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Materialismo Histórico: A Interação entre Forças Produtivas e Relações de Produção, Notas de aula de História

SociologiaFilosofia da HistóriaHistória EconômicaTeoria Marxista

O materialismo histórico é uma teoria marxista que explica a história através da interação entre forças produtivas e relações de produção. Cohen apresenta uma interpretação original desta teoria, baseada nas normas da filosofia analítica, e apoiada nas teses do desenvolvimento e da primazia. A teoria enfatiza a importância da interação entre as forças produtivas e as relações de produção na determinação do desenvolvimento histórico.

O que você vai aprender

  • Qual é a teoria de Marx que Cohen discute no documento?
  • Qual é a importância da racionalidade na teoria de Cohen do materialismo histórico?
  • Quais são as duas teses fundamentais da interpretação de Cohen do materialismo histórico?
  • Como as forças produtivas e as relações de produção se interagem de acordo com a teoria de Cohen?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Aquarela
Aquarela 🇧🇷

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Baixe Materialismo Histórico: A Interação entre Forças Produtivas e Relações de Produção e outras Notas de aula em PDF para História, somente na Docsity! A transição do feudalismo ao capitalismo interpretada pelo marxismo analítico • 63 A transição do feudalismo ao capitalismo interpretada pelo marxismo analítico FABIEN TARRIT* Introdução O presente artigo propõe uma discussão sobre a dinâmica histórica dos mo- dos de produção, em particular um panorama do debate sobre a transição entre feudalismo e capitalismo e, nessa ótica, inscreve-se num quadro marxiano. A teoria da história de Marx, à qual foi atribuído o nome de materialismo histórico, visa explicar a história pela interação de um conjunto de elementos que incluem a luta de classes, o desenvolvimento das forças produtivas, as relações de produção, os interesses de indivíduos particulares... Marx considera construir uma teoria materialista da história, que se opõe a uma filosofia idealista da história do tipo da de Hegel. Se não ocupa o lugar principal,1 essa teoria não é menos central na arquitetura teórica de Marx. Em sua formulação mais sintética que aparece no Pre- fácio2 da Contribuição à crítica da economia política, ela enuncia notadamente que [as] relações de produção correspondem a um grau de desenvolvimento determinado de suas forças produtivas materiais, [que em] um certo estágio de seu desenvol- vimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes [...]. De formas de desenvolvimento das forças * Professor da Universidade de Reims Champagne-Ardenne. E-mail: fabien.tarrit@univ-reims.fr. Tradução de Maria Leonor Loureiro. 1 Ela aparece notadamente em A ideologia alemã (1845), em Miséria da filosofia (1847) e no Prefácio da Contribuição à crítica da economia política (1859). 2 Doravante “Prefácio”. Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 63 04/08/2017 17:05:43 64 • Crítica Marxista, n.45, p.63-91, 2017. produtivas que eram, essas relações tornam-se entraves a elas [...]. Abre-se então uma época de revolução social. (Marx, 1859, p.4-5) O período subsequente à Segunda Guerra Mundial foi especialmente o teatro da reemergência de um conjunto de debates particularmente ricos, nesse quadro teórico, sobre a dinâmica do modo de produção feudal e sobre sua transição para o capitalismo [entre os quais Sweezy, 1946; Dobb, 1946; Braudel, 1969]. Para Paul Sweezy, o feudalismo, que não possui força motriz interna própria para explicar a passagem ao capitalismo, necessita de um elemento exterior. Para Maurice Dobb, mercados emergiram desde a economia feudal, o que possibilitou o desenvolvi- mento do capitalismo. Os termos desse debate são desenvolvidos e atualizados no fim dos anos 1970, notadamente no âmbito de trabalhos que iam constituir o marxismo analítico,3 com as contribuições de três autores emblemáticos dessa corrente: o historiador americano Robert Brenner (1976), o filósofo inglês de origem canadense4 Gerald A. Cohen (1978) e, em menor medida, mas de maneira complementar, o