessárias para a incipiente luta pela independên- cia. Essas reações secundárias negativas são normalmente compensadas e inte- gradas dentro da relação primal. Só um distúrbio da relação primal e o conco- mitante distúrbio mais ou menos pronunciado do desenvolvimento automórfi- co tornam anormal o desenvolvimento do ego. Se uma relação primal negativa produziu um ego negativizado, as agres- sões resultantes não podem mais ser integradas e, nesse caso, teremos os fenô- menos aos quais o termo narcisismo poderá ser aplicado com propriedade. A raiva e a impotência da criança, sua alternância entre desamparo e alar- me significativo — reações a um ferimento que põe em perigo a vida — são ca- racterísticas de um ego ferido infantil. Sempre que um bebê não se torna apá- tico, seu ego, à mercê do poder numinoso da Mãe Terrível, fica alarmado, e esse alarme libera reações compensatórias. A situação patológica de uma criança aban- donada em seu desamparo e dependência fá-la entrar em erupções de raiva e agres- sões ou, em termos do simbolismo de estágio alimentar, desejos canibais e sádi- cos de devorar a mãe. Aqui , como acontece tantas vezes, os erros da Psicanálise resultam de sua preocupação com o mentalmente doentio. Não é verdade que "o ódio precede o a m o r " 7 ou que o bebê seja, em qualquer sentido primário, um canibal ou um sádico. Da mesma forma, numa criança, a desconfiança8 não é primária, mas constitui uma reação a um sofrimento. 0 lado positivo, criativo, do inconscien- te e do desenvolvimento humano normal (que a psicologia analítica coloca no primeiro plano da realidade psíquica) fica obscurecido por interpretações assim equivocadas. Uma conseqüência patriarcal de um pensamento neurótico desse tipo é o pessimismo, secreto ou confessado, com relação à cultura. Quando o ego se torna um ego ferido, cuja experiência do mundo, do Self e do " t u " tem as marcas e características da fome, da insegurança e do desam- paro, a Boa Mãe torna-se, em escala equivalente, uma Mãe Terrível, negativa. Se o ego dessa fase já tiver adquirido uma certa estabilidade e independência, tornar-se-á prematuramente supervalorizado, como forma de compensação para esta situação de pena e abandono. Em geral, o ego se desenvolve no abrigo da relação primal e pode contar confiantemente com a Grande Mãe e com seu ca- rinho. Quando a relação primal é perturbada, o ego ferido é devolvido prema- turamente a si mesmo; é despertado cedo demais, e levado à independência pela situação de ansiedade, pela fome e pelas mágoas. É bastante fácil de entender que uma relação primal radicalmente pertur- bada, tal como a encontramos em tantos distúrbios neuróticos e psicóticos, seja experimentada principalmente como desamor. Conseqüentemente, o sentimen- to de não ser amado muitas vezes se faz acompanhar de uma ânsia quase insa- ciável (subjacente com freqüência às neuroses) por reparar e compensar a lacu- na de amor na relação primal através de experiências amorosas intensas.9 O paraíso da relação primal tem, por natureza, contornos indefinidos e não pode ser apreendido pelas categorias da consciência adulta. Por essa razão, seu caráter cósmico pode ser confundido com imoderação e sua abertura com falta de objetivos. Mas o desenvolvimento normal leva ao automorfismo, à for- mação do ego, à sociabilidade, ao ego integral e à adaptação ao meio ambiente. Esse desenvolvimento não é forçado por uma retirada negativa de amor, mas é 64 dirigido por um relacionamento de amor e confiança. É apenas o ego ferido, pri- vado da experiência de segurança — o fundamento de toda fé e confiança — que, por causa de sua ansiedade e desconfiança, se vê forçado a desenvolver um nar- cisismo que é a expressão de um ego reduzido a seus próprios recursos. Somente o abandono de um ego negativizado é que leva a um ego exacer- bado — egoísta, egocêntrico e narcisista. Embora reativamente necessária e com- preensível, tal exacerbação do ego é patológica, porque o contato de um ego assim com o " t u " , com o mundo e com o Self é obstruído e, em casos extremos, virtualmente destruído. Um distúrbio da relação primal numa fase precoce, quando o ego ainda não está consolidado e ainda não se investiu de sua estrutura independente, leva a um enfraquecimento do ego que torna possível uma inundação direta pelo in- consciente e uma dissolução da consciência. No entanto, o ego negativizado e uma consciência sistematizada centrada em torno desse ego, tornam-se reativa- mente rígidos, defendem-se em todas as frentes, erguem barricadas contra o mun- do e contra o Self. Essa tendência a excluir-se, que o ego negativizado possui, intensifica a situação de abandono e o sentimento de insegurança da criança, e isto é o início de um círculo vicioso no qual a rigidez do ego, a agressão e o ne- gativismo se alternam com sentimentos de abandono, de inferioridade e de de- samor, cada conjunto de sentimentos intensificando o outro. Esta é uma das prin- cipais causas para reações sadomasoquistas e para a rigidez patológica narcisís- tica do ego, com elas relacionadas. O ego negativizado é narcisista mas não antropocêntrico, pois a base do antropocentrismo, tanto na criança como no adulto, é a solidez do eixo ego-Self e o resultante enraizamento do ego pessoal num elemento transpessoal, ou seja, o Self, que não é apenas individual mas universalmente humano. Em contraste com o narcisismo, a atitude antropocêntrica espelha um relacionamento bem- sucedido de amor. é precisamente na base da relação primal, com seu caráter supra-humano, transpessoal, que o homem desenvolve o senso antropocêntrico de segurança, que não apenas o capacita a perceber a vida como significativa, mas também a estabelecer um vínculo de solidariedade com o seu próximo. A estabilidade do ego no desenvolvimento normal, através da qual a per- sonalidade se torna capaz de se identificar com o complexo de ego e com o cen- tro da consciência, é um prolongamento do ego integral da infância, que é ca- paz de aproximar conteúdos positivos e negativos numa unidade produtiva e pro- gressiva. A tarefa do ego é representar a personalidade total em seu confronto com o mundo interior e exterior, para agir — pelo menos durante a primeira me- tade da vida — como órgão executivo da centroversão. Compreende duas fun- ções que poderiam à primeira vista parecer que se excluem mutuamente. Por um lado, o ego, por sistematização e integração, deve criar uma unidade de cons- ciência e preservá-la por meio de mecanismos de defesa. Deve prevenir a inun- dação e a dissolução da consciência. Em função de suas defesas contra o incons- ciente e do reforço do ego, essa função pertence à fase do patriarcado e do de- senvolvimento do ego patriarcal. Mas, por outro lado, o ego e a consciência têm a função de manter-se permanentemente abertos às cambiantes impressões e in- fluências que neles se despejam vindas do mundo e do inconsciente. Somente essa abertura torna possível uma apercepção da situação e a adaptação da per- 65 As conseqüências de uma relação primal perturbada demonstram que um arquétipo, o do Self, por exemplo, não pode ser visto como um mecanismo or- gânico que funciona de forma automática. A ativação psíquica de arquétipos, ou pelo menos de um certo grupo dentre eles, a saber, arquétipos humanos tais como o da Mãe, o do Pai, o da Velha Sábia, pressupõem a evocação primária do arquétipo — adequada para o estágio do desenvolvimento infantil — através de uma experiência no mundo. A evocação dos arquétipos e a correlativa liberação de desenvolvimentos psíquicos latentes não são processos apenas intrapsíquicos; eles ocorrem num campo arquetípico que abrange o dentro e o fora, e que inclui sempre, e pres- supõe, um estímulo exterior — um fator proveniente do mundo. "Meninos-lobos", as crianças humanas criadas por lobas, não se desenvol- vem da maneira específica à raça humana; o arquétipo da Mãe vindo do incons- ciente coletivo não surge para compensai a perda da mãe pessoal, como se po- deria esperar se a compensação pelo arquétipo fosse um processo orgânico au- tomático. A ausência de compensação pelo inconsciente, observado em certas neuroses, também requer uma explicação. De qualquer forma, fala contra a te- se simplista de que o inconsciente ou a personalidade como um todo exerce in- variavelmente uma ação compensatória. No entanto, esses casos de ausência de compensação tornam-se geneticamente compreensíveis desde que assumamos que nas fases cruciais do desenvolvimento psíquico o fator pessoal, provenien- te do mundo, do arquétipo (o pai ou a mãe pessoais) precisa ser adequadamen- te evocado e ativado para o desenvolvimento normal, mas que em certos pacien- tes esse fator evocativo pessoal esteve ausente ou foi inadequado, de modo que a estrutura arquetípica da psique foi radicalmente perturbada em seu funciona- mento. Quando dizemos que o arquétipo tem "dois pés" queremos dizer que um arquétipo implica não apenas uma disposição intrapsíquica, mas também um fator proveniente do mundo. Quando dizemos que um arquétipo é " l igado" por evocação, queremos dizer que a aptidão arquetípica da psique precisa ser libe- rada por um fator correspondente proveniente do mundo. Teremos de deixar em aberto a questão de saber se essa interpretação se aplica a todos os arquétipos; por ora, limitaremos nossa discussão aos arquéti- pos nos quais uma figura humana ocupa o centro do padrão simbólico arquetí- pico, como no caso dos arquétipos do Pai e da Mãe, do Velho, da Velha, do puer aeternus, da anima, do animus e da criança. Estão todos presentes no inconscien- te coletivo de cada pessoa como imagens latentes, como símbolos relacionados com as mesmas. O mundo que aparece em conexão com os arquétipos humanos é em todos os sentidos