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Guias e Dicas
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A questão da "morte da arte" na filosofia de Hegel, Notas de estudo de Filosofia

Noéli Correia de Melo Sobrinho

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 10/03/2010

van-mnz
van-mnz 🇧🇷

4.8

(40)

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Baixe A questão da "morte da arte" na filosofia de Hegel e outras Notas de estudo em PDF para Filosofia, somente na Docsity! Comum - Rio de Janeiro - v.12 - nº 27 - p. 5 a 25 - julho / dezembro 2006 O assunto que nos propomos a tratar aqui está circunscrito à questão da morte da arte no sistema hegeliano. Este escrito não tem a pretensão de esclarecer os pontos obscuros que envolvem tal problema, nem aprofundar as referências aos aspectos estritamente estéticos aí encontrados; quer ape- nas fazer um relatório sucinto e abreviado dos posicionamentos assumi- dos por Hegel em alguns lugares da sua Estética, especificamente nos capí- tulos I e IV do volume intitulado "A Idéia e o Ideal" e na parte que trata da "Arte Romântica" no volume II da edição francesa. Embora tivéssemos percorrido alguns comentadores pertinentes em relação a este ponto da obra hegeliana, somente incorporamos à nossa exposição as observações de Benedetto Croce, porque elas nos parecem mais próximas da linha de argumentação que desejamos apresentar aqui. Em se tratando de Hegel, cabe-nos ainda um último aviso: este texto quer apenas alinhar alguns pas- sos dados por este filósofo - cujo pensamento, todos reconhecem, é bas- tante esotérico e muitas vezes impermeável - que nos permitam apontar a morte da arte como um evento histórico que corresponde a um momento da trajetória do Espírito Absoluto. A questão da "morte da arte" na filosofia de Hegel Noéli Correia de Melo Sobrinho 6 COMUM 27 1 De acordo com o sistema hegeliano, a Estética é a ciência que se ocupa do belo artístico, excluído o belo natural. O primeiro seria superior ao se- gundo, visto que aquele era "um produto do espírito" [Geist], e "tudo que provém do espírito é superior ao que existe na natureza"1. Na medida em que o belo artístico participa do espírito, também se comunica com a ver- dade, e nisso reside a sua superioridade qualitativa sobre o belo natural, que não passa de um "reflexo do espírito", quer dizer, "um modo imper- feito do espírito", sem independência e subordinado. O belo que interes- sa à Filosofia é um objeto criado pelo espírito; isto é, o objeto da ciência da Estética e, enquanto tal, estabelecendo uma relação mais ou menos próxi- ma da Religião e da Filosofia. A estética é uma ciência que trata de um objeto existente e do qual ela diz o que ele é. A filosofia da arte constitui um momento do sistema hegeliano e, assim, o belo da arte presta-se ao espírito como necessidade, como elo na cadeia que conduz o espírito à sua realização. O belo artístico ocupa um determinado lugar na totalidade orgânica do universal. É na Histó- ria, enquanto manifestação fenomênica da Idéia, que a arte pode ser pen- sada: "a arte (é) um modo particular de manifestação do espírito" e, quan- do se põe como objeto do conhecimento filosófico é um momento de "um círculo regressando a si mesmo"2. O objeto da arte não encontra o seu conceito em determinações particulares, fenomênicas, mas na Idéia, isto é, no que há de universal nas coisas do mundo. As particularidades em que o Belo se dá perfazem a diferenciação dessa idéia numa pluralidade de formas [Gestalten] necessárias àquele desenvolvimento. As obras de arte, de fato, estão necessariamente referidas "aos senti- dos, à sensação, à intuição, à imaginação"; nisso dizem respeito à liberdade do espírito nas suas representações. Ele se dá "uma consciência que lhe permite se pensar a si próprio e a tudo quanto origina"; ademais, "o pensa- mento constitui a mais íntima e essencial natureza do espírito". Embora as obras de arte se prestem à sensibilidade [Sinnlichkeit], elas têm sua origem e natureza no espírito. Este se vê a si próprio nas obras de arte: "A obra de arte, onde o pensamento de si se aliena, pertence ao domínio do pensamen- to conceitual (gn), e o espírito, submetendo-se ao exame científico, satisfaz a exigência da sua mais íntima natureza". 