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Guias e Dicas
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A Tradução e Construção de Imagens Culturais, Notas de estudo de Literatura

Autora: Marcela Lochem Valente

Tipologia: Notas de estudo

2015

Compartilhado em 02/07/2015

jana-b-9
jana-b-9 🇧🇷

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Baixe A Tradução e Construção de Imagens Culturais e outras Notas de estudo em PDF para Literatura, somente na Docsity! Marcela Iochem Valente A tradução e a construção de imagens culturais: Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, e sua tradução para o inglês Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras/Estudos da Linguagem. Orientadora: Profa. Marcia do Amaral Peixoto Martins Co-Orientadora: Profa. Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro Rio de Janeiro, Novembro de 2013 Marcela Iochem Valente A tradução e a construção de imagens culturais: Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, e sua tradução para o inglês Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Profa. Marcia do Amaral Peixoto Martins Orientadora Departamento de Letras – PUC-Rio Profa. Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro Co-orientadora UERJ Prof. Paulo Fernando Henriques Britto Departamento de Letras – PUC-Rio Profa. Eneida Leal Cunha Departamento de Letras – PUC-Rio Prof. Eduardo de Assis Duarte UFMG Profa. Aurora Maria Soares Neiva UFRJ Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio Rio de Janeiro, 5 de novembro de 2013. Resumo Valente, Marcela Iochem; Martins, Marcia do Amaral Peixoto. A tradução e a construção de imagens culturais: Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, e sua tradução para o inglês. Rio de Janeiro, 2013. 163p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O presente trabalho analisa o processo de transposição para o inglês do romance Ponciá Vicêncio (2003), da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo, cuja tradução de Paloma Martinez-Cruz foi publicada nos Estados Unidos, em 2007, pela Host Publications. Partindo do pressuposto de que a tradução não é um processo meramente interlingual, mas envolve também muitas questões de ordem cultural e, também, que o lugar sistêmico ocupado por uma determinada obra em sua cultura fonte não necessariamente se repete na cultura alvo devido a diferenças políticas, sociais e culturais, a presente pesquisa busca compreender o lugar sistêmico ocupado por Evaristo e sua obra nos polissistemas culturais brasileiro e estadunidense. O presente estudo leva em conta aspectos como a motivação para a realização da tradução da obra, o público leitor previsto, algumas estratégias desta tradução, a distribuição, a recepção crítica de Ponciá Vicêncio nas culturas alvo e fonte e os lugares sistêmicos ocupados pela escritora e por sua obra nos polissistemas culturais de origem e de recepção. A análise desenvolvida esclarece algumas questões como: em que medida essa inserção pode mudar a imagem da literatura/cultura brasileira no polissistema estadunidense e o possível impacto sobre a posição que Evaristo ocupa no polissistema literário brasileiro – ou até mesmo na recente constituição de um sistema de literatura afro-brasileira. O estudo do processo de inserção de Conceição Evaristo no polissistema literário estadunidense pela via da tradução foi informado pela teoria dos polissistemas, como proposta por Itamar Even- Zohar; pelos estudos descritivos da tradução – DTS, em especial as ideias de Gideon Toury e André Lefevere; pelos estudos culturais, que têm propiciado a articulação dos estudos da tradução com os estudos de gênero e pós-coloniais; e algumas ideias de Lawrence Venuti sobre a geração e a manipulação de imagens culturais. Também nos foi instrumental o modelo metodológico proposto por Lambert e Van Gorp, já que analisamos aspectos como a linguagem, contextos sistêmicos, textos críticos e as ações de patronagem. Palavras-chave Tradução; Ponciá Vicêncio; polissistema cultural brasileiro; polissistema cultural estadunidense. Abstract Valente, Marcela Iochem; Martins, Marcia do Amaral Peixoto (Advisor). Translation and the Construction of Cultural Images: Conceição Evaristo’s Ponciá Vicêncio, and its translation into English. Rio de Janeiro, 2013. 163p. Doctoral Dissertation – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. This doctoral dissertation analyzes the translation process of Conceição Evaristo’s Ponciá Vicêncio (2003) into English. This novel, written by an Afro- Brazilian writer, was translated by Paloma Martinez-Cruz and published in the United States in 2007, by Host Publications. Considering that translation is not merely an interlingual process, but it also involves many cultural issues, in addition to the fact that the systemic place occupied by a certain work in its source culture is not necessarily repeated in the target culture due to political, social and cultural differences, this research seeks to understand the systemic places occupied by Evaristo and her work both in the Brazilian and American cultural polysystems. This study takes into account aspects such as the motivation to perform the translation of this work, the expected audience, some translation strategies, the distribution and the critical reception of Ponciá Vicêncio in the source and target cultures, as well as the systemic places occupied by the writer and her work in the cultural polysystems of origin and reception. This analysis clarifies some questions such as to what extent this insertion can change the image of Brazilian literature/culture in the North-American polysystem, and the possible impact that Evaristo’s image in the US may have on the position she occupies in the Brazilian literary polysystem – or even in the recent establishment of an Afro- Brazilian literary system. The study of the process of insertion of Conceição Evaristo in the American literary polysystem via translation was informed by the polysystem theory, as proposed by Itamar Even-Zohar, the Descriptive Translation Studies – DTS, especially the ideas of Gideon Toury and André Lefevere, the Cultural Studies, which have led to the articulation of translation studies, gender studies and post-colonial studies, and some ideas by Lawrence Venuti on the generation and manipulation of cultural images. The methodological model proposed by Lambert and Van Gorp also served as an instrument to this research, considering that we analyze aspects such as language, 10 Introdução O presente trabalho parte do pressuposto de que a tradução não é um processo meramente interlingual, envolvendo também muitas questões de ordem cultural, como apontam as teorias desenvolvidas a partir da década de 1980 na área dos estudos tradutórios. Além disso, muitas vezes uma determinada obra traduzida tem um impacto na cultura alvo diferente do que alcançou no seu contexto de origem em diferentes momentos, já que os referenciais e o olhar sobre aquela determinada experiência são distintos em cada cultura. Como afirma Susan Bassnett (1999, p. 2), a tradução não acontece em um vácuo, mas sim em um contínuo; ela não é um ato isolado, mas parte de um processo de transferência intercultural, sendo também um processo cheio de obstáculos e desafios que exige muitas escolhas por parte do tradutor. Em nosso mundo globalizado e cheio de processos migratórios, a tradução possui extrema relevância, sendo não só uma forma de mediar relações interculturais entre países, como também um meio de transmissão de capital cultural. Além de introduzir uma nova informação em uma outra cultura, a tradução muitas vezes explica uma cultura para outra, popularizando um conhecimento antes restrito àqueles que possuem o domínio de ambos os códigos. Podemos dizer que, para a cultura fonte, a tradução oferece uma oportunidade para alcançar maior visibilidade, enquanto que, para a cultura alvo, ela se torna uma espécie de janela que permite novos olhares e concepções. Tendo isso em mente, a pesquisa aqui proposta pretende analisar o processo de transposição para o inglês do romance Ponciá Vicêncio, primeiro dos dois romances já publicados pela escritora afro-brasileira 1 Conceição Evaristo. Esse romance foi traduzido para o inglês em 2007 pela tradutora Paloma Martinez- Cruz e publicado pela Host Publications, uma editora estadunidense. Partindo do pressuposto de que o lugar sistêmico ocupado por uma determinada obra em sua cultura fonte não necessariamente se repete na cultura alvo devido a diferenças políticas, sociais e culturais, examinaremos as culturas fonte e alvo a fim de que 1 Manteremos o uso do hífen em todos os termos que contenham o prefixo “afro” devido a implicações teóricas. Embora, de acordo com a nova ortografia da língua portuguesa, algumas palavras com esse prefixo não sejam mais hifenizadas, nos estudos pós-coloniais, com base em teóricos como Stuart Hall (1996) e Homi Bhabha (1994), falamos em sujeitos híbridos e identidades hifenizadas, daí a opção pela manutenção do hífen nesta tese. 11 possa ser compreendido o lugar sistêmico ocupado por Evaristo e sua obra nos polissistemas de origem e recepção. O estudo do processo de inserção de Evaristo na cultura estadunidense pela via da tradução levará em conta aspectos como a motivação para traduzir sua obra, o público leitor previsto, algumas estratégias desta tradução, a distribuição e a recepção crítica de Ponciá Vicêncio nas culturas alvo e fonte, dentre outros. A análise a ser desenvolvida poderá esclarecer algumas questões como: em que medida essa inserção poderá mudar a imagem da literatura/cultura brasileira no polissistema estadunidense e o possível impacto sobre a posição que Evaristo ocupa no polissistema literário brasileiro – ou até mesmo na recente constituição de um sistema de literatura afro-brasileira. Sendo assim, a partir do levantamento de dados referentes a questões como as possíveis motivações para a tradução de Ponciá Vicêncio para o inglês, a proposta da editora que publicou a tradução do romance e o público leitor previsto, o projeto tradutório, a distribuição e a recepção crítica de Ponciá Vicêncio nas culturas alvo e fonte, o presente estudo pretende responder às seguintes perguntas de pesquisa: a. Qual é o lugar sistêmico ocupado por Conceição Evaristo e sua obra no polissistema de origem? b. Qual é o lugar sistêmico ocupado por Evaristo e sua obra no polissistema de recepção? c. Já que segundo Gideon Toury (1995) “não há como a tradução ocupar o mesmo lugar sistêmico de seu original” (p. 26), de que formas esses lugares sistêmicos se aproximam ou se distanciam? d. Em que medida o interesse por Evaristo nos Estados Unidos e o discurso da crítica estadunidense sobre ela e outras escritoras negras pode estar contribuindo para a criação, no Brasil, de um sistema de literatura afro- brasileira, à semelhança do sistema de literatura afro-americana? Conceição Evaristo, apesar de ter produções publicadas desde 1990, começou a ser reconhecida dentro e fora do Brasil apenas recentemente. Evaristo publica constantemente na série Cadernos Negros – uma coletânea de poemas e contos que surgiu em 1978 e a principal antologia publicada regularmente com textos de autores afro-brasileiros, sendo um importante veículo para dar visibilidade à literatura negra – e foi através da publicação de seus poemas e contos nessa série que a escritora começou a ser conhecida no sistema de literatura 12 afro-brasileira do polissistema literário brasileiro. Além de ter poemas, contos e trabalhos acadêmicos publicados, Evaristo é autora de dois romances: Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006), sendo que o primeiro foi traduzido para o inglês em 2007, como já mencionamos. Em 2008, Evaristo lançou Poemas da recordação e outros movimentos, livro que reúne uma série de poemas anteriormente publicados nos Cadernos Negros e que foi recentemente vertido para o inglês por Maria Aparecida Salgueiro e Antonio Tillis, ambos especialistas em literaturas da diáspora negra. A tradução, porém, ainda está no prelo, devendo ser publicada em 2013 sob o título Poems of Recollection and other Movements. Em 2011, durante o XIV Seminário Nacional & V Seminário Internacional Mulher e Literatura, na Universidade de Brasília, Evaristo lançou sua obra mais recente, Insubmissas lágrimas de mulheres, uma coletânea de contos. Também é de grande relevância o blog lançado pela escritora em 30 de novembro de 2012 chamado “Nossa Escrevivência”, hospedado em http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/, onde podemos encontrar, além da tese de doutorado da escritora, informações sobre os livros já publicados por Evaristo, textos da escritora, entrevistas, depoimentos, vídeos, artigos publicados sobre sua obra e material sobre a literatura afro-brasileira de um modo mais amplo. Segundo Evaristo, em entrevista a mim concedida, [d]entre os objetivos de construção do blog “Nossa Escrevivência” está o de atender a gama de pesquisadores/as que vêm estudando a minha escrita. Recebo, constantemente por email, pedidos de indicação bibliográfica de estudos sobre meus textos, assim como solicitações de envio de contos e poemas de minha autoria, informações sobre onde encontrar meus livros ou tal palestra proferida em evento tal... Fico atordoada e constrangida, pois, não tenho conseguido atender todos os pedidos. Nosso objetivo é o de ir colocando aos poucos, ou pelo menos, indicar os caminhos de acesso a esse material no blog. “Nossa Escrevivência” pretende acumular o máximo de material possível facilitar as pesquisas das pessoas. (2013) Por não ser considerada uma autora canônica no polissistema literário brasileiro, a obra de Evaristo não é encontrada com facilidade nas livrarias tradicionais aqui no Brasil. Geralmente o acesso a ela se dá através de livrarias virtuais ou daquelas livrarias especializadas em cultura e literatura afro- descendente, como, por exemplo, a Kitabu Livraria Negra, no bairro da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Ao afirmarmos que Evaristo não é uma escritora canônica neste país, cabe aqui esclarecer o conceito de cânone considerado neste 15 De modo geral, obras de escritores afro-descendentes impõem muitos desafios para seus tradutores, tendo em vista que através delas muitos autores expressam a realidade vivida pelo seu povo e para isso utilizam, diversas vezes, uma linguagem específica de determinada comunidade, com marcas culturais peculiares de uma determinada região. Mais complexo ainda para tradução é o universo de escritoras afro-descendentes, por agregarem a questão do gênero e suas implicações à questão da cor. Ao falar sobre a tradução para o português de obras de escritoras afro- americanas e problematizar a escolha de um registro em nossa língua equivalente ao Ebonics 3 – muito comum nessas obras – a professora e pesquisadora Maria Aparecida Andrade Salgueiro, afirma em seu artigo “A Identidade Afro- Americana e a Tradução Intercultural” que, ao buscarmos uma variedade linguística correspondente a uma outra no momento da tradução, não podemos nos esquecer que a língua falada pelos negros no Brasil varia de região para região, de estado para estado. Assim, a ideia é entender que elementos e conceitos foram levados em consideração para a tomada de decisões sobre como reproduzir os diálogos originais, as escolhas que o tradutor fez e o que ele considerou importante. (2007, p. 75) Só mesmo através da pesquisa em relação à cultura de tal grupo e da linguagem utilizada por eles, além de tudo o que essa utilização implica, é possível chegar a um resultado consciente e fundamentado para a tradução de tal elemento. É igualmente importante considerar que [a] escolha de uma variedade da língua em relação a outra ou ainda a escolha de uma língua em vez de outra “sinaliza significados sociais para ouvintes e leitores”. Dessa maneira, é importante examinar “atos e escolhas: nas substituições entre línguas diferentes, entre um dialeto oficial ou não ou uma mistura de todos esses” de acordo com a situação social. (Prasad, 1999, p. 47) 4 é Quem da literatura brasileira visa à apresentação de nossos autores aos editores estrangeiros em visita a feiras internacionais – daí a presente edição português / inglês”. Apresentação do Guia Conciso de Autores Brasileiros por: Elmer Côrrea Barbosa - Diretor do Departamento Nacional do Livro da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://www.albertopucheu.com.br/ap_guia.htm 3 O Ebonics, também conhecido como African American English, Negro English, Black English e African American Vernacular English, é um “sistema linguístico usado por alguns afro- americanos” (Green, 2007, p. 7), considerado uma variedade linguística não padrão da língua inglesa cujo uso, muitas vezes, traz consigo questões sociais, culturais, políticas e ideológicas. 4 Tradução minha, assim como todas as demais traduções de citações extraídas de obras em inglês. 