um mundo humano, social. No entanto, esse elemento social, humano, não deve ser confundido com o pessoal e privado; também ele é transpessoal e arquetípico. A relação primal entre mãe e filho, por exemplo, é universalmente humana, enraizada no inconsciente coletivo. É uma das con- dições essenciais da existência humana. Na verdade, para o ser embrionário pós-na- tal, a mãe é o primeiro vínculo inter-humano, social; mas, como vimos, esse ele- mento social inter-humano representado pela mãe manifesta-se de início den- tro do anonimato arquetípico. Como mostra o simbolismo do arquétipo da mãe, esse arquétipo, conservando o caráter cósmico da relação primal, possui de iní- 68 cio um caráter difuso, cósmico. Só gradualmente, à medida que o ego e a per- sonalidade da criança se desenvolvem, o arquétipo da Mãe assume feições uni- versalmente humanas e, mais tarde ainda, individualmente humanas. Mas precisamente porque é característico do homem que toda criança efe- tue seu desenvolvimento embrionário pós-natal com e através da mãe (só em ra- ros casos patológicos essa condição não é cumprida), é compreensível e óbvio que a imagem psíquica inata do arquétipo da mãe deva ser liberada pelo fator mundano da mãe pessoal. A relação primal é uma relação entre dois seres vivos cuja "tendência ins- tintiva" impele-os a buscar a plenitude recíproca e 1 2 que, da mesma forma que o impulso direcionado instintivamente aproxima homem e mulher, orientam-se um para o outro. Os biólogos descobriram que no mundo animal um instinto adapta-se a outro à maneira de uma chave em sua fechadura. Embora de outro modo, isso vale também para a vida humana. O que nos parece importante aqui é não apenas sublinhar o caráter universalmente humano, transpessoal dessa re- lação, mas reconhecê-la como um dos fundamentos da realidade arquetípica. É na relação primal que um contexto arquetípico, que transcende a psique e a pessoa, fica mais claramente demonstrável. Por essa razão, talvez seja aí que apren- deremos mais depressa alguma coisa sobre o problema da origem dos arquétipos. Não questionamos nem a autonomia do inconsciente nem a emergência espontânea das imagens arquetípicas. Nem ciemos — a fim de evitar um possí- vel mal-entendido — que num adulto, isto é, numa psique completamente desen- volvida, um arquétipo tenha de ser mobilizado a partir de um estímulo exter- no. Mas a espontaneidade da psique e a emergência de imagens arquetípicas es- pontâneas do inconsciente nada nos diz a respeito do arquétipo em si. Este foi interpretado inicialmente pela Psicologia Analítica como sendo o corresponden- te de uma experiência externa - tal como a viagem noturna pelo mar ou a tra- jetória do sol — ou como uma categoria de experiência, uma imagem primordial que torna possível a experiência em geral. Até agora, grande parte dos adeptos da Psicologia Analítica se contentou em falar da ação compensatória dos arquétipos na psique. Várias vezes — e com acerto — Jung fez notar que em situações de tensão a imagem arquetípica da mãe que socorre pode emergir, induzindo uma reação na personalidade como um. todo e, nos casos mais favoráveis, produzindo uma nova orientação. Em outras palavras, os adeptos da Psicologia Analítica falaram quase que exclusivamente de imagens arquetípicas e de imagens primordiais da psique e do inconsciente coletivo. A princípio nos limitávamos aos arquétipos humanos e estávamos longe de supor que poderíamos resolver este descomunal e difícil complexo de problemas, mas esperávamos que nossas contribuições pu- dessem pelo menos formar uma base para discussão. Dissemos que o arquétipo está ligado ao mundo e possui "dois pés " — por- que toda imagem psíquica precisa ter elementos, provenientes do mundo. Isto significa que o arquétipo como tal é um campo vivo, dinâmico, de relacionamen- tos na realidade unitária, da qual se desprende aquilo que chamamos de psique e que se desenvolve só muito mais tarde. Enquanto a imagem arquetípica é a representante dessa relação e a desencadeadora das mais divergentes reações psí- quicas, o arquétipo como tal é a própria capacidade de se relacionar. 69 Esse potencial de relação — na relação primal, por exemplo — é o campo arquetípico que normalmente é preenchido pela mãe e pelo filho. O leite ma- terno é tanto uma parte do arquétipo — se é que se pode falar em partes quan- do se fala em arquétipo — quanto o são seu sorriso e sua vinculação amorosa. Para a criança o leite é igual à mãe. E entre todas as funções da maternidade que a nossa consciência considera físicas ou psíquicas, existe uma relação de conta- minação e de participação que as imagens e a apercepção mitológica da psique descrevem mais tarde como o cânon simbólico do arquétipo da Grande Mãe. É esse campo arquetípico, que transcende o reino da psique, que garan- te em condições normais o fenômeno quase paradoxal de uma simbiose psico- física viva entre dois seres vivos reunidos nesse campo, como a sobrevivência e o desenvolvimento da espécie o requerem. Neste sentido, o campo arquetípico — e isso vale para os arquétipos humanos em geral e não apenas para a relação primal — é uma expressão do fato de que a humanidade é uma unidade psicosso- cial. 1 3 Nenhum ser humano pode existir e desenvolver suas faculdades especi- ficamente humanas em isolamento. A existência humana só é possível enquan- to existência social. Os arquétipos humanos são, portanto, a expressão de rela- ções entre seres humanos. O fator social é pré-psíquico; então, a psique, que se vai diferenciando na realidade unitária, aos poucos vai formando imagens nas quais esse estado de coisas pré-psíquico se expressa e se torna inteligível. Só quan- do a realidade unitária é representada em imagens é que a psique se desenvolve diferenciando-se do corpo; e então, quando a consciência surge, começa a divi- dir a realidade unitária numa realidade polarizada de sujeito e objeto. Quando dois seres humanos estão unidos por um vínculo poderoso, seus desejos recíprocos formam uma conexão bilateral entre ambos, liberando os cor- respondentes arquétipos nas psiques um do outro. De modo que são necessários dois indivíduos para efetivar ou para pôr em ação esses fatores transpessoais dos arquétipos. E sobretudo eles participam de uma realidade unitária que transcen- de não só o indivíduo mas também o meramente psíquico (uso aqui "meramen- t e " psíquico porque este é transcendido pela realidade extrínseca da apetência arquetípica que existe para além das limitações físicas e psíquicas). Uma vez en- tendida essa realidade inter-humana e os "dois pés" do arquétipo, saberemos com certeza que um arquétipo não pode ser evocado por nenhum processo es- pontâneo no interior da psique — pois, se fosse assim, o arquétipo da mãe emer- giria em crianças abandonadas pelas mães e elas passariam a desenvolver-se em vez de morrer ou sucumbir à idiotia. Uma relação mãe-filho é o exemplo perfeito de uma situação de campo simbiótico necessária para a liberação da imagem arquetípica. Quando o arqué- tipo foi evocado com êxito e os primeiros estágios da relação primal se concluí- ram, o arquétipo pode tornar-se autônomo e funcionar como órgão independen- te. Ele então se manifesta com todos os símbolos transpessoais e com as quali- dades características do arquétipo — e não apenas da mãe pessoal que o liberou. 0 principal sintoma de uma relação primal perturbada é o sentimento pri- mário de culpa. Este é característico dos distúrbios psíquicos do homem ociden- tal. Surpreendente como possa parecer, a necessidade de contrapor-se à falta de amor resultante de uma relação primal perturbada faz com que a criança, em vez de responsabilizar o ser humano e o mundo, passe a sentir-se culpada. Esse 70 7 3 Freud fala de uma "reação terapêutica negativa" l 5 e de "um sentimento de culpa que encontra sua satisfação na doença e recusa abrir mão da punição do sofrimento". "A descrição que f izemos", prossegue, "aplica-se aos casos mais extremos desse estado de coisas, porém, numa escala menor, esse fator deve ser considerado em grande número de casos, talvez em todos os casos relativamen- te graves de neuroses." Com isso teria atingido, aparentemente, o sentimento de culpa "primário". Freud comete o erro de derivar o superego do complexo de Édipo e, prin- cipalmente, do pai; considera-o como uma autoridade formada tardiamente, re- sultante da introjeção. Como acontece freqüentemente com Freud, uma con- fusão particular se instala por ele desejar a um só tempo conceder fundamento filogenético ao superego — como em suas especulações sobre o totemismo e o parricídio — que pressupõem a herança de repetidas experiências individuais. Além do mais, Freud vê as mulheres de uma estranha perspectiva, pois em sua visão elas não têm, estritamente falando, nada a ver com a gênese da moralida- de . 