9COMUM 27 2 Hegel levanta uma objeção contra a idéia de que a perfeição da arte e aquilo que a define seja a "imitação da natureza", ou seja, a mímesis compul- siva do sempre igual. Nesse caso, o espírito ficaria submetido à matéria, a liberdade de criação à memória e o conteúdo à forma. No entanto, ao con- trário, "o valor de uma produção provém do conteúdo, na medida em que este participa do espírito". Quer dizer: o conteúdo material não é o que garante a existência da obra de arte, mas sim o seu conteúdo espiritual. Trata-se do fato de que a arte precisa tirar as suas formas da natureza (ele- mento sensível), mas o seu conteúdo é a idéia (elemento espiritual). A arte não deve copiar passivamente a natureza, mas não pode recusar o material que esta lhe fornece. O interesse do artista lhe nasce de dentro e a sua consci- ência é o sujeito desse interesse espiritual que se exterioriza na obra. O objetivo último da arte é "despertar a alma", porque o conteúdo é o mesmo da idéia; é "revelar à alma tudo o que a alma contém de essen- cial, de grande, de sublime, de respeitável e de verdadeiro". Nas palavras de Hegel: "o fim da arte consiste em pôr ao alcance da intuição o que existe no espírito do homem, a verdade que o homem guarda no seu espírito"8. Em suma: "a arte cultiva o humano no homem". Ela desperta as paixões humanas através das suas representações, e esta deve ser a sua finalidade maior. Ela opera através do sensível: "Esta sensibilização é alcançada pela arte, não com o recurso a experiências reais, mas somente com a aparência delas, sobrepondo, por intermédio da ilusão, as produ- ções artísticas à realidade"9. A arte é o intermediário, quer dizer, a mediação entre o exterior e a alma-vontade e, enquanto tal, exerce um poder de persuasão e de paixão; mas estas paixões podem ser "nobres" ou "vis". Qual seria, então, "o fim essencial, o fim em-si da arte"? Inicialmente, sua finalidade teria sido a de "abrandamento da barbárie", isto é, a de "dis- ciplinar (gn) os instintos, as tendências e as paixões"10. Aqui, ela se mostra- ria "libertadora", na medida em que representava estas paixões e as reco- nhecia como alteridade; ou seja, elas se encontrariam "objetivadas", e, quan- do isto ocorria, já os ânimos se tornam calmos e serenos. Em seguida, numa outra etapa, a arte se moraliza; já aí a sua finalidade se estende no sentido de a alma subordinar ainda mais as paixões, purificando-as. Isto se fazia elevando os homens acima da natureza, fazendo do valor moral o conteú- 10 COMUM 27 do da arte. Contudo, tal coisa trazia um problema: havia sempre o risco de que o elemento sensível da obra de arte fosse subjugado por "proposições morais abstratas"11; o que tornaria o seu conteúdo demasiado geral e vago; além do que, este ponto de vista poderia estar cavando cada vez mais fun- do a cisão entre o sujeito e o objeto, o espírito e a natureza, e não, como deveria ser a arte, uma "reconciliação": É missão da filosofia, sua principal missão, suprimir as oposi- ções (...) e mostrar que os termos opostos não são, na realida- de, tão intransigentes e irresolúveis como parecem, que a única verdade enunciável a propósito de cada um é que não são ver- dadeiros em si e que a verdade de ambos só resultará da mú- tua conciliação, união e harmonia. De um lado, há a liberdade, de outro, a necessidade. A liberdade é essencialmente um atri- buto do espírito, a necessidade é a lei da vontade natural.12 A arte é aquilo que se dirige ao espírito através da sensibilidade; aí