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Guias e Dicas
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A Economia da República Velha, 1889-1930, Manuais, Projetos, Pesquisas de Economia

Gustavo H. B. Franco Luiz Aranha Correa do Lago Brasileira para ANPEC.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2019

Compartilhado em 29/07/2019

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Baixe A Economia da República Velha, 1889-1930 e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Economia, somente na Docsity! No. 588 A Economia da República Velha, 1889-1930 Gustavo H. B. Franco Luiz Aranha Correa do Lago TEXTO PARA DISCUSSÃO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA www.econ.puc-rio.br 1 29-01-2011 versão preliminar A Economia da República velha, 1889-19301 Gustavo H. B. Franco e Luiz Aranha Correa do Lago2 1. Preâmbulo: transição, legado e desafios 2. Do Encilhamento ao Funding Loan 3. O Convênio de Taubaté: a defesa do café e do câmbio 4. O desempenho da economia de 1889 a 1913 em perspectiva 5. A primeira Guerra Mundial, e os “choques adversos” 6. A reconstrução da normalidade nos anos 1920 7. A economia brasileira ao final da República Velha 8. Bibliografia 1 Versão preliminar de capítulo a ser incluído no projeto História Contemporânea do Brasil. Volume 3, A Abertura, 1889-1930, patrocinado pela Fundación Mapfre. Os autores agradecem à coordenadora do projeto e editora do volume, Lilia Moritz Schwarcz pelos inúmeros comentários e sugestões, que não a responsabilizam pelos erros e imprecisões ainda remanescentes. 2 Professores do Departamento de Economia da PUC-Rio. 4 estrangeiro, ou mais amplamente pelo vendaval de inovações tecnológicas e institucionais que caracterizavam o fin de siecle. As perspectivas para o café, o centro de gravidade da economia, pareciam excelentes; preços, produção e produtividade cresciam, embora o arquipélago de monoculturas tropicais de baixa produtividade baseadas na mão de obra escrava, e de há muito decadentes, se mantivesse estagnado ou contraindo, acentuando contrastes regionais e setoriais e as tensões naturais das mudanças. Até mesmo a indústria de bens de consumo durável, notadamente a têxtil, mostrava expressiva expansão na percepção da época. O país precisava se renovar de muitas maneiras, com atitudes e medidas mais favoráveis à iniciativa privada, ao internacionalismo e ao investimento, desafios que o Império genericamente nunca considerou prioritários, e que, neste momento em particular, tornavam-se críticos e dificultavam a missão do Visconde de Ouro Preto, o último chanceler e também ministro da Fazenda do Império, que definira seu programa como o da “inutilização da República”. Na economia, onde havia muito terreno a recuperar, talvez nenhuma outra questão tenha sido mais representativa dos impasses que paralisaram o Império, e que também ocuparam o tempo e a imaginação de sucessivas administrações ao longo da República Velha, que a referente à adesão ao padrão-ouro - a chave para uma economia mais internacionalizada e para a definições cruciais para a moeda e o crédito - um tema que Ouro Preto tomou como urgente e para o qual foi imensamente ajudado por circunstâncias externas particularmente favoráveis. A onda de prosperidade nesses últimos momentos do Império parecia uma benção para o ministro em seus desígnios, mas trazia de volta um problema prático já antigo, o limitado desenvolvimento do sistema bancário e sua incapacidade de acompanhar e apoiar o crescimento da economia. Com efeito, a despeito de repetidas crises de liquidez, de evidentes sinais que a disseminação do trabalho assalariado colocava a demanda por moeda e crédito num patamar inteiramente diferente, e de intermináveis discussões sobre reforma monetária e bancária ao longo da década de 1880, a quantidade de moeda efetivamente em circulação em meados de 1889, era semelhante à que o país tivera no final da década anterior, algo em torno de 200 mil contos, e nada havia mudado no sistema bancário. Os impasses políticos, e sobretudo doutrinários, a impedir o redesenho do sistema monetário do Brasil 5 diante dessa nova conjuntura, ou mais genericamente em face da constante necessidade de se conferir “mais elasticidade” ao meio circulante, como se dizia, são recorrentes ao longo da República Velha e parecem reproduzir em miniatura os grandes debates internacionais sobre a continuidade do padrão ouro e a ascensão da moeda fiduciária em escala global. A natureza desses impasses tinha uma feição teórico-doutrinária que remontava a David Hume e especialmente a David Ricardo cujo papel nas controvérsias monetárias inglesas durante as Guerras Napoleônicas o tornou uma referência freqüente entre os “metalistas” brasileiros. O problema que se colocava era conceitual e profundamente enraizado no saber e nas convenções da época a propósito do sistema monetário que em toda parte ainda se organizava de acordo com os cânones do padrão-ouro: o ouro, de jure, era a única e verdadeira moeda aceita e consagrada em toda parte e o papel-moeda que circulava amplamente em diversos países, e em diversos desenhos, era ou devia ser apenas um certificado de depósito conversível em determinado peso em metal. Quando vários países adotavam esta mesma convenção restava claro que as taxas de câmbio entre eles se tornavam fixas e dadas pelas paridades que cada unidade monetária nacional obedecia com relação ao equivalente universal, o ouro. Em tese, o debate sobre o câmbio ficava reduzido a uma questão de “pesos e medidas, ou seja, era como comparar jardas e metros: a divisão do equivalente em gramas de ouro de uma moeda nacional pelo mesmo equivalente em outra moeda de outro país permitia definir a relação de “câmbio ao par” ou “paridade”, e o efetivo funcionamento do padrão ouro supunha a livre transformação ou conversibilidade das moedas em ouro, inclusive do papel moeda em circulação. Pode parecer simples, mas a adoção desse sistema em escala global foi um pesadelo para muitos países e por uma razão muito simples: apenas por uma coincidência a mineração de metais preciosos produziria a exata quantidade de ouro (ou prata) necessária para o funcionamento dessa máquina sem transtornos para as economias mais frágeis, como o Brasil. No momento em que o Visconde de Ouro Preto iniciava o seu governo, e mais uma vez o mesmo desafio de aderir ao sistema se apresentava, o país se dividia entre os que achavam que havia “superabundância” de papel moeda, e que a política monetária deveria ser contracionista, e os que, por variadas razões, achavam que a economia precisava de mais liquidez para crescer, sobretudo face à disseminação do 6 trabalho assalariado e à monetização daí decorrente. Portanto, o desejo de se expandir a moeda, e que sintetizava uma aspiração generalizada de modernização e progresso que o Império não conseguia incorporar, esbarrou em Davi Ricardo, ou mais precisamente na dificuldade de lidar com o fato de que a moeda brasileira, o mil réis, estava cotada em mercado abaixo do par. O raciocínio metalista era matematicamente simples, e pode ser compreendido mais facilmente se observado de baixo para cima: se a relação entre o ouro armazenado sob a forma de “lastro” e a quantidade total de papel moeda em circulação fosse menor que um, tudo se passava como se o papel (ou a moeda em geral) tivesse uma correspondência em ouro embutido menor do que o que deveria ter. Assim, se o ouro se tornava escasso relativamente ao papel se tornaria caro relativamente à paridade, ou seja, haveria ágio na relação entre a moeda nacional e outra que estivesse na paridade, como era sempre o caso da libra esterlina. A paridade - aqui uma convenção fixada em lei - consiste na exata quantidade de ouro ou metal precioso que deve haver na unidade monetária nacional, seja sob a forma de moedas de ouro e/ou prata e também nas cédulas feitas de papel. Nesse contexto, o papel e as moedas devem ser conversíveis entre si, e livremente trocáveis por ouro à taxa de paridade. Se há emissões adicionais de “papel”, desequilibrando a relação entre ouro e papel, tudo se passa como se o Estado mandasse fabricar mais moedas de ouro do que o metal existente para cunhagem, o que necessariamente levaria à redução do conteúdo de ouro ou do lastro de cada moeda. Tenha-se claro que dizer, naquele momento, que havia “ágio sobre o ouro”, ou “excesso de papel”, era o mesmo que dizer que a taxa de câmbio, ou o preço do “papel” relativamente ao ouro (ou à libra esterlina que era plenamente conversível, e, portanto, representativa de determinada quantidade de ouro) estavam abaixo (mais desvalorizados) do par. Desde 1846, a paridade legal do mil réis mantinha-se constante e inalterada numa quantidade de ouro equivalente a 27 pence de libra esterlina por mil réis, mas prevalecia o câmbio flutuante, ou seja, o governo nada fazia para que a paridade fosse obedecida para o papel moeda, cuja cotação em mercado estava quase sempre “abaixo do par”. Durante os anos de 1886 e 1887, por exemplo, quando a discussão entre papelistas e metalistas sobre reforma monetária foi particularmente intensa, a taxa de câmbio flutuou entre a mínima de 17 ¾ e a máxima de 23 ¼ pence por mil réis. Os metalistas diziam que 9 interesses, como se a política fosse uma disciplina de natureza algébrica e a política econômica uma mera decorrência da ordem das parcelas. Nada mais enganoso, como demonstra a historiografia mais recente sobre o período, e como sugere a trama exposta a seguir. 