1 6 (Veremos adiante que as descobertas de Freud ganham um novo sentido quando não são tomadas de um ponto de vista personalístico.) Quando investigamos as origens da moralidade, isto é, a fase matriarcal, encontramos não apenas o sentimento de culpa primário, que deriva de uma re- lação primal perturbada, mas também um fator positivo correlacionado com esse desenvolvimento negativo, a saber: quando a relação primal é bem-sucedida, a experiência ética primária do matriarcado corresponde à experiência ética fllo- genética da humanidade no matriarcado. A experiência do Self através da mãe na relação primal e a formação do ego integral levam a criança não só à experiên- cia de sua fraqueza, dependência e desamparo, mas também, ao mesmo tempo, a um sentimento de segurança e confiança num mundo ordenado. O fato de o Self, do qual o ego é um produto, ser vivenciado através da mãe na realidade uni- tária de uma unidade confiável com ela, é o fundamento da crença individual não apenas no " t u " e em si próprio, mas também na consciência ordenada do mundo. A harmonização com essa ordem do mundo dada naturalmente é a ex- periência ética primária da época matriarcal — e caracteristicamente prova ser o padrão ético também da mulher adulta. A fórmula infantil: "A maneira como sua mãe gosta que você seja é a ma- neira como você deverá ser, e" — no caso de uma relação primal bem-sucedida — "como de fato será", é a base de uma experiência do mundo na qual o sen- timento antropocêntrico de existir ainda não está separado de seu invólucro na- tural numa realidade abrangente. A lei interna da ordem instintiva é a morali- dade (inconsciente) diretora. O automorfismo da auto formação inconsciente- mente dirigida, baseada numa relação primal bem-sucedida, com seus compo- nentes eróticos do amar e ser amado, está em harmonia com a lei ética interna e externa. Para usar a formulação de Freud: "Rel igião, moralidade e sentimen- to social" são ainda uma coisa só e têm sua raiz positiva na relação primal; de seu sucesso depende o desenvolvimento desses conteúdos fundamentais para a vida superior do homem. Filogeneticamente, a ordem e a moralidade da Gran- de Mãe são condicionadas pela experiência infantil através da experiência com seu próprio corpo e com o ritmo cósmico do dia, da noite e das estações. Este ritmo determina a vida de todo o mundo orgânico, e os principais rituais da hu- manidade estão em sintonia com ele; estar imerso nele significa, no estágio ma- triarcal, estar em ordem, tanto no geral como no particular. Em circunstâncias normais, ocorre a mesma coisa ontogeneticamente na relação da criança com a mãe e por essa relação, desde que esta não ofenda o ritmo natural da criança, mas que se adapte a ele. Pela harmonia entre o ritmo próprio da criança e o da mãe - que na relação primal é vivenciado pela crian- ça como idêntico ao seu — a imagem da mãe torna-se a representação da ordem tanto interna como externa. Na medida em que a mãe, em seu amoroso relacio- namento com o filho, sabe do que o mesmo necessita e se comporta de acordo com isso, a ordem inata da criança coincide com a ordem implementada pela mãe. A experiência da criança quanto à existência de uma harmonia amorosa com uma ordem superior, que ao mesmo tempo corresponde à sua própria na- tureza, é a primeira base de uma moralidade que não faz violência ao indivíduo, mas lhe permite desenvolver-se num processo lento de crescimento. Nisto te- mos também a base de uma ordem no mundo, abrangendo o interno e o exter- no, à qual a criança pertence, na qual de fato se encontra imersa, da mesma for- ma que na mãe que a contém. A raiz da mais precoce e fundamental moralidade matriarcal deve pois ser buscada numa harmonia entre a personalidade total, ainda não dividida, da crian- ça, e o Self, que é vivenciado através da mãe. Esta experiência fundamental de harmonia com o Self é a base do automorfismo. Ela reaparecerá na segunda me- tade da vida como o problema moral da individuação. Tornar-se inteiro só é pos- sível num estado de harmonia com a ordem do mundo, com aquilo que os chi- neses chamam de Tao. O fato dessa moralidade matriarcal basear-se não no ego mas na personalidade total distingue-a — necessariamente — da moralidade secun- dária egóica do estágio patriarcal da consciência. Essa experiência primária, matriarcal, de ordem, molda a criança e é a ba- se positiva do seu sentimento social, que Briffault17 derivava, em primeiro lu- gar, da relação mãe-filho, existente ao longo de toda a história. Nisto também Freud deixou-se enganar pelo seu preconceito patriarcal e pelo seu excesso de ênfase no arquétipo do pai. "Mesmo hoje" , escreveu ele, "sentimentos sociais surgem no indivíduo como uma superestrutura construída sobre impulsos de rivalidade ciumenta contra irmãos e i rmãs." 1 8 É verdade que a parte da consciência social que se baseia na repressão e supressão de impulsos negativos origina-se dessa forma, mas a "moralidade da consciência", que não tem nada que ver com sentimento social, mas é uma adap- tação do ego aos mandamentos restritivos da sociedade, um desenvolvimento secundário. Este é precedido pelo verdadeiro sentimento social que se desen- volve numa relação primal positiva e deve ser visto como a base de todas as re- lações do indivíduo com os outros. Corresponde a uma experiência primária de ordem e não se trata de uma superestrutura. Aqui se pode perguntar se a experiência de ordem no estágio matriarcal realmente tem alguma coisa a ver com moralidade, ou se não se trata apenas de um sentimento" de existência naturalmente harmonioso mas, num certo senti- do, extramoral ou pré-moral. Mas, uma vez que a reversão da experiência po- sitiva de ordem na relação primal dá lugar a um sentimento de culpa primário, devemos falar também positivamente de uma experiência moral. 74 No desenvolvimento da consciência que leva do arquétipo da mãe para o arquétipo do pai, e da realidade unitária para a realidade polarizada da cons- ciência, o ego ganha independência gradualmente. Ele começa a levar uma exis- tência própria, não mais protegida pela abrangência da relação primal e do Self. Enquanto a primeira fase da existência, ainda sob a guarda da relação primal, leva à transferência do Self da criança da mãe para a criança e à formação do ego integral, depois disso começa um processo de desenvolvimento que leva gra- dualmente à separação dos sistemas e a uma oposição entre ego e Self. Enquanto o ego fica contido no Self da mãe, esse Self, como princípio ordenador, é também a única autoridade moral. Só quando surgem conflitos en- tre o ego e o Self no processo de diferenciação é que surge também um confli- to entre diferentes tipos de autoridade moral no interior da personalidade. Tais conflitos desempenham um papel crucial tanto no desenvolvimento normal do ego como no patológico. Ficou demonstrado em A história da origem da consciência que o ego não é, como supôs Freud, meramente um "representante do mundo exterior", que torna o mundo exterior acessível ao inconsciente e ao Id, com sua cega orien- tação dada pelo princípio do prazer — "O id tem experiência do mundo exte- rior apenas através do e g o . " 1 9 Do ponto de vista da Psicologia Analítica, o sis- tema psíquico como um todo, do qual o inconsciente é uma parte, não se en- contra separado do mundo exterior, mas existe em contato com o mundo e de- senvolve-se nele e por ele. Como nos animais, o mundo instintivo do inconscien- te, com suas reações e regulações, encontra-se " n o mundo" e não leva uma exis- tência solitária, segregada, que deve adaptar-se à realidade por meio do ego e da consciência. Essa adaptação contínua dos instintos ao mundo é a pré-condição e a base do desenvolvimento humano e animal. 0 papel da consciência do ego é levar as reações coletivas do inconscien- te, com sua orientação para o mundo, para uma harmonia com as necessidades divergentes impostas pela situação única, subjetiva e objetiva do indivíduo. A consciência coletiva do cânon cultural, quer dizer, do conjunto de valores e de- mandas impostas pela coletividade, também deve ser considerado como parte da situação objetiva. A fim de preencher plenamente sua função sintética, o ego enquanto ego integral deve conseguir um equilíbrio entre as demandas confli- tantes de dentro e de fora, da coletividade e do indivíduo. À medida que vai assumindo gradualmente seu papel no mundo, o ego se vê envolvido num conflito que irá afetá-lo profundamente durante quase toda a sua existência. Se fosse apenas o expoente do eixo ego-Self e o órgão execu- tivo do automorfismo, ele só conseguiria ficar em conflito com a Natureza. Sua existência — ao menos a existência consciente — iria servir, como nos animais, apenas ao propósito de autopreservação e de auto-afirmação face ao meio am- biente. Mas a situação é significativamente complicada e enriquecida pela cons- telação social humana. Desde o início, o ego humano cresce num meio ambiente humano, e mes- mo os fatores arquetípicos inconscientes, que em parte o condicionam, são hu- manos desde o começo. Quando falamos do inconsciente coletivo e de arqué- tipos que moldam e predeterminam reações humanas, estamos falando muito amplamente de fatores que caracterizam a espécie humana como tal, isto é, que 75 Em nossa cultura, o desenvolvimento necessário, através do qual a crian- ça emerge da relação primal para alcançar maior independência, corresponde a uma transição do matriarcado psicológico, no qual o arquétipo da mãe é do- minante, para o patriarcado psicológico, no qual domina o arquétipo do pai. Em A história da origem da consciência, mostramos que essa transição é indispensável para o desenvolvimento da consciência. Mas naquela obra a ênfa- se recaía sobre o universalmente humano e simbólico. Nesta aqui, tentaremos indicar alguns poucos processos ontogenéticos na criança, que correspondem a essa transição. Esse desenvolvimento pode ser descrito como um todo porque a progres- são do matriarcado da relação primal para o patriarcado aplica-se tanto para os meninos como para as meninas. A liberação da criança do sexo masculino de sua mãe foi descrita extensamente em A história da origem da consciência. A diferença no desenvolvimento da menina será pelo menos esboçada em uma se- ção seguinte deste livro, uma vez que se deve dar especial importância à relação primal mãe-filha como a primeira fase do desenvolvimento especificamente fe- minino. Na fase urobórica da relação primal, a mãe revela-se ativa e passiva, com os atributos de conceber e de gerar colocados lado a lado. Estes são os precur- sores daquilo que a criança mais tarde irá perceber em seus conflitos entre mãe e pai. Assim, o fluxo do seio da mãe para o filho pode ser experimentado como paternal e gerador, muito embora o abraço da mãe esteja expressando o conti- nente materno. Na realidade unitária da fase urobórica, os pais pessoais estão ainda unificados, e a mais precoce experiência que a criança tem de sua mãe se- ria, se ela tivesse consciência, de um bissexual primevo. Não apenas o maternal e o paternal, mas também o feminino e o masculino estão contidos no Grande Redondo urobórico da mãe; a criança os vivencia não apenas simbolicamente em sua apercepção mitológica inconsciente, mas também fisicamente, através das ações da mãe. A Psicologia Analítica interpreta o homem como um ser duplo, no qual importantes elementos psíquicos do sexo oposto estão sempre presentes em am- bos os sexos fisiológicos, a anima no homem, o animus na mulher. 