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Guias e Dicas
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A Cultura na Mente e na Sociedade. Fundamentos de uma Psicologia Cultural, Resumos de Psicologia

Trata-se da edição brasileira de ― Culture in Minds and Societies

Tipologia: Resumos

2019
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Compartilhado em 18/09/2019

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Baixe A Cultura na Mente e na Sociedade. Fundamentos de uma Psicologia Cultural e outras Resumos em PDF para Psicologia, somente na Docsity! 1 JAAN VALSINER A Cultura na Mente e na Sociedade. Fundamentos de uma Psicologia Cultural. Tradução por Ana Cecília de Sousa Bastos 2 SUMÁRIO Prefácio por Maria Lyra Prefácio do Autor à edição brasileira Prefácio do Autor à edição original Capítulo 1 Aproximações à Cultura: Bases Semióticas da Psicologia Cultural Capítulo 2 Sociedade e Comunidade: Interdependência de Teias Sociais Capítulo 3 Fabricando Oposições: Self Dialógico e Dualidades na Construção de Significados Capítulo 4 Comunidades mínimas e sua organização: grupos de parentesco, famílias e formas de casamento Capítulo 5 Totalidades culturais em movimento. Manutenção e travessia de fronteiras no universo semiótico Capítulo 6 O pensamento enquanto um processo cultural 5 contrário, existe sempre um laço constante e dinâmico entre o sujeito, individual e único, e o coletivo e cultural. Este elo é justamente realizado pela atividade semiótica que integra e constrói nossa psique. Apoiado no processo semiótico, que fornece os fundamentos da Psicologia Cultural, o livro visita a sociedade, seus pequenos grupos e a dinâmica de sua constante transformação, e os indivíduos ou selves através do processo de construção de significados; aborda, assim, a cognição e o afeto como, necessariamente inseridos culturalmente. Finalmente, apresenta-nos uma metodologia para a Psicologia Cultural, coerente com princípios metodológicos firmes, ao adotar o significado da metodologia científica, segundo a melhor tradição européia, que exige coerência entre as bases teóricas propostas e a leitura do mundo empírico. Apresenta-nos, assim, uma forma de estudar a cultura na mente das pessoas e na sociedade, através da pesquisa idiográfica de estudos sistemáticos de casos, sejam estes indivíduos ou fatos culturais coletivos. Para além do dilema qualidade versus quantidade ou individual versus freqüentístico, aponta-nos a generalização a partir do caso único que resulta da modelagem (lógica ou matemática) do fenômeno empírico, respaldada na teoria com que trabalhamos. Assim, a generalidade decorre da teoria e não da estrutura empírica ditada pela indução pura. Confesso que parto de um viés da Psicologia do Desenvolvimento, mais especificamente, do fenômeno da transformação dos processos que caracterizam o que chamamos de desenvolvimento humano. Confesso, também, que me insurjo contra os limites acadêmicos tradicionais, que separam as disciplinas, por exemplo, aquelas de cunho biológico e as outras de cunho sócio-cultural. Encontrei em Jaan um parceiro nesta empreitada. Ditado pela liberdade de criar e pela liberdade de se insurgir, Jaan Valsiner nos apresenta os Fundamentos de uma Psicologia Cultural no seu processo de construção e organização na mente das pessoas e na sua constante criação e recriação na sociedade em que vivemos. Mais ainda, ultrapassando os ditames metodológicos tradicionais do momento em que vivemos na Psicologia ele nos coloca em liberdade para aproximações possíveis com outras ciências, como o faz em relação à Antropologia, Sociologia, História, Semiótica, Filosofia e, claramente, a Ciência do Desenvolvimento. De acordo com o próprio pensamento de Jaan Valsiner, ao invés de nos apresentar mais uma proposta de 6 ortodoxia, tenho a certeza de que este livro nos convida a expandir e propor avanços na Psicologia Cultural. Maria C.D.P. Lyra Recife, 20 de janeiro de 2011 Prefácio do Autor à Edição Brasileira Movendo-se em Ondas: Cultura na Mente e na Sociedade A Psicologia – em seus dois séculos de história como ciência – não conseguiu explicar a psyche humana. Ao longo desse período, tentou de todas as formas possíveis reduzir os fenômenos psicológicos - ao comportamento, à fisiologia, e até mesmo aos genes. Além disso, tentou diluir a psyche, ao situá-la no campo social dos fenômenos, onde as pessoas podem descobrir que são ―textos‖, ou marionetes, das instituições sociais. A psyche tem sido transformada, com notável velocidade, em outra diferente coisa. Na Psicologia, existe uma desconfiança profunda em relação à subjetividade humana – embora seja justamente essa subjetividade, no sentir, pensar e agir, que torna possível toda inovação humana. Ao mesmo tempo em que evitava a psyche, a psicologia vinha tentando se livrar do fenômeno central que possibilita sua própria existência – e a de qualquer outra ciência: a cultura. Cultura, na forma de uma semiosfera onde objetos e eventos significativos nos circundam e se tornam refletidos em nossas mentes, é o pré-requisito para qualquer sistema reflexivo sobre a natureza e 7 sobre nós próprios. Toda a ciência é um artefato cultural: sem a cultura, nenhuma ciência pode existir. A Psicologia pode existir como ciência porque existe a cultura. No entanto, por muito tempo, a psicologia permaneceu sem considerar a cultura. Ou, mais precisamente: tem havido esforços recorrentes de construir a psicologia de modos que tornam a cultura central ao empreendimento científico: na década de 1860, surgia a Völkerpsychologie de Moritz Lazarus e Chaim Steinthal; no início do século XX, a psicologia popular (Folk Psychology) de Wilhelm Wundt e as perspectivas semióticas de Karl Bühler e Lev Vygotsky; na década de 1950, a tradição da ―cultura e personalidade‖ na antropologia e, já em nosso tempo, o campo da psicologia cultural, que acaba de emergir. Todos esses esforços prévios falharam. Agora, no começo do século XXI, podemos observar novamente o interesse por trazer a cultura para dentro da psicologia. Teremos êxito? Só o tempo pode dizer; mas, neste mundo crescentemente globalizado, pode haver uma chance. O avanço que se coloca atualmente na psicologia cultural é o desenvolvimento intensamente internacional de um novo tipo de ciência: interdisciplinar, desenvolvimental e social (Valsiner, 2009). Seu ponto de partida é a primazia da natureza qualitativa dos fenômenos, tanto em sua estrutura como em seu desdobramento dinâmico. Isto silencia a perspectiva tradicionalmente adotada em psicologia, que advoga a ―mensuração‖ de certas propriedades baseadas no senso comum: traços de personalidade, ou quaisquer outros resultados obtidos por ―medidas padronizadas‖. Ao invés, o campo está aberto para novas direções, revisitando a metodologia de Frederic Bartlett (Wagoner, 2012) e de Lev Vygotsky (ver o capítulo 8 do presente livro), considerando as implicações de temas como alteridade (―otherness‖) (Simão & Valsiner, 2007) e pobreza (Bastos & Rabinovich, 2009). Cultura é um campo dinâmico – semelhante a um oceano – onde as ondas se movem dinamicamente, modificando a forma da paisagem em que nos 10 Prefácio do Autor Este livro - construído a partir do know-how de diversas disciplinas: a ciência desenvolvimental, a antropologia, a sociologia, a história, a semiótica, a filosofia - é uma aventura em direção à síntese de idéias no campo da psicologia cultural. O seu foco básico é profundamente fenomenológico: é a experiência humana vivida, mais do que o comportamento, que se toma como a base para a ciência da psicologia. Minha perspectiva insere-se na tradição que vê a experiência humana enquanto realidade subjetiva culturalmente organizada e constantemente recriada de modo pessoal (ver The Guided Mind, Valsiner, 1998a). As raízes da presente perspectiva encontram-se, por um lado, no quadro de referência personológico de William Stern e, por outro, na tradição cultural-histórica de Lev Vygotsky e Alexander Luria. Em sua presente formulação, as idéias neste livro correspondem a uma versão da psicologia semiótica que é baseada na semiótica de Charles S. Peirce e na sematologia de Karl Bühler. O resultado é uma outra construção de uma teoria psicológica que reivindica ser científica (no sentido no velho e bom termo alemão Wissenschaft) e universal, diante de fenômenos psicológicos completamente singulares. Ao longo de sua história, a psicologia tem lutado constantemente para provar seu pertencimento ao panteão da ciência. Ao fazê-lo, contudo, adota uma compreensão superficial quanto à objetividade de seu foco de estudo (no caso da tão difundida noção de que a psicologia estuda comportamento) ou de seus métodos. Nenhum dos esforços empreendidos para tal fim alcançou sucesso. No caso do tema do presente livro, a psicologia cultural, enfrentamos a tarefa mais complexa e mais fascinante de sugerir novas direções para a construção de uma disciplina que é geral quanto ao conhecimento básico, ao mesmo tempo em que representa particulares humanos em toda a sua riqueza. 11 A psicologia pode tornar-se ciência na medida em que aceita completamente a centralidade da experiência humana vivida dentro de seus contextos sociais e em toda sua singularidade. Ainda assim - enquanto uma Wissenschaft - constrói conhecimento abstrato, generalizado. Eu não subscrevo a reivindicação empiricista presente em grande parte das ciências sociais contemporâneas, segundo a qual tais disciplinas não podem conduzir a conhecimento generalizado devido à extrema dependência que seus fenômenos guardam em relação ao contexto e à singularidade da experiência humana. De modo que, a um primeiro exame, pode parecer um tanto paradoxal, eu defendo que é precisamente por causa da extrema singularidade dos fenômenos psicológicos humanos 1 que a ciência da psicologia humana pode chegar a um conhecimento geral. Esse conhecimento, contudo, não é do tipo aristotélico clássico - isto é, classificatório -, mas envolve o foco sobre os processos básicos do existir, geradores das experiências da vida humana em toda sua amplitude. As formas específicas que os fenômenos psicológicos humanos assumem variam ao longo do tempo, das pessoas e dos contextos - mas os modos através dos quais eles se organizam são universais. Este é um livro de psicologia que escapa aos rígidos enquadres ortodoxos da psicologia contemporânea. Orientado pelo objetivo de delinear os fundamentos básicos da psicologia cultural como uma ciência social, ele se volta para leitores que desejam encontrar respostas a uma questão básica: como cada pessoa, em qualquer local no mundo contemporâneo no qual possa viver, integra cultura em sua vida psicológica? Em outras palavras, como a cultura está presente no sentir, pensar e agir? Como seres humanos guiam sua própria subjetividade através de diversos artefatos culturais? Minha gratidão especial vai para colegas de várias universidades: Nandita Chaudharyd (do Lady Irwin College, Nova Delhi), Ângela Branco (da Universidade de Brasília), Brady Wagoner (da Universidade de Cambridge, UK), por lerem vários esboços dos capítulos e por me apresentarem críticas que não me permitiram tornar-me intelectualmente preguiçoso enquanto escrevia tantas palavras. Vão 1 Singularidade que é dada axiomaticamente pela irreversibilidade do tempo de vida humano. 12 ainda para meus alunos do Seminário Avanços em Psicologia Cultural, na Universidade de Clark, com quem discuti, na primavera de 2006, vários esboços dos primeiros sete capítulos. Os valiosos aportes de Anna Kupik aos recursos utilizados no livro, a apaixonada leitura que Jayme Harrison fez do texto, os desafios construtivamente irônicos de Kirsten Reed e as sugestões complementares de Alessa Zimmerman trouxeram significativas contribuições à re-escrita dos esboços iniciais. Danielle Kenneally, Scott Bernhegger e Jen Bartko foram leitores cuidadosos dos capítulos e fizeram sugestões muito úteis para expandir o texto quando este se tornava abreviado demais. Dave Messing foi obstinado em sua insistência quanto à elaboração dos valores humanos que eram visíveis sob meus esquemas abstratos no livro. Jonathan Mathews, com sua mente de fotógrafo, foi responsável por melhorias introduzidos no texto e quanto às figuras. Boyd Timothy formulou desafios produtivos às minhas por vezes excessivas críticas das práticas típicas da chamada ‗ciência normal‘, correntes na psicologia contemporânea. Naturalmente, estas são apenas algumas das soluções construtivas que foram oferecidas durante os quatro meses do seminário semanal e que pude incluir na versão final do livro. Porém, as idéias continuam vivas e podem re-aparecer no próximo trabalho. Sou reconhecidamente grato pela discussão seletiva, em nosso ―Kitchen Seminar‖ na Universidade de Clark, de algumas das idéias sobre mediação semiótica, particularmente pelo aporte intelectual de Nick Thompson, Roger Bibace, Vinny Hevern, Emily Abbey, Sarah Strout, Rose Sokol e Genie Giaimo. Parte do meu foco sobre a estrutura social dinâmica do existir humano recebeu insumos de minhas aulas no seminário Psicologia Cultural e Social dos Genocídios. As discussões sobre como as pessoas mais comuns podem mover-se entre amizade e atrocidade, com Becky Phillips, Tiberiu Galis, Naama Haviv, Stephanie Fischer e outros ajudaram-me a compreender melhor essa parte da psique humana sobre a qual nós geralmente preferimos não pensar - violência e política. Este livro começou como um projeto de re-escrever minha monografia de 2001 - Comparative study of human cultural development, publicado em Madrid - mas muito rapidamente moveu-se para tornar-se, por si mesmo, um novo livro. Alguns temas e materiais foram, contudo, trazidos dessa monografia. Outros temas foram tomados de empréstimo de outro livro meu: encontra-se aqui uma nova 15 Capítulo 1. Aproximações à Cultura: Bases Semióticas da Psicologia Cultural K: Senhor, o que significa a palavra ―cultura‖? Cultivar? B: É baseada em ―cultivar‖. K: Cultivar é ―fazer