16 Obras como a de Evaristo trazem muitas peculiaridades culturais, já que têm como base experiências de vida e memórias. Ponciá Vicêncio, o primeiro romance da autora, vem sendo tema de artigos e discussões no meio acadêmico desde sua publicação em 2003. Embora não muito popular junto ao grande público informado pela mídia oficial, e não muito reconhecido fora da academia, recebeu indicação para diversos processos seletivos de importantes instituições no Brasil, como a UFMG em 2008, a UEL em 2008 e 2009, o CEFET BH em 2009, e a EPCAR em 2012. A obra narra problemas do cotidiano das mulheres afro-descendentes sob um ponto de vista feminino e negro. A autora traça a trajetória da personagem que dá título ao romance, uma mulher negra e pobre nascida no campo, desde sua infância até a idade adulta. O romance discute a questão da identidade de Ponciá a partir da memória afro-descendente herdada de seus ancestrais e da herança identitária de seu avô, além de estabelecer um diálogo entre o passado e o presente, entre a lembrança e a vivência de elementos literários fortes, entre o real e o imaginário, entre o campo e a cidade grande. Através da narrativa fragmentada do romance, a história de Ponciá é contada, e percebemos que a memória da infância da menina negra e inocente, tão repleta de boas recordações, vai sendo substituída pela memória da adolescente negra, da empregada doméstica e da mulher que apanha de seu companheiro, que sofre sete abortos, que se perde dos seus e, em alguns momentos, de si mesma. Embora se trate de um romance que, segundo a autora, não é autobiográfico, Evaristo mostrou, através da trajetória de Ponciá, várias das dificuldades que ela mesma enfrentou ao longo de sua adolescência e idade adulta por ser negra e pobre, incluindo a dificuldade para encontrar seu espaço na sociedade, ter um emprego e crescer profissionalmente. A obra literária de Conceição Evaristo narra, sob ótica feminina e afro- descendente, problemas do cotidiano das mulheres negras e da pobreza, em formato repleto de poesia e cheio de referências culturais. Sua obra se projeta nos dias de hoje como reflexo identitário de um grupo até então excluído e questiona os cânones brasileiros, que tendem a priorizar a visibilidade de grupos pertencentes às supostas maiorias ou, ainda, a sociedade hegemônica, tida como padrão. A tradução de tais obras não apenas dá voz a esses grupos, permitindo que suas histórias sejam reconhecidas em maior escala, mas ainda faz com que partes 17 da cultura brasileira, por muito tempo encobertas, venham ser conhecidas internacionalmente, e que grupos antes excluídos ou marginalizados passem a ter alguma visibilidade. O estudo do processo de inserção de Conceição Evaristo no polissistema literário estadunidense pela via da tradução será informado pela teoria dos polissistemas, como proposta por Itamar Even-Zohar (1997 [1990]); pelos estudos descritivos da tradução – DTS, em especial as ideias de Gideon Toury e André Lefevere; pelos estudos culturais, que têm propiciado a articulação dos estudos da tradução com os estudos de gênero e pós-coloniais; e algumas ideias de Lawrence Venuti sobre a geração e a manipulação de imagens culturais. Também nos será instrumental o modelo metodológico de Lambert e Van Gorp, já que analisaremos aspectos como a linguagem utilizada na tradução, os contextos sistêmicos e textos críticos. A teoria dos polissistemas fundamentará esta pesquisa na medida em que as questões sociais, de gênero, assim como as de etnia, não podem ser compreendidas sem sua inserção no momento histórico das culturas nas quais estas questões se manifestam. Sendo assim, não só tomaremos como pressuposto a visão da literatura como um polissistema subsumido por um outro maior, que é o da cultura, como também empreenderemos uma análise tanto do polissistema literário receptor como do polissistema de origem da obra traduzida que é objeto da pesquisa. É importante ressaltar logo de início que essa teoria não vê os polissistemas como redes de relações estanques e isoladas. O modelo proposto por Even-Zohar, concebe a noção de polissistema como algo dinâmico e heterogêneo, uma estrutura aberta, composta por várias redes simultâneas de relações (Even- Zohar, 1990, p. 9). Desta maneira, é importante ficar claro que as fronteiras dos polissistemas são porosas e estes não estão confinados, mas, sim, dialogam entre si. Dessa forma, embora parte da proposta do presente trabalho seja compreender o lugar sistêmico ocupado pela escritora afro-brasileira Conceição Evaristo nos polissistemas de origem e recepção – polissistemas culturais brasileiro e estadunidense, respectivamente – não estamos afirmando aqui que esses polissistemas são redes isoladas e fechadas de relações, sem qualquer interação com outros cossistemas ou com fronteiras rígidas e nitidamente demarcáveis. Os DTS (Descriptive Translation Studies) também serão muito instrumentais para o estudo por se ocuparem de questões como o papel e a 20 Para Venuti, o tradutor pode limitar ou redirecionar esse movimento etnocêntrico inerente à tradução, levando em consideração interesses além daqueles pertencentes a uma comunidade cultural que ocupa uma posição dominante na cultura receptora. Ao adotar um projeto tradutório motivado por uma ética da diferença, considerando a cultura onde o texto estrangeiro tem sua origem, o tradutor pode influenciar na alteração da “reprodução de ideologias e instituições domésticas dominantes que proporcionam uma representação parcial das culturas estrangeiras e marginalizam outras comunidades domésticas” (2002, p. 158). Com um projeto de tradução estrangeirizante, é possível levar o leitor até o texto e a cultura fonte, trazendo a diferença do texto estrangeiro, rompendo com os códigos culturais que prevalecem na língua alvo e podendo subverter ideologias e instituições do sistema receptor (p. 160). Venuti aponta ainda que a tradução pode servir de instrumento para a construção de uma identidade cultural ou até mesmo autoral (2002, p. 157-158). Com base nessas ideias, verificaremos se a imagem de Conceição Evaristo e seu romance, Ponciá Vicêncio, no polissistema receptor (estadunidense) se aproxima ou se distancia daquela criada no polissistema de origem (brasileiro). Por fim, o modelo metodológico de Lambert e Van Gorp nos será instrumental para a análise de alguns aspectos da tradução do romance Ponciá Vicêncio para o inglês. Considerando que a tradução é o resultado de uma seleção de estratégias dentro de um sistema de comunicação, as estratégias tradutórias devem ser estudadas e compreendidas e, para isso, os autores propõem quatro níveis para o estudo descritivo das traduções literárias: a. Dados preliminares: título, paratextos (capa, orelhas, nome do autor e tradutor...) metatextos (prefácios, ensaios, críticas,...) b. Nível macroestrutural: verificação de divisões do texto, títulos de capítulos e seções, estrutura narrativa, estratégia global da tradução. c. Nível microestrutural: seleção vocabular, estruturas gramaticais, tipo de narrativa, modalização, registros, etc. d. Contexto sistêmico. Com base nesse modelo, este trabalho analisará dados preliminares, em especial, metatextos; alguns aspectos do nível microestrutural, com destaque para a linguagem, focando nos recursos estilísticos e na seleção vocabular; e o contexto sistêmico. 21 No estudo dos respectivos contextos sistêmicos, o de origem e o de recepção, serão analisados e observados aspectos como as ações de patronagem, a recepção, dentre outros. Entrevistas com editoras, críticos e estudiosos da literatura afro-brasileira também serão utilizadas neste trabalho. Esta pesquisa pretende trazer uma contribuição para os estudos de literatura afro-brasileira e para os estudos de tradução, bem como auxiliar na conscientização em relação à importância de autores afro-descendentes e suas produções, nesse caso, mais especificamente, Conceição Evaristo e sua obra Ponciá Vicêncio. Além de investigar questões relacionadas à recepção e à repercussão do trabalho de Evaristo em inglês e português, este trabalho também busca ressaltar a necessidade de traduções cuidadosas e bem fundamentadas para tal tipo de produção literária, tão repleta de elementos culturais. O trabalho está dividido em quatro capítulos. O primeiro capítulo se ocupa dos pressupostos teóricos utilizados para a realização desta pesquisa. O segundo, por sua vez, tem como foco o lugar ocupado pela escritora Conceição Evaristo no polissistema cultural brasileiro, trazendo um panorama da literatura afro- brasileira, alguns dados biográficos da escritora e uma análise do lugar ocupado por sua produção nesse polissistema. O terceiro capítulo trata de Evaristo e sua produção no polissistema cultural estadunidense, trazendo algumas breves considerações sobre a literatura estadunidense produzida por afro-descendentes – vertente conhecida como literatura afro-americana – e ainda da literatura afro- brasileira traduzida para esse polissistema cultural, por fim, tentando compreender o lugar ocupado por Evaristo nos Estados Unidos. O quarto e último capítulo deste trabalho tem como foco o romance Ponciá Vicêncio. Após conhecermos um pouco mais sobre o romance, esse capítulo propõe-se a analisar sua tradução para o inglês segundo o modelo proposto por Lambert e Van Gorp, dando especial atenção à linguagem utilizada – com foco nos recursos estilísticos e na seleção vocabular, e às ações de patronagem. As entrevistas realizadas por mim com pesquisadores reconhecidos da área de estudos da diáspora negra e da literatura brasileira – Maria Aparecida Salgueiro e Eduardo de Assis Duarte, com a tradutora do romance que é o corpus do presente trabalho – Paloma Martinez-Cruz, com a editora que publicou a tradução nos Estados Unidos – Host Publications e com a escritora Conceição Evaristo, diversas vezes citadas ao logo do trabalho, estão apresentadas na íntegra como 22 anexo, na ordem cronológica em que foram realizadas, e compõem um material muito relevante para o presente estudo. 25 proposta por Even-Zohar, embora muito influente e de grande importância, é apenas um ponto de partida para trabalhos posteriores. Em “Translation Studies and a New Paradigm” (1985), Theo Hermans chama a atenção para a presença de textos traduzidos na literatura da maioria dos países, assim como para a importância histórica das traduções no desenvolvimento da maioria das literaturas nacionais. Porém, Hermans observa que o trabalho apresentado pela crítica literária geralmente é de cunho avaliativo e consiste em comparar a “textura rica e sutil do original” com sua tradução, apontando esta como uma produção inferior que não deve substituir uma obra literária. Nesse contexto, os estudos sobre a tradução serviriam apenas para destacar as qualidades do texto original e evidenciar os erros e as imperfeições de suas traduções (p. 7). Hermans aponta que, a partir de meados da década de 1970, um grupo internacional de estudiosos com diferentes interesses, porém com alguns pressupostos em comum, buscou estabelecer um (então) novo paradigma para o estudo da tradução literária. Alguns desses pressupostos seriam: 1. uma visão da literatura como sistema complexo e dinâmico (1985, p. 32- 33); 2. a convicção da possibilidade de diálogo entre modelos teóricos e estudos de caso (p. 33-35); 3. uma abordagem descritiva, funcional e sistêmica para tradução literária, voltada para o polo receptor (p. 35-36); 4. atenção à produção e à recepção de traduções, assim como a seu papel em um dado sistema literário (p. 37-41). Dentro dessa abordagem dos estudos da tradução, a teoria dos polissistemas de Even-Zohar possui considerável destaque, resultando, segundo Hermans (1985), em uma considerável ampliação de horizontes, já que todo fenômeno relacionado à tradução torna-se um possível objeto de estudo. Como observa Martins, [a] abordagem teórica funcional e relacional de Even-Zohar, com a sua consideração dos aspectos socioculturais, introduziu uma nova perspectiva nos estudos da tradução, onde predominavam as abordagens normativas fundamentadas em concepções de tradução essencialistas e anistóricas. Os estudiosos da área, até então preocupados em descrever traduções específicas, voltam seu interesse para o processo de produção de traduções como um todo e para o seu impacto nas transformações sofridas pelo sistema literário. (1999, p. 48) 26 Assim, esta pesquisa, que tem como objetivo compreender a imagem criada para a escritora Conceição Evaristo e sua obra a partir da tradução de seu romance Ponciá Vicêncio para o inglês dos Estados Unidos, tem como pressuposto a visão da literatura como um polissistema, envolvendo uma análise tanto do polissistema cultural receptor como do de origem do romance, embora saibamos que os polissistemas em questão não são redes isoladas e fechadas de relações, já que possuem fronteiras porosas, em constante redefinição e interação, como já esclarecemos na introdução deste trabalho. Essa abordagem teórica se justifica na medida em que as questões sociais, de gênero e etnia necessitam de sua respectiva inserção no momento histórico das culturas nas quais essas questões emergem para que possam ser compreendidas. 1.2 Estudos Descritivos de Tradução – Gideon Toury e André Lefevere As ideias de Even-Zohar anteriormente apresentadas em relação à literatura como um polissistema foram expandidas por Gideon Toury, que as aplicou ao estudo das traduções literárias, introduzindo o conceito de “normas” e defendendo uma sistematicidade para os estudos descritivos da tradução. O termo Descriptive Translation Studies, ou estudos descritivos da tradução, foi cunhado por James Holmes em 1972 para designar um ramo da disciplina Estudos da Tradução. Segundo Martins, na medida em que esse paradigma também se propõe a entender o comportamento dos tradutores, que considera regido por normas, compartilha objetivos comuns com a teoria dos polissistemas, ou seja, entender o comportamento dos sistemas culturais, dos quais a literatura traduzida é um importante subsistema. Nesse sentido, os DTS podem ser considerados como uma abordagem voltada para um dos subsistemas do polissistema literário. (1999, p. 38) No capítulo “The Nature and Role of Norms in Translation” (1995), Toury argumenta que a tradução é uma atividade com importância cultural e, dessa forma, o tradutor tem um papel social. Sendo assim, o teórico defende a necessidade de compreender o conjunto de normas que regem as escolhas feitas pelos tradutores num determinado momento, dentro de um determinado ambiente cultural. Nesse capítulo de seu livro Descriptive Translation Studies and Beyond, 27 Toury pretende falar da natureza dessas normas propostas por ele, assim como do seu papel na atividade tradutória em contextos socioculturais. Em uma dimensão sociocultural, a tradução sofre diferentes tipos de influências em diferentes graus, e por esse motivo, traduções realizadas em diferentes condições e/ou momentos irão adotar estratégias diferentes, dando origem a produtos distintos. A fim de facilitar a compreensão de seu conceito de normas, Toury comenta que para sociólogos e psicólogos normas são valores gerais ou ideias compartilhadas por uma comunidade especificando o que é recomendado ou proibido, tolerado ou permitido em uma dada dimensão comportamental (1995, p. 55). Essas normas são adquiridas pelo indivíduo durante a sua socialização e acabam levando a uma regularidade de comportamento dentro de um determinado contexto sociocultural, estabelecendo uma espécie de ordem. Aplicando esse conceito de normas à cultura, Toury propõe que já que a tradução envolve no mínimo duas línguas e duas culturas, ela também envolve pelo menos dois sistemas de normas. Sem esses sistemas de normas, o teórico aponta que o resultado da tradução seria uma tensão entre as culturas em questão resolvida a partir de opções individuais ou ainda uma extrema variação no processo. Segundo Toury, é devido a essas normas que o comportamento tradutório tende a manifestar certas regularidades dentro de uma cultura (1995, p. 56). Toury aponta então três categorias de normas no que diz respeito à tradução: uma norma inicial, normas preliminares e normas operacionais. Segundo a norma inicial proposta por Toury, ou o tradutor deve sujeitar-se prioritariamente ao texto original e suas normas, ou ele deve sujeitar-se prioritariamente às normas da cultura receptora de sua tradução, ou seja, a cultura-alvo, de acordo com a denominação utilizada pelo teórico. Trata-se, portanto, da possibilidade de percorrer um eixo com dois polos extremos, o da adequação e o da aceitabilidade. Os conceitos de adequação e aceitabilidade utilizados por Toury, originalmente postulados por Even-Zohar (1978), concernem às duas estratégias que se apresentam ao tradutor, ajudado por elementos contextuais. No primeiro caso, observam-se as normas do polissistema literário de origem buscando-se uma aproximação ao texto fonte, adequando a tradução à cultura de origem e subvertendo as normas do sistema alvo com a inclusão de elementos (linguísticos, 30 formulação de uma teoria geral da tradução parece desmedido, e de certa forma incompatível com a postura descritivo-explanatória de seu modelo” (1999, p. 61). A definição de tradução proposta por Toury como alternativa às definições essencialistas também é bastante criticada por muitos estudiosos. Theo Hermans (1985) reconhece que a formulação de Toury, que vê a tradução como sendo todo texto visto e aceito como tal por uma dada comunidade cultural, acaba se mostrando tautológica e circular (p. 13), visto que para que uma comunidade cultural aceite ou não um texto como sendo uma tradução é necessário que haja uma ideia pré-estabelecida das características que levam um texto a ser considerado como tal. Com posicionamento semelhante ao de Hermans, Martins (1999) comenta que diante dessa problemática identificada na definição de Toury, “uma definição como a implícita em reflexões de Anthony Pym (1993)” parece mais interessante por fugir, ao mesmo tempo, “de formulações substancialistas e da circularidade observada na definição de Toury” (p. 63). Para Pym “seriam vistos como ‘traduções’ aqueles textos aceitos como substitutos ou representantes de textos pré-existentes, produzidos num outro idioma” (Pym, 1993 apud Martins, 1999, p. 63). Os conceitos de reescrita e patronagem de André Lefevere também nos serão muito relevantes, considerando que nosso objeto de pesquisa é uma obra proveniente de uma língua e uma cultura não-hegemônicas (Brasil, língua portuguesa) traduzida para uma língua e cultura hegemônica (EUA, língua inglesa). Lefevere adota como pressuposto a teoria dos polissistemas, porém imprime-lhe uma orientação diferente daquela proposta por Even-Zohar e Toury através da incorporação de fatores extrínsecos, explicitando a dimensão da chamada patronagem, ou estruturas de poder, além da relação de interdependência e influência recíproca entre as traduções e as culturas receptoras. Em Tradução, reescrita e manipulação da fama literária (2007) André Lefevere defende que a tradução é um tipo de reescrita e, como tal, é potencialmente “influente por sua capacidade de projetar a imagem de um autor e/ou uma obra (série de) obra(s) em outra cultura, elevando o autor e/ou as obras para além dos limites de sua cultura de origem” (p. 24). Diante disso, muitas vezes a tradução constrói novas imagens para os autores e/ou obras traduzidas e transforma o texto-fonte a fim de atender a certos interesses da cultura de chegada. 