1 Esse fato fundamental, que se aplica também à mãe da relação, primal - isto é, a presen- ça de um princípio masculino, o animus, em sua psique — desempenha um pa- 79 pel crucial, não somente na relação primal mas também na fase durante a qual a criança cresce, separando-se dela. O U r o b o r o s Patriarcal e a Mulher Em "A Psicologia da Transferência" 2 Jung mostrou que a relação entre dois adultos caracteriza-se pela constelação básica do Quatérnio ou, em outras palavras, o relacionamento delas é quaternário. No adulto, com seus sistemas consciente e inconsciente separados, a consciência masculina e o inconsciente feminino do homem, e a consciência feminina e o inconsciente masculino da mulher se ligam e se fertilizam mutuamente. Isto dá lugar a uma relação cruza- da, quaternária. A criança, na qual a estrutura antitética de masculino e femini- no, consciente e inconsciente, ainda não se constelou, aprende a diferenciar os opostos com base na estrutura antitética macho-fêmea da mãe. Em outras pa- lavras, a criança na participation da relação primal desenvolve seus próprios mo- dos de reação ativos e passivos, masculinos e femininos, na, e através da sua re- lação com os elementos masculinos e femininos existentes na mãe. Antes de se confrontar com o princípio masculino como "pa i " , ela experimenta o princí- pio masculino como um aspecto inconsciente da mãe. Enquanto a orientação consciente da mulher em relação com o mundo e com o homem (desde que não esteja inteiramente identificada com o mundo de valores masculinos) é grande- mente dominada pelo seu relacionamento com o princípio de Eros, o seu mun- do inconsciente masculino representa o princípio de logos e de nomos ( le i ) - princípio do espírito e da moral — que em Psicologia Analítica foi designado como sendo o mundo dos "animi" . 0 aspecto animus da mulher consiste nas convicções, atitudes, interpre- tações e opiniões inconscientes que (na medida em que não pertencem à sua es- trutura inconsciente, pois seu espírito feminino é diferente do do homem) ori- ginam-se na cultura em que vive. Em nossa cultura, desde a mais tenra infância a mulher absorve valores patriarcais do seu ambiente cultural. Conseqüentemen- te, em seu desenvolvimento ela se depara com a difícil tarefa de jogar fora seus preconceitos advindos dos valores da cultura patriarcal, e de superar suficiente- mente os animi patriarcais para tornar-se acessível ao aspecto espiritual especí- fico da natureza da mulher. Isto significa não apenas que a consciência cultural- mente condicionada da mãe — que molda o ego e a consciência do filho com seus julgamentos, valores e convicções — é por sua vez modelada pelo cânon cul- tural no qual a mãe vive, mas também que a camada superior do seu inconscien- te, com suas avaliações e julgamentos inconscientes, é determinada pelo cânon cultural, que em nosso caso é patriarcal. Essas atitudes irrompem na experiên- cia pessoal de uma mulher através das figuras introjetadas e das concepções do mundo masculino a seu respeito. Sem que se dê conta, o pai, o irmão, o tio, o professor e o marido mol- dam-lhe a maneira de reagir. Sob a forma de julgamentos e preconceitos da mãe, todos esses elementos masculinos desempenham um importante papel nos cui- dados e na criação do bebê, preparando-o para a adaptação à cultura predomi- nante. 80 Mas, abaixo da camada de animus formada pelo patriarcado, existe mes- mo em mulheres modernas o mundo da consciência matriarcal, no qual são do- minantes, por um lado, as forças masculinas contidas no arquétipo da mãe e, por outro, o "uroboros patriarcal", um aspecto espiritual específico da mulher. Discernimos aqui uma ordem hierárquica. No ponto mais alto, no nível mais pró- ximo à consciência, ficam os animi pertencentes ao estrato cultural predominan- temente patriarcal. O "Ve lho " . o arquétipo do sentido, não pode ser contado entre os animi do feminino, por ser um arquétipo universalmente humano. No entanto, o sentido que representa não é o sentido em si, mas o sentido em sua forma masculina. A "Ve lha " é também um arquétipo universalmente humano do sentido, ativo tanto no homem como na mulher, mas nela a ênfase é femi- nina. A figura do Velho encontra-se próxima do Self masculino, e a da Velha está próxima do Self feminino. As forças espirituais da Velha, que encarna o es- tágio humano da existência matriarcalmente determinada, são também mascu- linas; isto é, são animi do estrato matriarcal; pertencem ao aspecto espiritual do feminino e, como este, são grandemente encobertos e reprimidos pelos animi patriarcais. Caracteristicamente, esses animi matriarcais aparecem como compa- nheiros da Velha, muitas vezes tomando a forma de animais que falam com sa- bedoria, dotados de poderes mágicos, ou de anões, duendes, diabretes e demô- nios — símbolos da sabedoria feminina enraizada na natureza e no instinto. A figura do uroboros patriarcal beira o informe. Ela pertence ao estrato arquetípico mais profundo das forças masculinas operantes na mulher e está es- treitamente ligada à natureza. Mas esse espírito da natureza assume dimensões cósmicas. Em seu aspecto mais inferior, pode tomar a forma de um animal — cobra, pássaro, touro ou carneiro. No entanto, como espírito demoníaco ou di- vino que se impõe à mulher e que interiormente a fertiliza, em geral toma co- mo seus símbolos o vento, a tempestade, a chuva, o trovão e o raio. Em sua for- ma mais elevada, manifesta-se como uma música sobrenatural que produz into- xicação, êxtase e plenitude dos sentidos, como o encantamento de uma supre- ma claridade e harmonia, uma conjunção com a existência, que subjuga a mu- lher. Usando termos como "plenitude", "subjugar" ou "aniquilação extática", a linguagem retém as poderosas imagens do simbolismo sexual relacionadas, na mulher, com a irrupção do uroboros patriarcal. Mas, a despeito desse aspecto masculino-patriarcal, o simbolismo do uroboros patriarcal transcende a polari- dade do simbolismo sexual e abrange os opostos numa única totalidade, da mes- ma forma que a música abrange tanto as escalas menores, femininas, como as maiores, masculinas. A Grande Mãe está relacionada com esse princípio masculino transpessoal, com esse espírito soberano e fertilizador, enquanto espírito que a domina e que fala em seu interior. Este uroboros patriarcal, enquanto espírito lunar, é um prin- cípio masculino ctônico inferior; um senhor fálico, mitologicamente falando, da sexualidade, dos instintos, do crescimento e da fertilidade, e ao mesmo tem- po um princípio espiritual superior que, sob a forma de êxtases e visões, insu- fla a vidente, a musa, a profetisa e a mulher possuída. Como todas as forças mi- tológicas, esse espírito lunar também está em ação no homem moderno. É uma constelação psíquica fundamental na mulher, nos filhos e nos estratos mais pro- fundos da psique masculina, que são dominados pelas forças básicas do feminino. 81 teros, o respaldo do filhote, necessário para a sobrevivência da espécie, requer que a mãe esteja aberta à orientação inconsciente dada pelo lado espiritual dos instintos. Essa orientação depende do desenvolvimento do Eros ou princípio de relacionamento, por meio do qual o ego participa tanto do meio ambiente como do mundo inconsciente. Essa participação, e a abertura que lhe é prati- camente idêntica, são indispensáveis para o aspecto espiritual dos instintos pas- sar para o primeiro plano e exercer sua influência diretora. No mundo animal, e entre seres humanos cujas vidas são predominante- mente inconscientes, esse princípio espiritual inconsciente faz-se perceber atra- vés da orientação instintiva, das disposições súbitas ou das inspirações que mos- tram o caminho. Formas rudimentares dessa orientação harmônica também se encontram em animais cujo comportamento, no fazer a corte e no educar seus filhotes, depende da ocorrência ou da não-ocorrência de certas disposições. No mundo animal, onde o macho não é, como o homem, especializado no desen- volvimento da consciência, o espírito inconsciente prevalece igualmente em am- bos os sexos, da mesma forma que no homem primitivo predomina a situação psíquica matriarcal dirigida pelo inconsciente. A Criança e o Masculino na Fase Matriarcal Na fase mais precoce da relação primal, prevalece uma situação matriarcal típica, pois a situação psicobiológica da criança depende da presença e da contínua vitalidade de uma relação sustentadora de Eros. Tonalidade e disposição afetivas são a atmosfera na qual a criança vive e na qual o ego e a consciência tomam forma e se desenvolvem. No interior dessa relação sustentadora de Eros da relação primal, a criança experimenta continuamente "intervenções" que se expressam como estí- mulos positivos e negativos pelos quais a criança é dirigida. Em sua qualidade de Eros, a Grande Mãe aparece simbolicamente como o ferninino-maternal, mas em sua função de intervenção e estimulação ela se manifesta como a parte masculina de sua totalidade, como uroboros patriarcal e como animus. Atitudes conscientes da mãe, assim como conteúdos do inconsciente pessoal e coletivo, desempenham um papel nessas intervenções e incursões na existência da criança. Concepções e atitudes do aspecto Logos e da moralidade, bem como inspirações inconscientes e animi jul- gadores da mãe, são comunicados ao filho e o dirigem. Uma vez que todas essas intervenções, que são emocionalmente carregadas, não importa de que estrato se originem, manifestam-se no simbolismo do masculino, o problema da criança é se e em que grau ela se encontra aberta e receptiva a essas intervenções e incursões, ou fechada e não receptiva. Para o bebê, o aspecto animus da mãe, representando a ordem, o princí- pio de nomos, inicialmente faz parte da Mãe Terrível, desde que perturba o bem- estar da criança e fica sendo associado a uma intervenção e assalto à sua existên- cia. Pois, como Freud notou — acertadamente, no que diz respeito a esta fase - para um ser que ainda não atingiu seu desenvolvimento psíquico pleno, cada li- mitação e restrição pode aparecer como uma negação e retirada de amor. Mas, ao resistir a essas intervenções, a criança entra em conflito" com o princípio de adaptação social, do qual a mãe é representante. 