2. Do Encilhamento ao Funding Loan Ao final do Império, o impasse entre “papelistas” que defendiam a expansão da moeda e do crédito, e “metalistas” que propunham exatamente o contrário, não parecia permitir qualquer compromisso ao menos até outubro de 1888 quando, inesperadamente, em decorrência da pujança das contas externas do país, e em particular da entrada de capitais associada à expansão do café e sua infra-estrutura, à imigração crescente e ao fim iminente da escravidão, a taxa de câmbio apreciou (ou valorizou) de modo a atingir os mágicos 27 pence por mil réis, a paridade oficial. Não escapou ao Visconde de Ouro Preto, no começo de 1889, que na ausência de “ágio sobre o ouro”, ficava removida a objeção metalista à expansão monetária. E assim, em 6 de julho de 1889, Ouro Preto autorizou a formação de um banco de emissão sob o nome Banco Nacional do Brasil, que tinha como sócio o Banque de Paris et des Pays Bas, com vistas a promover e assentar a adesão ao padrão ouro. Era evidente o oportunismo do arranjo, que buscava tirar partido de condições excepcionais, talvez efêmeras, do balanço de pagamentos, e dos sonhos de progresso que a bolsa de valores começaria a materializar e que se viam favorecidos pela mudança no regime de trabalho, pelo novo banco e pela surpreendente disposição do ministro em remover entraves à vida empresarial que sempre caracterizaram o Império. Mas Ouro Preto não teve tempo suficiente, ou as mudanças em gestação pareciam grandes demais; a República não tardou e seu primeiro ministro da Fazenda – Rui Barbosa - emerge diretamente da propaganda republicana, dentre os críticos mais ferozes de Ouro Preto. Logo em 17 de janeiro de 1890 a jovem República conhece o seu primeiro grande “pacote econômico”. O salto para a “modernidade” seria ambicioso e irreversível: em suas crônicas, Machado de Assis repetidamente referia-se àquela data como “o primeiro 10 dia da criação”, o dia em que uma série de decretos trouxe uma nova lei para bancos de emissão, criando várias instituições, e para diferentes regiões do país, e também algumas importantes alterações na lei societária modificando substancialmente os entraves à incorporação de novas empresas. A reação do “mercado” a tudo isso foi de absoluto deslumbramento. A euforia na bolsa, que já vinha de antes, ganhou renovado impulso: de pouco mais de 90 companhias listadas no início de 1888, passou-se a cerca de 450 em meados de 1891, às vésperas da débâcle. Vários novos bancos foram incorporados, e engajaram-se em atividades industriais e comerciais de toda espécie, algumas com isenções fiscais ou de tarifas alfandegárias, e garantias de juros. Eram “bancos universais”, muitos com poderes de emissão, todos com carteiras comerciais, hipotecárias e de empréstimos de longo prazo e também autorizados a participar do capital de empresas, uma importante inovação institucional que resultou em conectar o crescimento do crédito diretamente com as novas empresas sendo incorporadas (Hanley, 2005, pp. 127-9). Era um bom caminho, na teoria ao menos, para assegurar que os novos bancos estivessem associados ao setor produtivo, mas havia o risco de a facilidade degenerar em especulação. São muitos os relatos de “empresas impossíveis”, junto com outras tantas perfeitamente viáveis, porém todas alavancadas e a mercê de um mercado em estado de euforia (Stein, 1957, p.85-89). O efeito combinado de tantas inovações foi o de que as movimentações na bolsa logo adquiriram claras características de “bolha especulativa” e sendo este o momento em que se estabelece a designação de “Encilhamento” para o episódio, que em tudo parece se encaixar no paradigma estabelecido no célebre estudo de Charles Kindleberger (1978) sobre manias, pânicos e crises financeiras, e como em tantos outros casos no Brasil e no exterior, não é algo que surge no vazio, ou que se explique por um surto de ambição e ganância, mas, em geral, um fenômeno coadjuvante de forças maiores. O termo encilhamento se refere ao momento em que os cavalos eram preparados para o páreo, e as combinações eram feitas, e serviu de título para o famoso romance à clef escrito originalmente sob o pseudônimo “Heitor Malheiros”, na forma de um folhetim em 70 capítulos a partir de fevereiro de 1893, pelo Visconde de Taunay, destacado monarquista, que teve imensa e duradoura influência sobre a historiografia. Taunay retratou em cores espetaculares as operações abusivas na bolsa como representativas de uma nova ordem na 11 qual, conforme lúcida observação de José Murilo Carvalho (1987, pp. 26-27), a República teria trazido “uma vitória do espírito do capitalismo desacompanhado da ética protestante”. São muitos como John Schulz (1996, p. 88), o mais recente brasilianista a tratar do tema, a tomar o relato de Taunay como “não ficção”, ou mais ainda como um relato fidedigno do que se passou nos primeiros anos da República. Este equívoco prejudica seriamente a observação desses anos cheios de ambigüidades, que talvez tenham sido mais bem capturadas na literatura, destacadamente em Esaú e Jacó de Machado de Assis, ao enfatizar o irremediável empate entre os olhares monarquista e republicano sobre a modernização caótica da qual o “Encilhamento” é parte tão proeminente. Este viés, todavia, não impediu a historiografia de reconhecer que o vendaval especulativo deixou resultados positivos no tocante à formação de empresas, crescimento e acumulação de capital, sobretudo em São Paulo (Hanley, 2005, p. 89 passim). Quase que simultâneo à explosão monetária propiciada pela República dá-se o debate sobre a legitimidade dos empreendimentos formados a partir desses ventos, um debate que assumirá contornos bem objetivos logo, adiante quando o governo estiver às voltas com o salvamento dos bancos que carregavam esses empreendimentos. Os três bancos de emissão inicialmente criados por Rui Barbosa teriam monopólios sobre seus distritos, o Norte, o Sul, e o Centro, este compreendendo a capital. O total das emissões foi limitado inicialmente a 450 mil contos, duas vezes e meia o estoque de moeda existente, sendo que ao banco emissor da região central, o Banco dos Estados Unidos do Brasil (BEUB), cujo principal acionista era o Conselheiro Francisco de Paula Mayrink, caberia cerca de metade desse valor e aos demais o restante. Essas emissões seriam feitas na proporção 1:1 do lastro constituído não em ouro mas em títulos da dívida pública, sendo que aí residia a maior inovação: caminhava-se para a moeda fiduciária pura, num regime de flutuação cambial sem compromisso com a paridade de 1846 e sensível aos impactos da emissão sobre as finanças públicas. Era uma revolução, mas com um inequívoco aspecto experimental, como as alusões de Rui à jurisprudência estrangeira, e à experiência norte-americana em particular, ou como os planos heterodoxos de combate à inflação de um século depois. 14 No dia seguinte, o Marechal Deodoro renunciaria a favor de Floriano Peixoto, que dissolveu o Congresso num episódio que ficou conhecido como o “Golpe da Bolsa”, e que encontra explicação nos impasses em torno do destino dos bancos de emissão os quais, por sua vez, como se dizia, traziam em suas carteiras todas as virtudes e os pecados do Encilhamento. Neste momento, a oferta total de moeda havia atingindo um total de 513 mil contos, um crescimento de 148% relativamente a dezembro de 1889, sendo que 277 mil contos correspondiam a emissões do BREUB, 167 mil contos a emissões passadas do Tesouro e o restante às de outros bancos emissores. Nos anos posteriores essas emissões se tornariam uma espécie de herança maldita a macular a República e seu primeiro ministro da Fazenda, como se nada de bom delas tivesse resultado. A crise cambial em 1891 deu impulso à derrocada do Encilhamento e fragilizou tremendamente os bancos e as finanças públicas. A euforia converteu-se em pânico, e as potencialmente explosivas dificuldades com os grandes bancos ganharam prioridade destacada para o novo ministro da Fazenda de Floriano Peixoto, Rodrigues Alves, que proporia pela primeira vez, no começo de 1892, um plano de clara coloração deflacionista de “encampação” do papel-moeda bancário, que, na verdade, era um plano para evitar o colapso do sistema bancário e seu posterior saneamento, provavelmente com estatização. Não deve haver dúvida que a jovem República, depois de uma crise cambial, estava no limiar de uma crise bancária antes de completar seu terceiro ano. No entanto, as idéias de Rodrigues Alves ainda não encontrariam respaldo no Congresso. Diante desse impasse, e vendo deteriorar-se a situação dos dois maiores bancos do país, o BREUB e o Banco do Brasil, este outrora descrito por Ouro Preto como “vetusto e pacato”, o novo ministro da Fazenda, Serzedello Correia, que assumiu em agosto, procurou um difícil compromisso entre metalistas e papelistas no Parlamento através de decreto presidencial que autorizava a fusão desses dois bancos, assim formando o Banco da República do Brasil (BRB). Os balanços dos dois bancos indicavam com clareza que ambos estavam em situação crítica. Na verdade, como cada um deles cabia na clássica categoria too big to fail, a fusão tornava mais clara a justificativa e a urgência para a intervenção oficial, bem como o uso de recursos públicos para auxiliar a resolução do problema. Com a fusão, Serzedello extinguiu a faculdade emissora do novo banco, assim procurando agradar a bancada metalista, mas introduziu 15 uma curiosa e polêmica inovação, os “auxílios à indústria”, que nada mais eram do que “bônus ao portador”, em cédulas de pequenas denominações e pagando 4% de juros, que o BRB poderia emitir em valores até 100 mil contos “a fim de socorrer às necessidades das indústrias nacionais que tenham condições de vitalidade” (art. 9). É claro que havia efetivamente pouco a diferenciar esse bônus do papel-moeda comum, de modo que a medida equivalia na prática a uma última extensão da emissão autorizada do BRB, e a uma versão muito mais ousada dos “auxílios à lavoura” do visconde de Ouro Preto e que, como nesse precedente, e com muito mais clareza, procurava salvar os bancos em dificuldade e também e principalmente as empresas consideradas viáveis segundo a ótica dos próprios bancos. Esta curiosa ambigüidade serve como evidência de que as percepções sobre os progressos “legítimos” realizados durante o Encilhamento eram bastante divergentes. As lideranças industriais, assim como os papelistas, receberam bem a inovação introduzida por Serzedello, a despeito das pesadas críticas vindas dos metalistas. O fato é que a combinação de proteção aduaneira, desvalorização cambial, leis mais liberais para a formação de companhias anônimas de responsabilidade limitada e a expansão do crédito eram fatores que compunham um quadro