reside o seu limite e nisso ela se distingue da ciência, pois esta busca o universal absoluto e o seu objeto está para além do imediato sensível: "O sensível está, na arte, para o espírito, mas o objeto da arte não é, como na ciência, a idéia, a essência, a natureza íntima deste sensível"13. Por isso também, "a fantasia é a origem da arte e o motivo da sua limitação"14. Ela tem como fim a representação da verdade, e aí, na imagem refletida da essên- cia, é que se desenha o seu limiar. Ela certamente permite algum grau de "conciliação dos contrários" e nisto habita "o fim supremo, o fim absolu- to"; qual seja, a conciliação do espírito abstrato e da natureza, do "pensa- mento subjetivo" e da "realidade objetiva", do "universal abstrato" e do "particular sensível". 3 No plano geral da Estética, a arte aparece como "uma emanação da idéia absoluta", cuja finalidade é a "representação sensível do belo", cujo conteú- do é a "idéia representada numa forma concreta e sensível" e cuja função é a de "conciliar, numa livre totalidade, estes dois aspectos: a idéia e a repre- sentação sensível", mas, para cumpri-la, exige-se de antemão que haja ade- quação entre o conteúdo não-abstrato e a forma sensível; desta adequação 11COMUM 27 se obtém um concreto e este concreto é a obra de arte. Na medida em que a obra de arte se revela como um apelo do espírito à sensibilidade, não pode ser de sua natureza desinteressada; mas, de todo modo, no seu as- pecto sensível reside também a sua limitação: "a arte (...) não é (...) o meio mais perfeito para apreender o concreto espiritual. Por isso, o pensamen- to lhe é superior"15. A arte, como já se disse, é um momento transitório do processo que objetiva e realiza o espírito na história: "antes de atingir o verdadeiro conceito da sua essência absoluta, o espírito percorre os graus que o conceito impõe". Por isso, "(Esta) evolução do conteúdo pelo conteúdo imposto corresponde, em íntima conexão com ela, uma evolução das representações concretas da arte nas formas artísticas que, decifradas, dão ao espírito a consciência de si pró- prio"16. No movimento que percorre o espírito, encontramos o ideal artístico quando "há uma adequação completa entre a idéia e a forma enquanto realidade concreta", isto é, quando se dá "a idéia realizada em conformida- de com o seu conceito, e isto constitui a verdade implicada na essência da arte"17. Em outras palavras, a verdade inscrita nela é o resultado de uma correspondência ideal entre o conteúdo e a forma, quer dizer, a conformida- de de uma idéia com a sua representação: "é dentro desse processo que a beleza artística aparece como uma totalidade de graus e de formas particu- lares"18. Para que haja arte verdadeira, exige-se a adequação, pois a idéia enquanto indeterminada abstrata não dá surgimento à forma verdadeira, concreta, mas somente representa o que lhe é exterior. Há, na verdade, de acordo com Hegel, uma hierarquia das formas ar- tísticas e esta hierarquia se encontra na história, na história da objetivação e realização do Espírito Absoluto. Em primeiro lugar, temos a "arte simbó- lica", que é "uma arte ainda imperfeita", que expressa o sentimento do sublime. Aqui, "turvo e abstrato é o conteúdo (que) extrai o seu aspecto figurado da natureza imediata"19. O sublime, o desmedido, não deve ser confundido com a beleza, visto que aquele expressa somente a forma como sendo devorada por um arbitrário universal indeterminado. Em resumo: "O símbolo consiste numa representação com um significado que não se conjuga com a expressão; mantém-se sempre uma diferença entre a idéia e a forma. A arte simbólica é a tentativa frustrada, irrealizada por inadequação, não-conformidade, não-correspondência, do ideal estético". 14 COMUM 27 rais da idéia do belo em vias de desenvolvimento"28. O espírito do belo enquanto obra de arte se realiza e se supera na poesia romântica, mas, enquanto "arquiteto e operário", ele "só estará terminado ao fim de milê- nios de história universal". 