84 Mais tarde, a criança adquire uma experiência positiva, junto com a nega- tiva, desse aspecto masculino da Grande Mãe, que então, de maneira simultânea ou sucessiva, passa a conferir tanto prazer como dor ou desconforto. Inconscien- te e conscientemente a criança atribui o prazeroso à "boa mãe" e o desprazero- so à mãe "terr ível" . No desenvolvimento humano, a oposição entre o masculino e o feminino é precedida pela oposição mais genérica entre ativo e passivo, entre estimulador e estimulado, entre o que provoca o sofrimento e aquele que o sofre. Tudo o que perturba o repouso inicial da psique da criança — privações vindas do exte- rior ou dor interna, despertar brusco do sono ou afetos provocados por quais- quer causas, o desconforto da fome, mas também o prazer do movimento, do comer e do evacuar — tudo isso são distúrbios que perturbam o bem-estar geral da criança e sobrecarregam seu ego ainda frágil. Para a criança, bem-estar signi- fica um equilíbrio protegido mas fluido entre ela própria e seu meio ambiente, e entre seu ego e o inconsciente. Assim, na fase mais precoce, o corpo da crian- ça representa ao mesmo tempo uma parte do meio ambiente do ego e uma en- carnação daquilo a que chamamos de inconsciente. É precisamente essa posição intermediária do corpo que faz com que todos os fatores psíquicos, bem como a relação da criança com o mundo e com o meio ambiente, sejam experimenta- dos dentro do simbolismo do uroboros aumentar e metabólico, que é o símbo- lo dinâmico do corpo. Na fase mais precoce, quando o ego ainda possui pouca libido, a sobrecar- ga do ego pode manifestar-se no cansaço que precede o sono; tal cansaço expres- sa exaustão do ego e da consciência da criança. De início, as perturbações surgem para a criança sob dois aspectos: a esti- mulação positiva, que pode conduzir a uma sensação agradável de sobrecarga para o ego, e a estimulação negativa, que conduz a afetos e a uma sensação an- siosa de sobrecarga do ego. Assim, mesmo na fase matriarcal da relação primal, antes do princípio de oposição experimentado nos símbolos do masculino e do feminino ter emergido, formas iniciais do que mais tarde será experimentado na imagem do masculino aterrorizador fazem sua aparição. Quando a consciência da criança é suficientemente diferenciada, a ponto de um fator perturbador refletir-se não apenas sob forma de sintomas mas tam- bém por meio de imagens psíquicas, torna-se evidente que a psique infantil in- terpreta todos os distúrbios do seu estado de equilíbrio, não importando de que tipo, como provenientes do masculino. No sonho da criança — da mesma for- ma que no dos adultos — o estimulador negativo freqüentemente é simboliza- do por animais terríveis, por assaltantes e gatunos. Sejam ou não acompanha- dos por imagens psíquicas correspondentes, muitas das ansiedades infantis co- nectam-se a esse fenômeno de incursão masculina, cuja forma mais precoce po- de ser a perturbação do equilíbrio da criança, de seu estado de repouso físico, à qual até mesmo a criança de peito reage com medo. Esse equilíbrio, natural- mente, constelar-se de modo diferente de acordo com a fase do desenvolvimen- to infantil: quanto mais desenvolvida e diferenciada for a psique, mais oposições ela será capaz de compensar e integrar. Na psique arcaica, que se expressa por imagens, esses distúrbios são vivenciados como se emanassem de uma pessoa, de um arquétipo masculino ou de uma figura de complexo. 85 Embora toda criança experimente tais irrupções perturbadoras no curso de seu desenvolvimento, não apenas a intensidade da irrupção mas também a intensidade da reação psíquica à mesma irá variar em extremo. Fatores cons- titucionais, bem como circunstâncias práticas podem intensificar anormalmen- te essa vivência do "masculino-agressivo", ou atenuá-la, pois trata-se de uma ex- periência que combina elementos que se originam na própria criança com ou- tros vindos de acontecimentos e circunstâncias externas. Um inconsciente muito vivido por disposição constitucional, uma pro- pensão constitucional para afetos que assaltam a criança desde seu interior, ou um ego subdesenvolvido, quaisquer que tenham sido as causas disto, irão inten- sificar o fator "agressivo". 0 mesmo vale para todas as perturbações intensas no desenvolvimento da criança, tais como distúrbios na relação primal, distúr- bios do meio ambiente, deficiências físicas, fome, doença, ou atitudes de ani- mus por parte da mãe (que, por exemplo, podem levar o filho a chorar quan- do tem fome "por uma questão de princípio" ) . A criança experimenta tudo is- so como uma só e única coisa: como uma força hostil, coercitiva, intrusa, pre- potente e, daí, como um fator transpessoal masculino pertencente à Mãe uro- bórica. Na relação primal, todos esses estímulos e distúrbios são vivenciados co- mo se viessem diretamente da mãe, sejam eles realmente causados pela mãe ou por algum fator no inconsciente ou no meio ambiente. Na união dual da rela- ção primal, na qual dentro e fora, meu c teu ainda se encontram indiferencia- dos, não apenas um estímulo no interior da criança, mas também estímulos ex- ternos, tais como luz ou escuridão, vozes ou sons, são incluídos no mundo to- do-abrangente da Grande Mãe. E, inversamente, um estímulo vindo do interior da mãe, sua ternura e seus afetos, suas disposições positivas ou negativas, são experimentadas pela criança como uma perturbação em seu equilíbrio, que é assegurado pela unidade cósmica maternal na qual a criança vive. Independentemente do seu conteúdo, todo fator irruptivo é vivenciado emocionalmente. Na relação primal, que se caracteriza pelos relacionamentos, esse componente emocional é tão enfatizado, que toda compreensão e orienta- ção dependem dele. E até mesmo uma criança um pouco mais velha percebe as intenções da mãe como expressões emocionais de afeição ou rejeição, de senti- mento positivo ou negativo. O componente erótico do relacionar-se é primário: a consciência e seu aspecto de Logos vêm depois e desenvolvem-se sob a direção daquele. Esse poder formativo da relação primal não apenas guia o desenvolvimen- to da consciência da criança, mas também determina toda a sua atitude em re- lação com o meio ambiente. E, não em último lugar, instila na criança os valores espirituais e religiosos acumulados pelo meio cultural, de modo a fazê-la acei- ta-los com naturalidade. Em condições normais, esses valores permanecem in- questionáveis; a criança participa deles inconscientemente. Assim, é na mais pre- coce infância, no curso da relação primal, que os poderes e demônios das festas e ritos, Deus e o Diabo, mas também a aldeia, a cidade ou a terra natal da crian- ç a — e m suma, tudo o que constitui o mundo espiritual do grupo — tomam lu- gar na psique da criança. E somente sob condições especiais tais elementos fi- cam sujeitos à crítica da consciência. 86 de autopreservação, substitui, pela sua agressividade e atividade defensiva a se- gurança que uma relação negativa com a mãe lhe negou. A Crescente Independência do E g o e o Surgimento de Confl itos Na fase urobórica inicial da relação primal, dificilmente se pode falar de uma atividade do ego. Mas com o "nascimento" do Self e do ego, ao fim do pri- meiro ano de vida, a independência da personalidade da criança começa a pro- duz i r conflitos com a mãe da relação primal. Na segunda fase da relação primal, o domínio da mãe como arquétipo ainda é avassalador; mas nesse estágio, o que em termos mitológicos é conhecido como a "separação dos Pais do Mundo" , ou seja, a polarização do mundo em opostos, faz-se presente na psique infantil. As oposições entre eu e " t u " , entre Self e mundo, entre masculino e feminino, surgem lado a lado com as de abrir-se ou fechar-se, aceitar ou rejeitar. De fato, as funções psíquicas de oposição estavam presentes num estágio mais precoce; mas na fase da separação dos Pais do Mundo começam a desempenhar um pa- pel particularmente ativo no desenvolvimento do ego da criança. A té esse mo- mento, os opostos estão de tal forma misturados que, assim como se pode fa- lar de uma Grande Mãe urobórica, pode-se falar de um comportamento urobó- rico da criança. Tanto o menino como a menina reagem ambos de uma manei- ra feminina, passivo-receptiva, e de uma maneira ativa, masculina, e é tão natu- ral para uma menina comportar-se de um jeito masculino para com a mãe, co- mo o é para um menino reagir de modo passivo-feminino em relação