favorável e inédito para a indústria, não obstante a instabilidade e a especulação, cujos progressos em meados dos anos 1890 são documentados por vários observadores. As freqüentes mudanças naquelas variáveis ao longo da Primeira República forneceriam boas explicações para a notável volatilidade das atividades industriais, especialmente quando comparada à experiência de outros países. (Ver Suzigan, 2000, p. 30-61 e Versiani e Versiani, 1977) Mas a despeito dos agrados dirigidos à indústria, a fusão de que resultou o BRB tratava, em essência, de prolongar a sobrevida de dois bancos em situação falimentar que, como depois diria Joaquim Murtinho, concentravam em suas carteiras “todas as loucuras da bolsa”. Para operações como esta, de salvamento de bancos, sempre cabem os argumentos que enfatizam o moral hazard, ou os incentivos perversos produzidos quando se evita a liquidação, extensamente explorados pela bancada metalista. Porém, como é típico de intervenções da espécie, o decreto previa uma estatização velada do BRB, pois ao governo caberia indicar o presidente, o vice-presidente e um diretor. Num momento posterior, os impactos fiscais desse arranjo ficariam mais claros, mas a questão imediata para Serzedello era a preservação de muitas empresas legítimas que surgiram na euforia e 16 destacadamente os sempre controversos e apavorantes custos de uma “crise sistêmica” que, no caso em tela, poderia gerar conseqüências muito amplas, especialmente tendo em vista a sucessão de levantes ao longo de 1893, destacadamente a revolução federalista no Rio Grande do Sul e a eclosão da Revolta da Armada em setembro, que produziria, inclusive, emissões extraordinárias do Tesouro para fazer frente aos gastos extraordinários provocados pelas hostilidades. Durante o período 1889-94, a oferta de moeda cresceu 3,5 vezes e a inflação, que pode ter alcançado algo como 20% ao ano, emergiu como uma das mais nefastas inovações trazidas pela República, juntamente com a depreciação da moeda brasileira a níveis jamais alcançados no passado. Na verdade, o fato de muitos alimentos a compor a cesta de consumo a definir os índices do custo de vida serem importados (trigo, charque, azeite e bebidas, por exemplo), servia para confundir mais ainda as causas do problema da carestia. Repita-se, o termo “inflação”, na época, referia-se à expansão monetária, e não a um aumento generalizado nos preços, fenômeno que fazia aí sua primeira e discreta, a menos a julgar pelo que viria algumas décadas depois, aparição. O panorama econômico do novo regime, especialmente em vista dos sonhos e promessas que trouxe consigo, parecia trazer apenas perplexidade e desalento. Era esta a atmosfera que encontrou o novo governo que se instalou em fins de 1894, tendo Prudente de Morais na Presidência da República e Rodrigues Alves mais uma vez na Fazenda, uma nomeação que confirmava simultaneamente a predominância da oligarquia cafeeira, e também da ortodoxia metalista. Paulista, porém ortodoxo convicto, síntese de uma época de escolhas difíceis, o ministro volta suas atenções para o exterior com vistas a prover-se de recursos para financiar seu déficit e iniciar um plano articulado de reorganização financeira dos bancos e do Estado. Financiamentos de curto prazo foram efetivamente conseguidos, mas ao governo brasileiro interessava um grande empréstimo que desse mais tempo ao ministro Rodrigues Alves para completar seu plano de saneamento dos bancos via “encampação” das emissões, plano que havia sido proposto sem sucesso em sua primeira passagem pelo ministério, e que, em última instância, consistia em um “encontro de contas” entre o Tesouro e os bancos muito provavelmente resultando na liquidação e/ou estatização formal do BRB e possivelmente de outros bancos menores. Rodrigues Alves já entretinha a possibilidade de reorganizar o BRB como um banco 19 café, com uma tendência à super-produção apenas agravada pela depreciação progressiva do mil réis. Uma solução definitiva para a estabilidade do setor cafeeiro estaria ainda alguns anos à frente, porém a interrupção da dinâmica perversa produzida pelos efeitos da depreciação cambial sobre o plantio já poderia ser vista como um apreciável progresso. O estrito programa deflacionário adotado em 1898 não permitia maiores liberalidades do governo com relação a empresas industriais nas carteiras dos bancos, e seguia o cânone para acordos do gênero: o governo obtinha empréstimos em troca de severas medidas de saneamento fiscal e monetário pré-acordadas com os credores. O serviço da dívida pública e as despesas com garantias de juros de diversas ferrovias (acordos pelos quais o governo garantia um retorno mínimo aos investidores caso esse não fosse alcançado na operação das companhias) seriam pagos, ao longo de um período de três anos, com títulos de um novo empréstimo – o funding loan - cuja emissão se daria ao par e poderia elevar-se a até £ 10 milhões. Os juros seriam de 5% e as amortizações teriam uma carência de 13 anos e seriam cumpridas integralmente ao longo dos 50 anos posteriores, ou seja, estariam completamente pagas em 1961. O esquema seria complementado por uma operação, efetuada ao longo de 1901 e 1902, através da qual os contratos de “garantias de juros” a estradas de ferro seriam trocados por títulos de renda fixa - os rescission bonds, ou “títulos de rescisão” como seriam chamados. As garantias a onze estradas de ferro seriam assim “resgatadas”, sendo o valor total das emissões desses títulos da ordem de £ 16,6 milhões. O funding loan gozaria de garantias especiais - uma “primeira hipoteca” sobre as receitas em moeda forte da Alfândega do Rio de Janeiro (parte dos impostos de importação era cobrada com base em ouro, ou seja, na libra esterlina) - e a título de condicionalidade exigia-se que o governo dedicasse especial atenção ao equilíbrio das contas do governo em moeda forte - o que viria a ser expresso pela separação, consagrada no orçamento de 1900, entre o “orçamento-ouro” e o “orçamento-papel”. Despesas de várias ordens foram reduzidas, especialmente as denominadas em moeda estrangeira, e a tributação efetivamente aumentada através de diversas medidas de modernização administrativa e também através de aumentos nos impostos, destacadamente no imposto de consumo e do selo. O ministro Joaquim Murtinho, que era médico de formação, passou à história 20 como um expoente do que veio a ser chamado “darwinismo econômico” (Luz, 1980, p. 21), um pequeno exagero construído a partir de admiração declarada pelo ministro por Herbert Spencer. Murtinho foi o homem com a determinação suficiente para levar às últimas conseqüências as idéias metalistas defendidas por muitos do que bradavam contra os excessos dos primeiros anos da República. A raiz do problema, conforme trechos clássicos de seus relatórios da Fazenda, tinha que ver com o “excesso de emissões”, que produziu “uma pseudo-abundância de capitais” e, como conseqüência disso, o “estabelecimento de indústrias artificiais e a organização agrícola para a produção exagerada de café”. Tratava-se de deixar perecer essas indústrias, e de operar uma redução na produção de café, de modo a promover “a concorrência entre os diversos lavradores, produzindo por meio de liquidações a seleção natural, manifestada pelo desaparecimento dos inferiores e pela permanência dos superiores” (Luz, 1980, passim). Vale mencionar que os mesmos princípios foram adotados para os bancos: em 12 de setembro de 1900, ultimando uma longa agonia, o BRB viu-se obrigado a suspender seus pagamentos e a submeter-se a um regime de liquidação extra-judicial, conforme determinações de uma nova lei aprovada para este propósito e que logo a seguir teve seu alcance estendido para outros bancos, incluindo o Rural e Hipotecário e seis outros, todos da capital. Em São Paulo ocorreram falências de bancos apenas ente 1902 e 1906, em virtude da recessão, vitimando o Banco Mercantil de Santos, o mais antigo daquela praça (Hanley, 2005, p. 174). No dizer de Calógeras (1930, p. 346): “embora possa ter sido dolorosa ... essa crise foi essencialmente benfazeja, fruto de uma força irresistível que agiu visando ao restabelecimento do equilíbrio econômico e financeiro do país”. O fato é que os plenos poderes concedidos a Murtinho permitiram que se testasse a relação que sempre se propagou entre câmbio e oferta de moeda, com as notáveis contestações oferecidas por Luiz Rafael Vieira Souto, o grande crítico de Murtinho, e pelo próprio Rui Barbosa, agora na direção da contração. Segundo os termos do acordo, o governo se comprometia a depositar em moeda local junto aos três grandes bancos estrangeiros da capital uma certa proporção do valor dos títulos emitidos do funding loan, e o papel-moeda correspondente a essas quantias seria publicamente incinerado. De conformidade com este mecanismo, o papel-moeda em circulação sofreria uma redução de 113 mil contos, ou seja de cerca de 13% do total em 1898, até maio de 1903, com 21 claros efeitos recessivos: o PIB per capita parece ter alcançado um mínimo em 1900, inferior em cerca de 20% ao de 1890. Entretanto, o programa conseguiria uma apreciação cambial bem distante da necessária para se alcançar a paridade de 1846, que romanticamente volta e meia aparecia como meta: a taxa de câmbio permaneceria ao redor de 11 pence por mil réis durante os anos cobertos pelo esquema, e assim mesmo graças à extraordinária recuperação das exportações observada em 1899, para a qual as exportações de borracha contribuíram muito significativamente, e também à revitalização das entradas de capital decorrente, em boa medida, de um quadro internacional mais favorável. Murtinho foi violentamente criticado, como era de se esperar, face à devastação provocada pela política deflacionista que comandou, mas nunca lhe faltou o apoio político para ir adiante. Sem dúvida, o episódio oferece um duro desafio para os modelos esquemáticos frequentemente adotados para a economia política da República Velha: como a força das idéias conservadoras pode sobrepujar tantos interesses objetivos e organizados? O fato é que os ganhos obtidos em termos de revalorização