crescer‖. Portanto, designamos como cultura aquilo que cresce, aquilo que é capaz de crescimento. Que benefícios traz a cultura? B: Ciência, arte, música, literatura e tecnologia. Cada cultura tem uma determinada tecnologia com a qual aborda a realidade; determinados métodos têm sido desenvolvidos para viver, para fazer com que as coisas cresçam, para fabricar coisas. K: O pensamento criou a cultura? Sim, naturalmente. B: Algumas culturas parecem ser necessárias para o homem sobreviver. K: Fico imaginando se isso é mesmo necessário. B: Talvez não seja; mas, pelo menos, parece ser. (Krishnamurti & Bohm, 1999, p. 85) O uso do termo cultura tem sido difícil ao longo da história das sociedades humanas, tanto no discurso cotidiano como no científico. O termo implica, inegavelmente, alguma forma de modificação construtiva no curso natural das coisas. No que se refere aos aspectos ou propriedades dos objetos no processo de seu desenvolvimento, pode assumir a forma de um tipo de cultivo orientado para uma meta - sejam tais objetos plantas, animais domésticos, ou crianças. O mundo total dos seres humanos é um mundo cultivado, no qual os recursos naturais – nossos, 16 ou de nosso ambiente - são transformados no mundo significativo dos objetos. Alguns desses objetos passam a ser trocados enquanto serviços; outros alcançam o status de pertences personalizados e sagrados, não permutáveis. Os significados dos objetos conduzem seu valor cultivado e os objetos têm suas próprias ―biografias culturais‖. Por exemplo: carros perdem valor à medida que transcorre o tempo, até que, transcorridos uns trinta anos, passem a pertencer à categoria de ―carros antigos‖, tendo seu valor acrescido então ano a ano (Kopytoff, 1986, p. 80). O mesmo se aplica ao mobiliário e a outros objetos domésticos de caráter durável 2 - mas em uma outra escala de tempo. Atribuições similares de valor são freqüentemente aplicadas a seres humanos e se tornam símbolos capazes de regular os relacionamentos sociais de outras pessoas. Em paralelo à assunção de novos papéis sociais, à medida em que avançam em idade – processo que ocorre de modo diverso em diferentes regiões do Mundo - as pessoas podem adquirir maior valor social, na condição de ―pessoas sábias‖, e podem merecer maior crédito quanto se trata de tomar decisões complexas. Tal modelo cultural valoriza a acumulação de experiência ao longo da vida das pessoas. Se esse foco não é considerado relevante, ações sociais podem privilegiar o valor dos mais jovens e inexperientes, em detrimento das pessoas mais velhas. Em diversas instituições sociais, as pessoas mais velhas podem ser obrigadas a aposentar-se, tornando-se seu valor social restrito aos círculos familiares: é o caso, por exemplo, dos avós amorosos. Por vezes, o valor de seres humanos se expressa em termos monetários. Os montantes pagos a escravos, executivos, atletas profissionais, advogados, doutores ou intelectuais, quando publicamente conhecidos, são exemplos da criação coletiva de valor para o cultivo de imagens ligadas a papel social. Em síntese: o cultivo tem várias linhas temporais e áreas sobre as quais recai seu foco. Todos os papéis humanos socialmente diferenciados são cultivados. De que modos tal cultivo tem lugar nas relações humanas? Note-se que o substantivo ‗cultura‘ não carrega as funções que suas extensões verbais – ‗cultivar‘ ou ‗cultuar‘ 3 - podem ter. A tensão crucial no discurso psicológico sobre cultura reside entre tratá-la enquanto uma entidade existente (ex.: ―cultura é X‖) ou como um processo de vir a ser (ex.: ―cultura conduz a X‖). Ao longo de todo este livro, enfatizaremos a natureza dinâmica e processual do funcionamento da cultura dentro de sistemas psicológicos 2 Tais como vasos, prataria, tapetes - mas não copos e pratos plásticos, que são funcionais precisamente por serem propositadamente descartáveis. 3 "To cultivate" or "to culture" no original em inglês (N. T.) 17 humanos - tanto intrapessoais (sentir, pensar, agir), quanto interpessoais (conduta em relação ao outros seres humanos). Valores e cultura Em seu uso mais comum, cultura tem sido um termo imbuído de valor. O contraste entre tribos ―aculturadas‖ e ―primitivas‖ se expandiu no discurso europeu, até que nossas normas sociais contemporâneas passaram a censurá-lo. Além disso, os contrastes entre ―cultura elevada‖ e ―pouca cultura‖ têm sido utilizados para indicar estratificação social dentro de uma unidade social. Em sintonia com o apelo da ―cultura elevada‖, tendemos, freqüentemente, a enfatizar nossos próprios laços com pessoas que nós rotulamos de ―cultas‖, discriminando outras em relação às quais podemos mostrar implicitamente algum tipo de atitude depreciativa, mesmo sob a máscara da igualdade social. A noção de cultura tem uma longa história no pensamento social (ver a compreensiva revisão elaborada por Jahoda, 1993). Na psicologia, no presente estado de coisas, é usada em vários sentidos. Em um primeiro sentido, tem sido usada para designar algum grupo de pessoas que estão reunidas graças a algumas características partilhadas. Assim, os Noruegueses ―estão reunidos‖ enquanto se supõe que partilham uma linguagem comum 4 , acontecendo também serem cidadãos do mesmo país. Os galeses ―estão reunidos‖ porque partilham a herança comum da linguagem, música e a região das Ilhas Britânicas onde vivem. Os Bascos ou Curdos ―estão juntos‖ através de sua linguagem e de seus costumes partilhados, mas não quando se toma por base os territórios nos quais vivem (Espanha ou França; e Iraque, Turquia, Síria e Irã, respectivamente). A Índia apresenta um quebra-cabeças mais crítico quando se tenta delinear ―a cultura indiana‖, dadas as 1652 linguagens faladas dentro de suas fronteiras enquanto estado (Chaudhary, 2004), nos 675 pequenos reinos nos quais o país foi dividido em sua história pré- colonial 5 - mesmo sem sequer mencionar a segregação por castas. Aquilo que se poderia qualificar como ―a cultura indiana‖ permanece, sobretudo, um mistério. Em nossa conversação cotidiana, naturalmente, o uso de rótulos gerais como ―a cultura de tal país‖ fornece aos falantes 4 Naturalmente, esta é a crença de observadores externos sobre os noruegueses, que de fato ―partilham‖ a co- presença de múltiplas linguagens norueguesas. 5 Sem falar na heterogeneidade dos sistemas religiosos que têm diferentes histórias ao Norte e ao Sul da Índia. 20 Tais pressupostos, ambos, convergem para aqueles que são encontrados nos axiomas não- desenvolvimentais sobre grupos de pessoas unidas pelas mesmas características, como, por exemplo, macho versus fêmea. Diferenças inter-individuais são vistas como quantitativas - uma questão de grau mais do que uma diferente qualidade. As características pelas quais os grupos são contrastantes, uns em relação aos outros, são vistas como dados ontológicos, ao invés de abertos a se desenvolver. Assim, grupos ―culturais‖ homogêneos são comparados uns com os outros na psicologia cultural. Por exemplo, ―a cultura norte-americana‖ pode ser representada por uma amostra de estudantes universitários, e ser comparada com a ―cultura italiana‖, representada por uma amostra de estudantes universitários de Palermo. Na Figura 1.1., temos a estrutura básica da generalização do conhecimento sobre cultura no que se refere a questões psicológicas. Iniciemos a partir de uma estrutura hierárquica das sociedades, admitidamente simplificada, que envolve pessoas individualmente, instituições sociais, as próprias sociedades, e, em seu ápice, uma super-generalizada noção de ―espécie humana‖. O quadro é simplificado, pois ignora um número de níveis intermediários existentes dentro da hierarquia: aqueles que incluem grupos sociais temporários (entre indivíduos e instituições), burocracias do governo (as quais, enquanto instituições elas próprias, introduzem sub-hierarquia na conexão entre os níveis das instituições e da sociedade). Apesar disso, o quadro simplificado ilustra a complexidade da hierarquia social e os modos pelos quais a psicologia transcultural constrói seu conhecimento. 21 Figura 1.1. O uso da noção de cultura na psicologia transcultural A hierarquia apresentada na Figura 1.1. envolve, pois, conexões múltiplas. A mesma pessoa pode ser, individualmente, participante em mais de uma instituição social (ex., indivíduos X, Y, V); algumas pessoas podem até mesmo pertencer a instituições de diferentes sociedades (Z). Os laços específicos entre instituições específicas podem mudar ao longo do curso de vida da pessoa. Um político atuando no governo (instituição S) da sociedade A pode ser simultaneamente um membro da agência central de inteligência (instituição T) do país B. Crianças que viveram por um período em um país e passaram por seu sistema formal de educação podem migrar para outra sociedade e encontrar um ambiente escolar muito diferente. Como resultado, as crianças podem desenvolver sistemas de self diferentemente adaptados para ambas as sociedades. 22 Ao gerar conhecimento sobre cultura, a psicologia transcultural utiliza a estratégia tradicional de comparações entre grupos. Sociedades particulares (A, B, na Figura 1.1) passam a ser re- nomeadas como cultura A e cultura B. Pessoas na base da hierarquia social tornam-se membros da cultura (A ou B). Após tal mudança semântica, torna-se significativo, no âmbito da psicologia transcultural, gerar conhecimento sobre a cultura A e a cultura B comparando as duas com base em dados psicológicos derivados de seus membros. Uma vez que o conjunto de membros em A (assim como em B) é considerado qualitativamente homogêneo, é possível, do ponto de vista da psicologia transcultural, pensar em termos de amostragem randômica a partir do conjunto total de membros da cultura, na tentativa de que os dados amostrais representem esta abstração chamada população. O que é a população e o que podemos aprender das comparações entre amostras? População é a representação abstrata completa de todos os membros de uma dada cultura. Espera-se que os dados que caracterizam a população (tal como são tomados a partir da amostra) possam caracterizar a cultura (―população‖ = cultura A). É por essa razão que faz sentido, no âmbito da psicologia transcultural, fazer comparações entre populações (= culturas) A e B, do seguinte tipo geral: A--- é (ou não é) diferente de -- B Esse tipo de conhecimento é o resultado final de generalizações indutivas feitas na psicologia transcultural. Diferenças psicológicas entre diferentes grupos de pessoas, rotuladas como membros da cultura e consideradas enquanto um conjunto homogêneo podem ser, aqui, empiricamente mapeadas. A partir da realidade empírica da comparação entre amostras, generalizações alcançam instantaneamente o nível de proposições abstratas sobre diferenças culturais (ver Figura 1.1). A estratégia de generalização amostras-para-população tem seus limites. Na Figura 1.1, é possível observar que a estratégia de construção do conhecimento transcultural negligencia a organização hierárquica da vida social humana. O papel organizador dos diferentes níveis de instituições sociais (e suas combinações) não é levado em conta nessa construção de dados sobre culturas, aqui representadas por populações supostamente homogêneas. Diferenças empiricamente descobertas pela psicologia transcultural não são explicáveis dentro do sistema 25 amplitude total de necessidades básicas, instrumentais e integradas (Malinowski, 1944, p. 40). Aqui, a cultura opera, para seres humanos em seus contextos, como o conjunto de princípios (e instituições) organizadores externos aos mesmos. O que foi perdido na psicologia transcultural - a estrutura das formas sociais organizacionais que compõem a sociedade - foi claramente evidenciado na antropologia social. No lado intra-pessoal, a referência à ―satisfação de necessidade‖ indica que a cultura permanece como uma ferramenta para tal satisfação, e não é considerada parte daquelas ―necessidades básicas, instrumentais e integradas‖. Entretanto, para a psicologia, a visão de Malinowski sobre a cultura através das instituições sociais é insuficiente. O lado pessoal das experiências vividas dentro da cultura, quer seja ‖na cultura‖ ou ―tendo cultura‖, conforme os próprios sentimentos e pensamentos, foi deixado de lado pelos antropólogos sociais. A sub-área da Psicologia que contemporaneamente chamamos psicologia cultural vem superar essa limitação. Em contraste com a psicologia transcultural, diferentes versões da psicologia cultural operam com noções de cultura que são inerentemente sistêmicas. Na psicologia cultural, há continuidade com as tradições sistêmicas da folk psychology, em suas diferentes vertentes (isto é, nas tradições de Wilhelm von Humboldt e de Wilhelm Wundt), e com as tradições da etnologia européia e da antropologia social e cultural. Nos anos noventa, o cenário psicológico experimenta um renascimento da noção de cultura. Esse renascimento das velhas tradições da Völkerpsychologie, sob a forma das diferentes versões da psicologia cultural, constitui-se em outra tentativa para fazer sentido de fenômenos psicológicos complexos. Todos esses esforços se unificam na medida em que tratam cultura como uma parte do sistema psicológico da pessoa. Aqui, cultura ―pertence ao‖ sistema psicológico individual e desempenha algum papel funcional dentro dele. Naturalmente a pessoa pertence a um ou a outro país, a um grupo lingüístico ou étnico, ou a um sistema de crenças religiosas. Essa participação social, indubitavelmente, fornece material para o sistema psicológico dentro do qual a cultura está situada. Portanto, a linguagem que a pessoa utiliza para interagir dentro de sua sociedade é uma ferramenta semiótica no 26 sistema intra-psicológico da pessoa e orienta os modos pelos quais a pessoa pensa, sente e articula sua fala. Como resultado, os modos de construção do conhecimento na psicologia cultural diferem primariamente daqueles da psicologia transcultural (ver Figura 1.2). A psicologia cultural inicia pela seleção de uma pessoa considerada individualmente junto com sua participação em instituições sociais (ex., V na Figura 1.2.). Baseado na análise sistêmica do indivíduo-em- contexto social, um modelo generalizado do funcionamento cultural da pessoa é construído. Esse modelo sistêmico é posteriormente submetido a teste empírico, com base em outro indivíduo selecionado (ex., Z, que pertence a duas sociedades), o qual leva à modificação do modelo sistêmico. O modelo modificado é então testado em novo caso individual selecionado, e assim por diante. Junto com esse processo hermenêutico de construção do conhecimento sobre a pessoa como sistema funcionando culturalmente, o modelo generalizado torna-se aplicável idealmente a seres humanos em seu estado genérico. Tais generalizações, por conseguinte, aplicam-se a todo o gênero humano, na medida em que se assume que elas geram as diferenças inter-individuais entre as pessoas. A psicologia cultural é a parte da ciência psicológica que está orientada para a descoberta de princípios fundamentais básicos. Portanto, a psicologia cultural é parte da psicologia geral como uma ciência básica, enquanto que a psicologia transcultural pertence à psicologia diferencial. 