4 O romantismo é a última forma assumida pela arte antes de ser supe- rada, que se determina "pelo conceito do conteúdo que se trata de repre- sentar", ou seja, "o conteúdo absoluto da verdade"29. O romantismo é a culminância de um processo que mostra a "tendência da imaginação para se desligar da natureza e se orientar no sentido da espiritualidade"30. O que esta tendência persegue é abolir a dicotomia entre o "subjetivo em-si" e a "manifestação exterior", de modo a "permitir ao espírito um apazigua- mento profundo através de um acordo mais estreito com a sua própria esfera íntima"31; até porque é retornando a si mesmo, à sua identidade, que o espírito "goza assim de sua infinitude e liberdade"32. Esta elevação ao espírito a si mesmo, graças à qual encontra em si mesmo a sua subjetividade, que ele estava obrigado até então a achar no mundo sensível e exterior, e graças à qual adquire o sentimento e a consciência da sua união consigo mesmo, cons- titui o princípio fundamental da arte romântica.33 Na arte romântica, o espírito está em vias de se desligar dos elementos corporais externos e de suas representações abstratas. E, caso se possa ainda falar aqui em beleza, trata-se então de "uma beleza puramente espi- ritual, a da interioridade como tal, da subjetividade infinita e espiritual em si"34. O valor da arte romântica reside no seu conteúdo, isto é, na "interioridade absoluta", à qual se une a forma da "subjetividade espiritual consciente da sua autonomia e liberdade". Em outras palavras, o romantis- mo é o produto da união entre o infinito e o universal, produto esse que desconhece qualquer "particularidade", qualquer "separação", todo "pro- cesso natural". Não obstante, enquanto arte, o espírito deve "penetrar na realidade exterior", ainda que seja para se reconhecer na alteridade e retornar outra vez para si mesma, para sua identidade absoluta. 15COMUM 27 Deus é aquilo para o que retorna o espírito quando atravessa as obras românticas; contudo, Deus não é acessível através dos sentidos. Todavia, o romantismo enquanto arte precisa conter um elemento sensível. Então, como se apresenta este sensível diante da atividade do espírito? Trata-se de um sensível, diz Hegel, que se torna "subjetividade espiritual", isto é, obtém "a certeza da sua realidade enquanto absoluto". Este Deus é a "subs- tância divina que descansa infinita em si e é ela mesma a fonte desta infinitude"35. Na arte, como de resto na religião, este Deus assume a for- ma humana, se apresenta enquanto homem que se constitui na cisão com a natureza e se define como razão, lampejo divino. Na arte, a interioridade infinita abandona a exterioridade corporal e garante para si independência, liberdade, eternidade. Espírito é liberdade e, nesse sentido, a arte român- tica possui um rasgo de verdade: há algo da verdade nestas obras, e isto é o seu conteúdo, a Idéia. A "subjetividade absoluta" se manifesta de três maneiras. 1ª O Absoluto se sabe como espírito e se representa como homem. Enquanto "partici- pante do divino", o homem intui a si próprio como "eterno e infinito de acordo com a verdade"36. Ele encontra em Deus o lugar da "conciliação do espírito consigo mesmo na sua subjetividade". 2ª A conciliação é o resultado de um processo de "ascensão do espírito" que ultrapassa o mundo da finitude e assim alcança a verdade de si. O mundo da finitude é o reino do mal, é o espírito no momento da sua alteridade necessária, mas é através dele que é possível aceder ao "reino da verdade e da beatitude"37. A dor e o sofrimento pertencem à natureza da arte romântica, porque o mal e a morte são aquilo para o que aponta a razão consciente de si que vê o mun- do como alteridade, como o lugar da "maldição eterna", mas que indica um futuro conciliado, onde o tempo não é o devorador de seus rebentos, para um devir de eternidade. No romantismo, a morte como "aspiração da alma natural" só é negação daquilo que já é de si negação e alteridade, razão por que tal aspiração é "afirmativa". 