economista americano John Roemer (1982a). Numa obra que deu impulso à constituição do marxismo analítico, Cohen apoia-se no referido Prefácio para apresentar, com a ajuda das normas da filosofia analítica, uma elaboração original do materialismo histórico, que concebe como uma interação entre forças produtivas e relações de produção. Sua abordagem repousa sobre duas teses: a Tese do Desenvolvimento, segundo a qual as forças produtivas se desenvolvem através da história, que repousa notadamente sobre a racionalidade, e a Tese da Primazia, segundo a qual as forças produtivas possuem uma primazia explicativa sobre as relações de produção, que constituem a estrutura econômica e têm por função permitir o desenvolvimento das forças produtivas. O capitalismo é considerado como uma etapa necessária do desenvolvimento histórico, sucede ao feudalismo e precede o socialismo. John Roemer apropria-se da interpretação de Cohen, na qual propõe inscrever sua reformulação da teoria marxiana da ex- ploração, estruturada pelas ferramentas do individualismo metodológico – teoria dos jogos e processos de otimização. Confrontamos a abordagem de Cohen à de Robert Brenner, igualmente marxista analítico, que desenvolve uma interpretação do aparecimento do capitalismo como um efeito emergindo da racionalidade dos atores. Ora, a racionalidade de Brenner diz respeito aos indivíduos, ao passo que a de Cohen remete antes à humanidade. É nesse âmbito que Brenner critica impli- citamente Cohen como se inscrevendo em um “smithianismo marxista”. Acusa-o de apresentar a teoria de Marx como um determinismo tecnológico estruturado pelo desenvolvimento das forças produtivas, enquanto, por seu lado, ele concebe o capitalismo como um efeito da racionalidade dos atores, condicionada por rela- 3 Essa escola de pensamento define-se por seu projeto de unificação da teoria de Marx e das teorias dominantes em ciências humanas e sociais (Tarrit [2006], 2013a). 4 Foi naturalizado em 1984, quando obteve uma cátedra na Universidade de Oxford. Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 64 04/08/2017 17:05:43 A transição do feudalismo ao capitalismo interpretada pelo marxismo analítico • 67 os meios de satisfazer suas necessidades, e na medida em que estão dispostos a empregá-los. Em outros termos, utilizam técnicas eficazes, ou seja, que permitem o desenvolvimento das forças produtivas. Por outro lado, a humanidade dispõe da inteligência11 que lhe permite desenvolver essas técnicas, descobrir novos recur- sos e gerar novas capacidades permitindo-lhe aumentar a produtividade. Pode-se encontrar em Marx uma formulação próxima, no sentido em que é evidente que a racionalidade que ele defende é de natureza coletiva: A única liberdade possível é que o homem social, os produtores associados re- gulam racionalmente suas trocas com a natureza, controlam-na juntos em vez de ser dominados pelo seu poder cego e realizam essas trocas gastando o mínimo de força e nas condições mais dignas, mais de acordo com sua natureza humana. (Marx, 1894, t.III, p.199) Cohen precisa da Tese do Desenvolvimento para estruturar sua Tese da Pri- mazia das forças produtivas sobre as relações de produção. I.2. A Tese da primazia Também aí Cohen apoia-se no Prefácio e interpreta a passagem segundo a qual “as relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvi- mento de suas forças produtivas materiais” (Marx, 1859, p.4) como uma afirmação segundo a qual as relações de produção são tais que permitem o desenvolvimento das forças produtivas,12 e, portanto, sua natureza seria explicada pelo nível desse desenvolvimento. “Em seu conjunto as forças produtivas dominam as relações de produção, ao mesmo título que o ambiente em seu conjunto domina o caráter de uma espécie animal” (Cohen, 1978, p.165) e “a natureza das relações de produção explica-se pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas” (ibid., p.134). Cohen evoca um “zigue-zague ‘dialético’ entre forças e relações” (ibid., p.138).13 Assim, ainda que o desenvolvimento das forças produtivas fosse a força motriz da história, a natureza das relações de produção condiciona o caminho de desenvolvimento das forças produtivas, a saber, sua forma e seu ritmo. Em outros termos, as relações e as forças exercem uma influência recíproca, mas as forças ganham em última instância. Resulta daí que a luta de classes, como manifestação das relações de produção em um momento dado, “não é a explicação fundamental da mudança social” (ibid., p.148). Essa assimetria é, segundo Cohen, justificada por três frases do Prefácio: 11 Cohen usa indiferentemente “saber” e “inteligência”. 