31 Partindo do pressuposto de que a tradução é um processo inserido em sistemas políticos e culturais, esta pode ser responsável por múltiplas reconstruções do “outro”, já que a cultura de chegada analisará uma determinada obra a partir de pressupostos distintos daqueles da cultura de origem. Além disso, há que se considerar o projeto tradutório e as coerções presentes ao longo do processo de tradução, pois, como afirma Lefevere, [p]roduzindo traduções, histórias da literatura ou suas próprias compilações mais compactas, obras de referência, antologias, críticas ou edições, reescritores adaptam, manipulam até um certo ponto os originais com os quais eles trabalham, normalmente para adequá-los à corrente, ou a uma das correntes ideológica ou poetológica dominante de sua época. (2007, p. 23) Muitas vezes também, essas manipulações (cortes, perdas, alterações) ocorrem devido a coerções por parte das editoras, influenciando consideravelmente o produto final e também a imagem criada para um autor e sua obra em uma cultura de chegada. Por este motivo Lefevere defende que “a tradução cria uma imagem do texto original, de seu autor, de sua literatura e de sua cultura” (1990, p. 14-15). Ao abordar a questão da construção da imagem de um autor por meio da tradução, Lefevere apresenta como exemplo a tradução do Diário de Anne Frank. Segundo ele, quando Anne Frank soube que seu diário seria publicado, ela decidiu reescrever partes dele adotando um estilo mais literário e suprimindo informações muito íntimas antes presentes. No entanto, seu trabalho não pôde ser concluído devido a sua morte. Posteriormente, seu pai, Otto Frank, decidiu datilografar e editar esse material, e sua edição veio a servir como base para a versão holandesa do Diário de Anne Frank publicado em 1947, bem como para as traduções em diferentes línguas. Além das intervenções do pai, ainda houve imposições por parte da editora quando Otto Frank mostrou seu interesse pela publicação do material. Lefevere descreve que a tradução alemã do diário feita por Anneliese Schutz utilizou como texto de partida não a versão alterada pela editora Contact, mas sim a primeira versão datilografada dos escritos de Anne Frank, editada apenas por Otto Frank. Daí o fato de haver referências na tradução alemã que não estão presentes na edição holandesa, como as que dizem respeito à sexualidade, por exemplo. No caso da edição alemã, Schutz se baseou em fatores ideológicos para manipular consideravelmente determinados trechos do livro, principalmente 32 aqueles que faziam uma referência negativa aos alemães. Conforme a tradutora, “um livro que se queira vender bem na Alemanha não deve conter nenhum insulto direto aos alemães” (Schutz, 1995 apud Lefevere, 2007, p. 112). Em uma postura igualmente manipuladora, percebe-se que no texto holandês a condição dos judeus foi descrita de uma forma branda, diferente dos escritos de Anne Frank. Em ambas as traduções, Lefevere aponta que houve um alto grau de intervenção por parte dos tradutores no sentido de responder a coerções de ordem econômica, ideológica e cultural, influenciando muito, dessa forma, as imagens da autora e de sua obra construídas nos diferentes contextos de recepção. Ainda ilustrando seu argumento de que a tradução pode criar diferentes imagens para um autor/obra, Lefevere aponta que muitos clássicos feministas publicados nos anos 1920, 1930 e 1940, aparentemente “esquecidos”, foram republicados nos anos 1970 e 1980 sobre o pano de fundo de um conjunto de ideias feministas. Embora o valor intrínseco de tais obras não tenha mudado, o pano de fundo desse período as incorpora e fundamenta, podendo propor uma nova leitura para as mesmas e criar uma outra imagem para essas obras e suas autoras (2007, p. 14). Dessa maneira, para Lefevere, [a t]radução é, certamente, uma reescritura de um texto original. Toda reescritura, qualquer que seja sua intenção, reflete uma certa ideologia e uma poética e, como tal, manipula a literatura para que ela funcione dentro de uma sociedade determinada e de uma forma determinada. (2007, p. 11) Propondo pensar a literatura em termos de sistema, Lefevere afirma que “uma cultura, uma sociedade é o ambiente do sistema literário” (2007, p. 33). Segundo ele, nesse sistema literário, críticos, resenhistas, professores e tradutores são profissionais responsáveis por reescrever obras literárias “até que elas se tornem aceitáveis à poética e à ideologia de uma determinada época e lugar” (p. 34) ou, até mesmo, por rejeitar alguma obra literária que se oponha de forma muito evidente à ideologia de uma sociedade ou à de poética literária dominante (p. 33-34). Lefevere aponta ainda que o mecenato, também conhecido como patronagem, é um fator de controle que opera, muitas vezes, no sistema literário; trata-se de “poderes (pessoas, instituições) que podem fomentar ou impedir a leitura, escritura e reescritura de literatura” (2007, p. 34). Segundo o autor, a patronagem é constituída por três elementos que podem interagir de formas 35 discute questões como os ideais de igualdade e independência, o direito à educação e à vida profissional. Como consequência dessas manifestações feministas, um significativo número de mulheres tornam-se escritoras por profissão, mesmo que, muitas vezes, tenham que optar por pseudônimos masculinos, já que essa era uma profissão eminentemente masculina. Com isso, [p]ersonagens femininas tradicionalmente construídas como submissas, dependentes econômica e psicologicamente do homem, reduplicando o estereótipo patriarcal, passam, paulatinamente, a ser engendradas como sendo conscientes de sua condição de inferioridade e como capazes de empreender mudanças em relação a esse estado de objetificação. Ou, de outro lado, passam a ser inseridas em contextos que, de alguma forma, trazem à baila discussões acerca dessa problemática. (Zolin, 2009, p. 222) Nomes como Kate Millet, Elaine Showalter, Hélène Cixous, Julia Kristeva e Gayatri Spivak, apenas para citar alguns, são fundamentais para o desenvolvimento das ideias feministas, porque cada uma dessas pesquisadoras, embora seguindo linhas distintas e partindo de pressupostos diferentes, contribuíram para esse novo olhar proposto em relação à mulher e ao seu espaço na sociedade. Todo esse movimento, além de questionar valores hegemônicos e dar voz a mulheres antes silenciadas, também promoveu uma rediscussão dos cânones literários: [h]istoricamente, o cânone literário, tido como um perene e exemplar conjunto de obras-primas representativas de determinada cultura local, sempre foi constituído pelo homem ocidental, branco, de classe média/alta; portanto, regulado por uma ideologia que exclui os escritos das mulheres, das etnias não-brancas, das chamadas minorias sexuais, dos segmentos sociais menos favorecidos etc. Para a mulher inserir-se nesse universo, foram precisos uma ruptura e o anúncio de uma alteridade em relação a essa visão de mundo centrada no logocentrismo e no falocentrismo. (Zolin, 2009, p. 327) De acordo com Carole Boyce Davies (1994, p. 27), a literatura tem grande relevância nesse processo de questionamento, já que é um espaço onde o subalterno pode mostrar resistência e lutar contra esse discurso excludente e suas múltiplas opressões em relação a cor, gênero, classe social, etnia, discurso eurocêntrico, dentre outras formas de opressão. Em seu famoso e polêmico artigo “Can the Subaltern Speak”, publicado em 1988, Spivak atenta para as múltiplas camadas de opressão enfrentadas pelo subalterno do sexo feminino, o que tende a silenciá-lo. Posteriormente, em “Diasporas Old and New: Women in the 36 Transnational World” (1996), Spivak retoma a questão da voz do subalterno revendo alguns aspectos em relação a seu posicionamento e afirmando que o subalterno possui voz, porém, muitas vezes, necessita buscar formas alternativas para que possa falar. A arte em geral e as produções literárias desses grupos são algumas das formas alternativas encontradas pelo subalterno para se fazer ouvir. É relevante ressaltar que, mais recentemente, os estudos de gênero vêm ampliando o seu escopo e já não se ocupam apenas das questões feministas. O estudo de produções que abarquem questões como o homem subalterno, gays, lésbicas e minorias sexuais em geral vem se tornando cada vez mais comum na contemporaneidade. Segundo Lucia Zolin, pode-se dizer que, se as vozes femininas, assim como as vozes das minorias étnicas e sexuais, estiveram por tanto tempo silenciadas no âmbito social e,consequentemente, na literatura, o final do século XX assistiu a uma considerável reviravolta nesses domínios. (2009, p. 335) Na literatura brasileira, desde sua formação até a contemporaneidade, os afro-descendentes têm sido apresentados a partir de discursos marcados negativamente. Muitas vezes, a mulher negra, por exemplo, é apresentada como um corpo-objeto relacionado a um passado de escravidão. Entretanto, esse discurso literário estereotipado negativamente pode ser questionado e subvertido pela produção literária de autoras negras que deixam, então, de ser objeto da representação de um outro para ocuparem a posição de sujeito e objeto da escrita literária. Através de suas perspectivas marcadas pela vivência de mulher, negra e algumas vezes ainda de classe social desfavorecida, essas escritoras contribuem para a constituição de uma história que revela elementos apagados, desprivilegiados e/ou manipulados pela escrita hegemônica. Conceição Evaristo é uma dessas escritoras negras que vêm se destacando pela sua atuação profissional, literária e política, assim como pela valorização da cultura afro-brasileira. Em The Location of Culture, Homi Bhabha, importante teórico dos estudos pós-coloniais, afirma que “o objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados na base da origem racial, a fim de justificar sua conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (1994, p. 101); em outras palavras, o discurso colonial tende a colocar o colonizado em uma posição inferior a fim de controlá-lo e dominá-lo. 37 No contexto pós-colonial, “o sujeito e o objeto pertencem a uma hierarquia em que o oprimido é fixado pela superioridade moral do dominador” (Bonnici, 2009, p. 265). Por isso, alguns teóricos como Spivak já defenderam, em algum ponto de sua trajetória, que o subalterno acaba por não ter voz. Porém, há aqueles que, como Fanon (1990), acreditam que o subalterno, ao transformar-se em um ser politicamente consciente capaz de enfrentar o opressor, pode inscrever-se na história, e a literatura pode ser um meio para essa inserção. Dessa maneira, alguns pesquisadores defendem que “[h]á uma estreita relação entre o estudos pós- coloniais e o feminismo” (Bonnici, 2009, p. 266), já que ambos se preocupam com a integração, à sociedade, de grupos marginalizados e dão especial atenção ao estudo de obras literárias como uma forma de reescrever a história, antes contada a partir de olhares hegemônicos. A literatura é assaz sensível para representar, a seu modo peculiar, as repercussões do racismo, diáspora, multiculturalismo e outros tópicos que revelam a condição humana e sua luta para encontrar sentido de sua existência. Portanto, a teoria pós- colonial vai além de uma mera releitura para a recuperação histórico-literária retirada de textos canônicos ou não; tampouco é um relato de culpabilidades, acusações e lamúrias sobre o sofrimento havido e sobre a perda cultural irreparável. (Bonnici, 2009, p. 274-275) Ambos os estudos, de gênero e pós-coloniais, buscam compreender, questionar e subverter os mecanismos de exclusão há tanto tempo presentes em nossas sociedades, contando partes da história antes relegadas a uma posição marginal. É interessante observar que a escritora afro-brasileira Conceição Evaristo traz para as suas produções muito do que ela vivenciou, e mostra de forma bela e poética a complexa realidade daqueles que são tidos como inferiores pela sociedade hegemônica. Seus cenários também são notáveis por incluir espaços urbanos como barracos, calçadas, delegacias, bordeis e contrastar a realidade brasileira geralmente difundida pela mídia e por canais oficiais (praias, pontos turísticos e toda a beleza do Brasil) com aquela que possui destaque de acordo com um ponto de vista proveniente das margens da sociedade. Como bem sabemos, os relatos oficiais tendem a descrever esse ambiente dos excluídos de forma suavizada, mostrando apenas o que lhes possa ser interessante; ao contrário disso, Evaristo nos revela parte da dor e do sofrimento enfrentados por essa parcela da população através de um olhar ativo, proveniente da margem, permeado por experiências pessoais. 40 especificamente culturais, escolhendo textos estrangeiros e métodos tradutórios que se desviem daqueles que são canônicos ou dominantes (p. 161). Segundo Venuti na introdução de Rethinking Translation: Discourse, Subjectivity, Ideology (1992), há teorias que propõem um método mais incisivo de ler a tradução, considerando que a tradução emerge como uma reconstituição ativa de um texto estrangeiro mediado pela irredutibilidade de diferenças linguísticas, discursivas e ideológicas da cultura alvo (p. 10). Venuti também comenta as estratégias de tradução resistentes onde o tradutor participa da construção do sentido, causando um efeito ilusório de transparência no texto traduzido – exemplos típicos desse tipo de trabalho seriam as traduções das feministas canadenses, como Barbara Godard e também a famosa tradução de A Vindication of the Rights of Woman, de Mary Godwin Wollstonecraft, feita por Nísia Floresta Brasileira Augusta, já citada neste trabalho. Godard e as feministas canadenses se destacam por defender a tradução como uma operação criativa e produtora de significados, capaz de subverter a linguagem para que fale em favor das mulheres, fazendo dela um instrumento de sua luta político-ideológica (Godard, 1990). Augusta, por sua vez, ficou conhecida por sua tradução do livro de Wollstonecraft do francês para o português em 1832. É interessante notar que o texto foi escrito em inglês, traduzido para o francês, e a tradução de Augusta tomou como texto fonte a tradução francesa. Ao analisar Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens, a tradução de Augusta para o trabalho de Wollstonecraft, Marie-France Dépêche (2005) observa que em português há ausências de inúmeros trechos da obra, além da presença de passagens inteiras inexistentes no texto fonte. Para Dépêche, a tradutora acrescentou ideias ao texto ao longo do processo de tradução, e através de sua manipulação, o texto tornou-se ainda mais importante para o movimento feminista naquele período. Dépêche considera que a ‘infidelidade criativa’ de Augusta resultou em uma argumentação clara, inteligente, bem ordenada, em um português refinado, sendo um texto superior ao ‘original’ 10 (2002, p. 8). Para Venuti, essas estratégias de tradução podem ajudar a 10 Um estudo mais recente da historiadora Maria Lúcia Pallares-Burke (1996) questiona essa tradução de Nísia Floresta, discutindo a possibilidade de um outro possível texto-fonte, que não o de Wollstonecraft. Mais informações ver: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. A Mary Wollstonecraft que o Brasil conheceu, ou a travessura literária de Nísia Floresta. In: ______. Nísia Floresta, o carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 167- 192. OLIVEIRA, Ana Olga Prudente; MARTINS, Marcia do Amaral Peixoto. Nísia Floresta e 41 tornar o trabalho do tradutor visível, convidando a uma apreciação crítica de sua função política e social e re-examinando o status inferior da tradução (2002, p. 12-13). É essencial reconhecer também que a tradução, em muitos aspectos, possui enorme poder na construção de identidades nacionais e pode assumir um importante papel geopolítico – desde a seleção de textos estrangeiros até a implementação de estratégias discursivas para crítica e ensino de tradução. Venuti aponta ainda que qualquer tentativa de tornar a tradução visível hoje é necessariamente um ato político, já que contesta uma ideologia nacionalista implícita no status marginal da tradução e força uma reavaliação de práticas pedagógicas e divisões disciplinares que dependem de textos traduzidos. Por fim, Venuti defende que a tradução deve ser estudada e praticada como o lócus da diferença e não como uma tentativa de igualação do não igual 11 (2002, p. 13). Partindo então das ideias de Venuti aqui apresentadas, este trabalho tentará compreender a imagem cultural criada para a literatura afro-brasileira traduzida para o contexto estadunidense através, principalmente, da escritora Conceição Evaristo e de seu romance Ponciá Vicêncio. Considerando ainda as ideias de André Lefevere quanto aos diferentes lugares sistêmicos ocupados por obras fonte e suas traduções, verificaremos como a posição ocupada por Conceição Evaristo e seu referido romance nos respectivos polissistemas de origem e de recepção é semelhante ou apresentam diferença. 