da moeda nacional pareceram decepcionantes relativamente aos estragos e as polêmicas que Murtinho deixou para trás. Este cálculo, que aparece implícito em diversas decisões posteriores, serviu para que se enfraquecessem as ilusões de que a paridade de 1846 pudesse ser novamente alcançada, e para que amadurecesse uma postura mais pragmática para a questão do câmbio e da paridade nas tentativas posteriores de adesão ao padrão ouro. 3. O Convênio de Taubaté: a defesa do café e do câmbio Rodrigues Alves, o ministro da Fazenda que empreendeu a encampação das emissões bancárias, e assim deu início ao trabalho de saneamento financeiro, sobretudo no terreno bancário, depois terminado por Joaquim Murtinho, elegeu-se Presidente da República para o quadriênio 1902-06, e seu ministro da Fazenda foi uma fina escolha entre os campeões metalistas do parlamento: o senador e membro da comissão de orçamento Leopoldo de Bulhões. Eram escolhas que reforçavam a orientação ortodoxa do 24 comporta senão em grandes linhas. De início as aquisições seriam financiadas através de empréstimos no exterior, destacadamente pelo estado de São Paulo, cujo serviço seria coberto por um novo imposto cobrado em ouro sobre cada saca de café exportado. O governo federal recusou-se a oferecer garantias para o financiamento, numa clara evidência dos limites do poder da oligarquia cafeeira sobre as políticas públicas, ou talvez da desnecessidade dessa garantia. O importante é que, com a ajuda de adiantamentos de importadores e de uma sobretaxa sobre a exportação, São Paulo levantaria recursos de tal ordem a permitir que em junho de 1907, 8 milhões de sacas excedentes, o equivalente a uma boa safra anual, pudessem ser compradas e estocadas. Os relatos desta construção deixam pistas claras sobre as tensões entre a ortodoxia que reinava suprema no Executivo, e por vezes parecia vislumbrar a recuperação da paridade cambial de 1846, e os interesses dos exportadores de café. Porém, independentemente do efetivo desembolso, compromisso ou aval da União com a compra de café e com a mitigação dos riscos cambiais implícitos no arranjo, os interesses foram se alinhando tal como em 1888, quando a abundância cambial, ao fim das contas, permitiu que ortodoxos (ricardianos, bulionistas, etc) e heterodoxos se aglutinassem em torno do padrão ouro desde que na paridade de 1846. A experiência de Joaquim Murtinho já havia reduzido as ilusões quanto à reconquista dos 27 pence por mil réis, de modo que a reintrodução do padrão ouro nos níveis mais baixos em que se encontrava o câmbio, e com vistas a interromper a tendência de apreciação, parecia uma solução plenamente satisfatória para o governo federal. Nesse contexto, e sem conexão direta com os arranjos de Taubaté, mas na prática atendendo à essência das preocupações da cafeicultura, o presidente Afonso Pena, que sucedeu a Rodrigues Alves, colocou em operação uma interessante versão tropicalizada de “padrão ouro na margem” pela qual uma instituição que ganhou o nome de Caixa de Conversão, compraria divisas a uma taxa fixa emitindo notas de sua própria emissão, absorvendo, por assim dizer, o “excesso” de divisas que vinha apreciando o mil réis. Desta forma a conversibilidade se estabelecia apenas para as notas da Caixa de Conversão, não para as outras, as do Tesouro, que continuavam ao sabor do mercado. Nesse sistema, era como se os excessos de divisas estrangeiras fossem sempre absorvidos pela Caixa de Conversão, mas quando a mão se invertesse, e houvesse déficit no balanço de pagamentos, as notas seriam resgatadas em ouro ou divisas até 25 esgotarem-se as reservas da Caixa de Conversão, ponto a partir do qual o país passaria ao regime de câmbio flutuante e, provavelmente, o câmbio sofreria significativa depreciação. Era uma modalidade curiosa e criativa de “adesão” ao padrão ouro com um mecanismo automático de saída. Este sistema era diferente do currency board convencional, pelo qual a totalidade da moeda nacional é substituída por notas dessa instituição que evidentemente, precisa dispor de lastro equivalente a 100% das notas emitidas. Relativamente a este modelo convencional e talvez apenas teórico, a Caixa de Conversão representava uma interessante inovação – embora valha mencionar que a Argentina havia instituído mecanismo parecido em 1899, e com sucesso (cf. della Paolera & Taylor, 2001) - que não apenas economizava o recurso efetivamente mais escasso naqueles dias, as reservas em divisas, como também limitava a contração monetária causada por déficits no balanço de pagamentos às emissões da Caixa de Conversão. E mais, ao Banco do Brasil cabiam operações de câmbio e a “defesa” da taxa de câmbio entre o ponto de exportação e de importação de ouro definidos pela taxa legal e os custos de transação de deslocar o ouro, conforme as regras tradicionais do padrão-ouro. A Caixa de Conversão era parte uma política ou de um arranjo cambial singular e apropriada para o país: a taxa de câmbio era fixada num nível considerado competitivo, jamais se valorizava, e quando a abundância cambial se invertia, a Caixa saia de cena, e a taxa de câmbio era deixado à sua própria sorte para desvalorizar-se. O mecanismo era conveniente para os financistas conservadores do governo federal que, para todos os efeitos práticos, haviam sido bem sucedidos em recuperar o padrão ouro, ainda que numa paridade inferior à de 1846. E era muito favorável para os exportadores, ainda mais quando se tinha em conta o esquema de sustentação financiada dos estoques excedentes de café. Nesse sentido, o arranjo combinado – Caixa de Conversão mais valorização do café – era duplamente pro-cíclico e por isso mesmo afeito a agravar, a médio prazo, o problema de superprodução de café, como efetivamente se verificou. Para se alcançar uma solução de mais longo prazo, os governos dos estados produtores deveriam desencorajar a expansão dos plantios, o que, obviamente, era a parte mais difícil do arranjo: conter os comportamentos provocados pelo enorme sucesso do programa e dos incentivos que criava. 26 De uma maneira geral, de 1906 até as vésperas da Primeira Guerra, o país viveu em ritmo de abundância cambial e de crédito. O programa de valorização e a Caixa de Conversão resultaram em maior disponibilidade de divisas, inclusive para a importação de equipamentos pela indústria, e os embarques de café aumentavam sem prejudicar os preços. De 1911 a 1913, o valor dos embarques de café foi o dobro do observado nos três anos anteriores e o triplo do valor dos anos desfavoráveis, de 1902 e 1904. Até 1908, os preços do café efetivamente não recuam, e a partir de 1909 aumentam significativamente. Em 1907, face à aguda recessão provocada pela ocorrência de pânico bancário nos EUA, o preço da borracha, que tinha se tornado o segundo produto na pauta de exportação brasileira, apresentou forte queda, mas já no ano seguinte se recupera enquanto o governo paulista consegue levantar um novo empréstimo de £ 15 milhões, aumentando a sobretaxa sobre cada saca de 3 para 5 francos. Nesse mesmo ano, finalmente se materializava o apoio federal à valorização do café, reconhecida como política de interesse nacional, mediante a concessão de garantia ao empréstimo paulista pelo governo federal. Os interesses haviam convergido, ou as condições externas se deteriorado um tanto, pois diante da dificuldade em se obter financiamento internacional para o programa, o país foi forçado a concordar com a entrega da gestão dos estoques oferecidos em garantia aos credores do financiamento mesmo contra a vontade dos paulistas. A trajetória da economia nos anos que se seguem é de vigorosa expansão. Em abril de 1910, o limite de emissões da Caixa de Conversão, inicialmente fixado em 320 mil contos, foi atingido e com isso a Caixa tem suas emissões interrompidas. O câmbio inicia uma trajetória de valorização apenas revertida quando Hermes da Fonseca triplicou o limite original, e a retomada das operações da Caixa fez o câmbio retornar aos 16 pence por mil réis. Entrementes, a política fiscal vai se deteriorando, o que não desperta maiores preocupações ao menos até 1912, quando o governo primeiro encontra dificuldades em contratar empréstimos externos. É nesse momento que a defesa do café sofre um rude e inesperado golpe quando as autoridades americanas movem uma ação antitruste contra o Brasil, que resultou no embargo de 950 mil sacas estocadas em Nova Iorque, já fora do controle do país. Em 16 de janeiro de 1913 o Comitê da dívida de Londres resolveu 29 renda per capita brasileira era menos de ¼ da Argentina e menos de 1/6 da norte- americana, e cerca 2/3 da de Portugal, antiga metrópole. Claramente, o desempenho econômico do Brasil no quarto de século entre o início do regime republicano e a primeira guerra mundial foi medíocre em termos relativos; apesar de o país ter se convertido num dos principais destinos dos imigrantes e capitais europeus no período; de certa diversificação interna da economia, com algum desenvolvimento dos setores secundário e terciário, e de a nação ser a maior exportadora mundial de café e borracha. Entre 1890 e 1913, as entradas brutas de imigrantes foram de 2,2 milhões de pessoas, sendo 1,45 milhão para São Paulo (dos quais 61,6% subsidiados), sendo essa imigração maciça inicialmente favorecida por fortes subsídios dos governos federal e paulista (IBGE, 1986, p. 18). Em 1913, considerando-se os investimentos do Reino Unido, EUA, França e Alemanha na América Latina, a Argentina respondia por 32,4% do total, o Brasil por 27,6% e o México por 18,8% (Albert, 1983, p. 34). No entanto a enganosa noção de prosperidade, decorrente do desempenho das principais commodities exportadas pelo país, contrastava com a permanência de significativos bolsões de pobreza absoluta, notadamente nas antigas regiões exportadoras do Nordeste. Na verdade, era como se a economia do café e da borracha, a despeito de sua proeminência internacional, ainda fossem mais a exceção do que a regra para um país que não parecia ter outros motores para seu crescimento. O grau de abertura era pequeno: em termos de exportações totais per capita o Brasil estava atrasado em relação a vários países latino-americanos, com US$ 9,6 em 1890 e US$ 14,2 em 1913, enquanto os valores para a Argentina eram, respectivamente, US$ 32,4 e US$ 62,0 os do Chile US$ 20,3 e US$ 44,7 e os de Cuba US$ 55,7 e US$ 64,7. O Brasil apenas superava o México com US$ 4,4 e US$ 10,7 e o Peru com US$ 3,3 e US$ 9,4 (Bulmer-Thomas, 1998, p. 89). E a concentração das exportações brasileiras era muito acentuada. Em média, no período 1908-1912, o café representava 54,2% do total das exportações e a borracha 27,3%, totalizando 81,5%. Somente Cuba, que em 1914 tinha 77% de sua receita de exportações provenientes do açúcar e 16% do fumo, com a soma representando 93% do total, e alguns países da América Central, excediam o Brasil em termos de concentração em dois produtos (Albert, 1983, p. 32 e Bulmer-Thomas, 1998, p. 77). 