ao aspec- to animus da mãe. O desenvolvimento da personalidade da criança traz consigo uma crescen- te ambivalência, que prepara o caminho para o início necessário de um confli- to entre mãe e filho. Ao dividir a imagem da Grande Mãe em imagens da Mae Boa e da Mãe Terrível, a psique infantil promove a polarização do mundo, a se- paração dos Pais do Mundo no interior do "Grande Redondo" maternal. Ganhan- do independência progressivamente, a criança chega a sentir que a mãe tanto é abandonadora e rejeitadora como é acolhedora e continente. Ao mesmo tem- po, ainda sob o domínio do arquétipo da mãe, as oposições entre bom e mau, entre amistoso e hostil, entre agradável e desagradável, entre ego e não-ego, en- tre consciente e inconsciente, começam a surgir, assim como o fazem as oposi- ções mitológicas entre noite e dia, entre céu e terra, entre luz e sombra. Esta di- ferenciação ocorre na esfera maternal e no interior da relação primal enquanto lar protegido para a existência da criança. Mas mais independência significa sempre desamparo, e todo afastamen- to, mesmo que apenas aparente, da criança em relação à sua posição de seguran- ça, é vivenciada como solidão. No entanto, muito embora a criança nesse está- gio volte as costas para a mãe e se dirija para o mundo, e então ache que a mãe é má e rejeitadora, isto não ameaça fundamentalmente o sentimento central de segurança da criança, uma vez que a base positiva da relação primal tenha sido lançada. Agora a identidade original diferencia-se mais e mais, e as figuras da mãe pessoal, da mãe-mundo, da mãe-como-mundo e da mãe-noite, mãe como incons- 89 ciente, devagar vão se separando, entram em conflito umas com as outras, al- ternam-se. Normalmente, o sentimento de confiança adquirido na relação pri- mal translada-se, desde o início, para a atitude da criança em relação à mãe-noi- te do inconsciente; uma criança que se sentiu amparada na relação primal en- trega-se, livre de ansiedade, ao sono que oblitera a consciência; adormece com um senso de segurança que perdura pela vida adulta, mesmo que esse adulto tenha reações de ansiedade face a outras extinções de sua consciência egóica. Uma relação assim positiva para com a mãe pessoal e para com a mãe-noite tam- bém se expressa na atitude da criança para com o mundo, que vê como sendo o mundo-mãe e com o qual se confronta primariamente numa atitude de con- fiança. Esse mundo-mãe, que satisfaz a crescente curiosidade da criança e a pra- zerosa tendência de seu ego para expandir-se, é uma coisa boa. Toma-se má quan- do a criança fica cansada ou desapontada em suas solicitações ao mundo. Nes- se caso, quando o mundo-mãe toma-se escuro e hostil, a criança volta-se mui- to naturalmente para sua mãe, ou regressa para a mãe boa do sono e da penum- bra, que tem a ver com a mãe pessoal. Mas, quando sucede o contrário, quan- do a mãe pessoal é "má" , a criança volta-se para o mundo e seus prazeres, nos quais deposita a mesma confiança: como se fosse a sua mãe pessoal. Assim, nessa fase de seu desenvolvimento, a criança move-se no interior do campo maternal estabelecido com sua mãe pessoal, que é associada com uma parte do mundo exterior e que se tornou a mãe-e-senhora-da-cama,-do-quarto, -do-lar, bem como a mãe-mundo do mundo exterior. De forma alternada, a crian- ça é atraída e repelida por esses dois pólos e através de ambos conhece o " s im" e o "não " , o bom e o ruim, em outras palavras, os opostos. Essa ambivalência é a primeira aparição das atitudes humanas em relação ao interior e ao exterior necessárias para a experiência do mundo como um to- do e que mais tarde se irão tornar habituais sob a forma de atitudes introverti- das e extrovertidas. Na primeira fase de uma relação primal normal, a mãe in- tegrou as necessárias negativas ou rejeições pela predominância do lado positi- vo de sua existência. Agora então, com o desenvolvimento do ego da criança, as atitudes "terríveis" da mãe são progressivamente intensificadas, mesmo quan- do, na realidade, isto é, objetivamente, a mãe permaneça como uma instância positiva, integradora. Só desta maneira a criança pode desenvolver a necessária oposição à própria mãe, que por fim termina em seu afastamento dela e do mun- do matriarcal. Este é o "matr ic ídio" mitológico, que torna possível a transição para o arquétipo do pai. Na fase da relação primal, na qual o instinto alimentar e o simbolismo do uroboros metabólico são dominantes, a ligação do filho com a mãe dá-se de for- ma amplamente localizada no seu corpo. 0 corpo do filho como um todo e a mãe como Self são os pólos do campo unitário no qual a relação primal é per- cebida pela primeira vez. O sentimento corporal unitário da criança é o deter- minante para sua existência vegetativa; sua pele, e a zona oral da mesma — mais tarde a zona anal também — são campos privilegiados de uma experiência total, cujas múltiplas facetas ainda não estão desenvolvidas. Mas esse sentimento cor- poral unitário é polivalente por natureza, pois contém fatores corpóreos, psíqui- cos e espirituais, individuais, automórficos e sociais. 90 Nesse estágio, a Grande Mãe aparece predominantemente como a "Senho- ra das Plantas", a deusa do crescimento e da nutrição. O mundo e o tempo que lhe cabem são determinados pela fome e pela saciedade, e a oposição entre agra- dável e desagradável, que fundamenta tantas outras polaridades posteriores, é vivenciada primariamente com base na necessidade alimentar. O ritmo alimen- tar também determina o adormecer e o despertar, e no começo essa ordem ali- mentar chega a sobrepujar a do dia e da noite, que só se imprime na criança pou- co a pouco. Tanto quanto sabemos, a fase escura do período intra-uterino em- brionário não é interrompida pela consciência ou pelo despertar. Esta polarida- de se estabelece com o nascimento, quando, sob a pressão da fome, a consciên- cia faz suas primeiras aparições esporádicas. A criança liga as experiências de saciedade, de calor, de vigília, de cons- ciência e de claridade com a mãe, e esta conexão é a base para o senso de segu- rança que a criança adquire na relação primal. Nessa fase, mãe, calor, sacieda- de, prazer, e a sensação de ser uno consigo mesmo encontram-se fortemente li- gados à experiência da luz e da vigília. Mas, de início, a Grande Mãe provedora, enquanto luz, está mitológica e simbolicamente relacionada com a lua, com a luz da noite. Pois, quando a criança emerge da escuridão do período embrioná- rio intra-uterino, não entra imediatamente na polaridade de um mundo de dia- -e-noite, mas tira cochilos num mundo de contínuo crepúsculo, interrompido apenas pelo ritmo no qual a mãe — como a luz que traz aumento, segurança e calor — interrompe o sono da criança. A criança que dorme a noite toda, e está quase o tempo todo adormecida durante o dia, ainda não entrou na ordem diur- na do mundo adulto. É o instinto alimentar que perturba o sono crepuscular, e força a criança a crescer num mundo polarizado. Pois, perturbando e acordando a criança, a fome é o seu primeiro estímu- lo para a consciência. O despertar e a consciência são as primeiras experiências de polaridade às quais a criança é exposta; conseqüentemente, ficam associadas a desconforto. Enquanto, no período embrionário intra-uterino, o ser alimen- tado, dormir, ter abrigo na escuridão do inconsciente, tudo isso era idêntico, as mudanças ocorridas com a entrada da criança no mundo, e até mesmo no cam- po unitário da relação primal, fazem o princípio da oposição começar a exercer sua influência diferenciadora. A inicialmente inevitável coincidência de desper- tar, consciência com fome-desconforto, é modificada pela mãe. E ela também quem por primeiro possibilita que o filho faça a associação, tão característica do homem, entre prazer e consciência, pois é através dela que a experiência do despertar, da luz e da consciência liga-se com a de saciedade, de prazer, de ca- lor e de segurança, que em muito suplanta a do desconforto do acordar e da fome. O senso de segurança e proteção na escuridão do inconsciente é uma ex- periência primária pré-humana; quando uma criança cai de novo no sono, está retornando ao estado primário de estar contido na escuridão urobórica. Em ou- tras palavras, o problema não é o de que uma criança deveria dormir sem ansie- dade, mas sim que deveria ser capaz de despertar sem ansiedade. Por ser a mãe- -lunar da relação primal o veículo da consciência, da luz em meio ás trevas, por ser também ela quem traz saciedade e segurança, um distúrbio precoce da rela- ção primal traz sempre consigo um distúrbio no desenvolvimento da consciên- cia. Pois, num desenvolvimento normal, a consciência dá à criança uma vivên- 91 infância. Ao mesmo tempo, esta falta de contato corporal na infância leva à su- persexualização do homem moderno, cujo anseio por contato com o corpo de outro ser humano só pode ser atendido através do sexo. O porquê de o homem de hoje em dia, em média, ser t i o sexualizado — fato demonstrado pelos retra- tos de mulheres nuas e seminuas com que nos deparamos a cada esquina — só pode ser compreendido por um estudo do desenvolvimento específico do ho- mem na nossa cultura, e em particular das circunstâncias que cercam a sua saí- da da relação primal. Por outro lado, deve-se também indagar se as deficiências e neuroses infantis, tão características do homem ocidental, não são em parte responsáveis pelo desenvolvimento de uma cultura e de uma ciência específicas. Sua curiosidade exacerbada e reorientada é conduzida por outros canais e, pre- sumivelmente, sublimada. Sua perda da natureza é compensada por um aumen- to da taxa artificial de cultura. O desmame é não só um passo crucial no processo de libertação da esfe- ra materna, mas é também o primeiro passo