3ª Quando o conteúdo vem represen- tado pelo homem, temos aí um conteúdo que é finito e que se encontra aprisionado nos seus próprios limites. Enquanto conteúdo, o humano pode ser tomado de duas maneiras: ou pela sensibilidade [acidental] ou pela espiritualidade [essencial]. Quando os elementos sensíveis determinam a configuração da obra, temos então uma arte degradada; mas quando ocor- re o inverso, encontramos aí uma arte que se aproxima da verdade e um sujeito que conserva a sua autonomia. 16 COMUM 27 O divino se retira da arte porque é um conteúdo que não pode caber em nenhuma representação sensível: a natureza não é apropriada para falar do divino. Se isto é certo, então, o conteúdo deve ser encontrado "na interioridade do espírito, no sentimento, e a representação na alma que aspira à união com a verdade, procurando evocar e fixar o divino no sujei- to"38. Visto que o conteúdo se põe na "alma subjetiva", ele encontra aí "uma extensão infinita"; o conteúdo se torna infinito. Nisso reside a "redenção": o espírito se redime da natureza e do sensível, lugar onde habita o mal. Na arte romântica, a forma se torna indiferente ao conteúdo; ou me- lhor, o conteúdo é tal que pode se verificar numa infinitude de coisas. Nesse caso, "é o Absoluto universal em si (gn), que se oferece à consciência humana, o que constitui o conteúdo da arte romântica, a qual encontra assim uma matéria inesgotável na humanidade inteira e no conjunto do seu desenvolvimento"39. O conteúdo que este tipo de arte experimenta, quando exprimido, "existe já fora da esfera artística, na representação, no sentimento". E, nesse sentido, "a religião, enquanto consciência geral da verdade, consti- tui a pressuposição essencial da arte romântica"40. Aqui, a matéria que oferece à contemplação é "indiferente", razão por que o espírito deve disso se afastar, para buscar sua satisfação em si mesmo. Na medida em que a exterioridade é indistinta para o artista romântico, também não é a beleza aquilo que ela formula. Em suma, no romantismo encontramos "dois mundos": um "mundo espiritual" perfeito, pacificado, reconciliado e retornado a si próprio e um "mundo exterior", empírico, desinteressante para a alma. O exterior já não exerce nenhuma sedução sobre a interioridade, sobre a subjetividade íntima do espírito: "Procedendo as- sim, a arte romântica deixa ao mundo exterior toda a sua liberdade, sem lhe impor o menor constrangimento, e sem lhe submeter a qualquer escolha"41. A conciliação promovida pelo processo de interiorização só ab- sorve a exterioridade, na medida em que ela se acha "desprovida de sua exterioridade objetiva, tornada invisível e imperceptível, uma sonorida- de emanando de uma fonte misteriosa"42. Na verdade, a expressão máxi- ma da arte romântica "é de natureza musical e (...) lírica"43. Porque o conteúdo da arte romântica não é aquilo que realiza a "substancialidade da vida subjetiva" e só lhe pode atribuir uma liberdade "formal", porque as formas através das quais este conteúdo se exterioriza são múltiplas e "desordenadas", "a arte romântica acaba": nela o interior e o 19COMUM 27 (...) a arte é limitada no seu conteúdo a uma matéria sensível e em conseqüência é somente capaz de um grau espiritual de- terminado de verdade. Há uma existência da Idéia, mais pro- funda, que não pode ser expressa por intermédio do sensível: e tal é o conteúdo da nossa religião e da nossa cultura. (...) Nosso modo de religião e de cultura racional está colocado, (quer dizer) enquanto modo de expressão do Absoluto, num grau acima da arte. A obra de arte não pode satisfazer a nossa necessidade última e definitiva. (...) A obra de arte exige o nosso julgamento; nós submetemos