12 Pode-se citar igualmente Miséria da filosofia: “O moinho manual vos dará a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalismo industrial” (Marx, 1847, p.110). 13 Essa formulação aparece mais como um procedimento retórico do que como um conceito preciso, no sentido em que o método dialético é, por outro lado, descartado por Cohen (cf. Cohen, 2000, “Introdução”). Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 67 04/08/2017 17:05:43 68 • Crítica Marxista, n.45, p.63-91, 2017. Em um certo estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes [...] De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, essas relações tor- nam-se seus entraves [...] Abre-se então uma época de revolução social. (Marx, 1859, p.4) Desse modo, o nível de desenvolvimento das forças produtivas permite de- terminar quais são os conjuntos de relações de produção possíveis e, entre esses, quais são os que permitem um desenvolvimento superior. Existe realmente uma hierarquia, mas essa reação não é direta e unilateral, pois as relações exercem igualmente uma influência sobre as forças, porém, é de fato verdade que as forças têm uma primazia explicativa sobre as relações que, em última análise, correspondem a um nível determinado de desenvolvimento das forças produtivas. Assim, somente as relações sociais podem impedir o desenvolvimento material. Uma revolução social não consiste, portanto, em uma modificação das forças produtivas materiais, mas em uma modificação da natureza das relações sociais de produção. Em outros termos, a transformação da forma permite a libertação do conteúdo. É então possível reconstituir a lista de argumentos de Cohen em cinco etapas14 que formulamos da maneira seguinte: correspondência, desenvolvimento, contradição, transformação, superioridade. Correspondência “Um nível dado de poder produtivo é compatível somente com um ou vários tipos particulares de estrutura econômica” (Levine; Wright, 1980, p.52). O nível de desenvolvimento das forças produtivas corresponde à natureza das relações de produção, por um lado, enquanto as relações permitem o desenvolvimento das forças e, por outro lado, quando as forças permitem a manutenção das relações. A correspondência designa efeitos recíprocos. Por um lado, as forças produtivas permitem a renovação das relações de produção, no limite de sua correspondên- cia. Por outro lado, estas permitem o desenvolvimento daquelas, mas também o limitam na medida em que apenas algumas delas podem desenvolver-se no seio dessas relações. Resta que relações dadas são como são porque contribuem para o desenvolvimento das forças. “Às forças produtivas desenvolvidas no seio da sociedade capitalista [...] devem necessariamente corresponder formas novas de apropriação dessa riqueza” (Marx, 1867, t.III, p.59). Desenvolvimento Esta tese, que estudamos anteriormente, é necessária para passar à etapa seguinte da argumentação. Ela cria a possibilidade de um paradoxo, ou de uma “assimetria”, (Levine; Wright, 1980, p.54) com a Tese da Correspondência, visto que se as forças produtivas continuarem a se desenvolver, as relações de produção 14 Inspiramo-nos amplamente em Levine e Wright (1980, p.51-56). Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 68 04/08/2017 17:05:44 A transição do feudalismo ao capitalismo interpretada pelo marxismo analítico • 69 cessarão em algum momento de lhes corresponder. Isso assume a forma da Tese da Contradição. Contradição “As forças produtivas desenvolver-se-ão até ao ponto em que [...] estarão em contradição [...] com as relações de produção sob as quais se desenvolveram anteriormente” (ibid.). Trata-se de uma contradição inevitável, segundo a qual as forças são necessariamente entravadas pelas relações em um momento dado de seu desenvolvimento. De acordo com Marx, ela é inevitável enquanto persistir uma sociedade de classes: “esse antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais da nossa época é um fato palpável, esmagador e indiscutível” (Marx, 1856, p.500). No modo de produção capitalista em particular, a concorrência é a mola propulsora principal do desenvolvimento e, ao criar uma contradição entre uma produção cada vez mais socializada e uma detenção privada cada vez mais con- centrada dos meios de produção, seu modo de funcionamento implica sua própria destruição. Assim, o desenvolvimento das forças produtivas comporta em seu seio sua própria contradição. Esta poderia ser resolvida por um entrave das forças produtivas, permitindo restaurar uma correspondência. Marx fizera a pergunta: é preciso entravar as forças produtivas, por intervenção do Estado, para torná-las adequadas às relações de produção, ou, ao contrário, entravar as relações de produ- ção para torná-las adequadas às forças produtivas? (Marx, 1905-1910, t.III, p.59) A primeira hipótese choca-se com a Tese do Desenvolvimento – “o retorno a forças mais primitivas é frequentemente irrealizável tecnicamente” (Cohen, 1978, p.155) –, logo, quando o desenvolvimento das forças produtivas é limitado pela estrutura econômica, protegida por uma superestrutura, somente uma transfor- mação das relações de produção – e, portanto, da superestrutura – pode resolver essa contradição. Transformação “A revolução não consiste em uma modificação das forças produtivas mas [...] em uma transformação das relações sociais” (ibid., p.150, sublinhado por Cohen). É assim que é possível compreender a interpretação da transição do feudalismo ao capitalismo por Marx e Engels: Em um certo estágio de evolução desses meios de produção e de circulação, as relações no âmbito das quais a sociedade feudal produzia e trocava seus produtos, a organização social da agricultura e da manufatura, numa palavra, as relações feudais de propriedade, não correspondiam mais ao grau de desenvolvimento já alcançado pelas forças produtivas. Elas entravavam a produção em vez de a es- timular. Transformaram-se em outras tantas correntes. Era preciso quebrar essas correntes. Elas foram quebradas. (Marx; Engels, 1848, p.61-62) Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 69 04/08/2017 17:05:44 72 • Crítica Marxista, n.45, p.63-91, 2017. Contra as noções althusserianas de determinação em última instância e de cau- salidade estrutural, e contra o método dialético, Cohen propõe explicar a transição histórica em termos funcionais. Confronta a explicação funcional à explicação causal,16 que faria de um elemento único o motor da história, e transformaria o materialismo histórico em um determinismo, em razão da tese da primazia. Ora, numerosos exemplos históricos, e precisamente a transição do feudalismo ao ca- pitalismo, em que as relações de produção agiram sobre o desenvolvimento das forças produtivas, militam por um abandono desse tipo de explicação para levar em conta sua influência recíproca e assimétrica, no sentido da tese da primazia, mas não unilateral. “Construir [as] explicações [de Marx] como funcionais permite estabelecer uma compatibilidade entre o poder causal dos fenômenos explicados e seu estatuto secundário na ordem explicativa” (Cohen, 1978, p.278). Para Cohen, “as explicações centrais do materialismo histórico são defini- tivamente de natureza funcional, de tal sorte que se a explicação funcional for inaceitável em teoria social, então o materialismo não pode ser reformado e deve ser rejeitado” (Cohen, 1982a, p.488). Ele concebe o materialismo histórico como estruturado por uma explicação funcional em duas etapas, nas quais a estrutura econômica é sucessivamente o explanans e o explanandum. Por um lado, “a estrutura econômica tem por função desenvolver as forças produtivas” (Cohen, 1980, p.129). Isso significa que o nível de desenvolvimento das forças produtivas explica funcionalmente a natureza das relações de produção, isto é, da estrutura econômica, na medida em que elas têm por função promover esse desenvolvi- mento. Por outro