30 Note-se que entre 1883 e 1913, as exportações dos países tropicais cresceram a taxas equivalentes às dos países de clima temperado, a cerca de 3,4% anuais em valores em dólares, sendo que, entre 1883 e 1913, em dólares correntes, as exportações brasileiras teriam crescido a uma taxa anual de 4,5%, superior à de muitos países latino- americanos, (inclusive México, Uruguai com 3,6%) mas inferior à da Argentina (7,6%) e do Equador (5,1%) (Albert, 1983, p. 30). O Brasil era, então, o principal exportador de café, com cerca de ¾ do total mundial exportado em 1913 e de borracha, com cerca de 41% da produção dos 5 maiores produtores, mas seguido de perto por Malásia, Ceilão e Indonésia cujos totais conjuntos já excediam os da região amazônica (41 mil toneladas, cabendo ao Brasil 88% deste total (Stover, 1970, p. 58). Entre 1890 (com 9,0 milhões de sacas) e 1913 (com 18,7 milhões), a produção mundial de café mais do que dobrou, enquanto a produção brasileira teria passado de 5,4 milhões de sacas para 13,7 milhões, com um aumento de 156% (Bacha e Greenhill, 1992, p. 307-308). Efetivamente, o Brasil controlaria mais de 2/3 da oferta mundial entre os anos 1890 e 1930. Dada a baixa elasticidade-preço da demanda de café, o país podia praticar uma política de retenção de estoques e em certos períodos, como 1907 a 1913 e 1924 a 1930, e até mesmo fixar as cotações mundiais do produto, como se verá mais adiante (Abreu e Verner, 1997 p. 18). Em 1905, o Brasil ainda produzia boa parte da borracha mundial e o preço alcançara um pico de £ 600 por tonelada que cairia para cerca da metade em 1913; a borracha extrativa chegou a representar 39,1 % das exportações brasileiras em 1910, contra 42,3% do café, mas este logo voltou a representar mais de 60% das exportações, com o colapso dos preços internacionais da borracha, e diante da crescente concorrência asiática o Brasil não pode exercer poder de monopólio semelhante ao que dispunha para o café. Dentre outros produtos tropicais, o Brasil era aparentemente o quinto exportador de algodão, mas o produto respondeu por apenas 2% do valor da exportação brasileira, entre 1910 e 1913, e também era o quinto maior exportador de cacau, mas com apenas 11,5% do total mundial (Coes, 1970, p. 102 e 108), e o produto gerou no mesmo período apenas 2,3% da receita brasileira de exportação (IBGE, 1986, p. 90). A preponderância do Brasil no cenário mundial, em se tratando de suas duas principais commodities exportadas, não parecia suficiente para deflagrar um processo de 31 desenvolvimento sustentado, como bem demonstra o comparativamente insatisfatório desempenho da economia, e nem ajudava a promover uma diversificação muito significativa na estrutura produtiva do país. Em 1900, a preços de 1949, a agricultura respondia por 44,6% do PIB, a indústria por 11,6% e os serviços por 43,8%, proporções que passariam a 38,1%, 15,7% e 46,2% em 1920 (Bonelli, 2003, p. 374). Alguns avanços efetivamente ocorreram na indústria, porém sempre de forma limitada e a partir de bases muito modestas. Como em numerosos outros países, a industrialização foi iniciada pelo setor têxtil, protegido por tarifas elevadas muitas vezes motivadas por razões fiscais, e em certos momentos beneficiada por um câmbio temporariamente valorizado, que favorecia a importação de equipamentos. Assim, o número de fusos de algodão teria passado de 66 mil em meados dos anos 1880 para 734 mil em 1905, cerca de 1 milhão em 1910 e a talvez 1,5 milhão em 1915 (Stein, 1957, p. 191-192) enquanto o número de empregados teria saltado de 3,2 mil para 82,3 mil, e a produção de cerca de 21 milhões de metros para 471 milhões. O único levantamento industrial anterior à Primeira Guerra Mundial é o inquérito do Centro Industrial do Brasil de 1907, reconhecidamente incompleto, revelando 3.250 estabelecimentos industriais com 151 mil trabalhadores, dos quais pouco mais de 1/3 na indústria têxtil. A área do Rio de Janeiro respondia por cerca de 30% da produção manufatureira, e São Paulo por 16%. Em termos de valor de produção, os têxteis respondiam por 24,6%, alimentos processados por 19,1%, vestuário e calçados por 8%, e bebidas por 8%, totalizando 57,7% do valor de produção industrial. Produzia-se também papel, vidros, artigos de couro, sabão, fumo, fósforos etc. Prevalecia o uso de energia a vapor (73%), contra 22% de energia hidráulica e apenas 5% de energia elétrica. Entre 1906 e 1912 houve importantes investimentos industriais, e também obras de infra-estrutura, favorecidos por entradas de capital estrangeiro. Existem fortes indicações de avanços nos anos anteriores à guerra, a julgar pelos dados para o capital investido em empresas existentes em 1919 conforme reportados pelo Censo de 1920: 33,7% do capital total ainda existente naquele ano correspondiam ao período 1905 a 1914, e 23,6% apenas ao quinquênio 1910-1914. Indicadores de formação de capital parecem confirmar uma expansão entre o início do século e a Guerra Mundial, mesmo partindo-se de bases iniciais muito baixas. O consumo aparente de cimento passou de 34 5. A Primeira Guerra Mundial e os “choques adversos” A deflagração da Primeira Guerra Mundial ocasionou, como o primeiro de seus impactos, uma séria crise financeira em escala global, que se traduziu em uma virtual interrupção de fluxos de capital para as economias latino-americanas. A conversibilidade foi suspensa em toda parte, e logo se percebeu que a extensão da mobilização, bem como a amplitude e duração do conflito, não tinham precedente. O mundo que provavelmente ia emergir desse episódio seria, provavelmente, bem diferente daquele de antes de 1914. Para boa parte das “economias periféricas”, interrompia-se um aparente “círculo virtuoso” pelo qual parte dos ganhos de produtividade do setor exportador eram transferidos para a economia doméstica, com certa diversificação de atividades e investimentos em infra-estrutura, apoiados por fortes entradas de capital estrangeiro (Bulmer-Thomas, 1994, p. 65-66). Com a guerra, os setores mais dinâmicos da economia brasileira estavam seriamente prejudicados, pois tanto a defesa do café quanto a Caixa de Conversão tornavam-se inviáveis. Na verdade, mesmo nas circunstâncias felizes do mundo anterior a 1914, o país não tivera um crescimento especialmente vigoroso, exceto talvez pelo breve período do Convênio de Taubaté até as vésperas da Guerra. As perspectivas que se apresentavam face a um conflito duradouro não eram nada favoráveis. Em 4 de agosto de 1914, o Brasil abandonou a conversibilidade com o fechamento da Caixa de Conversão, e em outubro, o governo renovou a moratória de suas obrigações externas através de um novo funding loan, substituindo as condições estabelecidas em 1898, e envolvendo £ 15 milhões para fazer frente a pagamentos até 1917 com suspensão de amortizações até 1927. O conflito mundial afetou substancialmente as exportações brasileiras: de um lado seria interrompido o comércio com as “potências centrais”, mercado que absorvia 4 milhões de sacas de café em bases anuais (o Brasil supria, em 1913, 2/3 do café consumido na Alemanha), embora parte desse comércio pudesse ser “triangulado” com países neutros. Por outro lado, as potências aliadas também restringiram suas importações de café, embora os EUA somente o fizessem a partir de 1917. A indústria seria menos 35 afetada do que a agricultura pelo menos no curto prazo. A capacidade instalada antes do conflito mundial abria espaço para um aumento da produção, tanto para atender o consumo interno, como para mercados temporariamente não atendidos pelos países beligerantes. A contração dos fluxos de comércio e investimento não parecia um evento especialmente negativo para um setor que nutria certa ambigüidade com relação à ordem teoricamente liberal vigente antes de 1914. A Primeira Guerra Mundial permitiu um interessante vislumbre do processo de industrialização via substituição de importações que se desdobraria depois de 1929, e motivou debates sobre se os “choques adversos” não seriam, ao fim das contas, benéficos para a indústria e para o crescimento. A produção industrial efetivamente cresceu, uma vez ultrapassado o choque de 1914, a partir da queda das importações. Porém os níveis de utilização de capacidade rapidamente se elevam de tal sorte que o acesso a bens de capital e matérias primas importadas, se apresenta como limitação ao crescimento mas também como oportunidade para a substituição de importações. Em que medida, todavia, a indústria local seria capaz de responder a este desafio? As importações totais de bens de capital (excluindo automóveis de carga) efetivamente se reduziram no período 1915-18, para apenas £ 1,5 milhões, contra um valor de £ 9 milhões em 1913, caindo de 13,2 % da importação total para 3,6% (Lago et alii, 1979, p. 41). Da mesma forma o valor das exportações de máquinas e equipamentos de Grã-Bretanha, Alemanha, França e EUA para o Brasil, calculado em libras esterlinas de 1913, teria sofrido queda de 60% de 1913 para 1914 e a média de 1915-1918 teria sido 86% inferior ao valor de 1913 (Suzigan, 2000, p. 379-380). Por outro lado, como sucata podia ser aproveitada, e os equipamentos de fundições eram relativamente simples, numerosas oficinas de trabalho de metais foram abertas, compensando em parte com produção