1.5 O modelo metodológico de Lambert e Van Gorp direitos das mulheres e injustiça dos homens: uma tradução em busca do original. In: Scripta Uniandrade, v. 10, n. 1, jan.-jun. 2012. p. 25-45. 11 A ideia de “tentativa de igualação do não-igual” utilizada neste trabalho vem do texto “sobre verdade e mentira no sentido extramoral” de Friedrich Nietzsche (1978) onde o autor, ao falar da formação de conceitos, aponta que há uma certa tendência à buscar características comuns a fim de alcançar uma “igualação do não-igual” (p. 102). Embora o contexto em que a expressão foi utilizada por Nietzsche seja outro e ele esteja se referindo à formação de conceitos, ao tomarmos a ideia de “lócus da diferença” proposta por Venuti no que diz respeito a tradução, podemos dizer que, assim como Nietzsche, Venuti também é contra a “tentativa de igualação do não-igual” defendendo a manutenção das diferenças culturais, sociais, linguísticas, ideológicas, dentre outras, existentes entre texto/cultura fonte e texto/cultura alvo. (Nietzsche, Friedrich. “Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”. In: Coleção Os pensadores. Trad. Rubens Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1978.) 42 Partindo das teorias desenvolvidas por Even-Zohar e Toury já apresentadas neste trabalho, José Lambert e Hendrik Van Gorp propuseram um modelo para o estudo descritivo de traduções literárias através de uma abordagem funcional e sistêmica. O objetivo central desse modelo é compreender aspectos como a escolha do texto a ser traduzido, a recepção de uma determinada tradução e as normas que atuam durante o processo tradutório 12 . José Lambert e Hendrik Van Gorp abrem seu texto “On Describing Translations” (1985) afirmando que, com as contribuições dos estudos de tradução e das teorias sobre tradução, a tradução passou a ser vista como um objeto legítimo para a investigação científica. Porém, segundo os autores, as ligações entre as diferentes áreas dos estudos da tradução ainda devem ser mais bem estabelecidas. Eles argumentam que, para que as pesquisas sobre tradução sejam mais relevantes de um ponto de vista teórico e também histórico, devemos nos perguntar como as traduções devem ser analisadas. A proposta apresentada por Lambert e Van Gorp nesse texto é a de esboçar uma metodologia para estudar vários aspectos da tradução dentro de um contexto geral e flexível. Para isso, o primeiro ponto desenvolvido é um esquema hipotético para descrever traduções que, segundo os autores, contém parâmetros básicos para o estudo do fenômeno tradutório como apresentado por Itamar Even-Zohar e Gideon Toury no contexto da teoria dos polissistemas. Segundo a proposta de Lambert e Van Gorp, há pelo menos dois sistemas literários em questão em uma tradução. O sistema (literário) um seria o sistema fonte e o dois seria o sistema meta. Eles propõem que a palavra “literário” fique entre parênteses, pois os sistemas literários fonte e meta não estão isolados dos sistemas religiosos, sociais, e outros. Eles indicam ainda que todos os elementos desses sistemas são complexos e dinâmicos. Devido a sua complexidade e a seu dinamismo, a comunicação entre esses sistemas não é previsível e depende das prioridades do tradutor, prioridades essas que possivelmente estarão relacionadas a normas dominantes. 12 Ao falarmos de processo tradutório na presente tese estamos nos referindo ao trabalho de tradução, desde a seleção do texto a ser traduzido até a concretização da tradução – considerando as possíveis motivações para a seleção da obra e do tradutor, as estratégias tradutórias, entre outras questões – e não ao processo mental do tradutor durante a execução da tradução, como os estudos cognitivos o fazem, visando “investigar empiricamente os processos cognitivos envolvidos na realização da tradução e lançando luz sobre os aspectos de monitoramento e gerenciamento do processo tradutório” (Liparini, 2011, p. 1). 45 Capítulo 2: Conceição Evaristo no polissistema cultural brasileiro Segundo André Lefevere e Susan Bassnett a tradução é um tipo de reescrita, que constrói imagens do autor e de sua obra e manipula o texto-fonte para atender a determinados interesses do sistema receptor. Desta forma, “a tradução, como toda (re)escrita, nunca é inocente. Sempre há um contexto no qual a tradução ocorre, sempre há uma história da qual um texto emerge e para o qual um texto é transposto” (Lefevere, 1990, p. 11). Já que, segundo André Lefevere, a tradução é responsável pela imagem de uma obra, de um escritor, de uma cultura (1990, p. 27) e por isso, muitas vezes, ocupa um lugar sistêmico no polissistema receptor diferente daquele que seu original ocupa no polissistema fonte devido a questões políticas, ideológicas, culturais, dentre outras envolvidas nesse processo de transposição, nos propomos a investigar neste capítulo a imagem da escritora Conceição Evaristo no polissistema cultural brasileiro, seu polissistema de origem. Iniciaremos com algumas considerações sobre a literatura afro-brasileira, discutindo o próprio conceito e apresentando um breve panorama da mesma. Em seguida, traremos alguns dados biográficos da autora. Trabalharemos, ainda, com alguns fragmentos extraídos de metatextos como resenhas, artigos acadêmicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado provenientes do polissistema de origem na contraluz dos paradigmas teóricos apresentados, a fim de tentarmos compreender o lugar sistêmico ocupado pela autora e sua obra no polissistema cultural brasileiro. 2.1 A literatura afro-brasileira e seus desafios Se a leitura desde a adolescência foi para mim um meio, maneira de suportar o mundo, pois me proporcionava um duplo movimento de fuga e inserção no espaço em que eu vivia, a escrita também, desde aquela época, abarcava estas duas possibilidades. Fugir para sonhar ou inserir para modificar. Essa inserção para mim pedia a escrita. E se inconscientemente 46 desde pequena, nas redações escolares, eu inventava um outro mundo, pois dentro dos meus limites de compreensão, eu já havia entendido a precariedade da vida que nos era oferecida, aos poucos fui ganhando consciência. Consciência que compromete a minha escrita como um lugar de auto afirmação de minhas particularidades, de minhas especificidades como sujeito-mulher- negra. Conceição Evaristo 13 Ao longo do presente estudo nos referimos diversas vezes ao sistema de literatura afro-brasileira, mas o que seria esse sistema literário? Para entendermos o lugar sistêmico ocupado pela escritora Conceição Evaristo e sua obra no Brasil é necessário trazermos algumas ideias sobre a literatura afro-brasileira, já que esse é um sistema ainda não consagrado e não consolidado no polissistema literário brasileiro. Diferentemente de sistemas como a literatura afro-americana, por exemplo, sistema esse reconhecido, consolidado, bem delineado e com bases sólidas – a ser melhor explorado no próximo capítulo, a literatura afro-brasileira ainda é um sistema em busca de seu espaço no nosso polissistema literário. O fato de o negro aparecer como tema em obras literárias desde o século XVIII ou de podermos citar obras produzidas por negros há mais de um século não significa que a literatura afro-brasileira já seja uma discussão de longa data no Brasil. Podemos apontar a presença do negro na literatura brasileira em produções como as de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz (1719-1778), escrava, uma das primeiras mulheres negras no Brasil a conseguir publicar um livro de sua própria autoria; Castro Alves (1847-1871), poeta pertencente à classe dominante que tinha como tema os escravos em um momento político-abolicionista no Brasil e que acabou sendo rapidamente aceito pelo cânone; e de Luís Gama (1830-1882), que além de escritor era advogado e trabalhou em prol da libertação de muitos escravos – autor que, embora não possua grande reconhecimento no polissistema de literatura brasileira, é citado em historiografias como História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi (2007). Contudo, cabe ressaltar que o que 13 “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita” In: Marcos Antônio Alexandre (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza, 2007. p. 20. 47 encontramos, em muitos casos, é uma imagem estereotipada do negro no Brasil, e que o fato de o negro ser trazido como tema de uma obra literária não necessáriamente significa estar dando voz a esse negro e incluindo a obra em questão no sistema de literatura afro-brasileira que estamos discutindo na presente tese. Como observa Maria Aparecida Salgueiro, [o]s nomes que passaram à literatura oficial são, às vezes, estudados sem referência à origem étnica do autor, ou, quando tal ocorre, nenhuma análise mais fundamentada do assunto sob o ponto de vista contextual, cultural e histórico é realizada, como se não houvesse aí diferença, que levasse ao enriquecimento cultural. Exemplos precisos encontram-se em Castro Alves, Olavo Bilac, Aluísio de Azevedo, Machado de Assis, Cruz e Souza, Lima Barreto e assinalando-se ainda, ausência de qualquer menção feminina. (2004, p. 105) Embora haja a ausência de mulheres negras no cânone literário brasileiro, como apontou Salgueiro, Eduardo de Assis Duarte nos lembra da importância da produção de Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula (1859), um romance abolicionista que foi redescoberto na década de 1980 e, mesmo não sendo considerado um romance canônico, é visto por estudiosos da literatura afro- brasileira como pertencente às bases de tal sistema literário. Em “Notas sobre a Literatura Brasileira Afro-descendente” (2002), Duarte assinala que no mesmo ano em que Luiz Gama publica seu livro de poesias satíricas sob o título Primeiras trovas burlescas (1859), Maria Firmina dos Reis publica seu romance Úrsula que, assim como a obra de Gama, também destoa da literatura produzida na época por diversas razões, dentre elas, o fato de o negro não aparecer apenas como tema, mas como sujeito de enunciação. Mesmo estando presente há bastante tempo na literatura brasileira, como observa Duarte, apenas recentemente o ser negro pôde passar da condição de objeto a sujeito do próprio discurso já que, no contexto do século XIX, ele surge como objeto ou pano de fundo para mostrar o poder burguês. Nas obras de escritores canônicos, o negro geralmente aparece de forma estereotipada, tido como ingênuo, submisso, inferior ou ainda como objeto erótico, no caso da figura da mulata. Na contramão desse discurso, “surge a literatura afro-brasileira, que vem demonstrar, em sua diferença, novo olhar a tudo que antes fora dito para e sobre o negro; este que antes era objeto de uma escritura torna-se sujeito da mesma, construindo uma nova identidade” (Silva, 2009, p. 1). Obras como Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, são a prova de que 50 No Brasil, já podemos listar nomes de pesquisadores muito relevantes e influentes no que diz respeito à pesquisa sobre literatura afro-brasileira, vários deles já citados neste trabalho. Maria Nazareth Soares Fonseca e Eduardo de Assis Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais; Elisalva Madruga Dantas e Liane Schneider, da Universidade Federal da Paraíba; Maria Consuelo Cunha Campos e Maria Aparecida Andrade Salgueiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Florentina da Silva Souza, da Universidade Federal da Bahia, são alguns dos pesquisadores que vêm trazendo contribuições relevantes para a consolidação desse sistema literário. Além de suas publicações, alguns desses professores e pesquisadores têm orientado alunos de mestrado e doutorado que vêm dando seguimento às pesquisas por eles propostas. Com isso, o número de publicações e trabalhos apresentados a respeito de Conceição Evaristo e sua obra, assim como sua importância para a literatura afro-brasileira, aumenta a cada dia. Além do crescente interesse da academia pela literatura afro-brasileira, as constantes publicações das autoras afro-brasileiras no Brasil e no exterior, assim como suas participações em eventos nacionais e internacionais, têm dado cada vez mais visibilidade a esse grupo, ajudando no processo de consolidação desse sistema literário. Em Brasil Afro Autorrevelado (2010), Miriam Alves – uma das reconhecidas escritoras afro-brasileiras – traça uma espécie de panorama da literatura afro-brasileira e aponta que esta [p]ode até ser um conceito em construção academicista, mas consiste numa prática existencial para os seus produtores, que ressignifica a palavra negro, retirando-a de sua conotação negativa, construída desde os tempos coloniais, e que permanece até hoje, para fazê-la significar autorreconhecimento da própria identidade e pertencimento etnicorracial. (p. 42) Segundo Alves, a literatura afro-brasileira é, na verdade, “uma manifestação literário-cultural que foi adquirindo fortes feições de movimento literário” (2010, p. 7) e que busca valorizar a literatura produzida por afro-descendentes, inscrevendo tal grupo na história, valorizando as origens africanas, ressaltando a diversidade presente em nossas sociedades e possibilitando que esses sujeitos, por muito tempo silenciados ou “falados”, falem por si mesmos. Apresentando um posicionamento semelhante, ao referir-se à produção literária das mulheres negras no Brasil mais especificamente, Conceição Evaristo afirma que “[e]ssas escritoras buscam produzir um discurso literário próprio, uma contra-voz a uma fala literária 51 construída nas instâncias culturais do poder” (2005, p. 54). Dessa forma, como aponta Maria Aparecida Salgueiro, “[a] arte negra, portanto não é uma arte abstrata – trata-se na verdade, em termos ideológicos, de uma arte que apresentou uma forma de ver o mundo, diversa dos padrões europeus” (2004, p. 18). Cabe lembrar ainda que, além do movimento de valorização da cultura e literatura negra que vem acontecendo no Brasil nas últimas décadas pelo movimento negro e pela academia, a lei federal 10.639 sancionada em 09 de janeiro de 2003, tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira em instituições de ensino fundamental e médio, também deve ser vista como uma contribuição para que a literatura e a cultura afro-brasileira sejam mais estudadas e divulgadas na contemporaneidade. Antes de concluirmos a presente seção, acreditamos ser importante esclarecer que a literatura afro-brasileira não abarca apenas escritos femininos, embora tenhamos escolhido trabalhar com a literatura de autoria feminina na presente tese. Essa escolha se deu pelo fato de a produção de autoria feminina no sistema de literatura afro-brasileira possuir grande relevância e destaque conseguindo, algumas vezes, alcançar visibilidade até mesmo fora do Brasil, como é o caso da escritora Conceição Evaristo aqui estudada. A contribuição de tais produções para o movimento negro no Brasil também foi um fator relevante para essa escolha. 2.2 Quem é Conceição Evaristo? Escrevo. Deponho. Um depoimento em que as imagens se confundem, um eu-agora a puxar um eu-menina pelas ruas de Belo Horizonte. E como a escrita e o viver se con(fundem), sigo eu nessa escrevivência. Conceição Evaristo 14 14 “Conceição Evaristo por Conceição Evaristo” (2009), em Portal Literafro da Universidade Federal de Minas Gerais. http://www.letras.ufmg.br/literafro/ 52 Já que Conceição Evaristo ainda não é uma autora vastamente conhecida pelo público em geral, julgamos necessário trazer algumas breves informações biográficas da autora antes de prosseguir com o presente estudo. Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 29 de novembro de 1946, em uma família humilde, vivendo em uma favela na zona sul da capital mineira. Para ajudar a família, “[a]os oito anos surgiu seu primeiro emprego doméstico e ao longo dos anos, outros foram acontecendo. Conceição Evaristo também participou com sua mãe e tia da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas” (Lima, 2009, p. 53). Nesse cenário de grandes dificuldades financeiras, Evaristo aprendeu a escrever e a ler. A aquisição dessas habilidades é relatada pela escritora em seu artigo “Da grafia- desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita” (2007). Evaristo recorda que “as mãos de lavadeira de sua mãe guiaram os [seus] dedos no exercício de copiar [seu] nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os números, os difíceis deveres de escola, para crianças oriundas de famílias semi-analfabetas” (p. 18). Na tese de doutoramento intitulada O comprometimento etnográfico afro- descendente das escritoras negras Conceição Evaristo & Geni Guimarães (2009), Omar da Silva Lima apresenta aspectos biográficos e literários das escritoras cujas produções foram seu objeto de pesquisa e, ao falar de Evaristo, Lima comenta que a relação da escritora com a literatura vem desde cedo, ainda em seus tempos de escola primária (o que hoje chamamos de ensino fundamental um). Segundo Lima, “[a]o terminar o primário, em 1958, Conceição Evaristo ganhou o seu primeiro prêmio de literatura, vencendo um concurso de redação” (p. 54), escrevendo de forma notável e bela sobre o orgulho de ser brasileira. A própria autora também revela que sua adolescência foi marcada por um diário, por sensíveis redações e, ainda, por pequenos contos e poesias, material que se perdeu ao longo do tempo: “[r]asguei, queimei, joguei fora” (p. 154). Após terminar o que era chamado de escola primária em seu tempo, Evaristo seguiu seus estudos, porém com muitas interrupções. Mesmo em meio a grandes dificuldades, Evaristo optou por estudar e, enquanto trabalhava como doméstica, conseguiu concluir seu curso normal em sua cidade. Por não conseguir indicação das famílias para quem trabalhava para que pudesse lecionar, migrou para o Rio de Janeiro em 1973 e foi aprovada em 55 Isso porque a própria questão do ser negro no Brasil é bastante diferente daquela nos Estados Unidos, embora seja possível falar de um passado histórico com algumas semelhanças devido à experiência da escravidão africana ocorrida em ambos os países. Em “A relação entre cor e identidade étnica em traduções brasileiras de um romance norte-americano” (1997), Aurora Neiva discute os padrões raciais estadunidense e brasileiro com base em algumas ideias de Carl N. Degler. Ela aponta que o padrão racial estadunidense é dicotômico, já que “uma pessoa é considerada ‘black’, nos Estados Unidos, em razão de sua ascendência africana e não em virtude da cor exata de sua pele” (p. 532). Dessa maneira, mesmo que o indivíduo possua pele branca, havendo um negro em sua ascendência, essa pessoa é considerada negra pelos padrões estadunidenses, daí o termo one-drop rule – uma única gota de sangue negro torna o indivíduo negro, independente de sua aparência. Em contrapartida, a dicotomia white/black, típica da sociedade norte-americana, se desdobra entre nós, brasileiros, numa escala cromática de valores, quanto mais próximo nessa escala estiver o indivíduo do ideal branco, mais aceito socialmente o será. Nuances de cor de pele são, portanto, altamente marcadas entre os não brancos, refletindo assim os mecanismos simbólicos de discriminação étnica que caracterizam o imaginário da população brasileira em geral. (Neiva, 1997, p. 533) Outra questão de extrema relevância no que diz respeito à negritude no Brasil é o mito da democracia racial. Como ser negro no Brasil não é algo dicotômico e bem definido como o é nos Estados Unidos, e ainda devido à suposta tolerância racial e ausência de discriminação pregada pelas elites políticas e intelectuais, assim como pela mídia, muitos acreditam que as relações raciais no Brasil não são desiguais como no contexto estadunidense e que, ao invés disso, questões como gênero e classe social, por exemplo, seriam muito mais relevantes do que a questão racial no que diz respeito à discriminação nesse país. Em BrasilAfro Autorrevelado: Literatura Brasileira contemporânea (2010), Miriam Alves nos lembra que, infelizmente, há uma tendência a “reforçar o mito da democracia racial brasileira, com a imagem de um Brasil socialmente harmônico, um paraíso para todas as raças e culturas, numa convivência pacífica e igualitária” (p. 29). Todos esses fatores contribuíram para que o movimento negro no Brasil se desse de forma consideravelmente diferente daquele nos Estados Unidos, sendo esse um movimento que vem ganhando seu espaço décadas depois da 56 consolidação do mesmo em terras estadunidenses, apenas na contemporaneidade. Do mesmo modo, o sistema de “literatura afro-brasileira no âmbito acadêmico brasileiro ainda é território de polêmicas conceituais” (2010, p. 42), como aponta Miriam Alves e, por isso, ainda não é um sistema com pleno reconhecimento e valor literário no polissistema brasileiro. Com base nos dados apresentados e nas articulações efetuadas até o presente momento, e compreendendo um pouco mais a respeito do contexto de origem do romance Ponciá Vicêncio, podemos dizer que a escritora Conceição Evaristo é uma autora conhecida na academia por pesquisadores que trabalham com literaturas da diáspora negra, porém não é familiar ao público em geral, embora seu primeiro romance Ponciá Vicêncio já tenha sido indicado algumas vezes como leitura obrigatória para vestibulares, como já mencionamos. Sua obra vem sendo muito estudada nos últimos anos, gerando um grande número de artigos, teses e dissertações, e consolidando o lugar ocupado pela escritora na academia e no sistema de literatura afro-brasileira. Porém, o prestígio no polissistema de literatura brasileira ainda não foi alcançado. Como aponta Eduardo de Assis Duarte em entrevista concedida a mim em março de 2013 e apresentada na íntegra em anexo, Conceição, de todas as escritoras negras brasileiras, é a que mais visibilidade tem. Não estou dizendo que ela está sendo canonizada, não é isso, mas eu penso que ela conseguiu realmente furar um bloqueio muito forte. Sua obra não está publicada ainda por nenhuma grande editora, ela vem publicando em editoras menores, e vem tendo muito sucesso apesar disso, e dos problemas com a divulgação e a distribuição de seus livros, problemas característicos de editoras pequenas que não têm capital para investir na divulgação, propaganda, distribuição, coisas desse tipo. Mesmo assim, Evaristo vem conseguindo ampliar o seu círculo de leitores dia após dia, e o interesse da academia em suas produções tem se mostrado crescente. Em palestra na Universidade de Brown em 2012 15 , Duarte constata que o romance Ponciá Vicêncio vendeu no Brasil cerca de 20 mil exemplares e que a primeira edição da sua tradução para o inglês já está esgotada. Através dos metatextos selecionados e analisados para a composição dessa seção, foi possível perceber que a imagem da autora aqui no Brasil vem, pouco a pouco, sendo modificada através do tempo por influência de diversos fatores, entre eles, a repercussão da sua imagem no polissistema de literatura estadunidense, embora essa repercussão 15 Palestra acessada em 03 de abril de 2013 no endereço: http://vimeo.com/54322727 57 ainda seja bastante pequena, como veremos no próximo capítulo. Porém, em linhas gerais, Conceição Evaristo tem sido apresentada no Brasil como uma escritora que defende a valorização da cultura africana/afro-descendente através de sua escrevivência de mulher negra. Mais recentemente, com o avanço dos estudos sobre literatura afro- brasileira, com a crescente visibilidade do movimento negro no Brasil e com a influência da posição ocupada pela escritora no sistema literário afro-americano, a ser estudado no próximo capítulo, a escrita de Evaristo tem sido cada vez mais apontada como altamente engajada, militando por questões sociais, étnicas e de gênero aqui no Brasil. Na antologia sobre literatura afro-brasileira, publicada em 2011 com o título Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, Eduardo de Assis Duarte e Consuelo Cunha Campos afirmam que, Conceição Evaristo articula seus projetos literário e existencial: a uma longa e persistente militância social, étnica e de gênero agrega-se a atuação acadêmica e a criação poética e narrativa. Põe em cena, sob uma perspectiva feminina e afro- identificada, problemas do cotidiano de mulheres negras, conectando sua literatura às raízes étnicas. Centrados na temática afro-brasileira, seus escritos consubstanciam sua resistência ao sexismo, ao racismo e aos demais preconceitos e formas correlatas de exclusão. Mas sem perder a ternura jamais. (p. 213a) Além dos diversos estudos que vêm sendo realizados a seu respeito, Evaristo também tem publicado vários artigos sobre questões de gênero e raça em periódicos respeitados na academia, além de suas constantes palestras e participações em eventos aqui e no exterior, onde Evaristo busca evidenciar sua escrita marcada pela condição de mulher e negra. Em palestra na universidade de Brown em 2012, onde apresentou a fala “Poética da dissonância: vivência e escrita de mulheres negras brasileiras”, Evaristo, logo de início, faz questão de evidenciar o seu lugar de enunciação: “[g]ostaria também de afirmar que toda a minha produção, tanto literária como a produção crítica, é extremamente marcada, atravessada, pela minha posição de mulher negra na sociedade brasileira”. Se, por um lado, sua obra não é muito conhecida dentro do polissistema de literatura brasileira, em contrapartida, ela já é uma autora consagrada dentre os escritores que compartilham uma identidade literária afro-brasileira e que integram um sistema literário afro-brasileiro ainda em fase de consolidação, como vimos. Após conhecermos um pouco mais sobre o sistema de literatura afro- brasileira – um sistema pertencente ao polissistema cultural brasileiro – e 60 breves considerações sobre o mesmo, ressaltando alguns aspectos especialmente relevantes dessa literatura. Antes de iniciarmos tal esboço, porém, cabe aqui apontar que, mesmo com a reconhecida trajetória da literatura afro-americana, há vertentes que questionam essa posição consagrada e consolidada. Um exemplo disso é o livro What was African American Literature, de Kenneth Warren, publicado em 2011, onde o autor defende que “a literatura afro-americana pode ser vista como uma entidade ‘histórica’ e não como a expressão contínua de pessoas distintas” (p. 8), questionando o papel político e social que essa literatura possui até os dias de hoje no polissistema cultural e literário estadunidense. Entretanto, em oposição a esse posicionamento, temos o reconhecido legado da literatura afro-americana, e ainda o visível espaço que ela ocupa na academia estadunidense. Diversas universidades nos Estados Unidos, como Dartmouth College, Harvard e Michigan, apenas para citar algumas, possuem departamentos de estudos de literatura africana e afro-americana, os AAAS (Department of African and African American Studies), o que, de certo modo, confirma a relevância desse sistema literário na contemporaneidade. Partindo então para nossas breves considerações sobre a literatura afro- americana, a fim de que possamos compreender tal produção literária é necessário estarmos atentos a alguns acontecimentos históricos nos Estados Unidos. Momentos como a Guerra Civil (1861-1865), o Movimento pelos Direitos Civis, dentre outros acontecimentos que ocorreram nas décadas de 1960 e 1970, motivaram a comunidade negra estadunidense, trazendo fortes reflexos ao redor do mundo, fomentando o surgimento de uma produção literária voltada para as questões de gênero e raça. Escritores como Lorraine Hansberry, Toni Morrison, Alice Walker, Langston Hughes, Claude McKay e Countee Cullen, apenas para citar alguns, contribuíram para a construção da identidade cultural dos afro- descendentes estadunidenses e ajudaram a fortalecer o sistema hoje vastamente reconhecido como literatura afro-americana. Outro acontecimento histórico de extrema relevância para o movimento negro estadunidense é o Renascimento do Harlem, movimento que surgiu em meio à revolta social e intelectual da comunidade afro-americana no início do século XX, mais precisamente nas décadas de 1920 e 1930. Após a Guerra Civil, houve o desenvolvimento de uma classe média negra nos Estados Unidos, com mais oportunidade de acesso à educação e emprego. Com o acesso cada vez maior 61 de negros à educação acadêmica e com o número expressivo de cidadãos negros socialmente conscientes que se estabelecia no Harlem, a área se transformava no centro político e cultural da América negra, com uma nova agenda política que defendia a igualdade racial, com destaque para nomes como W. E. B. Du Bois. O Renascimento do Harlem é considerado um marco na história da literatura e da cultura afro-americana. O movimento conseguiu atrair a atenção dos estadunidenses, brancos inclusive, de forma muito significativa. O Renascimento do Harlem apresentou manifestações literárias – com destaque para nomes como Claude McKay, Jean Toomer, Langston Hughes, Wallace Thurman e Zora Neale Hurston; na música – com destaque para o jazz e o blues; no teatro; nas artes em geral e na política afro-americana. O movimento negro nos Estados Unidos é bastante conhecido ao redor do mundo. É um movimento forte e organizado que obteve e continua obtendo muitas conquistas ao longo de sua existência. A literatura produzida pelos afro- americanos faz parte desse processo de questionamento, subversão e luta contra o preconceito e a opressão, sendo uma grande arma para esse movimento negro. Isso porque líderes – principalmente do sul dos Estados Unidos – como Martin Luther King Jr. pregavam a necessidade de uma luta pacífica, sem uso de violência. Com isso, boicotes como o de 1955 no sul do país em Montgomery, no Alabama 16 , muito contribuíram para essa luta antissegregacionista, assim como a produção artística desse grupo tem considerável participação nesse processo. Embora agindo de forma consideravelmente diferente, a comunidade negra do norte dos Estados Unidos também estava engajada na luta racial. Conscientes da função política do movimento negro, militantes do norte optaram por um ativismo 16 O boicote aos ônibus de Montgomery foi um boicote político e social, com o objetivo de se opor à política de segregação racial vigente no transporte público da cidade. De acordo com esse sistema de segregação, os brancos que entrassem no veículo sentavam-se na parte da frente, preenchendo-o em direção ao fundo. Os negros que entrassem no ônibus deviam sentar-se no fundo, preenchendo os lugares em direção à parte frontal do veículo desde que os dois grupos não se encontrassem e que não houvesse brancos de pé. No caso disso acontecer, exigia-se que o negro ficasse em pé, se levantando para dar lugar ao branco. Muitas pessoas hoje reconhecidas estiveram envolvidas nesse boicote tais como Martin Luther King Jr., Rosa Parks e outros. Esses negros resolveram não respeitar esse sistema de segregação, sentando-se nos lugares destinados aos brancos. O movimento causou déficits elevados no sistema de transporte público de Montgomery, em função de uma grande porcentagem de pessoas brancas que usavam o transporte público deixarem de usá-lo. O esforço levou a uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos declarando inconstitucionais as exigências legais de segregação nos ônibus no estado do Alabama e na cidade de Montgomery. 