lado, “a superestrutura [tem] por função estabilizar a estrutura econômica” (Cohen, 1982b, p.29). Isso significa que a estrutura legal17 permite garantir a estabilidade da estrutura econômica – esta é, portanto, explicada fun- cionalmente por aquela – assegurando o desenvolvimento das forças produtivas. No caso, o desabamento do feudalismo ocorreu quando o desenvolvimento das forças produtivas necessitava da transição para relações de produção supe- riores, que correspondem à estrutura econômica capitalista. Em outros termos, as relações de produção transformaram-se para continuar a assegurar sua função, que consiste em permitir o desenvolvimento das forças produtivas. Precisamente, as coerções da estrutura feudal foram quebradas conforme a passagem do Manifesto do partido comunista citada anteriormente. Cohen estima que, no âmbito da filosofia analítica, a explicação funcional é o único meio de salvar o materialismo histórico de sua absorção na corrente dominante, marcada pela supremacia do individualismo metodológico. Penso que não existe construção alternativa sustentável dos enunciados centrais do materialismo histórico, é por isso que se minha defesa fracassar, o materialismo 16 Mais precisamente, estima que uma explicação causal válida, neste quadro, só pode ser funcional. 17 Para Cohen, apenas o direito é sem ambiguidade superestrutural. Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 72 04/08/2017 17:05:44 A transição do feudalismo ao capitalismo interpretada pelo marxismo analítico • 73 histórico fracassa. Por conseguinte, se eu não tiver razão, o custo para o marxismo é considerável. (Cohen, 1980, p.129) Paradoxalmente, ela abriu o caminho para o individualismo metodológico. I.4. Transição histórica e marxismo de escolha racional A abordagem de Cohen suscitou reformulações e prolongamentos, espe- cialmente por parte dos autores do marxismo de escolha racional, uma corrente interna ao marxismo analítico que se funda precisamente na teoria da escolha racional e no individualismo metodológico. Apoiando-se na estrutura proposta por Cohen, o economista americano John Roemer propõe inscrever a interpretação de Cohen no âmbito de sua reformulação da teoria marxiana da exploração, e assim ancorar mais fortemente as lógicas de racionalidade na abordagem de Cohen. É um dos principais artífices do “marxismo neoclássico” (Anderson; Thompson, 1988, p.215) – “O marxismo que apresento aqui é articulado pelas ferramentas econômicas contemporâneas, ou seja, a economia neoclássica” (Roemer, 1981, p.vii) –, e ele considera a exploração como um processo de otimização. Inscreve essa leitura no quadro materialista histórico proposto por Cohen. Roemer elabora uma teoria geral da exploração, na qual a teoria da exploração feudal e a teoria da exploração capitalista são casos particulares. Apoiando-se numa distinção entre troca de trabalho coercitivo (escravidão e depois feudalismo) e troca de trabalho não coercitivo (capitalismo e depois socialismo), ele estuda como um mesmo processo de enriquecimento é possível em ambos os casos. Relembremos que sua teoria tem por objetivo explicar o que ele considera como uma relação de exploração nos Estados chamados socialistas, e que lhe aparece como uma anomalia na teoria marxista – o socialismo deve caracterizar-se pela ausência de exploração. Por conseguinte, considera que, para construir uma teoria da exploração sólida, é preciso abandonar a hipótese de propriedade privada dos meios de produção. Assim, as causas institucionais da exploração marxiana são, segundo ele, a existência de mercados concorrenciais, a propriedade diferencial dos meios de produção, as diferenças de preferências, de níveis de tecnologia, mais do que a expropriação direta do trabalho. Roemer estima que a característica fundamental do capitalismo é a dotação diferencial dos meios de produção. De acordo com ele, a exploração não se explica então pelo sobretrabalho mas pela propriedade diferencial dos bens produtivos, e ele fixa para si mesmo o objeti- vo de construir uma teoria geral da exploração fundada no materialismo histórico. Por sorte, o período recente conheceu um renascimento do trabalho