interna a redução das importações de equipamentos, ainda que muitas se dedicassem prioritariamente a reparos. Segundo os dados do Censo, 21% da força motriz existente na indústria, em 1919, tinham sido instalados entre 1915 e 1919. Assim, apesar de vários estabelecimentos terem cessado suas atividades com o fim do conflito, algumas companhias criadas durante a guerra sobreviveram e passaram a produzir equipamentos no período seguinte em maior escala, 36 notadamente em São Paulo, algumas de iniciativa de imigrantes (Dean, 1969, p. 97-98 e Ferreira Lima, 1970, p. 330-331). A indústria têxtil, apesar de uma queda de importação de maquinaria têxtil de 13 mil toneladas em 1913, para 2,5 mil por ano entre 1914 e 1919, teve aumento de produção com o uso mais intensivo da capacidade instalada, e a “interrupção do comércio internacional durante a guerra criou uma fome de produtos de algodão de forma que nem os piores tecidos eram rejeitados” (Stein, 1957, p. 107) e o Brasil virou um exportador marginal para vizinhos latino-americanos, e até para a África do Sul, exportando também produtos semi-industrializados como carne e açúcar mas com o fim da guerra quase todas essas exportações “não tradicionais” desaparecem (Baer e Villela, 1972, p. 119, Stein, 1957, p. 108). Examinando quatro setores que respondiam por 49,6% do valor adicionado pela indústria em 1919, Villela e Suzigan (1975, p. 432 e 173) observam um crescimento substancial de 1911 a 1913 e uma recessão em 1914. O nível de produção têxtil em 1919, todavia, era 33% mais elevado do que em 1912 (crescendo 3,7% ao ano entre 1911 e 1919) e o de fumo 50%. A produção de calçados, entretanto, aumentou somente 15% e a de bebidas estava no nível de 1912. O custo de produção pode ter aumentado em certos segmentos, como foi ocaso da matéria prima da indústria têxtil de algodão, e apesar da queda do salário real o valor adicionado pode ter crescido menos que o valor de produção (Dean, 1969, p. 93-94). É inquestionável o surgimento de numerosos novos estabelecimentos industriais durante o conflito mundial, ainda que de dimensão média inferior às empresas criadas no imediato pré-guerra: 5.936 estabelecimentos remanescentes em 1919, alguns meras oficinas, foram fundados entre 1915 e 1919 (com uma média de, 11 empregados e 11 HP contra 4.493 estabelecimentos fundados entre 1905 e 1914 ainda existentes em 1919 com uma média de 20 operários e 22,9 HP (Lago et alii, 1979, p. 39). Cabe concluir que apesar da menor dimensão dos estabelecimentos criados durante a Guerra houve apreciável expansão de capacidade instalada no período 1915 a 1919, inclusive superior à do período 1910-1914, quando o quantum de importações de bens de capital atingiu um auge. Portanto, entre 1915 e 1919 parcela substancialmente maior da expansão de capacidade parece resultante de produção interna dos equipamentos mais simples, 39 6. A reconstrução da “normalidade” nos anos 1920 Com o final da Guerra, o restabelecimento do padrão ouro em escala global tornou-se uma prioridade, inclusive para países latino-americanos, pois era generalizado o desejo de recriar o arcabouço comercial e financeiro, que tão bem ordenou a expansão da economia internacional nos anos anteriores a 1914. É verdade que as autoridades que se reuniram em conferências como as de Bruxelas (1920) e Gênova (1922), e especialmente as que deliberaram sobre as reparações de Guerra impostas aos países vencidos, certamente subestimaram os desequilíbrios globais e localizados criados pela Guerra e pelos tratados de paz que precisavam ser resolvidos antes que se pensasse em restaurar uma normalidade que talvez estivesse perdida para sempre. O fato é que mesmo diante de considerável esforço, a recomposição do padrão ouro foi muito difícil, especialmente na periferia, e muitos países como Brasil, Argentina e México voltariam a re-enquadrar-se no sistema apenas na segunda metade da década, a poucos anos de um novo colapso em 1929. De toda maneira, o intuito de recompor a “normalidade” perdida em 1914, para o Brasil em particular, deveria possivelmente compreender a remontagem da combinação empregada de forma bem sucedida em 1906 de defesa do café com algum arranjo assemelhado ao da Caixa de Conversão. Este arranjo, conforme acima examinado, consistia em se adotar uma “conversibilidade na margem”, ou seja, apenas para as notas da Caixa de Conversão, de modo que o lastro necessário para esta modalidade de adesão ao padrão ouro era muito menor que o requerido para um arranjo convencional, pelo qual a totalidade do meio circulante teria de ser conversível em ouro ou divisas estrangeiras. É claro que o desejo brasileiro de recompor esta combinação tinha que ser cotejado com os modelos de reconstrução da ordem econômica internacional adotados pelas potências vencedoras, que provavelmente não nutriam muita simpatia nem para com uma inserção “pela metade” no padrão ouro, e muito menos pelos esquemas de defesa dos preços do café. 40 Entrementes, o final da Guerra parece fazer retornarem com surpreendente velocidade os velhos dilemas da política econômica, sobretudo no terreno cambial. A reabertura do comércio internacional se dá num contexto de acentuada instabilidade nas economias industriais, sobretudo nos EUA, em função de movimentos de recomposição de estoques de commodities, com grande conteúdo de especulação. Os preços explodiram com a descompressão da demanda, mas logo se seguiram políticas monetárias restritivas em diversos países, e o panorama se inverteu drasticamente: o câmbio, que tinha beirado os 18 pence ao final de 1919, terminava 1920 abaixo de 10 pence, nível cerca de 20% inferior ao que tinha vigorado durante quase todo o período de guerra. Este notável episódio de instabilidade cambial, no qual uma euforia efêmera deu lugar a uma situação de penúria, oferecia uma interessante indicação de que pouca coisa havia mudado no tocante às agruras do balanço de pagamentos do país, face ao desafio permanente de encontrar uma forma ideal de adesão ao padrão ouro. Outra curiosa indicação de que o país retornava ao status quo ante era o reaparecimento do debate sobre a “inelasticidade do meio circulante”, e de forma bastante semelhante ao que se observou às vésperas da República. De um lado, compreendendo gente como Cincinato Braga e Vieira Souto, argumentava-se que o sistema bancário não dispunha da capacidade de responder às flutuações sazonais na demanda por liquidez bem como às necessidades de crescimento da economia, e por outro apresentava-se o velho argumento segundo o qual havia “superabundância” de papel moeda uma vez que o câmbio se encontrava abaixo do par, e tratava-se ainda da paridade de 1846 ! Deveria o país novamente dedicar-se à reforma bancária? Ou simplesmente dotar o Banco do Brasil de poderes discricionários para o desconto de “duplicatas legítimas” e assim da capacidade para expandir o meio circulante de acordo com as necessidades da economia? O mesmo deveria valer quando essas necessidades derivassem de superprodução de café? Ou o Banco do Brasil deveria funcionar passivamente variando o meio circulante conforme a disponibilidade de lastro metálico, esta por sua vez determinada pelo balanço de pagamentos, como seria próprio de um banco central de funções restritas e devidamente inserido na lógica do padrão ouro? Restava evidente que o debate se travava em torno de diferentes concepções sobre como deveria funcionar o Banco do Brasil, no desempenho de funções próprias de 41 banco central, embora o impasse fosse semelhante aos do passado, em torno da expansão monetária, e dessa vez associado a discussões em escala global sobre o redesenho do padrão ouro, e, no plano local, às necessidades do café, sazonais e estruturais. A discussão sobre as conseqüências monetárias das políticas de apoio à cafeicultura tomaria toda a década de 1920, e seria particularmente exacerbada na primeira metade, quando o financiamento externo às retenções de estoques não se encontrava disponível, e os desejos da cafeicultura, que pretendia financiar a defesa dos preços com emissão de moeda (ou desconto de letras de café no Banco do Brasil), afrontavam diretamente os modos de pensar da ortodoxia monetária. É curioso que ambos os lados – metalistas e papelistas – aludissem a bancos centrais, e ambos usassem a mesma linguagem - “moderno” - eis que, efetivamente, vinham sendo criados ou reorganizados bancos centrais em vários países nas últimas duas décadas, sob os mais diversos desenhos, e sempre estabelecendo algum compromisso entre a adesão ao padrão ouro e as necessidades da política monetária. Os anos que se seguiram ao fim da Primeira Guerra Mundial foram particularmente férteis em debates e na construção de novos bancos centrais associados à reconstrução do padrão ouro em bases globais. Nunca trabalharam tanto os chamados money doctors, os especialistas financeiros que viajavam em missões a mando de bancos com vistas a introduzir “instituições modernas” no contexto de condicionalidades para a concessão de empréstimos de estabilização. Entre 1924 e 1931 o Brasil receberia três missões: Montagu (1923-24), D’Abernon (1929) e Niemeyer (1931), todas com o objetivo de estabelecer as contra-partidas em termos de políticas e de reformas necessárias para assegurar a contratação e o uso prudente dos recursos de empréstimos externos. Na América Latina, as “missões Kemmerer” (chefiadas pelo mais famoso dos money doctors, o economista Edwin Walter Kemmerer, professor da Universidade de Princeton) resultaram em muitos empréstimos e na criação de bancos centrais na Colômbia (1923), Chile (1925), Equador (1927), Bolívia (1928) e Peru (1935). O México fez seu banco central por conta própria em 1925, mas com nítida inspiração no modelo Kemmerer. Guatemala (1925), El Salvador (1934) e Argentina (1935) tiveram influência inglesa, e nesse último caso, sob a orientação do mesmo expert que conduziu uma missão ao Brasil em 1931, Sir Otto Niemeyer (Tamagna, 1965, p. 40). 