27 Figura 1.2. O uso da noção de cultura na psicologia cultural. Psicologia cultural: diferentes versões e suas especificidades Há duas direções básicas dentro da psicologia cultural. É possível distinguir as orientações semiótica (mediada por signos) e da atividade no uso da cultura. Cultura como mediação semiótica. O termo cultura pode referir-se à mediação semiótica (por signos) que é parte do sistema das funções psicológicas organizadas. Essas funções podem ser intra-pessoas (isto é, o funcionamento de processos intra-psicológicos de uma pessoa enquanto envolvida em sua experiência do mundo: sentir, pensar, memorizar, esquecer, planejar etc.). 30 Mediação semiótica é também uma ferramenta utilizada pelas instituições sociais no âmbito das ações orientadas por metas, na tentativa de regular as funções psicológicas, tanto inter quanto intrapessoais. As instituições estabelecem regras sociais para interação, monitoram sua manutenção e colocam expectativas para que a atividade e interação situadas conduzam à transformação intrapsicológica dos sistemas culturais pessoais. O uso de uniformes, atividades como andar, cantar e dançar em grupo configuram esse tipo de sistema de mediação semiótica. Instituições sociais, visando a seus propósitos particulares, são construtoras ativas de armadilhas semióticas para seres humanos. Cultura e cognição. Uma das formas de mediação semiótica é o uso de modelos populares (folk models na terminologia antropológica) ou de representações sociais (nos termos da psicologia social). Essas duas direções levam em conta, ambas, para compreender cultura, dois credos opostos na psicologia do século XX: a psicanálise e o behaviorismo (Jahoda, 2002). A noção de modelos populares é, em determinados sentidos, uma síntese de idéias selecionadas de ambos os sistemas teóricos: são considerados aprendidos através da experiência (isto é, ajustam- se ao sistema behaviorista de crenças), e ao mesmo tempo operam como signos complexos para guiar os processos intra-psicológicos ligados a satisfações deslocadas (aqui, um tributo à psicanálise). Na antropologia cognitiva contemporânea, a noção de modelos populares - representações sociais aceitas pelas pessoas, mas estabelecidas mediante construção social - tem ganho terreno. A noção de modelos populares resulta de um acordo de cavalheiros entre a antropologia e a ciência cognitiva. Do ponto de vista da antropologia cognitiva, existem três principais tipos de visão de cultura na antropologia (elaborados segundo D'Andrade, 1984, pp. 115-116): 1) Cultura é vista enquanto conhecimento disponível: é a acumulação de informação - independentemente da extensão em que essa informação é partilhada entre pessoas que pertencem ao grupo que tem acesso à informação. Aqui, o foco é posto sobre o saber fazer socialmente partilhado e sobre as operações cognitivas através das quais este saber fazer pode ser manejado. 31 2) Cultura é vista enquanto estruturas conceituais centrais existentes, as quais fornecem bases para a representação intersubjetivamente partilhada do mundo no qual as pessoas vivem. Essa perspectiva não enfatiza o momento da acumulação da informação, mas é, sobretudo, um conjunto de regras que possibilita às pessoas alcançarem compreensões partilhadas. A noção de representações coletivas e sociais (ver Capítulo 7) situa-se aqui. 3) Cultura é construção de estruturas conceituais mediante atividades de pessoas. Essa perspectiva requer um exame de olhar sobre como os mecanismos cognitivos vêm a lume na ontogenia e na história cultural. Cultura e ação. Um enfoque paralelo que focaliza cultura enquanto mediação semiótica existe na psicologia cultural corrente no domínio das perspectivas ligadas à teoria da atividade. Essas perspectivas crescem a partir do foco posto por Alexey N. Leontiev (e por Pierre Janet) sobre a atividade humana e sua organização estrutural-dinâmica, e bebem da filosofia pragmática de John Dewey. O foco sobre a totalidade unificada da existência cultural humana pode ser sumarizado nos seguintes termos: Os humanos se desenvolvem mediante sua variada participação nas atividades socioculturais de suas comunidades, as quais também se modificam (Rogoff, 2003, p. 11). Essa perspectiva geral precisa ser qualificada com base em cinco suposições: 1. Cultura não é apenas o que as pessoas fazem - mas também o que as pessoas observam nas diversas atividades de outros seres humanos, que assumem diferentes papéis sociais. 2. Compreender a herança cultural (a própria ou a de outros) requer o delineamento de contrastes entre comunidades, de modo a superar as ―cegueiras‖ dos pressupostos implícitos existentes. 3. Práticas culturais são mutuamente interdependentes. Elas formam uma Gestalt dinâmica: não é possível explicar diferenças entre comunidades através de uma única, ou de algumas poucas atribuições causais. 32 4. Comunidades culturais se modificam, tal como ocorre com indivíduos. Indivíduos modificam as comunidades, modificando, assim, a si mesmos. 5. Aprender com outras comunidades não implica a perda de valores da comunidade de origem, mas é, sobretudo, um modo de transformá-la. Agindo e refletindo: cultura como um dispositivo de distância psicológica Precisamente por sua capacidade e propensão a criar e utilizar recursos semióticos, seres humanos são capazes de se distanciar em relação a seus contextos de vida imediatos. A pessoa se torna simultaneamente um ator que está imerso em dado ―contexto de atividade situada‖ e um agente reflexivo que está distanciado do cenário no qual está imerso. Essa dualidade é relevante por transcender as demandas adaptativas do contexto no aqui-e-agora, guiando o desenvolvimento em direção a uma crescente autonomia. Contudo, qualquer nível de autonomia é resultado da dependência imediata em relação ao contexto no aqui-e-agora, tal como o requer a natureza aberta, sistêmica, de qualquer sistema em desenvolvimento, seja ele biológico, psicológico ou social. Distanciamento psicológico inclui sempre o contexto no qual a pessoa está, e é em relação com este que o distanciamento tem lugar. A pessoa não ―desaparece‖ do contexto - isto seria tão impossível quanto permanecer vivo caso o fornecimento de oxigênio cessasse. A pessoa cria uma distância, através da mediação semiótica, em relação ao contexto no aqui-e-agora. Esse processo toma a forma de: ―Eu reflito sobre este contexto do qual sou parte‖. Essa reflexão, que é cognitiva e afetiva ao mesmo tempo, permite que o sistema psicológico considere contextos do passado, imagine contextos no futuro e assuma a perspectiva de outras pessoas (sob a forma de empatia). Sem distanciamento, não seria possível a uma pessoa considerar outro contexto que não o disponível aqui-e-agora. Cultura como substância dinâmica para a vida humana. Como uma parte da organização psicológica de toda pessoa, cultura é a ferramenta primária para o viver humano. A 35 Figura 1.3. Esquema do modelo unidirecional de transferência da cultura Como representado na Figura 1.3., o iniciador da transferência cultural (pessoa A) estabelece alguns objetivos comunicativos (estimando o estado psicológico atual do recipiente) constrói uma mensagem (X‘) a ser captada pelo o recipiente. De acordo com esse modelo, a mensagem X‘ é captada intacta (X=X‘) pelo recipiente (pessoa B). Enquanto a pessoa A cria uma mensagem baseada na estrutura interna de conhecimento (X) de alguém e considerando os objetivos comunicativos, assume-se que o recipiente (B) aceita a mensagem comunicada exatamente como foi transmitida para ele ou para ela. O modelo unidirecional de transmissão é amplamente difundido e atravessa nossos significados lingüísticos comuns. É o preferido pelas instituições que tentam regular a vida das pessoas. Assim, tem sua contraparte na linguagem da psicologia e da educação, que freqüentemente assumem serem as funções psicológicas das crianças ―formadas‖ ou ―moldadas‖ por seus pais, professores ou amigos. O conhecimento é visto como algo dado, e que deve ser aprendido (oposto a re-criado). O discurso na educação, na antropologia e na psicologia infantil tradicionais tem habitualmente aceito as implicações da visão unidirecional da transferência. Isto foi possibilitado pela falta de compreensão dos processos básicos do desenvolvimento. O modelo bi-direcional de transferência: co-construção ativa. Em qualquer tipo ou nível (biológico, psicológico, sociológico), o desenvolvimento é um fenômeno sistêmico aberto no qual a novidade está constantemente em processo de ser criada. Por essa razão, o modelo PESSOA B X‘ X‘' PESSOA A 36 unidirecional não se adéqua a nenhum dos processos sistêmicos abertos. É o segundo modelo - o modelo de transferência bi-direcional - que corresponde à natureza dos sistemas abertos (ver Figura 1.4.). Figura 1.4. Esquema do modelo bi-direcional (mutuamente construtivo) de transferência da cultura A Figura 1.4 é similar à Figura 1.3.; a modificação importante, aqui, é que o papel do recipiente (B) é descrito enquanto um analista ativo dos componentes da mensagem sugerida (X‘), cuja síntese resulta em uma nova forma internalizada da mensagem (X‘‘). Nesse processo, algumas partes da mensagem inicial são eliminadas e outras são ainda acrescentadas. O modelo bi-direcional é baseado na premissa de que, na transmissão cultural do conhecimento, todos os participantes estão transformando ativamente as mensagens culturais. De fato, esse modelo poderia ser mais adequadamente chamado de multidirecional, uma vez que o papel ativo de todos os participantes conduz a múltiplos cursos de reconstrução de mensagens. A geração ―mais velha‖- incluindo aqui pais, professores, crianças mais velhas e meios de comunicação - reúne mensagens de uma determinada forma, própria a cada uma dessas instâncias, as quais pretendem canalizar o desenvolvimento das pessoas mais jovens. Entretanto, PESSOA A PESSOA B X‘ X‘‘ 37 essas pessoas mais jovens analisam ativamente as mensagens e re-elaboram a ―informação cultural‖ recebida sob formas pessoalmente novas. Cabe às ciências do desenvolvimento, portanto, estudar o processo de trocas na relação entre as pessoas e seu ambiente cultural, focalizando a análise/síntese de mensagens. Espera-se que, eventualmente, novidade resulte dessas sínteses, sob formas que serão pessoalmente singulares, mesmo que se assemelhem a fenômenos socialmente conhecidos. Por exemplo: a primeira síntese do significado da palavra feita por uma criança é nova para esta criança, mesma que a palavra possa estar bem definida em uma dada linguagem, ou que apareça sob formas consideradas singulares (por exemplo, novas invenções em tecnologia, artes ou ciências). Essa visão da transmissão cultural implica na construção de novidade, tanto na codificação como na decodificação das mensagens culturais. Em certo sentido, a mensagem como tal nunca existe sob determinada forma, na medida em que é sempre reconstruída pelo codificador (que pode iniciá-la com um determinado objetivo em mente, mas modificá-la no curso de sua própria criação), e, de maneira similar, pelo decodificador. Assim como os papéis de codificador e decodificador estão constantemente se revezando, a transmissão cultural envolve a transformação da cultura em tempo real, no discurso social, por seus participantes. Isto é bem conhecido na teoria da linguagem (Bühler, 1990), assim como na consideração filosófica da intersubjetividade (Rommetveit, 1992). Mensagens transferidas através dos canais de comunicação são necessariamente ambíguas porque, comumente, as orientações dos comunicadores e recipientes em direção a metas não coincidem. Processos meta-comunicativos (Branco and Valsiner, 2005) são estabelecidos para regular – mas não para eliminar, é impossível - essa ambigüidade. 