analítico sobre o materialismo histórico; uma menção especial deve ser concedida ao enunciado e à defesa do materialismo histórico de uma incrível clareza por Cohen. (Roemer, 1982a, p.54) Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 73 04/08/2017 17:05:44 74 • Crítica Marxista, n.45, p.63-91, 2017. Estimando que a história progride por eliminação sucessiva das formas de ex- ploração que se tornaram inúteis – para o desenvolvimento das forças produtivas –, ele associa cada modo de produção a uma forma de exploração, conceptualizando assim a noção de exploração socialmente necessária. Aplica seu modelo geral a vários tipos de exploração: feudal, capitalista e socialista. Associa a exploração capitalista à exploração marxiana (sem coerção aparente) e a exploração feudal à exploração neoclássica (com coerção aparente). “Toda transição revolucionária cumpre a tarefa histórica de eliminar a forma de exploração associada” (ibid., p.21). Mesmo que rejeite, de maneira implícita, tanto a primazia das forças produtivas quanto a explicação funcional, Roemer apropria-se da estrutura do enunciado de Cohen afirmando que a teoria dos jogos permite estudar as formas particulares da luta de classes especificada pelo materialismo histórico, e, portanto, que essa luta possui fundamentos microeconômicos. “Certas leis do materialismo histórico que Cohen considera centrais são observações sobre situações de equilíbrio” (Roemer, 1982b, p.514). É a razão pela qual estima que a influência insuficientemente atribuída por Cohen à luta de classes em sua teoria do materialismo histórico só tem sentido se ele se preocupar principalmente com as grandes correspondências históricas, e se a luta de classes não for decisiva para o equilíbrio. Para a explicação das transições e da convergência rumo a um novo equilíbrio, penso que a luta de classes e logo o individualismo metodológico, em particular a teoria dos jogos, são essenciais. (Ibid.) Segundo Roemer, a exploração existe em uma dada sociedade se um grupo puder melhorar sua situação material retirando-se dessa sociedade. Enuncia várias especificações das regras de retirada, que correspondem a cada forma de explo- ração, ou seja, a cada jogo, a saber: a exploração feudal, capitalista e socialista, sendo cada uma delas associada a uma desigualdade de dotação e relações de classe específicas, quer dizer, a um modo particular de controle sobre os bens produtivos. Roemer classifica as formas sociais em função do modo de controle sobre os bens produtivos: – Uma exploração feudal ocorre em caso de desigual propriedade da força de trabalho. – Uma exploração capitalista ocorre em caso de desigual propriedade dos bens alienáveis (os meios de produção). – Uma exploração socialista ocorre em caso de desigual dotação em bens inalienáveis (as qualificações ou o estatuto). No que se refere precisamente à exploração feudal, existe uma exploração quando, se ele se retirar, um servo dispuser de sua dotação sem ter de trabalhar para o senhor. “O servo é obrigado a trabalhar no domínio do senhor e a efetuar uma corveia, apesar de seu acesso aos meios de subsistência” (Roemer, 1982a, Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 74 04/08/2017 17:05:44 A transição do feudalismo ao capitalismo interpretada pelo marxismo analítico • 77 História em Karl Marx: uma defesa” (Brenner, 1986, p.46-47, n.13).22 Estima- mos que a abordagem de Brenner não é “diametralmente oposta ao materialismo histórico de Cohen” (Roemer, 1982b, p.515), no sentido em que ambos têm por objetivo identificar quais são as forças motrizes do desenvolvimento histórico. Todavia, sua oposição à definição da racionalidade apresentada por Cohen é patente, visto que não a encara como a-histórica, mas como condicionada por uma estrutura social específica (II.1.1). Considera o desenvolvimento das forças produtivas, quando ele ocorre, não como um aspecto estruturante, mas como uma consequência não intencional de ações intencionais (II.1.2). II.1.1. Uma racionalidade condicionada por relações de produção específicas Brenner estima que a estrutura das formações sociais pré-capitalistas, fundada na extração da renda, não autoriza