da criança em direção à cultura do grupo, ao seu meio ambiente. Para as mães de culturas primitivas, que freqüen- temente amamentam seus filhos ao seio durante anos, o desmame não represen- ta um momento especial nem uma quebra. Mas, na moderna sociedade ociden- tal, a mãe tem seu campo de atividade, não apenas em casa e nas suas adjacên- cias, como é o caso ainda entre os camponeses, mas freqüentemente sai para tra- balhar; assim, o desmame é necessariamente um ponto crítico. Horários regula- res de alimentação precisam substituir muito cedo a satisfação do ritmo alimen- tar da criança; o desmame em si pode ser prematuro; ou a criança pode ser en- tregue a uma pessoa estranha ou a uma instituição que substitui a família. Mas, em qualquer desses casos, a criança entra necessariamente na cultu- ra de seu grupo e nas atitudes fundamentais que este prescreve; a criança é ex- posta — em geral cedo demais — ao processo de assimilação da cultura que irá determinar toda sua vida futura. A influência de uma mãe sobre o desenvolvi- mento da criança depende em alto grau do fato de ela própria ter sido molda- da pelo seu grupo para formar uma personalidade sadia ou doente, e pelo fato de suas atitudes conscientes e inconscientes de animus irem ou não contra a na- tureza do desenvolvimento do filho, especialmente quanto às necessidades da relação primal. Higiene, Postura Ereta e o Prob lema do Mal Numerosas como são as possibilidades de distúrbios infantis conectados à relação com a mãe, não há dúvidas de que em nossa cultura o treinamento da higiene anal representa um importante ponto crítico no desenvolvimento da crian- ça. Na primeira fase do seu desenvolvimento, a zona anal está integrada à exis- tência como um todo; suas estimulações de forma alguma diferem da totalida- de do corpo. O excremento é aceito como uma parte do Self Corporal. De acor- do com a lei da pars pro toto do mundo primitivo, cada parte do corpo e todas as suas excreções ou produtos residuais — unhas, cabelos, restos de comida, etc. — são tidos, entre os povos primitivos, como iguais ao corpo inteiro e ao indi- víduo, isto é, ao Self Corporal. Esta identidade é a base de um grande número 94 de atitudes mágicas, que fazem uso dessas partes do corpo. Na fase do Self Cor- poral, na qual o arquétipo da totalidade como "uroboros alimentar" — uma to- talidade viva realizada na ingestão e excreção em todos os níveis corporais — é o símbolo dominante, cada função desse corpo é viva e sagrada. Para o homem moderno, esse conceito é talvez mais claramente ilustrado pelo simbolismo do "sopro " , que na linguagem e na arte — o sopro da vida ou o sopro de Deus, por exemplo — é ainda um significativo símbolo da substância da vida e da alma. No mesmo sentido sabemos que, na fase em que o Self se manifesta pre- dominantemente como Self Corporal, todas as substâncias corporais, não ape- nas aquelas que consideramos como resíduos, tais como cabelos, unhas, urina, fezes, sangue menstrual, mas também a saliva, o suor, o esperma e o sangue, são carregadas de mana, de alma e de poder mágico, e estão intimamente relaciona- das com a vida do indivíduo. Por essa razão, o significado dessas "substâncias com alma" foi preservado até hoje, na superstição e na medicina popular. Análoga a essa condição filogenética, descobrimos ontogeneticamente que, para a criança, as fezes em particular são não apenas uma parte essencial de si mes- ma, mas sobretudo representam algo que ela fez criativamente e com as quais está conectada. Esta qualidade criativa do pólo anal é ilustrada pelo fato de, em muitos idiomas, " fazer" é um termo popular para defecar. Numa relação primal positiva, essa unidade criativa se preserva; defecação é ao mesmo tempo uma conquista positiva e um dom imerso na atmosfera emocional do vínculo entre mãe e filho. A conexão entre o oral e o anal como um campo vivo de ingestão e excre- ção — cujos dois pólos são interdependentes e de igual valor — é arquetípica. Em muitos mitos, por essa razão, o excremento, conectado com o telúrico, é o ponto de partida para uma vida criativa. Não apenas o alimento e, é claro, em especial os tubérculos, podem ser imaginados como provenientes do excremen- to , como é o caso em muitas regiões da terra, mas como deuses também, uma crença que é encontrada no Japão. 5 O excremento cor de terra enterrado no solo proporciona o crescimento, e de uma matéria podre e malcheirosa surge uma vida nova, renascida; e inver- samente, alimentos de fragrante odor viram fezes, que são devolvidas à terra e ao ciclo vital do qual o homem é parte integrante. Assim, em muitas culturas, a conexão entre excremento como uma parte viva, orgânica do corpo, e a ter- ra viva, orgânica, na qual aquele é enterrado, é uma conexão tida como certa. Mesmo nos lugares em que não tem ou só tem pouca importância econômica como fertilizante, o esterco é considerado uma substância mágica e significati- va. Mesmo onde é visto como algo sujo, retém um significado mágico. No ní- vel matriarcal, pré-genital, o oral e o anal se fundem um no outro como vida e morte; um está indissoluvelmente ligado ao outro. Na visão de mundo com ênfase no vegetativo — presidida pela Grande Deu- sa como Senhora da vida de todas as plantas - a morte, a podridão, a corrup- ção malcheirosa não são sentidas como hostis à vida. Por causa da vida, morte e renascimento são considerados como um processo contínuo, e a importância do indivíduo não está ainda superenfatizada; a morte não é vista ainda como um fim nem mesmo como uma crise perigosa. 6 Até em nossa moderna civilização ocidental, essas mesmas condições se aplicam à primeira fase da relação primal. Em todas as suas funções, em todas 95 as partes e manifestações do seu corpo, a criança é um todo integral e seu Self Corporal ainda não está dividido. O amor da mãe - desde que normal — não ma- nifesta desgosto com relação ao corpo do filho ou às suas funções corporais; a mãe aceita as necessidades naturais da criança como auto-evidentes e não inter- vém para as regular. Não só na cultura ocidental, entretanto, mas também num grande núme- ro das assim chamadas culturas primitivas, a aversão ao anal parece ter ocorri- do muito cedo. Naquelas em que isso ocorre, o treinamento anal da criança trans- formou-se num ponto crítico crucial. Normalmente esse treino não deveria co- meçar senão quando a criança já estivesse apta a exercê-lo sem dificuldade. Mas com freqüência, como resultado de atitudes cultural ou individualmente neu- róticas, o treino para o toalete começa cedo demais. Essa interferência no cres- cimento e desenvolvimento da criança é in-natural e pode ter conseqüências de- sastrosas. Um estágio crucial no desenvolvimento da criança começa quando uma parte do sistema nervoso motor, que até então não tinha entrado em funciona- mento, completa seu amadurecimento e pode ser subordinado à vontade do ego. Mas este ponto no desenvolvimento do ego, que tem sua manifestação mais vi- sível no sentar, no ficar de pé e, posteriormente, no andar, tem estágios preli- minares significativos, pois o sistema motor amadurece gradualmente e todas as suas partes não amadurecem ao mesmo tempo. Assim, o poder de fechar o esfíncter anal resulta de um processo de cres- cimento que, como o agarrar, o falar, o morder, o ficar de pé e o andar, tem seu tempo natural próprio. Apesar de esse tempo de desenvolvimento estar biolo- gicamente imerso na vida das espécies, existem variações individuais. Uma crian- ça fala, fica de pé e anda mais cedo do que uma outra sem ser nem um pouco anormal; e a higiene, da mesma forma, também está sujeita a variações individuais. Existe uma conexão essencial entre o amadurecimento do sistema nervo- so motor, as primeiras manifestações de um ego independente e a aquisição da postura ereta. Amadurecimento motor significa que partes importantes do cor- po passam a conectar-se ao ego e a ficar gradualmente subordinadas a ele. Mas, do ponto de vista da imagem corporal, esse ego que comanda e age é um ego-ca- beça, pois no homem a cabeça é em alto grau o veículo da orientação sensorial no mundo. O tamanho extraordinário da cabeça em comparação com o resto do corpo durante a infância corresponde ao papel do ego ativo, que alcança e, posteriormente, penetra no mundo, e a cabeça é vivenciada como o símbolo cen- tral da atividade do ego humano, como os cefalópodes nos desenhos de crianças deixam claro. No começo da vida do bebê, o pólo oral é principalmente passivo e recep- tivo, e expressa seu aspecto ativo ou antagônico apenas na sucção. Quando nas- ce o primeiro dente, a atividade oral, manifestada especialmente em formas pre- liminares de fala, intensifica-se muito. Ainda assim, não se pode chamá-la, estri- tamente falando, de agressiva: antes, aponta mais para um novo estágio no do- mínio que a criança passa a ter sobre o mundo. Mantendo-se no simbolismo ali- mentar, que é dominante nesta fase, comer, morder e mastigar são uma forma essencial de assimilação do mundo. 