40 extensão do movimento, os resultados da avaliação deste diferem. Entretanto, se uma pessoa é solicitada a expor sua estimativa do movimento, ela estabelece subjetivamente uma amplitude e um ponto arbitrário, relativamente ao qual o ponto estático é subjetivamente percebido como se movendo (devido ao próprio movimento dos olhos de quem vê). Quando diferentes pessoas vêem o mesmo ponto luminoso, elas constroem normas pessoais, mas sob formas publicamente acessíveis. Quando tais normas são discutidas em grupo, os sistemas pessoais de normas tornam-se coletivamente coordenados. Uma norma grupal relativa a como perceber o ponto estacionário ―em movimento‖ torna-se, portanto, estabelecida. Os experimentos de Sherif sobre o movimento autocinético demonstraram claramente como seres humanos criam normas para avaliação mental (no caso, referentes a experiências de ilusão perceptual, tais como o movimento percebido de um ponto de luz que não se move). Demonstraram como eles homogeneízam essas normas inter-pessoalmente para criar normas grupais e, além disso, que, estando tais normas grupais estabelecidas, os membros do grupo podem transformá-las em seus próprios padrões internos de avaliação. Consenso grupal pode criar ilusões sociais (baseadas em ilusões perceptuais) que vêm a regular o próprio sistema psicológico da pessoa, assim como suas expectativas em relação aos outros. Normas sociais co-construídas dentro de um grupo. A construção social de normas grupais, inclusive sua resiliência, evidencia-se constantemente nos vários tipos de facções religiosas que estabelecem seus próprios padrões sobre como viver e como avaliar o modo como os outros vivem suas próprias vidas. Uma descrição clássica de tal culto é dada por Festinger, Riecken and Schachter (1956). Um grupo de pessoas se une a partir do chamado feito por seu líder, visando a ―estar preparados para o fim do mundo‖. O evento esperado – o colapso do mundo inteiro – era fortalecido pelo ―milagre da revelação de Deus‖ ao líder do grupo. Tal evento constitui-se numa ―versão simbólica‖ do experimento autocinético de Sherif. Um evento esperado para o futuro, mas preparado para hoje, é indeterminado e, portanto, aberto para a construção de normas grupais pelas pessoas orientadas para aquele resultado. O grupo, orientado-para-uma-meta, estabelece suas próprias normas internas, a distinção ingroup/outgroup (―nós somos o povo especial‖ versus 41 ―os outros‖). A única dificuldade que pode surgir é a possibilidade do dia previsto para o juízo final acontecer sem que o evento esperado ocorra. Sob condições de racionalidade, isso poderia falsear o sistema de normas e crenças grupais. Mesmo assim, sob as circunstâncias próprias de seitas religiosas, a não confirmação pode fortificar as normas. Portanto, uma dada norma (ou crença) social, quando desafiada, pode se desenvolver sob três diferentes maneiras (ver Figura 1.5.). Figura 1.5. Transformação de normas sociais A questão crucial da psicologia cultural é como entender os mecanismos que operam naquele ponto de bifurcação (nó da direcionalidade). Sob quais condições a norma seria fortalecida, e sob quais outras se tornaria extinta? A realidade de tal bifurcação se faz possível pela noção bi- direcional de transferência cultural - mas não pela noção de transferência uni-direcional. 42 A centralidade da pessoa na construção cultural. A intenção construída pela pessoa para manter a norma social corrente pode distinguir entre duas trajetórias que possivelmente se seguem à sua não confirmação. As duas condições podem ser analisadas da seguinte maneira: Não confirmação  Extinção: Não confirmação  Fortalecimento: X é a norma corrente X é a norma corrente Evidência rejeita X Evidência rejeita X "Eu não me importo com X" "Eu quero acreditar em X‖ X se extingue X passa a ser defendido e fortalecido O retorno à desacreditada noção de livre arbítrio pessoal 7 é um elo inevitável entre a pessoa e o mundo social. Entretanto, nós vamos atribuir um diferente significado a essa noção. O livre arbítrio pessoal pode referir-se aqui às ferramentas que fornecem orientação genérica do self em direção ao futuro, sublinhando seletivamente alguns aspectos do presente. Quando considerada sob esse ângulo, a cultura, enquanto sistema de operadores semióticos, garante que qualquer pessoa esteja pronta para resistir e contra-atuar em relação a sugestões sociais - e à rejeição de crenças – vindas do ambiente. A cultura torna as pessoas livres das demandas dos ambientes sociais imediatos. Bases semióticas para a cultura: o legado de Charles S. Peirce Semiótica é a ciência dos signos e seus usos. Foi construída a partir da integração filosófica e matemática das idéias de Charles Sanders Peirce 8 . Institucionalmente não-tolerado, Peirce foi um 7 Em psicologia, desde o início do século XX, a noção de livre arbítrio pessoal - intenção, determinação etc. – raramente foi considerada como uma noção psicológica central. Ela permite à pessoa a liberdade para quebrar os limites estruturais postos por normas sociais, comportamentais etc – em suma, essa noção força a psicologia a reconhecer a não-controlabilidade (e imprevisibilidade) da psyche humana. Essa idéia foi um anátema para o ethos de controle comportamental que governou grande parte da psicologia através do século XX. 8 Nascido em 10 de setembro de 1839 e falecido em 19 de abril de 1914. 45 Um processo similar de abstração invisível acontece no caso dos signos icônicos esquematizados. Nas palavras de Peirce, um diagrama geométrico (digamos, um triângulo) é um ícone de alto nível de abstração a partir do mundo real – embora seja um que não parece abstrato. Um diagrama … tanto quanto possua uma significação geral, não é um ícone puro; mas em nossos raciocínios comuns nós esquecemos, em grande medida, essa dimensão abstrata, e o diagrama é para nós a própria coisa. Assim, ao contemplar um quadro, há um momento em que perdemos a consciência de que aquilo não é a coisa, a distinção entre o real e a cópia desaparece, e isto é, naquele momento, um sonho puro – não qualquer existência particular – e ainda assim não geral. Nesse momento nós estamos contemplando um ícone (Peirce, 1885/1986, p. 163). A iconicidade permite que os processos de abstração/generalização se movam suavemente entre o objeto real e sua apresentação sígnica. O estabelecimento de um limite dentro desse continuum dinâmico cria um outro tipo de signo, o símbolo. O símbolo é …um signo que perderia o caráter que o torna um signo caso não houvesse um interpretante. Assim é qualquer palavra na fala que significa o que significa somente em virtude do fato de ser compreendida como tendo tal significação (Peirce, 1902, p, 527). O índice O terceiro tipo de signo, índice, é um signo que obriga nossa atenção a se dirigir para um objeto. Ele ―diz apenas Ali!‖ (Peirce, 1885/1993, p. 163). Pronomes demonstrativos e relativos estão próximos de serem índices puros: eles denotam as coisas sem descrevê-las. Como Peirce assinalou, um índice é um signo que perderia seu caráter se seu objeto fosse removido – mas não, se houvesse um interpretante. O último se torna um novo signo que denota tanto o ato de indicar quanto o objeto (isto é, o objeto tal como indicado): 46 Assim é, por exemplo, uma escultura em gesso com um buraco de bala nele como um signo de um tiro; pois sem o tiro não teria havido um buraco; mas há um buraco lá, se qualquer um tem a impressão de atribuir ou não um tiro ao mesmo (Peirce, 1902, p. 527). Essa explicação mostra que um índice tem sido visto, convencionalmente, como um signo criado pelo impacto do objeto. Assim, uma pegada é um signo do tipo índice, indicador, para o animal que deixou essas marcas, e um signo icônico da pata ou pé daquela espécie animal em particular. O nome da espécie, detectado pela unidade entre as descrições icônica e indicadora, é um símbolo. A natureza híbrida dos signos Todas as classificações são artefatos, e assim o é o esquema peirciano de três tipos de signos. Ícones baseados em convenção podem se tornar símbolos se sua iconicidade for eliminada, seja por esquematização ou por pleromatização. A propriedade indicadora está próxima da criação de um signo icônico (mas é um índice se tomada enquanto criação de uma imagem de algo). Da mesma forma, qualquer designação de um objeto para apresentar um outro se torna um símbolo. Considere-se um memorial em um parque (ver Figura 1.6.). 47 Figura 1.6. Memorial em um parque: marcando simbolicamente o entorno Marcar uma árvore em um parque com uma placa em memória de uma mulher assassinada é um híbrido de linguagens simbólica (duas diferentes línguas e a cruz) e indicadora (a localização do evento assim dada). O que está faltando é uma foto ou uma pintura da mulher (signo icônico). Dinâmica da semiose. Todos os signos são vistos por Peirce como dinamicamente transformadores e transformáveis. Peirce enfatizou a natureza dinâmica dos signos: Símbolos se desenvolvem. Eles chegam a existir pelo desenvolvimento de outros signos, particularmente de ícones, de signos mistos partilhando a natureza tanto de ícones como de símbolos. Nós pensamos somente através de signos. Esses signos mentais são de natureza mista; suas porções simbólicas são chamadas conceitos. Dessa forma, é a partir de símbolos que um novo símbolo pode se desenvolver (Peirce, 1955, p. 115). Para Peirce, a criação e o uso de signos permeiam a existência humana, tanto no domínio intra- mental quanto no inter-psicológico. Um fabricante de signos faz com que o signo criado esteja disponível para outros – e, supostamente, no caso desses outros, alguns dos signos irão suscitar 50 todas as igrejas e acrescentando a essa idéia a noção de dano. Em sua iconicidade, é um exemplo de um signo pleromatizado. Aqui, as ruínas de uma igreja não são meramente ruínas: resultam da destruição intencional no curso de uma guerra. Sua função indicadora denuncia a história de horrores do impacto das bombas que destruíram o edifício simbólico há tanto tempo erguido, a igreja. Em contraste, o mesmo ataque aéreo destruiu prédios próximos àquela igreja, os quais foram demolidos como ruínas para construir em seu lugar novos edifícios. Do mesmo modo, outros edifícios simbólicos, tais como o Castelo de Berlin, igualmente danificados na guerra, não foram transformados em um memorial de guerra (signo simbólico), através da unidade de sua iconicidade (―castelidade‖, dada por sua arquitetura) e indexicalidade (indicando o impacto das bombas). O Castelo de Berlin foi demolido e no mesmo recinto foi construído o prédio do Parlamento da ex-República Democrática Alemã 12 . Entretanto, o uso semiótico da igreja não se encerra em sua apresentação generalizada dos horrores do passado ou das promessas celestiais do objeto arquitetônico particular. Sua centralidade na vida pública da cidade o torna um lugar para apresentar os prazeres futuros, sob a forma de enormes anúncios afixados na parede lateral da igreja (ver Figura 1.7.). Esse anúncio de cosméticos é em si mesmo uma combinação de funções icônica (retrato de uma mulher), indicadora (o impacto dos cosméticos sobre sua pele) e simbólica do novo signo vinculado ao signo arquitetônico. A fusão de aspectos de um novo complexo simbólico sobre uma forma arquitetônica prévia implica o controle simbólico do sistema de mediação semiótica. O híbrido do simbolismo bizantino e islâmico no centro de Istambul – na Basílica de Santa Sofia, conhecida como Hagia Sofia - é um testemunho da conquista do mundo simbólico através de iconicidade e indexicalidade. estético-metafísico da ruuína desaparece quando dele não restou muito para nos fazer sentir a tendência ascendente. Os restos dos pilares do Forum Romano são, simplesmente, horrorosos, e somente sua condição de mutilados –quase desmoronados – pode gerar um máximo de charme (Simmel, 1959b, p. 265). 12 A própria localização envolve a função simbólica – sabe-se que a substituição de um edifício simbólico por um outro, no mesmo local, remete a persistentes atritos entre diferentes comunidades ao longo dos séculos, explodindo por vezes em choques violentos - como na história de Babri Masjid em Ayodha (U.P.), ocorrida em 1992. 51 Representação de signos simbólicos – nós e campos A codificação da experiência humana (duração) em diferentes tipos de signos tem que apresentar aqueles aspectos dos fenômenos que são relevantes para os fenômenos. Considerem-se as codificações na Figura 1.8. Exatamente a mesma experiência, duração (durée nos termos de Henri Bergson) pode ser apresentada mediante diferentes tipos de signos, como mostra a Figura 1.8. O que o apresentador pode fazer com esses diferentes tipos de signos varia. Por exemplo, construtos baseados em signos numéricos são utilizados amplamente nas ciências para permitir análises quantitativas adicionais. Por essa razão, muitas das ciências sociais transformam fenômenos psicológicos complexos em signos numéricos – por exemplo, através do uso de escalas de mensuração (Wagoner & Valsiner, 2005). Não se pode precisar o que significa uma avaliação numérica particular, como por exemplo marcar um ―3‖ numa escala de 1 a 5. Ainda assim, essa medida é aberta a novas manipulações dos números como se seu significado original estivesse claro dentro dos parâmetros nos quais se define o significado da escala (dados pelos dois pontos extremos). Figura 1.8. Diferentes tipos de signos apresentando um evento Experiência  Signo {todo o tumulto pelo qual passei quando minha cidade foi devastada por um terremoto} ―HORROR‖ (signo tipo ponto, uma palavra) ―7‖ (signo tipo numérico, uma avaliação numa escala Richter) (signo irregular tipo campo {signo-campo irregular}: minha expressão de meus sentimentos sobre o tumulto dentro de mim) 52 Figura 1.9. Termos teóricos tipo ponto ou tipo campo– utilizados para representar a fluidez dos fenômenos na dureé (em Valsiner & Diriwächter, 2005) DESCRIÇÃO DESCRIÇÃO NODAL (PONTO) DESCRIÇÃO DE CAMPO EM TERMOS regular irregular ABSTRATOS X 5 B FORMAS FLUIDAS DOS FENÔMENOS ORIGINAIS A 55 Figura 1.11. Construção de um signo multinível: o cachimbo que é um não-cachimbo sob enquadramento A Figura 1.11 envolve a combinação de três tipos de signos – ícone, índice e símbolo – numa moldura. O emolduramento do signo primário complexo – um ícone (desenho do cachimbo) e um índice (o impacto do cachimbo, isto é, a fumaça) -, sendo enquadrado por um símbolo que o nega (―isto não é um cachimbo‖, embora a fumaça saia do cachimbo). O próprio emolduramento é ambíguo, uma vez que a fumaça parece flutuar sobre o quadro e para fora dele. Esse complexo conjunto e seu enquadramento simbólico é ainda enquadrado (um meta-enquadre) pela moldura branca que delimita o desenho. Aqui, o enquadramento pode assumir múltiplos níveis de auto-reflexividade (Lefebvre, 2000), como o indicam as outras versões de Magritte para esta figura. Ao criar ambigüidade nas apresentações do signo através de múltiplos níveis de abstração, os seres humanos criam uma ampla aplicabilidade das ferramentas culturais que eles próprios geram. A pintura de Magritte