a nosso exame o seu con- teúdo e a conveniência da representação que ela dá.55 Nessa altura, Croce cita um longo trecho de Hegel de 1828-29 em apoio à sua tese: Os belos tempos da arte grega e da época de ouro do fim da Idade Média passaram. Nossa época, conforme sua condição geral, não é favorável à arte. (...) mas toda a cultura espiritual é assim feita de modo que ela mesma vive nesse mundo de refle- xão e está submetida a suas condições. (...) Sob todas as rela- ções, a arte, considerada nas suas determinações mais elevadas, é e se torna para nós uma coisa passada. Assim fazendo, ela perdeu sua clareza de verdade e sua vivacidade, foi transferida na nossa imaginação e já não mantém na realidade a necessidade que outrora era a sua e a sua posição mais elevada.56 Disso conclui ele que (...) a dissolução da arte, conforme os postulados lógicos da filosofia hegeliana, é um processo ideal e histórico porque afirmam que a arte estava bem viva em outras épocas, mas que no presente lhe falta o ar respirável, que não é mais ne- cessário como qualquer coisa de atual, mas que é qualquer coisa do passado, uma matéria histórica.57 O processo no qual o espírito se realiza na obra de arte encontra o seu limiar no romantismo, quando, deixando para trás os elementos sensíveis em que se inscrevia, o espírito retorna sobre si e devém filosofia: "É parti- 20 COMUM 27 cularmente no ponto extremo da época romântica que se pode consi- derar esta decomposição da arte, que, uma vez cindida a unidade no interior e no exterior, deixa, um diante do outro, um puro externo e um puro interno"58. Em suma: A arte morreu. (...) Trata-se de um processo intrínseco e mesmo de um processo graças ao qual a arte se liberta cada vez mais completamente do elemento representativo.59 A arte, a grande arte, a arte verdadeira, aquela que tem como conteúdo o Sagrado e o Eterno, aquela que foi outrora "re- presentação sensível da Idéia", acabou definitivamente nos tem- pos modernos; e é por isso que a arte enquanto arte está morta, e a arte que se seguiu é uma arte despojada de seu poder, reduzida ao puramente humano.60 O fim da arte é a identidade que é produto do espírito e pelo qual o Eterno, o Divino, o Verdadeiro, se revela em-si e para- si sob a aparência e a forma da realidade à nossa intuição ex- terna, ao sentimento e à representação; mas o cômico des- truiu tudo isto.61 Num outro lugar de sua obra, na sua própria Estética, Croce trata mais ao largo a Estética hegeliana, o que nos permite, de resto, situá-la melhor no que diz respeito à função da arte no sistema hegeliano. Aqui, a arte é a primeira forma de manifestação do Espírito Absoluto, seguido da religião e da filosofia. O que ela representa não é o conceito abstrato, mas o conceito concreto, isto é, a Idéia; e, nesse sentido, a arte é uma das três formas nas quais a liberdade do espírito é alcançada. Hegel mesmo é quem afirma: A Verdade é Idéia enquanto Idéia, de acordo com o seu ser- em-si e seu princípio universal, e até onde é pensamento como tal. Não há qualquer existência sensível ou material na Verda- de; o pensamento não contempla nela senão a idéia universal. Mas a idéia deve também se realizar externamente e atingir uma existência atual e determinada. A Verdade também como tal tem uma existência, mas quando na sua existência exterior determinada está para a consciência, e o conceito permanece 21COMUM 27 imediatamente um com a aparência externa; a Idéia não é ape- nas verdadeira, mas bela. Dessa maneira, a Beleza pode ser definida como a aparência sensível da Idéia.62 Assim, o conteúdo da arte é a Idéia na sua forma sensível e represen- tativa, e tal imaginação artística não está aguilhoada a esta aparência lumi- nosa, mas caminha celeremente à busca da verdade interior e da racionalidade do real: "uma obra de arte não deve apresentar à intuição um conteúdo na sua universalidade, mas este universal