96 flitos - governando o desenvolvimento da criança, no qual o ego ainda era su- bordinado e o Self da mãe desempenhava a liderança. Agora, como Senhora dos Animais, tomou-se a deusa de uma existência mais altamente polarizada e com- plexa, na qual o ego e a consciência da criança encontram-se em conflito com impulsos e tendências que são rejeitados pelo superego, enquanto representan- te do cânon cultural do grupo. No Plano psíquico, a figura humana da Grande Deusa que governa os ani- mais significa que o Self encarnado na mãe (isto é, o Self Corporal, que deter- mina a totalidade do corpo) ultrapassa o conflito entre as diferentes tendências no interior da personalidade e como personificação do mundo-mãe transcende e integra o antagonismo entre a personalidade da criança e a comunidade. Nos casos em que a relação primal é positiva, existe um equilíbrio posi- tivo entre o ego e o " t u " social; um não é reprimido às expensas do outro. Um ego com desenvolvimento normal não se torna um expoente do inconsciente, com instintos e impulsos contrários à sociedade, nem se torna o expoente da sociedade, opondo-se ao inconsciente, a que reprime e inibe. Tendo por base uma relação primal positiva, o homem desenvolve um sistema psíquico centra- do em torno de um Self e de um ego conjugados pelo "e ixo ego-Self". Este ei- xo é a base da tendência à compensação e ao equilíbrio entre o ego e o incons- ciente, e também entre o mundo e o indivíduo. Mas a polarização do mundo característica desse estágio no desenvolvimen- to humano corre em paralelo com a separação entre os sistemas psíquicos cons- ciente e inconsciente. Esta é a forma mais evidente de oposição entre o ego e o não-ego. A correlação entre essa separação e o corpo da criança provoca os se- guintes esquemas característicos da orientação arcaica do mundo: por um lado, cabeça-ego-em-cima-céu, e por outro, pólo inferior, instintos-escuridão-terra. Por essa razão, a situação conflitante da criança corresponde, por um lado, à po- larização da psique em sistema de cabeça, vontade, consciência e, por outro, ao mundo conflitante do inconsciente e seus instintos. Neste desenvolvimento, o pólo anal, como primeiro representante do as- pecto ctônico, desempenha um papel crucial, pois enquanto o pólo inferior do corpo é mais tarde representado simbolicamente pelo sistema genital, agora, quer dizer, na fase anterior a isso, ou seja, na fase do simbolismo alimentar, é repre- sentado pela zona anal. Em grande número de mamíferos, a orientação pelo ol- fato restringe-se à terra e às secreções corporais que nela se depositam. Os odo- res de suor, urina, fezes e substâncias sexuais são nesse caso a base essencial pa- ra a orientação no campo social e no mundo. Quando a criança se senta, essa orientação pelo olfato relacionada com a terra recua e é encoberta por uma orien- tação visual, que se volta para o leste, para onde nasce o sol, e liga-se ao simbo- lismo da luz e da consciência. Com isto não se quer dizer que a orientação visual fique limitada ao ho- mem; ela é bem mais desenvolvida entre os pássaros. Nem se pode dizer que a orientação pelo olfato desaparece no homem. Mas a orientação mais alta, pela visão, nesta fase, entra em conflito com a orientação mais baixa, pelo olfato. Aqui também ocorre a polarização, o que não acontecia nos estágios anteriores da infância. Agora os odores anais são rejeitados como desagradáveis, e na ver- dade tudo o que se situa atrás e embaixo passa a ser visto como uma personifi- 99 cação do desagradável, do feio, do pecaminoso e do mau. Trata-se de uma iden- tificação para a qual poderiam ser catados muitos exemplos da linguagem, da religião e dos costumes. Especialmente numa cultura patriarcal, esta polariza- ção é ilustrada pela associação entre o mau cheiro do demônio, o l ixo e o excre- mento, da mesma forma como os odores corporais e sexuais, que posteriormen- te são rejeitados, pelo menos oficialmente, pela cultura, são simbolizados pela associação entre o demônio e o bode. Isto não significa que a orientação ctônica pelo olfato desapareça. Mas so- brevive principalmente no reino da superstição, onde o cânon de valores patriar- cais não penetrou; em outras palavras, em vestígios dos assim chamados paga- nismo e primitivismo. Assim, sabemos que a magia faz grande uso da conexão simbólica entre cheiro, ar e espírito; e a conexão entre cheiro e suor, entre san- gue menstrual e excremento, de um lado, e a personalidade corporal de outro, freqüentemente é a base da magia, especialmente das mágicas de amor. O declí- nio desse mundo foi em grande parte resultado da repressão imposta pelo "mun- do espiritual superior" judeu-cristão e patriarcal; isto é evidente no fato, entre outros, de que até mesmo essa esfera superior permanece ligada ao mundo in- ferior e terreno do olfato. Também os deuses apreciam o odor das oferendas na fogueira, dos incensos e perfumes, que, como sabemos, contêm substâncias quí- micas que também estão presentes nos cheiros desagradáveis e rejeitados. Mas, embora a fragrância desempenhe um importante papel tanto no mundo primi- tivo como em nossa própria civilização, muitas pessoas atualmente hesitariam em chamar a atenção para o cheiro agradável ou desagradável de alguém, ape- sar de ninguém envergonhar-se de falar da aparência agradável ou desagradável de outra pessoa. De qualquer forma, fica ainda o fato de que, "não suportar o cheiro de alguém" (nicht-riechen-Können) é a expressão para indicar uma aver- são profunda e freqüentemente instintiva. A rejeição do pólo anal imposta pela sociedade é tão disseminada que - como nos relata Malinowski - os nativos das ilhas Trobriand citam o fato de os pais, e especialmente o pai, terem limpado uma criança e removido seus ex- crementos como um sinal especial de amor paterno e materno, pelo que a crian- ça contrai com eles uma dívida de gratidão. 7 E mais, nossa arte e nossa moda mostram que, mesmo em nossa cultura, a região posterior do corpo é considerada — pelo menos não oficialmente - uma zona de atração erótica. Como ficamos sabendo desde Freud, nem os cheiros nem as substâncias ligadas à zona anal são desagradáveis em qualquer sentido primário; o desagrado é cultivado, de modo bastante consistente por certo, pe- lo mundo patriarcal, que enfatiza tudo o que é "superior", espiritual e não-sen- sual, e rejeita tudo o que é " inferior", corporal e terreno. Assim, na primeira fase da relação primal, o pólo anal é integrado positi- vamente, mas depois passa a ser objeto de uma exclusão e desvalorização mo- ral proveniente da hostilidade simbólica entre o mundo do firmamento celeste e o mundo terreno. As conexões entre o pólo anal e as artes plásticas, a escul- tura e a pintura, foram descobertas pela primeira vez pela Psicanálise, que no entanto as interpretou de modo falho, redutivamente. Na verdade, a criação ar- tística não é, em condições normais, uma sublimação do estágio anal reprimi- do, mas uma entre muitas das continuações criativas de um estágio anal que fo i 100 preservado e integrado no desenvolvimento global do indivíduo. O prazer natu- ral dado por substâncias plásticas, que a criança experimenta primeiro com as fezes, depois com a lama e com a argila, é um pré-requisito inconsciente univer- salmente humano para a expressão plástica e para o uso de materiais plásticos pelo adulto. Não é por acaso que a pintura do corpo, a pintura mural e a cerâ- mica estão entre as primeiras manifestações artísticas da humanidade. Em to- das elas, o elemento anal de lambuzar e amassar, e o uso de cores excrementais desempenham um papel decisivo. Com a polarização das duas zonas corporais opostas, a auto-avaliação da criança também fica polarizada. De início, o pólo inferior de seu corpo, e tam- bém o excremento, eram "amados" pela mãe; eram uma parte criativa da per- sonalidade da criança como um todo, e a criança estava pronta para entregar essas partes valiosas de sua totalidade-corpo, com a qual se encontrava identificada, à sua mãe. Agora ocorre uma rejeição do pólo inferior do corpo e de sua reali- zação criativa. Se essa reavaliação se efetua dentro do tempo próprio da crian- ça, se ocorre quando a criança está assumindo a postura ereta, desenvolvendo o pólo encefálico, adquirindo domínio sobre o seu sistema nervoso motor e apren- dendo a exercer sua vontade, a conversão será livre de afetos ou distúrbios e ade- quada ao desenvolvimento social natural da criança; como treinamento de higie- ne, acontecerá sob a proteção de uma relação primal positiva. Limpeza e regu- laridade intestinal são, no começo, dádivas do amor da mãe e realizações que enchem a criança de orgulho, mas que recuam para o segundo plano quando ou- tros desenvolvimentos se tornam mais acentuados. A avaliação inicialmente po- sitiva do pólo anal é encoberta por uma nova avaliação do pólo encefálico, mas a criança não desenvolve em relação a seu corpo nenhum desgosto exagerado que ponha em risco a sua auto-avaliação. A polarização entre em cima e embai- xo , entre limpo e sujo, entre pólo da cabeça e pólo anal, ocorre normalmente e a criança não desenvolve uma atitude neurótica em relação às suas funções cor- porais naturais. Esta polarização, que implica uma reavaliação do mundo, assim como do corpo e de suas funções, é a base da primeira fase do superego, ou seja, do de- senvolvimento de uma autoridade moral na psique, que pode entrar em confli- to com a outra parte da psique — a parte ctônica-anal ligada ao pólo inferior do corpo. As primeiras fases da formação desse superego ocorrem dentro da rela- ção primal positiva, na qual o Self da mãe e o Self da criança, que o segue, se encontram integrados. Conseqüentemente, a autoridade avaliadora do supere- go não entra em conflito com o Self da criança ou com o Self Corporal. Na in- tegração com a mãe da relação primal isto leva, sem dificuldades, à aceitação por parte do filho dos primeiros valores culturais. Pois a limpeza e a correspon- dente polarização do corpo e do mundo em bom e mau formam uma base es- sencial para toda cultura. Por essa razão, a linguagem aplica os mesmos termos tanto para o corpo como para a esfera ético-religiosa, a saber, limpo e sujo, em- bora diferentes culturas possam considerar coisas muito diferentes como lim- pas ou sujas, permitidas ou proibidas. E os ritos de purificação e de abluções de todas as religiões foram de início purificações não só da alma mas também do corpo. 101
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