é um signo complexo situado no outro extremo do exemplo encontrado na asserção: ―Se Deus me 56 pedisse, eu faria tatuagens em todo o meu corpo‖ (ver capítulo 3). Enquanto o último é fixado em um estado estável através de um signo regulatório (―a vontade de Deus‖), o signo ―um cachimbo-que-não-é-um cachimbo‖ é um signo de múltiplos níveis, em aberto, de reflexividade. Ainda assim, ele é muito similar, em sua abertura, aos campos de significado hipergeneralizado da ―vontade de Deus‖ (ou do ―amor‖, ou da ―justiça‖), na medida em que permite contextualização numa variedade de situações. A riqueza dos vários tipos de signos, todos entrelaçados em um complexo, possibilita esse uso variado. Em contraste com o exemplo acima, considere-se a Figura 1.12, que justapõe duas mensagens simbólicas opostas. Figura 1.12. Um signo inerentemente contraditório: a forma simbólica de encontro a uma verbal É útil assinalar o aspecto das contradições inerentes dentro da mensagem: ainda que sua ação reguladora imediata não favoreça uma maior riqueza no seu uso; pode ser um equívoco à margem da estrada, pode ser uma piada inconseqüente, mas não um signo regulador dos complexos sistemas pessoais-culturais de sentimentos. A maior parte dos objetos em nosso ambiente são signos combinados, nos quais a aparente arbitrariedade do signo pode ser sustentada por meios icônicos ou indexicais. Esses signos combinados ativam processos de construção de significados dentro do mundo semiótico possível (Magariños de Morentin, 2005) - NÃO PARE AQUI 57 interpretações que orientam a conduta humana sem necessariamente envolver o nível verbal de mediação (ver capítulo 7). A ruptura abdutiva na emergência do significado (Lotman, 2002a; Santaella, 2005) e o Aha-Erlebnis descrito por Karl Bühler no início do século XX são exemplos da transformação do campo semiótico possível numa real compreensão. A fabricação de signos hiper-generalizados tipo campo fora das atividades cotidianas. O uso da noção de signos tipo campo nos permite considerar a complexidade das experiências na vida real enquanto signos complexos. Pão ou milho (no México – ver Sandstrom, 1990), vinho (para as áreas mediterrâneas), cerveja (para os alemães) arroz (para os japoneses, Ohnuki- Tierney, 1993) são cultuados na medida em que são simbolicamente ligados a pessoas ou divindades. Esses objetos cruciais de existência cotidiana – comida - desempenham o papel de transferir esses valores dentro de um dado campo de significados. Tal transferência ocorre através de generalização simbólica. O objeto – por exemplo, arroz, para os japoneses – pode, mediante sua generalização simbólica, ligar a pessoa, a unidade de pessoas, com o mundo indefinido (mas importante) dos valores e seres sobrenaturais. Uma equivalência simbólica pode ser estabelecida do seguinte modo: ARROZ = ALMA = DIVINDADE = NIGITAMA (poder positivo e pacificador da divindade) Além disso, a ligação da pessoa com a unidade social imediata (a ―unidade-nós‖) pode ocorrer através desta comida (―nosso arroz‖, ―nosso pão‖, ―nosso hambúrguer‖). O processo de generalização do valor simbólico permite que tais ligações sejam feitas, através do que se conheceu na Psicologia da Gestalt como transferência vertical, em contraste com sua contrapartida ―horizontal‖ 13 . A noção de transferência vertical envolve abstração de aspectos selecionados de um fenômeno sob a forma de um todo geral superordenado. A Gestalt de ordem mais elevada é o veículo para reorganizar uma outra situação, de modo que a transferência de conhecimento de uma situação para outra procede através de um terceiro nível mediador, hierarquicamente superior (ver capítulo 7). 13 Isto foi estabelecido em oposição à idéia behaviorista de transferência através de ―elementos idênticos‖: se as situações A e B têm 90% de elementos idênticos em comum, e A e C apenas 10%, as habilidades apresentadas em A são mais provavelmente transferidas para B do que para C. 60 secundariamente, porque entre todas as tendências que tomam parte em sua formação, uma ou duas são sempre dominantes. As tendências dominantes configuram a migração dos sistemas, por assim dizer, e a palavra de ordem para o crescimento dos símbolos na vida mental individual é o ‗contato dos sistemas mentais‘ (Bartlett, 1924, p. 281, ênfases adicionadas). Na realidade, o esforço de Bartlett para fornecer uma explicação dos processos psicológicos envolvidos na semiogênese é bastante contemporâneo. Envolve inputs provenientes de algum evento (A) experimentado, incidindo simultaneamente sobre duas (ou mais) partes de um sistema psicológico hierarquicamente organizado (―tendências‖, que ―não são normalmente isoladas‖). Teríamos, assim: X = =   = = Y (onde   indica a relação prévia de dominância no sistema holístico). Desde que A se relaciona com Y, torna-se também relacionado a X e integrado dentro dessa estrutura hierárquica, permitindo que X seja transformado (similarmente à noção piagetiana de assimilação/acomodação). A questão que se coloca, então, é: de que modo o novo material (A) passa a ser visto como se representasse a tendência dominante? Qualquer objeto pontudo (A), assim, poderia ser visto, no campo psicanalítico de construção de significados, como uma representação simbólica do pênis (Y), devido à tendência dominante do complexo da sexualidade (X) já associada à noção de pênis. Como o próprio Bartlett ressaltou, Se nós estamos considerando o crescimento dos símbolos na vida individual, a pista mais importante para o processo como um todo será encontrada no fato de que, no caso de qualquer indivíduo, há sempre determinadas tendências, ou grupos de tendências, que assumem o lugar de condutoras e dominam as demais... As tendências dominantes de um indivíduo sempre determinam a direção com a qual se alinha o crescimento de seu próprio simbolismo. Pode ser dito que, em geral, no passado, dois grupos de tendências, com mais freqüência que outros, permaneceram como impulsos dominantes na vida de um indivíduo: são o grupo religioso e o grupo sexual. Um resultado disso é que dificilmente haverá alguma coisa com a qual um ser humano possa se deparar que não tenha servido, em um momento ou em outro, como símbolo religioso ou sexual (Bartlett, 1924, p. 281). Signos emergem do processo de superar as demandas de um determinado processo. Eles chegam para mudar o processo e, do mesmo modo, podem conduzir a seu desaparecimento. O 61 abandono do signo pelos processos que conduziram a sua emergência permite a construção pessoal de ferramentas culturais liberadas para outras aplicações. Essas aplicações adicionais (construção pessoal de regulação de alguns processos em outro contexto temporal) envolve signos que operam como dispositivos circunscritores. Signos criam, portanto, a distinção entre as possibilidades ou impossibilidades imediatas e as possibilidades potenciais de nosso sentir e pensar diante do futuro. De mediador a regulador: o significado superdetermina. O movimento de um signo em direção a um papel de regulador cria o caso mínimo de um sistema dinâmico hierárquico de reguladores. Tentarei explicar o caso mínimo aqui, mesmo admitindo que se trata de um exercício artificial. Na vida real, o que podemos encontrar é o crescimento sempre-crescente e sempre-generalizante do sistema semiótico regulatório. Nesse aspecto, a conduta humana é sobredeterminada pelo significado (Boesch, 2000, capítulo 1; 2002a, 2002b- ver também Capítulo 5). O próprio objetivo de orientação para uma meta, que pode ser uma tarefa imediata ou recorrente na vida, tal como vestir-se (e despir-se), ou preparar e ingerir um alimento (e seus processos de eliminação), parir e educar filhos, disputar posses e realizar investimentos para o futuro – tudo isso acarreta redundância e multiplicidade de significados. Do ponto de vista de uma pessoa que vive através de alguma experiência, a sobredeterminação pelo significado assume a forma de marcador semiótico do evento em diferentes níveis de simbolização (Obeyesekere, 1990, pp. 56-58). A navegação que a pessoa realiza através desses diferentes níveis é altamente flexível. A mesma pessoa pode, em um momento, utilizar uma tática de ―baixa‖ simbolização (―Eu cometi um erro‖) e, em outro, uma de média simbolização (―minha sogra, por ciúmes, me fez cometer um erro‖); em outro ainda uma de nível mais alto (―a vontade de Deus me fará cometer este erro‖). Todos esses níveis são perfeitamente legitimados dentro do campo coletivo-cultural de significados, e coincidem dentro dele. Ainda assim, é da pessoa a liberdade quanto a qual nível de simbolização adotar – dentro das fronteiras do campo de significados em dado período histórico. Eu acrescentaria aqui que esta sobredeterminação é flexível, sendo estimulada em alguns momentos e em outras limitada a apenas um nível de signo (ou nada disponível, como, por exemplo, acontece quanto a algumas 62 ações humanas automatizadas que em seu desenvolvimento se tornaram livre do controle semiótico) . Não vou examinar aqui o processo de generalização dentro dessas hierarquias. Limito minha cobertura às relações entre dois níveis adjacentes da hierarquia de controle de signo (SIGNO e META-SIGNO), e à sua relação com o alvo da regulação, assim como sua auto-regulação. Figura 1.13. A relação com a dinâmica da mediação do signo pelo metasigno Signos construídos criam, simultaneamente, a unidade de estabilidade e flexibilidade. O signo situado como regulador em um meta-nível define as fronteiras de estabilidade do signo. Ao definir tais fronteiras, ele necessariamente define os domínios de instabilidade, ou as possibilidades para transpor essas fronteiras (de acordo com a lógica co-genética – ver capítulo 3; e também Herbst, 1995). Aqui se apresenta o princípio universal da indeterminação delimitada (Valsiner, 1997) operando no mundo cotidiano: cada muro construído em uma cidade para separá-la em duas metades, ou cada restrição feita pelos pais quanto à hora estabelecida – ou ―toque de recolher‖ - para os adolescentes voltarem para casa, criam duas novas possibilidades – sustentar a regra de separação (ou seguir as regras da casa), ou transgredi-las. A criação de tal ponto de bifurcação – o momento da decisão quanto a agir de um modo ou de outro – é um processo psicológico cheio de ambivalência. Pode haver a tensão da própria tentação de transgredir, que é temperada pela ferramenta cultural auto-regulatória (significado), Signo X Signo Y Signo Y Signo X como meta- signo com relação a Y 65 acontecendo). E se um desses agentes ou arenas está ausente (ou é disfuncional para a promoção do valor em foco), outros assumem seu papel. ‗ Regulando o futuro subjetivo: O Signo Promotor A existência humana situa-se dentro de uma extensão temporal que é orientada para o futuro. Essa extensão se efetiva através do estabelecimento de signos específicos abstratos o suficiente para funcionar como guias de toda a gama de construções possíveis no futuro. Esses signos – ou partes de signos – operam como signos promotores (Valsiner, 2004; 2006b). Devido a sua generalidade, eles são mais adequadamente descritos por representações gráficas do tipo campo. Fenomenologicamente, esses signos promotores são profundamente internalizados e operam como orientações pessoais baseada em valores. Todo operador semiótico pode funcionar como um signo promotor, orientando a amplitude de variabilidade na construção de significado possível no futuro (em analogia com as seqüências da organização genética humana que promovem a expressão de outras partes do gene). Cada significado – signo – que está em uso durante a janela de tempo infinitamente pequena que nós, convenientemente, chamamos ―o presente‖, é um dispositivo de mediação semiótica que se estende do passado em direção ao possível futuro - antecipado, ainda que desconhecido. O papel promotor desses signos define-se como uma função prospectiva (feed-forward): os signos estabelecem a gama de fronteiras de significado possíveis para as experiências futuras no mundo, que são imprevisíveis, ainda que antecipadas. Quando necessário, a pessoa está constantemente criando significado adiante de seu tempo, orientando-se em direção a uma ou a outra vertente da experiência antecipada e, dessa forma, preparando-se para esse futuro. Operando em outras fronteiras de possibilidades. Os signos são, no presente, promotores de um leque de significados possíveis de serem fabricados no futuro, mas não de significados específicos. Essa variedade inclui cada um dos pontos dentro dos circunscritores que especificam a fronteira do campo de significação. Conseqüentemente, cada um dos significados possíveis está incluído nesse leque que é fornecido pelos signos promotores. 