62 mais violento, reunindo estudantes e radicais com destaque para as lideranças de Malcolm X – que acreditava que a violência não era uma forma de barbárie, mas um meio legítimo de conquistas, uma metodologia de transformação, já que todas as mudanças históricas se deram de maneira violenta; e Stokely Carmichael – líder do Student Non-Violent Coordinating Committee – SNCC (movimento estudantil que pregava a não-violência na luta contra o racismo e pelos direitos iguais) e, mais tarde, Primeiro-Ministro Honorário do partido político formado por negros atuantes e combativos contra a discriminação (Panteras Negras), adotando um posicionamento inicialmente mais pacífico, na mesma linha ideológica de Martin Luther King, porém, aderindo posteriormente a movimentos nacionalistas negros e pan-africanistas. Além da luta diária pelos mesmos direitos oferecidos à população branca, ativistas como Malcolm X acreditavam que, para que a desigualdade econômica nos Estados Unidos fosse revertida, seria necessário que afro-americanos alcançassem posições de comando na política, na economia, na educação, assim como em todas as áreas de interesse da população. Dessa forma, de maneira pacífica ou mais radical, o movimento negro nos Estados Unidos conseguiu mobilizar multidões. Na literatura não foi diferente. Escritores negros estadunidenses buscaram subverter a posição silenciada a eles relegada, lutando para que pudessem ter voz e para que suas vozes pudessem ser ouvidas. Lorraine Hansberry, por exemplo, teve sua peça A Raisin in the Sun produzida pela primeira vez no ano de 1959 nos palcos da Broadway em um período em que não se podia imaginar a possibilidade de uma produção de uma escritora negra e ainda com elenco e direção de negros em tal local. Na introdução para a edição da peça publicada em 1994, Robert Nemiroff, ex-marido de Hansberry e responsável por sua obra após sua morte, destacou o inusitado de se trazer para a Broadway a primeira peça escrita por uma mulher negra (jovem e desconhecida), dirigida por outro negro e ainda iniciante, em um teatro onde praticamente não existia público negro e onde, em toda a história do teatro americano, nunca houve dramaturgia de sucesso produzida por negros para fins comerciais! (Nemiroff, 1994, p. 6) É desnecessário dizer que foi um grande desafio para a autora. Hansberry utilizou a sua obra para questionar e subverter valores hegemônicos da sociedade estadunidense, desconstruindo o sonho americano e denunciando a realidade de exclusão, segregação e preconceito enfrentada pelos afro-americanos. Importância 65 Antes de falarmos sobre a literatura afro-brasileira traduzida para a língua inglesa e publicada no polissistema literário estadunidense, faz-se necessário tecer algumas breves considerações sobre a literatura brasileira traduzida para esse polissistema. Estudos sobre a literatura brasileira traduzida demonstram que nossa literatura e cultura ocupam uma posição periférica nos polissistemas de língua inglesa. Mesmo com o crescimento dos incentivos no Brasil para que nossa literatura seja levada para outras línguas e outros sistemas literários, o número de obras traduzidas ainda é bastante reduzido e o estudo dessas traduções ainda mais raro. Em 2011, durante a Festa Literária de Paraty, a então ministra da cultura Ana de Hollanda apresentou um novo programa de apoio à tradução de obras brasileiras no exterior. Tal plano pretendia disponibilizar 7,6 milhões de dólares para que grandes obras da literatura brasileira fossem traduzidas para a língua espanhola e para a língua inglesa. Cabe ressaltar que as ditas “grandes obras” geralmente incluem apenas obras pertencentes ao cânone e aquelas que alcançaram grande sucesso de vendas – alguns dos bestsellers. Ainda assim, não é muito expressivo o número de obras provenientes da literatura brasileira presentes nos sistemas literários de língua inglesa. Em sua dissertação de mestrado Identidades Refletidas: um estudo sobre a imagem da literatura brasileira construída por tradução (2005), Maria Lúcia Santos Daflon Gomes apresenta um levantamento de obras da literatura brasileira traduzidas para os polissistemas de língua inglesa ao longo do século XX. Partindo de outro levantamento apresentado anteriormente por Heloisa Barbosa em 1994 e da pesquisa em fontes como o guia Babelguides de obras brasileiras em tradução para o inglês, Gomes aponta que foi possível contar 166 obras de ficção, na maioria romances, traduzidas (ou retraduzidas) para o inglês ao longo de 94 anos, a partir do início do século XX até o ano de 1994, quando ela [Barbosa] encerrou [sua] pesquisa. Somando-se a esse número mais 19 obras traduzidas entre 1990 e 1994, não incluídas na pesquisa de Barbosa, e outras 21 traduzidas entre 1995 e 2000, a média do século XX chega a 2,08 livros por ano, com 100 autores traduzidos. (p. 59-60) Ao falarmos da tradução da literatura brasileira para a língua inglesa, podemos citar alguns nomes de destaque como os escritores canônicos Jorge Amado, considerado um dos escritores brasileiros mais traduzidos para o polissistema literário anglo-americano, com 16 títulos traduzidos segundo o blog 66 talqualmente 18 que se propõe apresentar uma lista de livros brasileiros disponíveis em inglês; os consagrados pela crítica literária Machado de Assis e Clarice Lispector; assim como o escritor contemporâneo Paulo Coelho que, embora não tenha alcançado grande sucesso com a crítica, está entre os escritores brasileiros mais traduzidos e mais vendidos no polissistema literário estadunidense, não se devendo esquecer de que nos Estados Unidos a literatura traduzida não é alvo de interesse prioritário dos leitores. Gomes aponta em seu estudo que até década de 1980, autores canônicos lideraram a classificação dos mais traduzidos, devido à importância da academia e da crítica universitária na seleção e na tradução de textos literários brasileiros. Muitas das traduções desse período foram publicadas por editoras ligadas a universidades (2005, p. 64-66). Apenas a partir da década de 1990, a popularidade dos autores no polissistema de origem passou a ser também um critério importante na seleção de obras brasileiras para tradução. Assim, “o que antes se fazia majoritariamente a partir de referências acadêmicas, passou a ser feito de acordo com a lógica do mercado” (p. 73), influenciando também a “feição do sistema de literatura brasileira traduzida para o inglês. O autor que vende bem aqui é forte candidato a se lançar em tradução” (p. 91). No artigo “A tradução da literatura brasileira” (2011), o antropólogo e jornalista Felipe Lindoso argumenta que, embora o português seja o terceiro idioma ocidental com mais falantes no mundo, “a projeção internacional da literatura produzida em português depende das traduções. E depende muitíssimo de traduções para o inglês, pois a partir desse idioma – a língua franca – é que se processa a difusão para os demais” (s/n.). O surgimento de um interesse comercial pela literatura brasileira apontado por Gomes (2005) contribuiu para a geração de um canal de exportação de autores nacionais, o que é bastante positivo por dar maior visibilidade à nossa cultura e literatura. No entanto, um aspecto que deve ser observado em relação a essa maneira de exportar a literatura brasileira diz respeito à formação de identidades culturais a partir da tradução e da veiculação dessas obras no exterior. Em sua dissertação, Gomes tece alguns comentários 18 http://talqualmente.wordpress.com/ Mais informações sobre a tradução da obra de Jorge Amado, ver a dissertação de mestrado de Marly D’Amaro Blasques Tooge: Traduzindo o Brazil: o país mestiço de Jorge Amado, defendida em 2009 na Universidade de São Paulo. 67 sobre a imagem do Brasil construída a partir de sua literatura traduzida para o polissistema literário estadunidense e aponta que a imagem do “Brasil rural, pobre, ou do Brasil sensual e tropical, ou místico e exótico, era forte a ponto de nortear a escolha de editores estrangeiros interessados em publicar traduções de obras brasileiras” (p. 93) até o final do século XX. Nos dias de hoje, temos acompanhado o surgimento de uma outra imagem, também estereotipada, que reflete a cidade brasileira, particularmente Rio de Janeiro e São Paulo, onde ressalta-se “a condição miserável da vida nas favelas, a corrupção e o crime, por exemplo” (p. 94). Com o crescimento dos estudos culturais, os estudos feministas, homoeróticos, latinos e estudos relacionados a questões de gênero e etnia, de um modo mais amplo, vêm alcançando maior visibilidade. Com isso, o interesse acadêmico na produção cultural e literária de tais grupos e/ou comunidades também tem crescido, impulsionando o processo de tradução dessas produções. O processo de inserção dessas obras no polissistema literário estadunidense por via da tradução pode influenciar a imagem da literatura e da cultura brasileira nesse contexto, questionando e/ou desconstruindo estereótipos ou imagens criadas pelas traduções majoritariamente canônicas presentes em tal sistema até então. Gomes comenta que [e]m alguns casos, a utilização de textos como material de estudo para essas áreas gerou rótulos rejeitados pelos autores, como no caso de Caio Fernando Abreu, tomado como escritor gay, ou recebidos com surpresa pela crítica e pela própria comunidade de leitores da cultura fonte, como no caso de Clarice Lispector, cuja ligação com o feminismo vem do exterior. (2005, p. 75) No caso da inserção da literatura afro-brasileira no polissistema literário estadunidense, podemos perceber claramente a desconstrução da imagem do Brasil como uma democracia racial, como já argumentamos neste trabalho. Porém, o número de traduções de obras provenientes do sistema de literatura afro- brasileira para o contexto estadunidense ainda é muito reduzido. Se, a literatura brasileira aqui reconhecida pela crítica e canonizada, ou reconhecida pelo público e sucesso de vendas, não possui muito espaço no sistema de literatura brasileira traduzida nos Estados Unidos, menos espaço ainda possui a literatura pertencente às margens de nosso polissistema literário. 70 pobre e esquecida, alguns poucos grandes jornais relataram a sua morte. Até hoje, no Brasil, até mesmo a sua posição como escritora é questionada. Como aponta Eduardo de Assis Duarte na entrevista a mim concedida, “[b]asta perceber o absoluto ostracismo em que está Carolina de Jesus hoje, ela não faz parte de nenhum programa universitário, ela não é lida em canto algum, é apenas o fenômeno de uma catadeira de papel que publicou um diário nos anos 60 e ponto” (2013). É interessante notar que, embora Carolina esteja bastante esquecida no Brasil, sua obra foi traduzida para diversos idiomas e, até os dias de hoje, ainda é bastante estudada. Nos Estados Unidos, por exemplo, não é difícil encontrar estudos comparativos entre a sua obra e as obras de escritoras afro-americanas. Em uma rápida busca em livrarias virtuais, como a Amazon, é possível encontrar livros como The Life and Death of Carolina Maria de Jesus, do pesquisador estadunidense Robert Levine e do brasileiro José Carlos Meihy, publicado pela editora da Universidade do Novo México em 1995. Podemos afirmar seguramente que Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo são escritoras afro-brasileiras lidas, estudadas e respeitadas nos Estados Unidos, por estudiosos interessados em literaturas da diáspora negra. Em sua tese de doutorado Escrevivências na diáspora: escritoras negras, produção editorial e suas escolhas afetivas – uma leitura de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Maya Angelou e Zora Neale Hurston (2011), Fernanda Felisberto Silva trata de uma questão fundamental no que diz respeito à publicação da literatura afro-brasileira. Um dos pontos de sua tese é a dificuldade encontrada por escritores afro-brasileiros no mercado editorial desse país. Silva nos lembra que já existe no Brasil um pequeno segmento editorial e de livrarias se estruturando em torno da temática étnico-racial negra (livrarias como a Kitabu, no Rio de Janeiro, já citada neste trabalho; e editoras como a Mazza, de Belo Horizonte, que publicou os dois romances da escritora Conceição Evaristo, e a Nandyala, também de Belo Horizonte, que publicou uma coletânea de contos e outra de poemas da mesma autora) porém, ainda assim, há grande dificuldade para publicar esse tipo de literatura (Silva, 2011, p. 47). As editoras reconhecidas e com maiores estruturas ainda não abriram as portas para que esses grupos historicamente excluídos pudessem publicar as suas produções. Com isso, dadas as dificuldades para a publicação e a circulação de tal literatura no Brasil, a 71 tradução de obras provenientes desse sistema literário ainda é bastante restrita, dependendo de aspectos como a patronagem para que possa existir. Estudos sobre as traduções já existentes são ainda mais raros. No polissistema estadunidense, mais especificamente no sistema de literatura afro- americana, a maior parte dos estudos encontrados sobre as traduções de obras provenientes da literatura afro-brasileira têm como foco questões de gênero e/ou etnia. Em se tratando de estudos voltados para questões da área de tradução, durante a minha pesquisa pude encontrar um número muito reduzido de trabalhos tanto no Brasil, como nos Estados Unidos. Em ambos os contextos, há apenas alguns poucos estudos sobre a tradução da literatura afro-brasileira, sendo, a maioria deles, sobre Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, com destaque para as teses de doutorado Traços de Carolina de Jesus: gênese, tradução e recepção de Quarto de despejo, defendida em 2000 por Elzira Divina Perpétua, na Universidade Federal de Minas Gerais; Brazilian Women Writers in English: Translation of Culture and Gender in Works by Clarice Lispector, Carolina Maria de Jesus, and Ana Maria Machado, defendida em 2008 por Lilian Passos Wichert Feitosa, na Universidade de Massachusetts Amherst, já mencionada neste trabalho; e também uma tese de doutorado defendida em 2012, por Rosângela de Oliveira Silva Araújo, sob o título A “escrevivência” de Conceição Evaristo em Ponciá Vicêncio: encontros e desencontros culturais entre as versões do romance em português e inglês, na Universidade Federal da Paraíba, trazendo uma análise microtextual de alguns aspectos pontuais da tradução do romance Ponciá Vicêncio, nosso objeto de estudo. Araújo analisa o romance em português e sua tradução para o inglês com base nos estudos culturais e pós-coloniais, a partir dos conceitos de diáspora, cultura e identidade. Por fim, ela propõe uma análise microtextual da tradução do romance, com base nos conceitos de domesticação e estrangeirização de Lawrence Venuti e nas tendências deformadoras de Antoine Berman. Araújo apresenta uma comparação das capas do romance e o cotejo de alguns pontos específicos da tradução, classificando as opções da tradutora de acordo com os conceitos de Venuti. Assim, dado o caráter inovador da pesquisa aqui proposta, a inexistência de estudos sobre a recepção da tradução de Ponciá Vicêncio nos Estados Unidos, e a existência de pouquíssimas referências sobre a tradução de literatura afro- 72 brasileira, entrevistas com estudiosos da área se fazem muito necessárias para que possamos entender a imagem da literatura afro-brasileira traduzida para o sistema literário estadunidense. 3.3 Conceição Evaristo nos Estados Unidos Como já vimos neste trabalho, grande parte dos escritores afro-americanos apresentam um posicionamento altamente engajado no que diz respeito à população negra nos Estados Unidos. Se falarmos de escritoras negras, além da questão racial, a questão de gênero também é, muitas vezes, contemplada. A literatura é, para os afro-americanos, uma forma de lutar contra a exclusão vivida, tendo um caráter social, político e ideológico, como já argumentamos. Conceição Evaristo, ao ter sua obra traduzida para o inglês, acaba sendo apresentada no contexto de recepção como uma autora altamente engajada no movimento negro, tal como as afro-americanas são. Isso acontece porque, ao chegar ao polissistema receptor, a obra traduzida é vista sob uma nova perspectiva, partindo de outros pressupostos e com um olhar muito influenciado por questões da cultura de recepção. Segundo Maria Aparecida Salgueiro, em entrevista concedida a mim em 2013, Lá [nos Estados Unidos] há uma grande preocupação em focar, em visualizar, em compreender, a diáspora negra ao longo de diferentes países do atlântico, e aqui eu cito como fonte de referência especial a obra de Paul Gilroy. Eles buscam compreender as diferentes visões que essa diáspora negra ao longo do Atlântico apresenta de si própria. Com isso, obras produzidas por escritores pertencentes a essa diáspora em outros países acabam recebendo especial interesse. É interessante notar que até mesmo pesquisadores brasileiros trabalhando nos Estados Unidos e conhecendo ambos os contextos sistêmicos são influenciados pela imagem mais ativista e engajada que a autora possui naquele polissistema. Um exemplo disso é o trabalho da doutoranda Flávia Santos de Araújo, da Universidade de Massachusetts. Em sua dissertação de mestrado na Universidade Federal da Paraíba, já citada nesse estudo, ela aponta que Evaristo é uma autora afro-brasileira que busca valorizar a cultura negra tão presente no Brasil. Já em um trabalho publicado no congresso da associação de estudos latino-americanos em Toronto, em 2010, durante seu doutorado, Araújo 75 da Universidade do Tennessee, ao falar sobre o lançamento de Ponciá Vicêncio em inglês em 2007, Evaristo já é apontada como uma líder afro-brasileira: Maria da Conceição Evaristo é escritora líder afro-brasileira e colabora com a ONG Criola, primeira ONG de mulheres negras no Rio de Janeiro. Professora por profissão, sua militância é mais evidente em associações comunitárias, orientações, ensino e publicações. Está trabalhando em seu Doutorado em Literatura Comparada da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro e está nos Estados Unidos como convidada da Host Publications para lançar a versão em inglês do seu primeiro romance, Poncia Vicêncio.19 Além da recepção crítica de Ponciá Vicêncio, também cabe tecermos alguns breves comentários sobre a recepção geral do romance. Ao longo dos meus quase quatro anos de pesquisa para a realização desta tese, pouco foi encontrado na mídia impressa e/ou eletrônica sobre Ponciá Vicêncio no contexto estadunidense fora da academia. Porém, mais recentemente, surgiram algumas resenhas – reviews – do romance em alguns sites, o que mostra que a obra vem alcançando leitores, mesmo que poucos, fora da academia também. É bastante relevante falarmos sobre essas resenhas que aparecem na internet, já que sites como Amazon, Good Reads, MyShelf, dentre outros – onde é possível postar resenhas de livros lidos e onde, algumas vezes, há leitores especializados escolhidos para postarem resenhas – acabam funcionando como formadores de opinião. No caso de Evaristo, o leitor que buscar referências na web sobre o romance Ponciá Vicêncio encontrará em inglês uma avaliação bastante positiva. No site Good Reads 20 a obra recebeu 18 avaliações e, de cinco estrelas possíveis, foi avaliada com quatro estrelas, o que mostra uma recepção positiva por parte dos leitores. No site Myshelf 21 há uma resenha profissional escrita por Laura Strathman Hulka, da Califórnia, onde a resenhista diz que Ponciá é “um fascinante romance de estreia da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo”. Hulka acrescenta ainda que Evaristo oferece um olhar admirável sobre o negro latino-americano, escrevendo de forma bela e despojada. Por fim, a resenhista afirma que “a tradutora, Paloma Martinez-Cruz, fez um trabalho notável dando ao leitor ocidental o sabor e o significado da obra original, sem tornar o livro muito 19 