individualizado é convertido num individual sensível"63. No sistema hegeliano, a arte certamente apresenta um caráter cognitivo; quer dizer, ela ocupa aí um lugar e significa um momento do Espírito Absoluto; mas, como tal, ela constitui um nível inferior no que diz respei- to à filosofia, embora necessário e indispensável. Nessa medida, arte e religião "devem ter uma espécie de valor que se liga a fases históricas transitó- rias na vida da humanidade"64. Portanto, a arte é algo que deve ser ultrapas- sado, superado. É Hegel quem diz indiretamente: Apenas um círculo definido ou grau de verdade pode se tor- nar visível numa obra de arte; quer dizer, esta verdade en- quanto pode ser transformada no sensível e adequado pre- sentes nessa forma, como eram os deuses gregos. Mas existe uma concepção mais profunda da verdade, através da qual não se está tão intimamente aliado ao sensível nem se permite ser recebido ou expresso adequadamente numa roupagem mate- rial. A esta classe pertence a concepção cristã da verdade; e, além disso, o espírito no nosso mundo moderno, mas especi- almente o de nossa religião e de nossa evolução mental, pare- ce ter passado o ponto no qual a arte é o melhor caminho para a apreensão do Absoluto. Não obstante, o caráter peculiar da produção artística satisfaz as nossas mais elevadas aspirações. (...) Pensamento e reflexão superaram a bela arte.65 O diagnóstico final de Croce é o seguinte: "A Estética de Hegel é assim uma oração fúnebre; ela passa em revista as sucessivas formas de arte, mostra os passos progressivos da consumação interna e repousa a totali- dade no seu túmulo, deixando a Filosofia escrever o seu epitáfio"66. 24 COMUM 27 45. Idem, p. 333. 46. Idem, p. 338. 47. Idem, p. 339. 48. Idem, p. 340. 49. Idem, p. 341. 50. Idem, p. 344. 51. B. Croce, a, p. 124 (gn). 52. Idem, p. 125 (gn). 53. Ibid. 54. Idem, p. 126 (gn). 55. Idem, p. 127 (gn). 56. Hegel, apud Croce, a, pp. 127-128 (gn). 57. Idem, p. 129. 58. Idem, p. 130. 59. Ibid. 60. Idem, p. 133. 61. Idem, p. 134. 62. Hegel, apud Croce, b, p. 299. 63. Idem, p. 300. 64. Idem, p. 301. 65. Hegel, apud Croce, idem, p. 302. 66. Idem, p. 303. 67. Hegel, c, p. 409. 68. Idem, p. 412. Referências bibliográficas BRAS, Gerard. Hegel e a Arte. Uma apresentação à Estética. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1990. CROCE, Benedetto (a).La "fin de l'art" dans le système hegelien. In: Essais d'Esthétique. Paris: Gallimard, 1991. CROCE, Benedetto (b). Aesthetics as science of expression and general linguistic. Londres: Vision Press-Peter Owen Ltd., 1953 (edição revista). FERRY, Luc. Homo Aestheticus. L'invention du gout à l'age démocratique. Paris: Livre de Poche, 1991. GILBERT, K. E. e KUHN, H. A History of Aesthetics. Bloomington: Indiana University Press, 1954 (edição revista e ampliada). HEGEL, G. W. F. (a). Estética. A Idéia e o Ideal. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os Pensadores, 1974. HEGEL, G. W. F. (b). Esthétique, II. Développement de l'idéal e sa differenciation en formes d'art particulières (terceira seção: L'Art Romantique). Paris: Aubier, Ed. Montaigne, 1944. 25COMUM 27 HEGEL, G. W. F. (c). La Religión del Arte. In: Fenomenología del Espíritu. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987. VATTIMO, Gianni. A verdade da arte. In: O fim da modernidade. Nihilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Lisboa: Presença, 1987. Resumo Este artigo apresenta uma interpretação da Estética de Hegel em que se indicam os fatores que apontam para a morte da arte no seu sistema filosófico. Palavras-chave Hegel; Morte da arte; Romantismo. Abstract This paper shows an interpretation on the Hegel's Aesthetics in which we indicate the arguments that prove the death of art in the Hegelian philosophical system Key-words Hegel; The death of art; Romanticism
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