44 ano se encontrava a 1/3 do nível de maio de 1920. Os desafios herdados pelo novo presidente Arthur Bernardes, que assumiria em fins de 1922, eram os habituais, a julgar pelo diagnóstico oferecido pelo próprio em sua plataforma: uma taxa de câmbio competitiva e estável, equilíbrio fiscal e reorganização bancária através da criação de um banco central no espírito da época. Porém, o estado dos negócios cafeeiros vinha se deteriorando, e os termos do empréstimo de 1922 impediam novas valorizações. O estado das contas fiscais, que já era crítico, também pioraria, inclusive em razão de levantes militares, como os de 1922 e 1924, assim inviabilizando a idéia de um banco central que não fornecesse acomodação às urgências financeiras do Tesouro. Na verdade, a dívida flutuante entre o Tesouro e o Banco do Brasil paralisava a ambos, de modo que os espaços de manobra para o novo governo eram muito restritos. A reforma empreendida no Banco do Brasil, tendo em vista os limites descritos acima, era uma competente tentativa de enfeitar uma velha solução com as vestimentas da moda. Com o velado intuito de aproximar o Banco do Brasil do banco central que o presidente prometera, criou-se um “departamento de emissão” para o qual seriam transferidas as reservas em ouro que o Tesouro conseguira manter – cerca de £ 10 milhões – com base nas quais o Banco do Brasil poderia emitir até o triplo desse valor, porém convertido em moeda nacional a 12 pence, assumidamente uma meta de paridade para a conversibilidade. Tratava-se de uma meta praticamente impossível, equivalente a quase o dobro da taxa de câmbio de mercado naquele momento, mas que permitia novas emissões que poderiam alcançar até cerca de 600 mil contos. Nada havia de ortodoxo nestas medidas, e com isso o presidente do Banco do Brasil, José Maria Whitaker, de persuasão conservadora, foi substituído por Cincinato Braga, um líder paulista, e um dos principais mentores da reforma. Nesta nova configuração, o Banco do Brasil pôs-se a facilitar e financiar a retenção de café em armazéns no interior, enquanto o governo procurava vender os estoques acumulados e livrar-se dos impedimentos criados pelo acordo de 1922. Era o modelo desejado pelos paulistas, e logo adiante, seus limites seriam testados quando vieram as indicações de que a safra de 1923 seria de 19,5 milhões de sacas, cerca do dobro da safra anterior, havendo ainda estoques consideráveis a liquidar. Era uma soma de demandas além das possibilidades do novo arranjo, de tal sorte que o governo voltou 45 suas atenções para a única alternativa que lhe restava, um grande empréstimo externo. E foi nesse momento que caiu na vala comum de tantos países, procurando financiamento externo para estabilizar suas moedas através da formação de bancos centrais e adesão ao padrão ouro. O governo brasileiro procurou seus banqueiros habituais, os Rothschild, e estes, tirando proveito de seu evidente poder de barganha, impuseram o ritual que se disseminava mundo afora: uma missão de experts independentes, ou quase, que faria um relatório de recomendações que, uma vez adotadas, levariam ao desembolso de um empréstimo. A crônica da trajetória da chamada “Missão Montagu” – a missão chefiada por Edwin Samuel Montagu – constituída nos termos acima descritos, e detalhadamente descrita por Winston Fritsch (1988, pp. 86-98), é das páginas mais ilustrativas dos modos de operação dos empréstimos sob alta condicionalidade conduzidos na década de 1920, e um valioso prenúncio das inúmeras outras situações semelhantes pelas quais passou o Brasil nos anos que se seguiram. Para obter um empréstimo de consolidação estimado em £ 25 milhões, o ministro Sampaio Vidal terminou aceitando a maior parte das recomendações restritivas da missão no terreno fiscal e monetário, e até mesmo as vedações ao financiamento doméstico (e inflacionário) das retenções de café, tendo em vista que a missão não estabelecia outras restrições relevantes à defesa do café. O assunto que se mostrou mais polêmico teve que ver com enforcement, um tema recorrente em acordos da espécie, ou seja, o desenho de mecanismos que garantissem a execução do acordado e permitissem a interrupção dos desembolsos em caso de descumprimento. A solução proposta pela missão foi simples: a venda de 50% das ações do Banco do Brasil para os banqueiros estrangeiros, proposta que terminou aceita pelo lado brasileiro, pendente a aprovação pelo Congresso, e que os Rothschild de início rechaçaram. O próprio Montagu forçou a solução, mas antes mesmo que a proposta pudesse ser testada no Congresso, apresentou-se uma dificuldade insuperável: a Grã-Bretanha, em seus preparativos para retornar ao padrão ouro, havia determinado um embargo aos empréstimos externos com vistas a acumular reservas necessárias para o esforço de alcançar a paridade de 1914, uma decisão ambiciosa e muito criticada. O fato é que o embargo tornou sem efeito os esforços de um ano inteiro, para usar o novo empréstimo 46 no sentindo de reconstruir as finanças do país, e colocou as autoridades brasileiras em uma situação muito difícil, inclusive em função da dúvida sobre a duração do embargo. A demora resultou insustentável e com isso o governo teve de empreender as soluções possíveis na ausência de apoio externo, as quais compreenderam dois elementos básicos: em primeiro lugar, uma violenta contração de crédito especialmente durante 1925 e 1926, apenas comparável à empreendida por Joaquim Murtinho na virada do século. Vidal e Braga, ministro da Fazenda e presidente do Banco do Brasil, foram substituídos, pois era como se os ortodoxos de Minas Gerais tivessem ganho o embate. E em segundo lugar, o governo federal retirou qualquer apoio à defesa do café, o que, curiosamente, resultou bem menos hostil a São Paulo do que poderia parecer, segundo argumenta Fritsch (1988, p. 110); seja porque tal medida mostrava-se consistente com os novos desígnios deflacionistas do governo, seja porque manteria aberto o canal entre o Tesouro, o Instituto do Café e banqueiros no exterior. Como resultado geral, a economia passou por uma severa recessão, com queda do crescimento e do investimento industrial em 1924-1925, e se observa uma apreciação abrupta da taxa de câmbio de mais de 40% de agosto a outubro de 1925, em sintonia com uma forte deflação em 1926, medida pelo deflator implícito do PIB. Note-se que esse indicador sugere o acentuado caráter cíclico das flutuações de preços no Brasil. Depois de um aumento médio de preços da ordem de 12% entre 1915 e 1919, teria ocorrido um forte crescimento da ordem de 19% em 1920, com um recuo de 15,3% em 1921. De 1922 a 1925, a média foi de 17,2% com um pico de 30,1% em 1923, mas em 1926 houve recuo de 18,1% (Abreu, 1989, p. 393). Já em fins de 1926 se observava uma melhora substancial da posição externa do pais, e a similaridade com o que se passou em 1905-6 é notável: a “saída” de um episódio recessivo no contexto de superávit no balanço de pagamentos produz abundância cambial e expansão da economia sem que a disciplina fiscal seja ferida. Arthur Bernardes entrega a presidência a Wahington Luiz, em 1926, com perspectivas claramente favoráveis. A recuperação dos fluxos de comércio e de investimentos internacionais, o aumento do preço do café e novas oportunidades de endividamento externo, na Inglaterra e nos EUA, retiraram parte das razões que haviam motivado a deflação. Na verdade, o novo presidente tinha diante de si praticamente prontos os pilares para recompor o mesmo mix 49 se os recursos do Instituto do Café e teve início o colapso do preço do produto, que no fim do ano se encontrava a 1/3 do nível anteriormente garantido pelo esquema de defesa. Ao longo de 1930 o preço sofreria nova queda com efeito ainda mais negativo sobre o balanço de pagamentos. O preço do café em Nova Iorque despencaria de 22,5 cents em setembro de 1929 para 8 cents em setembro de 1931. Ao tentar sustentar o padrão ouro na vã esperança de obtenção de um novo grande empréstimo externo, o governo aprofundaria a contração monetária e a recessão que ia se aprofundando com as progressivas saídas de capital e o completo esgotamento das reservas metálicas do país. Uma vez mais desmoronava o edifício construído em torno do compromisso entre os cânones ortodoxos e as conveniências da cafeicultura, desta vez porém, não haveria mais uma “normalidade” a retomar alguns anos adiante. Tudo seria diferente nos anos a seguir, nos quais os paradigmas de política econômica da República Velha seriam drasticamente modificados. 7. A Economia Brasileira ao final da República Velha Durante o período coberto por este capítulo, 1889 a 1930, o desempenho da economia brasileira não poderia deixar de decepcionar os que esperavam que as tendências liberalizantes desses anos pudessem acelerar o crescimento do país: o PIB per capita cresceu a uma taxa anual de cerca de 0,9% que contrasta com os cerca de 3% anuais do período 1929-1980 (encadeando Goldsmith para 1890-99 e Haddad para1900- 1930 cf. Bacha e Greenhill, 1992, p. 321 e Maddison, 2006, p. 76). Numa comparação direta com outros países, tomando-se em cada ponto de observação o dado para o Brasil como igual a 100, o múltiplo do PIB per capita da Argentina passou de 271 para 377 entre 1890 e 1928-29, enquanto as cifras correspondentes para o México foram 127 e 157 respectivamente. Ou seja, ampliou-se o atraso entre o Brasil e esses países nesses anos. Com relação aos EUA, também aumentou a distância, pois os índices foram 427 e 587 para as mesmas datas, enquanto que relativamente ao Reino Unido, o hiato se reduziu ligeiramente, já que os índices para o PIB per capita inglês foram de 505 e 473 respectivamente para o período entre 1890 e 1928-29. É verdade que o hiato se reduziu 50 com relação aos EUA e ao Reino Unido entre 1913 e 1928-29, mas apenas ligeiramente; só depois de 1930 ocorreram reduções expressivas nessas proporções. Ou seja, o Brasil terminou o período da República Velha como um país pobre, inclusive em bases relativas, apesar de ser de longe o país mais populoso da América Latina, com pouco menos de 1/3 da população total e um grande mercado interno potencial. Em 1930, o Brasil com cerca de 33,6 milhões de habitantes respondia por 31% da população da América Latina (107,4 milhões de