http://www.lib.utk.edu/outreach/enews/nov2007/brazil-writers.html University of Tennessee - the Department of Foreign Languages and Literatures, African Studies, and the University Libraries 20 http://www.goodreads.com/book/show/1947209.Poncia_Vicencio#other_reviews 21 http://www.myshelf.com/literary/07/ponciavincencio.htm 76 estranho ou difícil de ler”, o que mostra uma avaliação positiva não apenas do romance de Evaristo, mas também da tradução de Martinez-Cruz. Por fim, um site bastante importante na formação de opinião de leitores é o da livraria virtual Amazon. No site da Amazon, 22 além de ser possível comprar a tradução de Ponciá Vicêncio, até o momento em que encerramos a presente pesquisa, em 01 de setembro de 2013, encontramos disponível uma descrição do livro, a apresentação da autora, uma resenha editorial e uma resenha de um cliente leitor, que inclui uma avaliação que vai de zero à cinco estrelas. No caso da avaliação, o livro foi avaliado por apenas uma pessoa e recebeu as cinco estrelas possíveis. A leitora que avaliou o romance escreveu que amou o livro e que a leitura foi muito interessante. “[Ponciá] é, agora, um dos meus livros favoritos. Essa foi a primeira vez que li um romance de alguém que não é nascido nos Estados Unidos”. A resenha editorial apresentada é da famosa revista de resenhas Rain Taxi, que publica uma edição impressa com suas resenhas a cada quarto meses, além de disponibilizar conteúdo online. Na apresentação da autora, encontramos o mesmo texto que está disponível na orelha da tradução de Ponciá, escrito pela editora Host, e a descrição do livro apresentada na Amazon também é proveniente da própria edição estadunidense, estando na contra-capa da tradução. Com base nos dados apresentados e nas articulações efetuadas até o presente momento, podemos dizer que a escritora Conceição Evaristo é ainda pouco conhecida nos Estados Unidos, porém vem ganhando visibilidade e reconhecimento nos estudos de gênero, etnia e diáspora. Sua obra tem sido objeto de estudo de pesquisadores que trabalham com literatura afro-americana, afro- brasileira e latino-americana, e ela tem sido apresentada por esses pesquisadores como uma escritora ativista que luta contra preconceitos raciais e de gênero através de sua produção literária. No que diz respeito à recepção pelo público em geral, embora o romance ainda seja pouco lido, constatamos que a acolhida vem sendo bastante positiva entre os leitores. Em Literary Passion, Ideological Commitment: Toward A Legacy of Afro- Cuban and Afro-Brazilian Women Writers (2008), Dawn Duke afirma que Conceição Evaristo “usa a si mesma como um importante exemplo de alguém que 22 http://www.amazon.com/Poncia-Vicencio-Conceicao-Evaristo/product- reviews/0924047348/ref=cm_cr_dp_see_all_btm?ie=UTF8&showViewpoints=1&sortBy=bySub missionDateDescending 77 foi capaz de romper o círculo vicioso do racismo, do sexismo, da pobreza e do analfabetismo para alcançar o seu sonho de ser altamente qualificada e uma escritora” (p. 133). Para Duke, Evaristo está inserida em um contexto onde “[a] escrita parece revigorante como um discurso socialmente motivado que é, por sua própria natureza, transformador, provocante e confrontador, embora também tenha um caráter isolador, dada a contundência de algumas de suas mensagens” (p. 218). Embora seja notável o esforço de Evaristo, assim como o dos escritores afro-descendentes de um modo mais amplo, o do movimento negro no Brasil e dos pesquisadores da área, para que essa literatura alcance visibilidade e reconhecimento de mérito, assim como, eventualmente, opere como instrumento de revolução e questionamentos, como acontece nos Estados Unidos, argumentamos ao longo deste trabalho que tal movimento ainda é bastante recente no Brasil e, portanto, acontece de forma consideravelmente diferente nesse contexto. Percebemos que nos Estados Unidos a produção de Conceição Evaristo e também de outras escritoras afro-brasileiras vem sendo analisada à luz do legado da literatura afro-americana. Isso porque, como aponta a própria escritora Conceição Evaristo (2013), a descoberta da existência dessa literatura nos Estados Unidos se dá por pesquisadores das literaturas da diáspora negra, geralmente ligados aos departamentos de estudos africanos e afro-americanos. Desta maneira, o lugar ocupado por Conceição Evaristo e Ponciá Vicêncio nos contextos de origem e recepção da tradução se mostram consideravelmente diferentes. Há que se considerar também os diferentes posicionamentos das sociedades brasileira e estadunidense, não apenas em relação à questão da negritude, mas em relação à própria literatura. Em entrevista concedida a mim em março de 2013, já citada outras vezes nesse trabalho, Duarte afirma que a relação da sociedade estadunidense com a literatura é historicamente diferente do que acontece aqui no Brasil. Isso porque a própria questão do analfabetismo nos Estados Unidos é muito diferente da encontrada aqui. Duarte aponta que, nas décadas de 1870 e 1880, quando ocorre o primeiro censo da população brasileira, somente 14,6% da população brasileira sabia ler, enquanto 84% era analfabeta. Se compararmos com os dados da mesma época na cidade de Nova York, perceberemos que mais de 80% da população naquela época já era alfabetizada. Com toda a apartação racial que aconteceu nos Estados Unidos, já naquela época existiam escolas e 80 academia, influenciando na (des)construção da imagem do Brasil nesse polissistema. Segundo Salgueiro, para os estadunidenses afro-americanos, tem havido influência, sim, na medida em que eles vêm percebendo essa desmistificação da democracia racial, vêm mostrando as desigualdades sociais, raciais, de classe. Agora, quanto aos estadunidenses de uma forma geral, de novo, a gente volta aos sistemas hegemônicos, e afetar os sistemas hegemônicos é sempre uma coisa complicada. Eu acho que para o estadunidense afro-americano isso vem mudando aos poucos, sem dúvida, porque esse grupo vem lendo literatura afro-brasileira traduzida para o inglês, e aí essa imagem vem se modificando. Especialmente o grupo afro- americano estadunidense ligado às universidades, em especial ligado à área das humanidades. (2013) Após conhecermos um pouco mais sobre a recepção da obra de Conceição Evaristo nos contextos brasileiro e estadunidense, respectivamente, o próximo capítulo do presente trabalho se ocupará de questões relacionadas à tradução de Ponciá Vicêncio para o inglês. 81 Capítulo 4: Observação e análise de Ponciá Vicêncio José Lambert e Hendrik Van Gorp propuseram um modelo para o estudo descritivo de traduções literárias através de uma abordagem funcional e sistêmica, como já vimos no primeiro e no segundo capítulos. Esse modelo visa permitir o estudo de vários aspectos da tradução dentro de um contexto teórico geral e flexível da tradução. Em oposição à tradicional relação binária existente entre texto fonte e meta, muitas vezes reduzida a aspectos linguísticos ou à questão da correspondência, os teóricos propõem que tanto o processo de tradução quanto o texto resultante desse processo, bem como sua recepção, podem ser estudados de maneira macro ou microestrutural, a partir de diferentes enfoques. Para eles, a comparação entre texto fonte e texto meta pode até acontecer, porém deve considerar tanto a relação entre o sistema fonte e o sistema meta quanto a posição do tradutor entre esses sistemas, e não apenas os textos em questão. Lambert e Van Gorp ressaltam que uma tradução ou um tradutor possuem ligações com outras traduções e tradutores, já que traduções pertencem a sistemas literários. Por isso, o estudo de literatura traduzida deve levar em conta os aspectos históricos, culturais, dentre outros envolvidos. O quarto e último capítulo deste trabalho propõe a análise de alguns aspectos do romance Ponciá Vicêncio e de sua tradução. Nos capítulos anteriores, nosso foco foi nos contextos sistêmicos de origem e recepção do romance e no lugar ocupado por ele e sua autora em ambos os sistemas em questão. Após conhecermos um pouco mais sobre Conceição Evaristo, sobre o sistema de literatura afro-brasileira e o sistema de literatura afro-americana, este capítulo trará informações mais detalhadas sobre o romance em questão, e em seguida analisará aspectos de sua tradução para o inglês segundo o modelo proposto por Lambert e Van Gorp, dando especial atenção a questões como recursos estilísticos, seleção vocabular e patronagem. Embora apenas o item 4.2 se ocupe de questões mais diretamente relacionadas à linguagem e à seleção vocabular, buscando possibilitar ao leitor um contato maior com o texto traduzido – já que o objeto de pesquisa do presente trabalho é a tradução de Ponciá Vicêncio para a língua inglesa – todos os fragmentos do romance apresentados ao longo do presente capítulo serão seguidos de suas traduções. 82 4.1 Conhecendo Ponciá Vicêncio Ponciá Vicêncio nos apresenta a trajetória da protagonista que dá nome ao romance, uma mulher negra e descendente de escravos, desde sua infância no campo, passando pela idade adulta na cidade grande, até o seu retorno às terras de origem. Através de uma narrativa fragmentada, recheada de frases entrecortadas e com constantes flashbacks, o romance promove uma articulação entre presente e passado, poesia e sofrimento, vivências e memórias. Ao longo da construção da protagonista, fragmento a fragmento, percebemos que a memória da infância inocente e repleta de boas recordações da menina vivendo no campo vai sendo substituída pela memória da adolescente negra, empregada doméstica, insatisfeita com sua realidade e, ainda, da mulher que deixou a família e as terras de origem em busca de uma vida melhor na cidade grande, porém acabou vivendo em condições tão degradantes quanto às que vivia no campo, sofrendo violências do seu companheiro e perdida dos seus e de si mesma. “Ponciá se adentrava num mundo só dela, onde o outro, cá de fora, por mais que gostasse dela, encontrava uma intransponível porta” (Ponciá Vicêncio, 2006, p. 109), “gostava da ausência, na qual ela se abrigava, desconhecendo-se, tornando-se alheia de seu próprio eu” (p. 45).“Ponciá went deeper into a world that was hers alone, in which he, there on the other side, as much as he cared for her, could only stand on his side of the impenetrable door” (2007, p. 110), “she liked the absence, covered herself with it, with unknowing herself, becoming a distant figure to her self” (p. 39). O romance apresenta flashes da experiência de vida da protagonista Ponciá, de seu irmão Luandi e de sua mãe Maria Vicêncio, e ressalta a relevância da memória afro-descendente centrada na herança identitária de Vô Vicêncio para a construção da identidade da protagonista. Mulher oriunda do mundo rural, Ponciá teve que aprender a lidar com grandes perdas durante sua vida. Perdeu o avô e o pai, teve desaparecidos mãe e irmão. Perdeu os sete filhos que gerou, até que veio a se perder em seus próprios devaneios. Em seu prefácio para a edição de bolso de Ponciá Vicêncio publicada em 2006, Maria José Somerlate Barbosa afirma que [o] romance explora a fundo as sucessivas perdas de Ponciá (a morte do avô, do pai, dos sete filhos, a separação da mãe e do irmão), penetrando no “apartar-se de si mesma”. Analisa tal fato como uma consequência de grandes abalos emocionais, de profundas ausências e vazios, mas também como resultado de fatores sociais 85 como faxineiro. Foi ali também que ele encontrou esperança e um ídolo, o soldado Nestor, negro como ele. Assim como sua irmã, Luandi volta à Vila Vicêncio para reencontrar a mãe e na esperança de ter notícias da irmã, mas, assim como Ponciá, retorna sem informação alguma. Na esperança de que elas ainda voltassem à Vila Vicêncio, deixa seu endereço com alguns conhecidos no povoado. Na cidade, Luandi aprende a ler e a escrever com o soldado Nestor e apaixona-se por Bilisa, uma prostituta que acaba sendo assassinada por seu gigolô, Negro Climério. A profunda tristeza de Luandi devido à morte de Bilisa só é amenizada pelo reencontro com sua mãe que, depois de anos, resolve ir em busca de seus dois filhos na cidade. Quando Maria Vicêncio chegou à estação na cidade, soldado Nestor estava de serviço lá “[e] quando a mãe de Ponciá e Luandi entregou ao soldado Nestor um papelzinho dobrado, quase rasgado pelo tempo e que ela cuidadosamente guardava enrolado num pedacinho de pano, entre os seios, ele sorriu reconhecendo a própria letra” (Ponciá Vicêncio, 2006, p. 116) –“[a]nd when the mother of Ponciá and Luandi handed Soldier Nestor a small, folded up piece of paper, nearly worn through by time, that she had painstakingly folded into a piece of cloth and placed between her breasts, he smiled to recognize his own handwriting” (2007, p. 119). O reencontro de Luandi com sua mãe o ajudou a se recuperar da perda de Bilisa e a continuar em busca de seu sonho de se tornar soldado, que já estava próximo de se tornar realidade. Seu primeiro dia de trabalho como soldado foi na estação ferroviária “e eis que, de repente, capta a imagem de uma mulher que ia e vinha, num caminho sem nexo, quase em círculo, no lado oposto em que ele se encontrava” (p. 123) –“and discovered, out of the blue, the figure of a woman who came and went, pacing aimlessly, almost in circles, on the far side of the station” (p. 126). Era Ponciá. E ali, na estação ferroviária, encerra-se a busca de Luandi pelos seus. Após o reencontro da família, Luandi percebe que seu sonho de ser soldado e poderoso era, na verdade uma ilusão, já que “[a]penas cumpria ordens, mesmo quando mandava, mesmo quando prendia” (p. 126) –“[a]ll he did was follow orders, even when he gave them orders, even when he made arrests” (p. 130- 131). Assim, a cidade idealizada pela família Vicêncio como o local onde teriam possibilidade de uma vida em melhores condições foi pouco a pouco sendo 86 desconstruída, e os sonhos trazidos pela família foram se perdendo. Todos acabaram vivendo sob condições tão degradantes quanto as que viviam no campo e, já sem esperanças, acabaram voltando à sua terra de origem. De que valera o padecimento de todos aqueles que ficaram para trás? De que adiantara a coragem de muitos em escolher a fuga, de viverem o ideal quilombola? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? Ele, num ato de coragem-covardia, se rebelara, matara uns dos seus e quisera se matar também. O que adiantara? A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida. (2006, p. 83) What was the point of all the suffering of the ones who stayed behind? What purpose had the courage of those who had chosen to run away served, living like slaves in hiding? What good had it done, all of Grandpa Vicencio`s anguish? He, in the act of courage-cowardess, had rebelled and killed one of his own and had even tried to kill himself too. What good was any of it? The slave’s life still went on. Yes, she too was a slave. Slave to condition that kept repeating itself. Slave to despair, the absence of hope, the impossibility of launching new battles, organizing new communities, imagining a better life. (2007, p. 82) Embora tenhamos o uso da variedade linguística padrão e de uma linguagem poética em Ponciá Vicêncio, a forte presença de peculiaridades regionais e o constante apelo aos sentidos se apresentam como uma característica marcante do romance. Como afirma Maria José Somerlate Barbosa no prefácio para a edição de 2006, Ponciá Vicêncio é um romance que convida o (a) leitor (a) a conhecer a protagonista pelos sentidos. Revela cheiros, sabores, paisagens e a percepção da menina que escuta tudo e todos, olha, vê, sente e se emociona com o arco-íris, com as comidas, com o cheiro do café fresco e das broas de fubá e que trabalha o barro, modelando objetos de argila. (p. 11) Ponciá Vicêncio traz ainda fatos históricos relacionados à questão da negritude no Brasil como a Lei Áurea, a Lei do Ventre Livre e a situação dos negros no período pré e pós-abolicionista. Segundo Duarte, [a] ausência de cidadania que assinala a condição da maioria dos afro-brasileiros é marca constitutiva não só do enredo, mas da própria identidade da protagonista, pois o Vicêncio que lhe serve de nome provém diretamente do antigo senhor de seus ancestrais. (2011, p. 209a) Em alguns dos flashbacks apresentados pela voz narrativa, o romance retorna às terras do Coronel Vicêncio, dono dos escravos avós de Ponciá, e mostra 87 o avô da menina enlouquecido ao ver que, mesmo após a Lei do Ventre Livre, filhos de escravos supostamente libertos continuavam sendo vendidos. Vô Vicêncio com a mulher e os filhos viviam anos e anos nessa lida. Três ou quatro dos seus, nascidos do “ventre livre”, entretanto, como muitos outros, tinham sido vendidos. Numa noite, o desespero venceu. Vô Vicêncio matou a mulher e tentou acabar com a própria vida. Armado com a mesma foice que lançara contra a mulher, começou a se autoflagelar decepando a mão. Acudido, é impedido de continuar o intento. Estava louco, chorando e rindo. Não morreu o Vô Vicêncio, a vida continuou com ele, independentemente do seu querer. Quiseram vendê-lo. Mas quem compraria um escravo louco e com o braço cotó? Tornou-se um estorvo para seus senhores. (Ponciá Vicêncio, 2006, p. 51) Grandpa Vicencio and his wife and children had lived for years and years working in those fields. Three or four of his own, born of “free womb,” had been sold like so many others. One night his despair got the best of him. Grandpa Vicencio murdered