66 Figura 1.15. A função promotora dos signos em diferentes níveis de abstração generalizada PASSADO PRESENTE FUTURO Uma vez estabelecido em uma versão generalizada, um signo se torna um signo promotor quando canaliza ações futuras e, sobretudo, quando se torna internalizado sob a forma de sentimentos. Considere-se a descrição de um sentimento profundamente enraizado de uma pessoa em relação a papel: Seja escrito ou não, impresso ou não, eu sinto respeito por todo tipo de papel para escrever. Não suporto beiras dos cadernos dobradas, ou pilhas de papel fora de ordem. Após ler o jornal, não consigo deixá-lo assim como fica, todo desarrumado, com páginas fora do lugar. Por exemplo, se vejo alguém sentado à minha frente em um transporte público, descuidadamente abrindo as páginas de uma revista ou livro com sua unha ou com um pente, fico logo chateado (Nesin, 1990, p. 42). Variedade de A Novo Significado C Geral Específica Variedade de B Significado Geral B Significado A 67 Nesse exemplo, o signo generalizado tipo campo que nomeamos sinteticamente ―respeito pelo papel‖ colore cada momento do relacionamento da pessoa com o ambiente. Na reconstrução que o autor faz de seu passado, esse respeito foi desenvolvido através de uma série de eventos simbólicos repetitivos na infância (quatro décadas antes): ... quando eu era criança, todo turco capaz de ler ou escrever, viesse ele de aldeias ou de cidades grandes, pegaria imediatamente duas coisas do chão e as poria em um lugar de destaque numa parede, poste, em um galho de árvore ou outro lugar bem acima do chão. Uma dessas coisas era pão; a outra, papel impresso. Essas duas coisas não eram para ser pisadas. Pão era um ―dom de Deus‖ e a página impressa era sagrada. Ao pegar o pão, a pessoa, primeiro, o beijava e tocava a própria testa com ele, pondo-o então nesse lugar alto onde não poderia ser pisado. E pessoa alguma pensaria, jamais, que algo mau poderia ser impresso no papel‖ (ibid.). A noção generalizada de respeito sagrado era promovida pela unidade entre proibição de ações, rituais e significados na infância. Uma vez colocada, essa unidade preparava o palco para o sentimento relacionado a encontros que viessem a se dar com materiais impressos, esvaziando-o previamente de outros conteúdos. Todos os encontros concretos com papel (significado A na Fig. 1.15) seriam subsumidos por tal sentimento generalizado (significado B na Figura 1.15), através de uma ampla variedade de circunstâncias. É este o processo de generalização abstrativa de signos: estabelecer o sentimento dirigido à ambiência a ser estabelecida, que é construído através dos signos promotores. Ou, em outros termos: a continuidade generalizante do self em desenvolvimento é o produto da externalização de signos internalizados que começaram a funcionar como signos promotores. No contexto do estudo de vidas humanas, uma proposição geral se coloca: a de que os seres humanos se desenvolvem através de uma alta variedade de trajetórias de curso de vida e são capazes de demonstrar notável flexibilidade, momento a momento, em seu relacionamento com seus ambientes. No âmbito das perspectivas histórico-culturais sobre o desenvolvimento humano, uma tendência declara ser central nesse processo o papel dos signos (mediação semiótica). Ainda assim a questão permanece: como tal flexibilidade - e variabilidade - são 70 Em grande parte, a arquitetura religiosa, a arte, os rituais e as razões para todo tipo de conflitos no mundo são devidos a este simples processo de caráter projetivo-constritivo. Nós construímos os significados que nos conduzem a reconstruir o mundo objetivo; e o mundo reconstruído orienta nossa processos posteriores de construção de significados. Tanto a Catedral de Notre Dame quanto o McDonald‘s são realidades arquitetônicas objetivas dentro dessa cadeia subjetiva de construção de significado. Seres humanos, graças à sua capacidade para transcender, através de signos, aos contextos da realidade imediata, aqui-e-agora, vivem constantemente sob a tensão entre ―o mundo COMO É‖ (―AS IS‖) e o imaginário ―mundo COMO SE‖ (―AS-IF‖), antecipado ou acompanhado (Vaihinger, 1911/1935). É neste ponto que a cultura entra na psyche humana, complicando infinitamente a construção das ciências da mente humana. Não apenas essas ciências precisam descrever os domínios dos fenômenos psicológicos como eles são – sejam eles comportamentais, emocionais ou cognitivos. Precisam também captar o domínio do que esses fenômenos parecem ser (os mundos ―COMO SE‖/―AS-IF‖) e daquilo em que eles podem tornar-se. O tipo de inovação metodológica necessária (ver capítulo 9) é o desenvolvimento de novos signos promotores científicos capazes de estudar melhor as realidades psicológicas. Toda a terminologia científica, de maneira similar à sua contrapartida na linguagem cotidiana, é, de fato, uma versão desse sistema regulador que envolve signos promotores do tipo abstrato. Assim o é aquela parte voltada para explicar objetiva e abstratamente a complexidade de nossos fenômenos psicológicos. Uma teoria científica é justamente um tipo de catedral mental que permanece no centro da confusão barulhenta e vibrante a que nós chamamos ―viver uma vida‖. Unidade de opostos e natureza direcional dos significados. O crescimento dos sistemas de controle semiótico garante tanto a flexibilidade psicológica quanto o seu oposto (fixação inflexível sobre uma forma de pensar ou sentir em relação a algo). Alguns autores defendem, por vezes muito enfaticamente, que o desenvolvimento humano é um processo de co-construção. Como tal, envolve tanto a pessoa ativa quanto o ambiente ativo, vindo a ocorrer no encontro entre esses diferentes níveis. Podemos postular a existência de bi-direcionalidade tanto no nível da função psicológica que será regulada (nível de base) como no dos mediadores semióticos (primeiro meta-nível). As funções psicológicas são histórias, no sentido de que são circunscritas dentro da irreversibilidade 71 do tempo. Sua direcionalidade pode ser descrita em termos de orientação para metas. Defende-se aqui que as funções psicológicas humanas mais inferiores são orientadas por metas (preferivelmente a dirigidas por metas), na medida em que sua direcionalidade pode ser especificada (metas específicas, porém, podem não vir a ser realizadas, pois são construções quanto a algum possível futuro). O uso ou invenção de uma palavra para descrever algo não apenas diz respeito ao referente denotado, mas apresenta esse referente de acordo com alguns propósitos e direções. Por exemplo, se alguém em um quarto menciona: ―a porta está aberta‖ (o que pode ser verdadeiro aqui, quanto ao estado de uma determinada porta), isto não é simplesmente um caso de reiterar o óbvio (que você de todo modo pode ver), mas de apresentar esse aspecto do ambiente com alguns propósitos. Uma pessoa não precisa ter metas específicas em mente ao enunciar tal proposição; contudo, essa proposição é, simultaneamente, re-presentação, co- apresentação e pré-apresentação. Se tal representação é óbvia, a co-apresentação (a função de mencioná-la naquela situação) é obscura, como também o são suas funções pré-apresentacionais. Exemplo 1.2. ―Sentindo algo‖. Consideremos um exemplo trivial. Uma pessoa está sentindo algo (mas não está claro ainda para ela o que é esse algo). Na realidade, este ―sentindo algo‖ é um campo (uma amplitude) de fenômenos afetivos, não claramente especificados. Se parece claro que as diversas manifestações do sentimento se equivalem de forma precisa, são precisamente similares, isso se refere somente ao fato de que o sentimento esteja se movendo (pela introspecção da pessoa) em direção a se tornar focado de modo mais estrito. Então, em dado instante, a pessoa se dá conta de ―estar zangada‖ e chega a enunciá-lo. A extensão de sentidos possíveis dentro dos quais a noção ―zangada‖ foi desenvolvida antes deste ponto de conexão entre níveis está limitada pela fronteira de seu oposto (―não-zangada‖ ou não-A), e muda ao longo do tempo. A partir do instante do reconhecimento do ―estar zangado‖, o domínio do sentimento (no nível A) passa a ser re-direcionado. O sentimento prévio torna-se agora parte do sistema de raiva, e amplia-se para incluir outros fenômenos do sentir através do signo ―raiva‖. Essa abertura orienta a re-definição da amplitude de sentidos no nível do signo. 72 A ampliação do sentimento pode alcançar um ponto no qual este é ―desligado‖ pelo papel circunscritor de um outro signo (por exempo, ―eu estou envergonhado‖), o qual – se aplicado enquanto canalizador – pode eliminar o fluxo (canalização) do sentimento anterior. Portanto, o autodiálogo da pessoa em questão pode incluir o enunciado ―Eu estou zangado, e sinto-me envergonhado por isso, eu não devia me sentir dessa forma‖, seguido pela supressão do sentimento em sua totalidade (a pessoa pode relatar que ―não sente nada‖, ou que se sente ―anestesiado‖, ―sem fala‖). Figura 1.16. Autoregulação e heteroregulação de signos 75 Processos de construção de significados são adaptativos quando podem conduzir de modo flexível à generalização de uma parte da experiência, mas evitando essa mesma generalização para outras partes. O crescimento do sistema de regulação semiótica dá origem a significados generalizados (campos contextuais) que fazem o sistema crescer (desde que o campo contextual seja ―da espécie X‖), até que uma mudança ocorre (introduzindo uma ―espécie Y‖). Note-se que as instâncias ―espécie X‖ e ―espécie Y‖ operam, respectivamente, como exemplos de ―não-A‖ no sistema de construção de significado descrito em um outro texto (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999 – ver desdobramentos no Capítulo 3). É através do contexto generalizado sub-dominante para C1 (não-C ou ―espécie Y‖) que o sistema de regulação semiótica cria seu próprio bloqueio. O signo de ―parar‖, meta-regulatório, conduz o processo regulador ao colapso da hierarquia recém-criada (―aqui-e-agora não são necessários mais signos‖). Exemplo 1.3. Consideremos um exemplo empírico, tomado de uma autobiografia publicada por uma garota esquizofrênica, Renée (Sechehaye, 1951). Depois de uma infância cheia de hipersensibilidade frente a objetos e pessoas de seu ambiente, Renée, quando adolescente, tornou-se paciente da psicanalista Marguerite Sechehaye (a quem se refere como ―Mama‖). O episódio citado abaixo aconteceu após Renée ter desenvolvido, em sua psique, um complexo de perseguição: ―o Sistema‖, como perseguidor, transmitia a ela comandos para agir. Renée estava lutando contra esses comandos ao utilizar o processo psicoterapêutico como canal. Antes do episódio citado abaixo, Renée observou o desenvolvimento de um animismo exagerado. O exemplo que se segue nos permite vislumbrar a luta intensa que Renée travava ao lidar com todas as ―vozes‖ em sua mente: … Eu estava me preparando para datilografar um texto quando, de repente, sem qualquer aviso, uma força - que não era um impulso, parecia mais ser um comando -, me deu uma ordem para queimar ou minha mão direita ou o prédio em que eu estava. Eu resisti a essa ordem com todas as minhas forças. Eu telefonei para Mama [a psicoterapeuta] para lhe contar o que estava acontecendo. Sua voz, me intimando a escutar a ela e não ao Sistema, me tranqüilizou. Se o Sistema se tornasse muito exigente eu correria para ela. Isso me acalmou consideravelmente, mas, infelizmente, apenas por um momento. 76 Uma angústia indescritível me apertava o coração, uma angústia que não se resolvia nem podia ser aliviada. Se eu me recusasse a obedecer, eu me sentia culpada e covarde por não ter a coragem para tal, e a angústia crescia. Então a ordem se tornava mais insistente. Se, para finalmente obedecer, eu viesse até o fogo e estendesse minha mão para ele, um intenso sentimento de culpa me tomava, como se eu estivesse fazendo algo terrível, e a ansiedade aumentava em proporção. Eu deveria dizer, porém, que esta última alternativa provocava um transtorno maior, pois eu sentia que, se obedecesse à ordem, eu estaria cometendo um ato irreparavelmente danoso à minha personalidade. E, contudo, em ambos os casos, obediência ou desobediência era de alguma forma artificial, de alguma forma teatral (Sechehaye, 1951, p. 36, ênfase do autor). Aqui nós vemos uma descrição da oposição - interna ao self - de duas ―vozes‖, ambas as quais são atribuídas a agentes sociais (―o Sistema‖, Mama), externamente ao self, e ainda assim assumindo um papel dentro do self interior de Renée. A própria voz de Renée, central, torna-se um ator que contracena com as vozes iminentes dos outros: ela resiste a essas vozes, de formas que conduzem a uma supergeneralização afetiva no interior de seu self (sentimentos de angústia, culpa), fortificada por significados utilizados como controladores semióticos (―terrível‖, mau‖, ―danoso para a personalidade‖). Finalmente, o resultado é o distanciamento através de um significado hiper-generalizado (―algo teatral‖). Exemplos extraídos de casos psicopatológicos freqüentemente demonstram como a mente funciona quando a circunscrição de mediação semiótica é de algum modo alterada. Se os signos indicando ―pare!‖ se perdem no processo de auto-regulação (isto é, a decisão na junção ―novo nível, n+1?‖, na Figura 1.12 - sendo resolvida sempre afirmativamente), o self não seria capaz de funcionar no ambiente de vida real. A ausência (ou eliminação da capacidade de produção de metareguladores leva à superproliferação de significados posteriores ainda mais abstratos e hiper-generalizados, sem limites. O ―livre fluxo‖ do pensamento esquizofrênico pode estar disponível devido à ausência de meta-reguladores que teriam parado esse fluxo em muitas direções, circunscrevendo-o em direção a modos convencionais e apropriados ao contexto de regular a experiência. 77 Síntese de reguladores e meta-reguladores. O self dialógico pode ser visto como auto- regulador dos processos de ação em curso, na medida em que cria um senso geral pessoal acerca do que está acontecendo em dado momento. Este último momento de construção de significado é um subproduto do processo de regulação semiótica em curso. É a partir de uma base centrada no ego que os seres humanos continuam vivendo em seus mundos de vida, aqui e agora, e regulando seus relacionamentos. Sua possibilidade de refletir sobre esses mundos emerge como um subproduto dos esforços de regulação, através de significados afetivos super-generalizados que se mantêm enquanto organizadores da construção subseqüente de sistemas de controle semiótico. A co-emergência de reguladores semióticos garante a auto-regulação da hierarquia semiótica ao longo do tempo e através dos contextos. A questão crucial do sistema de regulação semiótica é garantir sua suficiência para a regulação da experiência imediata, bloqueando a proliferação desnecessária de evocação de signos em um dado contexto imediato, aqui-e-agora 14 . O processo de mediação semiótica nos permite ignorar uma miríade de possibilidades improváveis em dado momento, que podem ser desconsideradas para todos os propósitos práticos. Por exemplo, nós não esperamos que o teto vá despencar sobre nossas cabeças (mesmo se este é um cenário possível); e não esperamos cair por terra a cada passo que damos (mesmo se caminhar pode ser analisado como um processo de constante perda e ganho do equilíbrio vertical, o qual requer tempo para se estabelecer, especialmente durante o segundo ano de vida de uma pessoa). Portanto, o mecanismo psicológico geral de bloquear ou negligenciar psicologicamente porções da realidade e da experiência impede uma quantidade de cenários de atingir uma síntese disfuncional. Sem tais bloqueadores semióticos, uma ação seria impossível. Pierre Janet (1921) forneceu elegante evidência para isto a partir de casos psiquiátricos. Um 14 Essa perspectiva fornece um olhar algo original sobre os fenômenos que são usualmente rotulados como ―criatividade‖. Não se trata da capacidade de produzir versões novas do objeto no domínio da criatividade, qualquer que seja ele, mas de desenvolver um sistema de meta-reguladores que possibilita orientar as versões criadas em direções que estão dentro da ―zona de desenvolvimento proximal‖ daquilo que as convenções prevalentes permitem considerar ―criativo‖. Aqui, novamente, o campo tripartite (A=‖criativo‖; não-A=―não-criativo mas convencional‖; nem-A=não convencional e não criativo) é aplicável (Bateson, 1971). Para maior cobertura desse tópico, ver o capítulo 3. 