habitantes), contra 15,4% do México, 11,1% da Argentina, 6,8% da Colômbia e 5,3% do Peru (Merrick, 1994, p. 7). Enquanto Estados Unidos e Canadá impunham restrições a novas entradas, entre 1919 e 1930 o Brasil ainda atraiu uma imigração bruta da ordem de 945 mil pessoas. Dentre os maiores países da região, o Brasil era o que teria tido menor coeficiente de abertura, com um soma de exportações e importações inferior a 38,8% do PIB, e com exportações correspondendo a cerca de 17% do PIB em 1928, contra 29,8 % da Argentina, 35,1% do Chile, 31,4% da Colômbia e 31,4% do México. (Bulmer-Thomas, 1994, p. 74). Segundo outras estimativas mais recentes, com base em diferentes cifras para o PIB do Brasil, a relação importações/PIB teria sido de 10,5% em 1929 e 7,7% em 1930, e a relação do comércio exterior com o PIB de 23,6% em 1929 e 18,7% em 1930, das quais se deduz um coeficiente de exportação de 13,1% em 1929 e 11% em 1930 (Abreu e Verner, 1997, p. 69) que coloca o Brasil em posição ainda mais discrepante relativamente a outros países latino-americanos. No entanto, o reduzido grau de abertura não parece ter tornado o Brasil menos vulnerável a choques externos, o que não pode deixar de ser tomado como um paradoxo, cujo deslinde costuma ser buscado na elevada concentração das exportações brasileiras, já extensamente documentada nesse estudo, e também em movimentos de capitais, em si voláteis e por vezes correlacionados de forma perversa com os termos de troca do país. O fato é que nenhuma dessas explicações é satisfatória para resolver o paradoxo: se, por qualquer motivo, o ônus da abertura é pesado, o mesmo deveria ocorrer com o bônus. A experiência macroeconômica da República Velha, considerando-se o crescimento mas também a estabilidade, não foi muito positiva especialmente face ao ambiente internacional francamente favorável na maior parte do tempo. O fraco desempenho do país nessa quadra provavelmente teve mais a ver com deficiências internas em fatores 51 importantes para o crescimento, como a qualidade do capital humano, a produtividade, as instituições e o ambiente de negócios, do que com a tão frequentemente vilipendiada “vulnerabilidade externa”. Com base em números reconhecidamente precários, a relação dívida externa pública sobre exportações no Brasil teria passado de 0,77 em 1870 para 1,17 em 1890, 3,51 em 1914 e 2,67 em 1929, mostrando alguma melhoria no último período, mas voltaria inevitavelmente a se deteriorar com a crise mundial (Albert, 1983, p. 39). Em 1930, após significativas saídas de capital, a dívida externa total se situava em US$ 1.293,5 milhões, e as reservas em apenas 46,1 milhões. A dívida líquida era de 1.247,1 milhões e diante de exportações de US$ 319,4 milhões, a relação dívida bruta sobre exportações era de 4.05 e a da dívida líquida 3,90. A conjunção de um serviço da dívida externa fixo em termos nominais com uma receita em declínio colocaria grande pressão sobre o governo brasileiro e o novo regime se veria forçado, após 1930, a renegociar as obrigações externas do país. (Abreu e Verner, 1997, p. 67 e 74). Mesmo com números fracos para o crescimento industrial em seu conjunto, o país experimentou uma diversificação tanto regional quanto setorial, embora sem significativo aumento de participação no PIB. Em 1930, a preços de 1949 a agricultura ainda respondia por 35,8%do total, contra 14,8% da indústria (participação um pouco inferior à de 1920) e 49,4% dos serviços, beneficiados por importantes investimentos nos anos 1920 (Bonelli, 2003, p. 374). O Censo de 1920 revelou a existência, em 1919, de 13.336 estabelecimentos industriais com 275,5 mil trabalhadores, mantendo-se a predominância das indústrias têxtil e alimentícia. Os quatro ramos de têxtil, vestuário, alimentos e bebidas respondiam, em 1919, por 64,5% do valor adicionado pela indústria, contra 57,7% em 1907. Permanecia modesta a participação da indústria de bens de capital, com 2,9% do número de estabelecimentos, 2,5% do capital e da potência instalada, e 3,2% dos trabalhadores (Lago et alii, 1979, p. 43). A intensidade de capital, medida pela potência instalada por trabalhador, teria aumento de 0,72 HP em 1907 para 1,32 HP em 1919, quando a utilização total alcançou 310.424 HP (Villela e Suzigan, 1975, p. 172). Quanto à distribuição regional, houve uma considerável mudança, com São Paulo passando a responder por 33,1% do valor da produção e 30,6% do emprego em 1919 (contra 15,9% e 16,0% em 1907) e a cidade e o estado do Rio de Janeiro recuando respectivamente de 54 4,7% do investimento norte-americano (contra 21,8% do México e 21,5% de Cuba). (Albert, 1983, p.34). Avaliando-se o conjunto de políticas adotadas nos anos 1920, o papel do governo com relação ao desenvolvimento industrial foi limitado, ou talvez inconsistente, face à sucessão de conflitos e compromissos entre a cafeicultura e o conservadorsimo monetário. As políticas tarifárias, em particular, tão importantes para o nascimento da indústria, foram irregulares ao longo do tempo, sendo que, frequentemente, “a proteção foi apenas suficiente para evitar um maior declínio do custo real das importações.” Mas a proteção tarifária pode ter sido importante para “o desenvolvimento inicial de algumas indústrias particularmente aquelas para as quais a diferença nos direitos aduaneiros sobre o produto final e sobre os insumos importados era suficientemente grande para garantir altos níveis de proteção tarifária efetiva.” (Villela, 1993, p. 36) De um modo ou de outro, o enredo dominante durante a República Velha não é propriamente o de predominância inconteste e contínua da oligarquia cafeeira, tampouco o de concepções ortodoxas de política econômica. A historiografia inclina-se ora para um lado, ora para o outro, muitas vezes adotando versões esquemáticas dos interesses em jogo na sociedade brasileira nesses anos, que simplificam ou ignoram alguns aparentes paradoxos, como a indiscutível e às vezes surpreendente importância da ortodoxia na definição da política econômica, e as complicações pertinentes ao chamado “pacto federativo” a interferir na suposta hegemonia de São Paulo. Com muita freqüência os impasses tinham que ver com a taxa de câmbio, cuja economia política deve ser vista com uma tema de grande complexidade. Tomada de uma perspectiva de estática comparativa, a desvalorização do mil réis tendia a fazer crescer a renda dos cafeicultores em moeda nacional, mesmo ao risco de reduzir as receitas de exportação em moeda estrangeira no curto prazo, dadas a posição dominante do Brasil no mercado internacional de café e a baixa elasticidade-preço da demanda pelo produto. No entanto, a desvalorização cambial, ou a manutenção do mil réis numa posição de sub-valorização crônica, não podia constituir uma solução permanente para a sustentação da renda dos cafeicultores, dado que “pressionava as finanças públicas (ao elevar os custos em moeda nacional das divisas necessárias ao serviço da dívida pública externa) e o custo de vida dos assalariados urbanos (por tornar mais caras as importações)” (Abreu, 1999, p. 45). Na 55 verdade, os efeitos colaterais da manutenção do mil réis numa nível muito baixo foram bem sintetizados pela expressão consagrada do economista Celso Furtado – “socialização das perdas” – que bem explicava como as vítimas desse processo impunham limites para a prevalência dos interesses cafeeiros em detrimento de qualquer outra consideração. Esses “outros” que de alguma forma eram “tributados” ou prejudicados pela “socialização das perdas” - um vasto e heterogêneo conjunto de grupos e interesses - encontravam expressão nas concepções ortodoxas sobre a política econômica que estavam longe de encontrar seus adeptos apenas em decorrência de considerações doutrinárias. Ao longo de República Velha, foram raras as ocasiões em que papelistas e metalistas, ou cafeicultores e ortodoxos, estabeleceram compromissos em torno de definições práticas de política econômica. O destaque cabe aos períodos em que o país esteve no padrão ouro, ainda que no formato ameno e tropicalizado que adotamos através da Caixa de Conversão e da Caixa de Amortização, e em que se acoplou a este arranjo o mecanismo de defesa e sustentação dos preços de café. Tudo somado, o país permaneceu pouco mais de 10 anos na “disciplina” do padrão ouro, durante os 40 de duração da República Velha e as taxas de crescimento do país nesses anos foram relativamente elevadas. Não é verdade que o crescimento tenha sido reduzido em quaisquer outras ocasiões: no quadriênio 1920-1923, por exemplo, o crescimento médio do PIB foi de 7,1%, o que todavia apenas reforçaria ceticismo com que se deve encarar a hipótese segundo a qual o modelo brasileiro de padrão ouro teria sido a causa da prosperidade do país; na verdade, a explicação mais sensata para o bom desempenho nesses anos, e possivelmente válida também para 1920-23, tinha que ver com abundância cambial, ou com condições especialmente favoráveis da economia internacional. O paradoxo aparente a desafiar explicação é o de que o desempenho da economia tenha sido excepcionalmente bom nos anos favoráveis para a economia internacional, mas especialmente insatisfatório fora dessas circunstâncias. Tal como se o Brasil fosse uma economia especialmente aberta, o que efetivamente não era o caso. Como explicar esta “vulnerabilidade externa” tão acentuada para uma economia relativamente fechada? As pistas sugerem que a instabilidade provocada pelo setor externo estava associada ao formato específico assumido pelo padrão ouro no Brasil, e também para a 56 defesa do café, arranjos que, combinados, amplificavam os impulsos favoráveis na fase ascendente do ciclo econômico, mas ao custo de transformar os maus momentos em crises. O fato é que antes que o país aprendesse a lidar com esse paradoxo, aperfeiçoasse suas instituições e políticas no terreno monetário e cambial, e aprendesse a administrar com sabedoria a posição de dominância de que dispunha no mercado de café, a crise de 1929 mudaria drasticamente os termos de referência para este problema. 8. Bibliografia Abreu, M. 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