his wife and then tried to take his own life. Armed with the same sickle that he had used on his wife, he severed his own hand. They stopped him and kept him from going through with it. He was mad, crying and laughing at the same time. Grandpa Vicencio did not die. Life kept going for him whether he wanted it or not. They wanted to sell him. But who would buy a crazy slave with a cut-off hand? He became a hindrance to the masters. (Ponciá Vicencio, 2007, p. 45-46) Ponciá Vicêncio mostra “a crueldade do cotidiano dos excluídos” (Duarte, 2011, p. 208a) através de memórias individuais e coletivas que recuperam traços da cultura e da história afro-brasileira, questionando registros e relatos hegemônicos. O romance também valoriza a cultura afro-brasileira, assim como a brasileira de um modo mais amplo, trazendo elementos como a religião – com diversas menções ao Candomblé, religião comumente praticada entre os afro- brasileiros; alimentos da culinária local e o próprio conceito de favela, que merece atenção especial por ser, por exemplo, bastante diferente da ideia de gueto nos Estados Unidos. Na tese de doutorado intitulada Similaridades e diferenças: o negro nos Estados Unidos da América e no Brasil segundo Alice Walker e Conceição Evaristo (2008), desenvolvida na Universidade de São Paulo, Rosa Maria Laquimia de Souza propõe o estudo da relação entre a família Vicêncio, criada por Evaristo, e a história do Brasil. Nesse estudo, Souza afirma que “o romance é nutrido por um realismo alegórico que remete à história do próprio país, Ponciá Vicêncio e sua família são legítimos representantes do Brasil” (p. 99). Sem dúvida, todas essas características se apresentam como desafios na hora de se traduzir tal tipo de produção literária, pois muitos dos objetos, comidas típicas, paisagens, dentre outros, não possuem um equivalente na cultura de 90 Antes-vivo. Antes-agora-o que há de vir. Eu fêmea-matriz. Eu força-motriz. Eu-mulher abrigo da semente moto-continuo do mundo. Embora Ponciá Vicêncio seja um romance, em prosa, narrado em terceira pessoa e utilizando a variedade linguística padrão da língua portuguesa do Brasil, a escrita criativa de Evaristo também se faz presente. É fácil perceber a liguagem poética utilizada por Evaristo e sua cuidadosa escolha de palavras em fragmentos como O trem ia lento, cheio de preguiça, sem vontade alguma de chegar. E, aos poucos, na medida em que a tarde virava noite, o soldado sonolento desapercebia-se das suas funções de zelar por uma paz, que sempre existia. O sacolejo mole da máquina cheia de preguiça acabou por adormecer a atenção dele. A noite madurou madrugada, e só depois, muito depois da manhã-menina se ter maturado dia, foi que Luandi acordou desapontado, próximo da Vila Vicêncio. (Ponciá Vicêncio, 2006, p. 85) The train traveled slowly, lazy, with no desire whatsoever to arrive. After a little while, as the afternoon gave way to night, the sleepy soldier grew slack in his efforts to maintain the order that was always being threatened. The soft shaking of the lazy train finally dulled his vigil. Evening grew into late night and only afterward, long after early morning had ripened into day, did the disappointed Luandi awaken, already close to Vicencio Village. (Ponciá Vicêncio, 2007, p. 85) Somando-se à linguagem poética do romance e a seleção vocabular cuidadosa feita pela autora, também é de grande relevância a forte presença de peculiaridades regionais e o forte apelo aos sentidos que ocorre a partir de imagens, sabores e odores também bastante peculiares do Brasil, mais especificamente de regiões do interior do país. Gostava da roça, do rio que corria entre as pedras, gostava dos pés de pequi, dos pés de coco-de-catarro, das canas e do milharal. Divertia-se brincando com as bonecas de milho ainda no pé. Elas eram altas e, quando dava o vento, dançavam. Ponciá corria e brincava entre elas. (Ponciá Vicêncio, 2006, p. 13) She enjoyed the newly cleared land, the river that ran between the rocks, the feet of the sunbittern, the feet of the bitter palm, the stalks and the cornfield. She loved the play she shared with the towering dolls of maize. Ponciá ran and jumped among them. (Ponciá Vicencio, 2007, p. 2) 91 As casas das terras dos negros, para o olhar estrangeiro, eram aparentemente iguais. Chão batido, liso, escorregadio, paredes de pau-a-pique e cobertura de capim. As camas dos adultos e das crianças eram jiraus que os homens e mesmo as mulheres armavam com galhos de arvore amarrados com cipós. O colchão de capim era, às vezes, cheiroso, dado ao alecrim que se misturava ali dentro na hora de sua feitura. Os grandes vasilhames de barro ou ferro e os tachos onde as mulheres faziam doces permitiam imaginar farturas. As crianças gostavam de raspar os tachos se lambuzando com os doces de mamão, cidra, banana, goiaba, leite, abóbora e o melado de rapadura. (p. 59) To a stranger’s eye, the homes in the lands of blacks all looked the same. Smooth and slippery packed-earth floor, walls of packed mud and twigs and a thatched roof. The adults’ and children’s beds were all mats made from tree branches that men and women tied together with vines. The straw-filled mattresses were sometimes perfumed with rosemary leaves strewn among the branches. The large iron or clay casks and the great bowls in which the women made sweets yielded great abundance. The children loved to scrape the bowls, savouring the sweet taste of papaya, citron, banana, guava, milk, pumpkin, and brown sugar molasses. (p. 54) Sentiu o cheiro de biscoito frito, de café fresco dado para as mulheres e as crianças que estavam fazendo quarto ao defunto. Sentiu também o cheiro de pinga que exalava da garrafinha e da boca dos homens sentados lá fora com o chapéu no colo. (p. 15) She felt the smell of fried sweet bread, of the fresh coffee that was served to the women and children that were holding wake for the dead. She felt the smell of white rum exhaled from the mouth of the flask and of the men seated outside who held their hats over their chests. (p. 5) Nos três fragmentos anteriormente apresentados é notável a presença desses elementos tipicamente brasileiros que comentamos. Um leitor que não tenha um pouco de conhecimento da nossa cultura terá grande dificuldade para compreender e visualizar alguns elementos como, por exemplo,“os pés de pequi”, fruta nativa do cerrado brasileiro, muito utilizada na cozinha nordestina, do centro-oeste e norte de Minas Gerais; a imagem das crianças “raspando os tachos” onde eram preparados os doces como “o melado de rapadura”, doce feito a partir da cana de açúcar que, embora conhecido nos Estados Unidos pelo próprio nome “rapadura” 23 e originário das Ilhas Canárias no século XVI, é típico do nordeste do Brasil e de algumas regiões da América Latina 24 ; “o cheiro de biscoito frito”, 23 Desde 2006 o Brasil vem lutando contra uma empresa alemã que patenteou a rapadura nos Estados Unidos (1993) e na Alemanha (1989). Mais informações ver: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,oab-tenta-anular-patente-da-marca-rapadura-na- alemanha-e-nos-eua,153513,0.htm 24 Mais informações ver: http://modadecomidachefcrisleite.blogspot.com.br/2010/06/rapadura.html http://projetoculturaafro.blogspot.com.br/2008/10/rapadura.html 92 quitute típico da culinária mineira, geralmente servido com café, ambos com aroma bastante forte e característico; “os pés de coco-de-catarro”, um tipo de palmeira natural do Brasil também conhecida por outros nomes como macaúba, cujo nome científico é Acromia aculeata, comum na mata atlântica desde o Pará até São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro. Embora essa planta também seja encontrada na Argentina, no Uruguai, Paraguai, na Bolívia, Colômbia, Venezuela, nas três Guianas, no México e na America Central, um leitor do polissistema estadunidense provavelmente não terá conhecimento da mesma. A tradução de elementos culturais é sempre um grande desafio, por essa razão, não é difícil encontrarmos registros dessa discussão na literatura dos estudos de tradução. Questões como: o que faz o tradutor diante de questões complexas e cheias de implicações presentes no texto a ser traduzido, quais são as suas opções enquanto mediador, quais são os prós e os contras de cada possibilidade de tradução, como tratar os elementos sem correspondentes na língua alvo, qual o efeito causado pelas escolhas do tradutor no leitor da tradução, entre outras, são frequentemente encontradas em trabalhos dessa área. Tradutores reconhecidos como Millôr Fernandes e Clifford Landers e teóricos como Lawrence Venuti e Javier Aixelá, de diferentes maneiras, já se ocuparam dessa discussão. O brasileiro Millôr Fernandes, muito conhecido por suas traduções de clássicos de Shakespeare, Tchecov e Sófocles, em The cow went to the swamp ou A vaca foi pro brejo (1988), traz a questão da tradução de elementos culturais de uma forma bastante lúdica, traduzindo para o inglês, ao pé da letra, expressões populares que fazem parte da cultura brasileira. A proposta de Fernandes mostra que, embora as expressões traduzidas estejam em língua inglesa, fora do contexto de origem elas não fazem sentido algum, a começar pelo próprio título dado à obra em questão. Expressões populares entre os brasileiros como "Comeu mosca”, “Cozinhou em banho-maria”, “Ela é sapatão” e “Carioca da gema”, apenas para citar algumas, se traduzidas ao pé da letra, resultariam em expressões completamente ininteligíveis para um leitor do contexto anglo-americano, sendo, segundo a proposta de Fernandes, “He ate fly”, “He cooked in Mary's bath”, “She’s a big shoe” e “Carioca of the egg's yolk”. O autor reforça essa questão da diferença cultural apresentando ilustrações do famoso cartunista brasileiro Ernani Diniz Lucas, mais conhecido como Nani, mostrando a maneira como as 95 considera o fato daquela produção ter sido proveniente de outra língua. Em se tratando de redatores e revisores, uma tradução é considerada aceitável, segundo Venuti, apenas quando sua leitura é fluente e há a ausência de qualquer característica da língua estrangeira que cause estranhamento na língua de chegada (1996, p. 123). Venuti ainda observa que os próprios tradutores acreditam, muitas vezes, que o trabalho da tradução deve ser apagado, e caso isso não aconteça, é porque “o texto traduzido não satisfaz o critério da fluência” (p. 111) que se exige de um texto traduzido. O autor acredita que essa desejada invisibilidade por parte do tradutor pode estar relacionada ao “baixo status ainda atribuído ao seu trabalho” (p. 112). Esse baixo status pode ser percebido, por exemplo, no pouco ou nenhum reconhecimento dos tradutores. Geralmente o nome do tradutor não vem na capa de uma obra traduzida, ele muitas vezes não é sequer mencionado nos anúncios e resenhas, seu trabalho costuma ser encomendado e esse geralmente necessita abrir mão de todos os direitos sobre o texto traduzido e acaba sendo uma espécie de “trabalhador de aluguel” (p. 112). Venuti acredita que é necessário haver certa visibilidade do tradutor, porém de forma “moderada”. Ele aponta que o tradutor pode e deve se fazer visível através de prefácios, notas do tradutor, paratextos em geral e também de uma estratégia mais estrangeirizante no processo de tradução, que permita ao leitor enxergar o texto traduzido como uma tradução, como um texto proveniente de outra língua/cultura (1996, p. 123) e, assim, também ter a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a cultura do outro através da tradução. Dessa maneira, em textos como “A formação de identidades culturais” (2002) e “Translation as Cultural Politics: Régimes of domestication in English” (2010), Venuti deixa claro a sua preferência por traduções estrangeirizadoras, que respeitem uma ética da diferença, não se rendendo ao apagamento de características culturais. Defender a tradução estrangeirizadora em oposição à tradição anglo-americana de domesticação não significa acabar com as agendas político-culturais. Obviamente, tal defesa é em si uma agenda. A questão é, ao invés disso, desenvolveruma teoria e prática da tradução que resistam aos valores culturaisdominantes da língua alvo, de modo a transparecer a diferença linguística e cultural do texto estrangeiro. (Venuti, 2010, p. 74) 96 Em “Culture-specific Items in Translation” (1996), o teórico espanhol Javier Aixelá discute as possibilidades de tratamento para os itens específicos de uma cultura. Aixelá comenta que tais itens aparecem nos textos através de objetos, sistemas de classificações e medidas de uso restrito da cultura fonte, e da transcrição de opiniões e hábitos desconhecidos da cultura alvo (1996, p. 56). Nessas situações, o tradutor é responsável por escolher a melhor maneira de agir diante da lacuna cultural apresentada. O teórico ressalta que A assimetria cultural entre duas comunidades linguísticas é necessariamente refletida nos discursos de seus membros, com a potencial opacidade e inaceitabilidade que isto pode implicar para o sistema cultural alvo. Assim, diante da diferença decorrente do outro, com toda uma série designos culturais capazes de negar e/ou questionar o nosso próprio modo de vida, a tradução oferece à sociedade receptora uma vasta gama de estratégias, que vão desde a conservação (a aceitação da diferença por meio da reprodução dos sinais culturais do texto original), à naturalização (transformação do outro em uma réplica cultural). (1996, p. 54) Aixelá propõe então um modelo classificatório para as situações de traduções que envolvem essas especificidades culturais a que temos nos referido. De acordo com a classificação do teórico, as duas principais estratégias de tradução seriam a conservação e a substituição. A primeira estratégia, a conservação, teria como subitens: repetição, adaptação ortográfica, tradução linguística, glosa extratextual e glosa intratextual, que corresponde à “interpolação” de Landers. A segunda, por sua vez, seria subdivida em sinonímia, universalização limitada, universalização absoluta, naturalização, exclusão e criação autônoma. A repetição, segundo a proposta de Aixelá, é a estratégia onde o tradutor mantém o item cultural tal como ele aparece no texto-fonte, levando o item estrangeiro para a tradução. O autor cita como exemplo dessa estratégia o uso da palavra Seattle, que seria mantida exatamente assim na tradução para uma outra língua, destacada por alguma espécie de grifo, ou não (p. 61). Em Ponciá Vicêncio, podemos encontrar a utilização dessa estratégia quando a tradutora decide manter o termo “Lei Áurea” no texto traduzido para a língua inglesa. Nesse caso, ela não utilizou nenhuma espécie de grifo, apresentando o termo entre aspas, assim como está no texto em português. A adaptação ortográfica consiste na transcrição ou transliteração necessárias quando a referência original é expressa em um alfabeto diferente do utilizado pelos leitores da cultura alvo, como, por exemplo, um texto em grego 97 sendo traduzido para inglês. Outras duas utilizações que Aixelá menciona para essa estratégia é a integração de referências pertencentes às culturas não hegemônicas, como, por exemplo, a utilização de nomes russos em textos em inglês com alterações na ortografia; e a correção e/ou alteração de formas que podem causar problemas na compreensão. O autor cita como exemplo o nome feminino Jose, que em inglês corresponde a uma forma reduzida de Josephine mas que na tradução para o espanhol provavelmente seria confundido com o nome masculino José (1996, p. 61). Em Ponciá Vicêncio, a utilização dessa estratégia aparece logo no título do romance, nome da protagonista, já que, em inglês, o sobrenome Vicêncio perde o seu acento circunflexo na segunda sílaba, aparecendo como “Vicencio” na tradução. A tradução linguística é uma estratégia que propõe oferecer uma versão inteligível na língua-alvo de um termo que pode ser reconhecido como pertencente à cultura do texto-fonte. O tradutor a emprega quando recorre a traduções já existentes, aceitas e reconhecidas na língua de chegada para decidir como tratar itens culturais como nomes de moedas, instituições públicas, entre outros. Aixelá cita como exemplo a tradução de dollars como “dólares” e inch como “polegada” (p. 62). Ainda nos subitens da estratégia de conservação, a glosa extratextual consiste no acréscimo de explicações do tradutor para completar uma informação desconhecida pelo leitor. Por ser extratextual, as explicações desse tipo de glosa aparecem por meio de notas do tradutor em rodapé ou fim de página, glossários, textos explicativos, prefácios (como é o caso da tradução de Ponciá Vicêncio) etc. (p. 62). Por fim, o último subitem proposto por Aixelá como estratégia de conservação é a glosa intratextual. Essa estratégia consiste no acréscimo de informações explicativas no corpo do texto. O objetivo da glosa intratextual é semelhante ao da extratextual, porém, aqui, o tradutor visa não dispersar a atenção do leitor na busca por explicações fora do texto. Essa estratégia geralmente mantém o termo estrangeiro, inserindo as explicações necessárias em forma de aposto ou adjunto (p. 62), proposta semelhante à estratégia de interpolação proposta por Landers, como já foi mencionado. Passando então à estratégia de substituição, a primeira possibilidade apontada pelo teórico é a sinonímia. Essa estratégia busca substituir repetições por
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