80 sei, eu garanto a você que não é que eu deseje morrer; eu chego até a ter medo de que isso possa acontecer, mas, a despeito de todos os meus esforços para comer, existe algo que me impede (Janet, 1901, pp. 288-289, ênfase do autor); Aqui podemos observar a rivalidade entre vários campos de signos meta-afetivos em diálogo (ver mais sobre Self Dialógico no capítulo 3). No material do sonho de Isabella, bem como em seus estados delirantes, os reguladores simbólicos interpessoais vão se tornando clarificados: Sua mãe, já morta, aparece para ela durante os ataques, culpando-a por algum erro que ela cometeu, dizendo-lhe que ela não merece viver e que deveria ir juntar-se a ela no céu e, por essa razão, lhe ordena que não coma (Janet, 1901, p. 289). A prova de que esse organizador semiótico (uma I-Position, ou Posição de Eu, externa – ver Capítulo 3), é realmente o principal regulador de Isabella, em um meta-nível, relacionando-se com ela através do comer, chega a ela mediante sugestão hipnótica feita a ela e que anula a imagem materna. Uma vez acordada, Isabela encontra-se capaz de comer com facilidade, até que o novo episódio delirante ocorra. Esses exemplos indicam que algumas formas de trajetórias patológicas de ação podem ser construídas se os processos semióticos regulatórios estiverem funcionando mal. Em nossos modos comuns de viver, nós podemos, mediante estratégias de circunvolução (Josephs & Valsiner, 1998), descartar as imagens mórbidas ligadas a atividades banais como comprar camisas ou alugar um apartamento. Tais idéias mórbidas, nesse caso, não tiveram oportunidade para crescer e se tornarem dominantes. Em nossas vidas cotidianas, mecanismos semióticos de descarte 17 (MSD) tornam possível que vivamos com uma construção minimizada de medos e acidentes. O poder da mente humana é o grande mecanismo de descarte face à miríade de possíveis cenários de acidentes. Nossa capacidade de suprimir seletivamente esses cenários – ou de simplesmente desconsiderá-los, não lhes dar atenção – é a base para nossa saúde mental. Exemplo 1.5. Como é que pode acontecer de não sermos paranóicos? Como é possível a paranóia? A emergência de paranóia é um exemplo de como o processo de construção envolve a substituição do regulador geral de descarte por seu oposto. Portanto, é a 17 Descarte ou diminuição de possibilidades. Nota da Tradutora. 81 dualidade de oposição de significados que opera como um regulador (havendo um lado dominante, mais forte): {―ISTO É POSSÍVEL, MAS NÃO PROVÁVEL  ISTO É POSSIVEL, E PROVÁVEL‖} Partindo inicialmente dessa dualidade, o construtor de significados chega a reverter a dominância dentro da oposição, ou seja, a parte ―ISTO É POSSIVEL, E PROVÁVEL‖ torna-se dominante. Se, desse ponto, seguir-se o desengatamento dos opostos (desfazendo-se a parte POSSÍVEL-NÃO- PROVÁVEL) e um padrão ascendente da parte dominante que se desengatou (―ISTO É POSSIVEL, E PROVÁVEL‖) predomina quanto a uma experiência específica, então nós atingimos a porta de acesso para a emergência de preocupações e –eventualmente - de paranóia. Isso poderia envolver a criação do significado de ‗perigo, o qual, quando retroalimentado dentro do processo, cresce e se torna hipergeneralizado. Por si só, ser realista quanto aos potenciais perigos que se pode encontrar nos ambientes não é condição suficiente para a emergência de paranóia. Para esta última ocorrer, considere-se que …quando uma pessoa paranóica falsamente atribui funções, atitudes e intenções a outras pessoas, ela faz muito mais do que simplesmente dirigir-lhes seus pensamentos. Ela estabelece inter-relações hipotéticas entre outras pessoas e ela própria, e as organiza funcionalmente dentro de uma pseudo-comunidade, constituída por pessoas objetivas com funções imaginárias. Essas funções imaginárias são construídas a partir de fragmentos do comportamento social de pessoas sociais. Os fragmentos de comportamento são distorcidos pelo paranóico na direção de seu sistema em expansão. O movimento real, os comentários e outras ações das pessoas em torno dele se tornam dicas, sinais, ameaças e avisos dentro de uma pseudo-comunidade de conspiradores. Fora dessa matéria prima de seu entorno, o paranóico organiza um ambiente funcionalmente inter-relacionado, do qual ele próprio é o ponto focal. Esse padrão se desenvolve a partir de suas sensibilidades e preocupações, bem como do caráter acidental do detalhe confirmador que ele encontrará relacionado a si mesmo. Eventualmente, ele reage abertamente a toda essa estrutura. Na maior parte das vezes, ele começará a tomar medidas e contra-medidas protetoras ou agressivas, até que a coisa toda finalmente irrompe no campo social (Cameron, 1943, p. 231). 82 Comumente, a incompreensão e falsa interpretação do mundo social vão se transformar numa escala de ilusões de perseguição e se tornar rígidas. A pseudo-comunidade construída se torna uma condição catalizadora para a compreensão sintética das ações de pessoas reais. No mundo de vida do paranóico – assim como no de qualquer pessoa – essa comunidade imaginada é um veículo semiótico para auto-regulação. A dinâmica da emergência da paranóia pode ser vista como similar – no lado oposto quanto ao conteúdo – à emergência de qualquer identificação positiva de uma pessoa com uma entidade social. Um paranóico construiu uma expectativa estável para que o mundo lá fora se constitua a partir dele ou dela. Numa linha similar, a pessoa com uma identificação positiva construiu um valor positivo incondicional quanto ao objeto de identificação dentro do mundo no qual este se situa. Se alguém interpreta os insumos neutros do mundo como negativos (e também positivos), o outro aceita até mesmo insumos negativos do mundo em termos de sua benevolência - esta, igualmente construída. Neste último caso, ocorre uma interpretação similar à do paranóico, mas na direção oposta. Nesse sentido, os opostos das identidades sociais positivas e dos padrões paranóicos patológicos são criados pelo mesmo sistema organizacional básico dentro do self dialógico. Sumário: Cultura como sistema semiótico de regulação Cultura é uma parte da organização sistêmica das funções humanas psicológicas. Ela assume a forma da construção e uso de signos para transformar o contexto aqui-e-agora do ser humano. Os seres humanos podem distanciar-se a si mesmos de qualquer contexto no qual estão imersos através de tais meios culturais (semióticos), permanecendo, ainda assim, como partes desse contexto. Portanto, o relacionamento cultural humano com o mundo envolve, simultaneamente, proximidade e distanciamento da situação concreta na qual a pessoa está imersa. Essa visão dinâmica e construcionista sobre cultura cria a ponte entre as psicologias cultural e desenvolvimental. A primeira investiga o processo de construção e uso de signos e seus resultados. Esses resultados envolvem novidade – a emergência dos fenômenos psicológicos que não existiam antes da criação de nova compreensão, aqui-e-agora, através de um signo. A 85 Já que este livro é sobre os fundamentos semióticos da psicologia cultural, podemos considerar a própria noção de sociedade como um signo. A palavra sociedade denota uma miríade de fenômenos, colocando-se para nós como exemplo de um signo tipo campo (em contraste com signos tipo ponto – Capítulo 1) – um signo hiper-generalizado que permeia nosso pensar e sentir em sua totalidade. Tais signos estão por toda parte - e ao mesmo tempo em parte alguma - em nossas mentes culturalmente constituídas. Eles formam uma semiosfera (Lotman, 1990, 1992), que é … o espaço semiótico necessário para a existência e funcionamento de linguagens - não a soma total de diferentes linguagens. Em certo sentido, a semiosfera tem uma existência prioritária e está em constante interação com linguagens (Lotman, 1990, p. 123) Toma-se emprestada a noção de semiosfera, por analogia, do mundo biológico: sua noção gêmea é a de biosfera. Ambos são conceitos holísticos do tipo campo. A semiosfera é caracterizada por sua heterogeneidade – diversidade de elementos e suas funções. Os elementos do campo existem em relações binárias, que são vistas como assimétricas (centro <> periferia). A noção geral de sociedade é um dos termos gerais dentro de nossa semiosfera. Operamos em nossas vidas cotidianas através do uso da noção de sociedade, tomando suas ―demandas‖ em consideração, desejando ―pertencer a ela‖, ou mesmo dedicar-lhe nossas vidas. Os onipresentes memoriais de guerra são um testemunho, para a História, de alguém que deu sua vida respondendo ao chamado do dever patriótico para com uma dada sociedade em um determinado período. Sociedade: uma abstração funcional e um mediador semiótico Como uma abstração conceitual, a sociedade passa a ser parte das práticas cotidianas mediadas por diferentes instituições sociais – governos, polícia, exércitos, operários, vendedores. Todas essas instituições são agentes reais e poderosos na vida social, embora nenhuma delas, individualmente, seja equivalente, por completo, àquilo que é referido pelo signo sociedade. Mesmo o mais auto-confiante monarca - que pode proclamar ―Eu sou a sociedade‖ – ou um partido político que tenha estabelecido total controle sobre o funcionamento de um governo, não 86 estão nos contando a verdade. Nenhuma pessoa ou instituição singular pode ser a sociedade. No entanto, tais usos políticos do termo indicam que os esforços de alguém para apresentar-se como se fosse a sociedade são de algum modo funcionais. Diferentes atores sociais – políticos, líderes religiosos, partidos políticos, serviços nacionais civis ou não-civis (isto é, secretos, paralelos) – todos tentam se apropriar do valor simbólico do signo a sociedade para seus propósitos particulares. A própria noção de sociedade é uma construção social relativamente recente. Passa a ser utilizada no Século XIX, ocasionando a emergência de áreas de investigação - denominadas ―ciências sociais‖ - para estudá-la. Entretanto, foi construída sob a ambigüidade de estar entre o poder social do estado e os mundos domésticos de seres humanos individuais: De meados do Século XVIII em diante, o termo ―sociedade‖ passa a ser utilizado nas ciências morais e políticas, em particular dentro dos debates entre franceses e escoceses, e se tornou a denominação, ali, para o objeto chave da vida sociopolítica. Originalmente, em combinações tais como ―sociedade política‖ e ―sociedade civil‖, referia nada mais do que o estado, mas de um ponto de vista da teoria do contrato, ou seja, a agregação de seres humanos que se reuniram para um propósito. Porém, o termo ―sociedade civil‖, em algumas teorias do final do Século XVIII, passa a ser visto como um fenômeno que era diferente do estado – mas também diferente de habitações individuais (Wagner, 2000, p. 133, ênfase do autor). A noção de sociedade é, portanto, um significado na intersecção dos domínios público e privado da existência humana. Os bem-estabelecidos grupos de parentesco – a família, o clã – ligados por laços de sangue (e herança) não necessitam de nova designação. Seria inútil chamar os complexos palácios dos sultões turcos, ou dos reis franceses, de ―sociedade Topikapi‖, ou ―sociedade Versailles‖. Da mesma forma, em Hansatown, a mudança de nome de uma liga medieval de profissionais especialistas, de ‖Liga dos Ourives‖ para ―Sociedades dos Ourives‖ não seria mais do que um ato inconseqüente de re-rotulação. O uso do termo torna-se funcional quando emergem novos propósitos sociais para que as pessoas se reúnam – quando a organização estatal de papéis sociais passa a ser negociada pelos grupos de indivíduos relacionados ao poder do estado. 87 A noção de sociedade atua como um mediador semiótico – um signo – nos processos de comunicação humana, tanto entre pessoas e instituições, como na condição de regulador intrapsicológico. Como um signo, ‗a sociedade‟ é um exemplo de um campo de significação hiper-generalizado. Tais signos hiper-generalizados são amplamente utilizados por nós como promotores de nossos modos de sentir e pensar, à medida em que atravessamos a miríade de espaços da nossa vida cotidiana. Eles fornecem não apenas um conhecimento generalizado, abstraído, sobre nossos mundos, mas também conduzem sugestões afetivas que utilizamos em nossos modos cotidianos de viver. A sociedade ―nos passa‖ não apenas diferentes necessidades e obrigações que assumimos, mas também noções tais como justiça, amor, sucesso, lucro e pecado, que irão regular nossas relações cotidianas com os outros e com os nossos próprios selves. Signos criam campos. Moscovici afirma a natureza dual da sociedade: esta tanto modera quanto excita diferentes tendências – agressivas, epistêmicas, sexuais – e aumenta ou reduz as chances de satisfazê-las. Esta observação conduz-nos aos modos através dos quais signos hiper- generalizados efetivamente regulam a psyche humana. O aspecto importante desta regulação é a unidade de opostos dentro da mesma totalidade: a noção de sociedade faz distinções, e insere tanto proibições (fronteiras) quanto os modos e condições para sua transgressão, dentro do campo diferenciado de tais distinções. „A sociedade‟ opera no discurso humano como um meta-signo que regula outros significados utilizados na vida cotidiana, ao atribuir agência personificada a uma entidade abstrata socialmente construída. Considerem-se proposições tais como ―a sociedade necessita X‖ ou ―a sociedade quer Y‖. Ao atribuir funções tais como ―desejar‖, ―necessitar‖ ou ―merecer‖ à vaga noção de sociedade, os seres humanos criam uma divindade secular para eles mesmos, que é criada por suas próprias mentes, isto é, uma pessoa – um ―EU‖ – diz: ―a sociedade quer que eu faça X‖, ao que se segue, ou resiste, o ―querer‖ do outro – ver Valsiner, 1999, e acima, no Capítulo 1, a noção de ―hierarquia cíclica de signos‖. 90 ―individualistas‖ e ―coletivistas‖. A prática de fazer tal distinção (por exemplo, ―japoneses e indianos são coletivistas‖ ou ―norte-americanos são individualistas‖) pode atuar suficientemente bem no discurso cotidiano, mas falha quando é colocada enquanto explanação científica. Assim, propor que uma ―causa‖ latente – coletivismo – produz todos os fenômenos sociais e psicológicos dos japoneses, indianos ou de pessoas de qualquer outra nacionalidade seria grosseiramente inadequado. Da mesma forma, defender que o individualismo americano causa ―conduta individualista‖ é simplesmente tautológica. Tal atribuição seria similar à projeção mágica dos poderes causais de X sobre o próprio X (―espíritos da água‖ sobre a água, ―espíritos das árvores‖ sobre as árvores etc.). Se, por um lado, o pensamento mágico ajuda na vida cotidiana - e é visto como funcional pelo senso comum -, por outro, seus usos na linguagem científica criam um impasse que aproximaria a psicologia da alquimia 18 Para o uso científico desses conceitos, a unidade de opostos é adequada. Assim, todas as pessoas - e unidades sociais tais como grupos, comunidades, instituições e países – são, ao mesmo tempo, ―individualistas‖ e ―coletivistas‖. Quando vistos como uma totalidade dinâmica, é o relacionamento entre os dois opostos que gera todos os resultados. Esses resultados podem ser classificados como ―individualistas‖, ―ambíguos‖, ―coletivistas‖ ou quaisquer outras categorias – embora o sistema que as produziu inclua os opostos dinamicamente relacionados (Figura 2.2). A unidade desses opostos raramente tem sido reconhecida na psicologia social contemporânea (ver Sinha & Tripathi, 2001). Por que não focalizar relações? O impacto de um poder mascarado Aqui, uma questão razoável é: por que a psicologia tem negado tão peremptoriamente a alternativa de construir conceitos teóricos que unificam opostos e permitem explicar resultados de variados tipos através de tais opostos? Ao invés, a constante re-fabricação de novos conceitos explanatórios sempre entificados – rótulos que se referem a entidades monopolares, tais como 18 Os conceitos dos alquimistas eram similares aos da psicologia do nosso tempo: ―...antes da emergência da ciência da alquimia, muitos alquimistas acreditavam, por exemplo, que os nomes era absolutos. Longe de serem arbitrários, como termos foram considerados posteriormente, eles eram tratados de um modo extremo como se eles fossem equivalentes às coisas‖ (Crosland, 1995, p. 31). Em psicologia, a tradição de entificação – considerar ―inteligência‖ ou ―traços de personalidade‖ como se eles fossem entidades reais (e causais) ―na mente‖ – é um movimento epistemológico de um tipo similar. 91 traços – permanece disseminada nas ciências sociais. A construção dos conceitos de personalidade no ―The Big Five‖ 19 , ou da separação de masculinidade e feminilidade (e seu uso em esforços explanatórios), a invenção de recorrentes versões de ―inteligência‖ (―social‖ ―emocional‖ etc.), são todos exemplos da mentalidade 20 monológica dos pesquisadores. A mentalidade monologizante dos pesquisadores pode ser reconhecida no modo de representação social que concebe as explanações para fenômenos complexos: se devem ―ser descobertas‖ ou, mais realisticamente, ―construídas‖. A própria psicologia se estabelece como uma disciplina independente no século XIX, em um contexto europeu dominado por cerca de 1500 anos do impacto da ideologia da Cristianismo em suas múltiplas formas e transformações – a separação Bizantino/Romana no século X, e a Protestante/Católica no século XVI. O século XVIII traz o foco sobre o ―iluminismo‖, a filosofia renascentista de acordo com a qual se podia esclarecer o que era a alma segundo um ethos individualista. Por essa razão, havia uma orientação social para a construção de princípios explanatórios que converteriam as explanações místicas ou religiosas (em termos de ―atos de Deus‖ ou ―da alma‖) para termos seculares aceitáveis (tais como ―o self‖, ―traços de personalidade‖, ―individualismo‖). 19 Modelo descritivo de personalizado recentemente difundido por Costa & McRae (1992). Costa, P.T.,Jr. & McCrae, R.R. (1992). Revised NEO Personality Inventory (NEO-PI-R) and NEO Five-Factor Inventory (NEO-FFI) manual. Odessa, FL: Psychological Assessment Resources. (N.T.) 20 Sobre a orientação dialógica na construção de teoria, ver Capítulo 3. Essa orientação parte do axioma de que múltiplas causas criam um resultado singular. Diferentemente da aceitação do conjunto não-estruturado de tal multiplicidade, as perspectivas dialógicas assumem um relacionamento do tipo ―diálogo‖ entre essas partes posicionadas do sistema causal. 92 Figura 2.2. Um modelo funcional de coletivismo individualista (ou individualismo coletivista) A essa tradução se acrescentava outro foco, o da construção semiótica européia de supremacia – nos recém descobertos mundos africano, asiático e americano, ―os outros‖ precisavam ―ser civilizados‖ (ver capítulo ). Portanto, não é surpreendente que, mesmo em nossa psicologia transcultural contemporânea, a tensão entre os valores assumidos de ―individualismo‖ versus ―coletivismo‖ permaneça (mais do que ―individualismo‖ dentro do ―coletivismo, e vice-versa). Ao aceitar a equivalência dessas duas orientações, os pesquisadores se confrontam - e combatem – a representação historicamente estabelecida do ―coletivismo‖ como inferior ao ―individualismo‖. O que eles não compreendem, contudo, é que esta luta por igualdade e justiça no plano da representação social é, ela mesma, uma viseira cultural e histórica estabelecida pelo mascaramento do poder na história da ideologia cristã. Os agentes coletivos – a multidão anônima de ideólogos do cristianismo através dos séculos – mantiveram o poder de sua ideologia insistindo que ideologia não tem poder: tudo é delegado aos indivíduos. Entretanto, os indivíduos reais estão no poder por causa da fonte que os designou para estar em tais papéis individuais: as RESULTADOS AMBÍGUOS OU AMBIVALENTES RESULTADOS AMBÍGUOS OU AMBIVALENTES ―domínio individualista‖ ―domínio coletivista" domain‖ RESULTADOS ―INDIVIDUALISTAS‖ RESULTADOS ―COLETIVISTAS‖ 95 Há um princípio geral de construção teórica inerente ao exemplo do individualismo <> coletivismo: os sistemas abertos, sejam biológicos, psicológicos ou sociais, somente podem ser conceitualmente abordados através de modelos que envolvam a unidade das partes do sistema e a natureza dessa unidade. A Figura 2.2. mostra como um sistema de dinâmica recíproca, em constante movimento entre os opostos, conduz a todos os tipos de resultados no sistema. O mesmo sistema ―comporta-se‖ em qualquer um dos diferentes modos, à medida em que seu ―comportamento‖ consiste em subprodutos da ligação dinâmica entre os dois domínios. A produção de um ou outro resultado depende das condições catalíticas (ver Figura 2.1) presentes no ciclo 23 . O modelo na Figura 2.2 é extremamente simples. Ele opera com significados do senso comum (individualismo, coletivismo), mas, ao invés de tratá-los como ―essências‖ causais, trata-os como ―domínios‖ dinamicamente mantidos dentro de um sistema que é definido por seu mútuo relacionamento. O modelo se apresenta em moto perpétuo: ele existe, mantém-se a si mesmo, mas não está se desenvolvendo para além, nem desmoronando. Nesse aspecto, o modelo apresentado aqui é inadequado, embora seja bem mais sofisticado que o usual no tratamento do problema do individualismo/coletivismo na psicologia transcultural. Ao traduzir a oposição de suas ―essências‖ estáticas – INDIVIDUALISMO e COLETIVISMO – em modelos do tipo dinâmico, como no Ciclo de Möebius, nós restauramos o foco sobre os processos geradores que conduzem, pelo mesmo sistema, a atos de conduta ―individualista‖ e ―coletivista. No entanto, o modelo é cego para qualquer relacionamento com o ambiente – um aspecto chave para todos os sistemas sociais, biológicos e psicológicos. Sociedade como um Sistema Dinâmico Nós partimos, aqui, da descrição que usualmente se faz da sociedade em termos do que ela é (ontologia), distanciando-nos desse enfoque para, alternativamente, abordar a sociedade como 23 Esse ciclo assume a forma de um Nó de Möebius reverberativo, em que a qualidade de um pólo terminal se transforma no outro, quando o processo reverbera entre os dois pólos. 96 um sistema dinâmico que se reorganiza constantemente a si mesmo: enquanto segue mantendo seu ―estado constante‖, estabelece, ao mesmo tempo, o patamar para suas próprias transformações em novos estados. Todas as instituições sociais que formam a estrutura da sociedade estão em constante interação umas com as outras, realinhando seus mútuos papéis e seu poder. Além disso, a sociedade é um sistema aberto, como todos os fenômenos biológicos, psicológicos e sociais. Sua organização sistêmica torna-se possível devido à sua constante relação de troca com o ambiente. Antes de tudo, são os recursos do ambiente natural que estão no núcleo do funcionamento da sociedade. Eles se transformam em produtos culturais, os quais, então, tornam-se parte de um contexto social de recursos simbólicos (Zittoun, 2006). A dinâmica de transformação das sociedades depende da disponibilidade de recursos tanto culturais quanto naturais. Todo progresso econômico - e todo colapso - de uma sociedade resulta dos modos pelos quais esses recursos estão sendo utilizados em seu âmbito. A sociedade pode mover-se através de uma variedade de formas organizacionais intermediárias, na preservação de seu ―estado constante‖. Dentro de tal movimento está o começo de sua própria transformação. Todas as sociedades são, portanto, simultaneamente, ―abertas‖ - condição que necessariamente as define -, mantendo a tendência oposta: tornarem-se ―fechadas‖. Pode ser adequado considerar as sociedades como envolvidas no ato de equilibrar seu estado de coisas sob constantes pressões em direção à perda de equilíbrio. A facilidade com que uma sociedade, qualquer que seja, pode se mover de um estado de paz para um estado de guerra é indicativa de sua natureza sistêmica. Como apontado por Georg Simmel: Distinções quanto a diferenças de valor e de finalidade são de tal forma parte das tendências da mente humana, que não podemos nos abster de representar para nós mesmos, através de tais distinções, o fluxo ininterrupto de períodos alternados [na sociedade]... A mesma relação pode ser caracterizada sendo de luta e de paz. Tanto na seqüência [histórica] como no aspecto contemporâneo da vida social, essas condições são tão entrelaçadas que, em toda situação pacífica, estão se desenvolvendo as condições para posterior conflito, e em toda luta as condições para a futura paz. (Simmel, 1904, p. 799, ênfases do autor). 97 O sistema que mantém e reproduz a paz é justamente o mesmo que constrói seu potencial para gerar conflitos militares. Quando as condições para o funcionamento da sociedade mudam, ou quando tal mudança é útil para alguma instituição social, a guerra pode ser deflagrada. O sistema social pode se apoiar na obediência básica das pessoas à autoridade (Milgram, 1974) para aceitar, por vezes entusiasticamente, a substituição do foco na construção do tempo de paz pelos destrutivos focos sobre a guerra (Lewin, 1917). A natureza cultural das relações econômicas. Todas as sociedades são dependentes de suas relações econômicas, as quais são, elas mesmas, produtos e ferramentas da história das sociedades. Os sistemas econômicos dominantes do tipo europeu …devem ser vistos como uma instituição compostas de sistemas de produção, poder e significação. Os três sistemas, que se aglutinavam ao final do século XVIII, estão inextricavelmente ligados ao desenvolvimento do capitalismo e da modernidade. Eles deveriam ser vistos como formas culturais através das quais seres humanos são fabricados como sujeitos produtores. A economia não é apenas - nem principalmente - uma entidade material. É, acima de tudo, uma produção cultural, um modo de produzir sujeitos humanos e ordens sociais de um determinado tipo (Escobar, 1995, p. 59, ênfases do autor). A natureza da sociedade está localizada precisamente no ciclo orientado para o futuro, entre os valores culturais e o sistema de atividades que nomeamos ―economia‖ e seus resultados materiais, sob a forma de construção e destruição dos aspectos materiais da vida. A produção envolve ambas as tendências: recursos naturais estão sendo destruídos em nome de novas construções. Para os propósitos da produção, os processos de trabalho necessitam ser estabelecidos numa sociedade. O trabalho tem dois aspectos. A partir de uma perspectiva econômica, pode ser visto como atividade humana orientada para metas, visando à satisfação de necessidades humanas através de sua relação com aspectos selecionados do ambiente. Além disso, o processo de construção cultural humana envolve, sempre, a construção simbólica de novas necessidades, o que se torna possível através da generatividade semiótica das espécies humanas, que pode criar novas
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