a racionalidade dos atores a gerar as condições para o desenvolvimento das forças produtivas. Brenner (1985) nota que as regras de reprodução das sociedades agrícolas pré-capitalistas são incompatíveis com o crescimento econômico moderno, que o progresso técnico nas relações de produção pré-capitalistas não conduz necessariamente ao desenvolvimento econômico. O acesso direto dos produtores aos meios de subsistência e a coerção extraeconômica dos exploradores conduzem estes últimos a utilizar a força extraeconômica para manter sua dominação. As regras que era racional adotar revelaram-se contrárias ao desenvolvimento econômico global.23 A baixa produtividade agrícola torna os mercados instáveis e impele à diversificação, o que constitui um obstáculo à especialização e impede uma dissociação entre meios de produção e meios de subsistência. Por conseguinte, o único meio de coerção para os exploradores é o investimento na vigilância e nos meios militares, o que entrava o crescimento da produtividade. O desenvolvimento é então extensivo, com a multiplicação das unidades de produção existentes, e formas não produtivas aparecem (despesas mi- litares, luxo,...), o que conduz a uma estagnação a longo prazo. Assim, parece-nos perceber aspectos ricardianos na lógica da argumentação de Brenner, no sentido em que a estrutura social é concebida como portadora de um empobrecimento geral. Ele raciocina segundo uma produtividade constante, o que remete a uma lógica de rendimentos decrescentes. Os atores pré-capitalistas estão organizados em instituições políticas: os produtores diretos constituem-se em comunidades tanto para lutar contra os exploradores, quanto para se protegerem dos conflitos internos, e os exploradores organizam-se para impor taxações, mas também para lutar contra outros grupos de exploradores. Logo, as condições não estão reunidas para a aplicação das condições do desenvolvimento econômico. 22 Esta passagem não aparece na versão francesa do texto, por isso mencionamos o artigo de Brenner, 1986, que é sua versão original. 23 Isto suscita debate, a crer em Dimitris Milonakis, para o qual “[a] incitação dos camponeses a aumentar sua produtividade a partir da posse de sua terra, assim como os limites à exploração direta pelos senhores fornecida pelo costume, formaram a base da dinâmica feudal e mantêm o progresso econômico da Idade Média” (Milonakis, 1993-1994, p.398). Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 77 04/08/2017 17:05:44 78 • Crítica Marxista, n.45, p.63-91, 2017. A adoção de relações capitalistas passa pela existência de uma pressão à concorrência, pela ausência de possibilidades de diminuição dos custos ou de aumento da renda, portanto pela separação entre os produtores diretos e os meios de subsistência, ou seja, entre a força de trabalho e os meios de produção. Foi então que as relações de produção, tornadas capitalistas, se inscreveram em uma reprodução pelos preços, desempenhando o papel de mecanismo de seleção natural eliminando os produtores incapazes de diminuir seus custos. Smith estava errado ao crer que uma produção sistemática para a troca era ela mesma a expressão pura e simples do interesse pessoal racional [...]. Ao contrário, os produtores não encontram um interesse pessoal racional na especialização a não ser no quadro das relações de propriedade capitalistas, e isso somente porque não têm outra escolha senão produzir para o mercado e enfrentar aí a concorrência. Para formular as coisas tão simplesmente quanto possível: a explicação não é que as pessoas trocam para se especializar, nem que se especializam para trocar; elas se especializam porque devem trocar. Visto que isso se produz apenas em presen- ça de relações de propriedade capitalistas, compreender o início do crescimento econômico moderno é compreender como as relações capitalistas de propriedade se impuseram. (Brenner, 1986, p.76) No entanto, enquanto Cohen atribui a primazia às forças produtivas, Brenner concede-a à luta de classes, sem a qual seria impossível considerar as transfor- mações periódicas. A ruptura com “a economia tradicional” e a passagem a um desenvolvimento eco- nômico relativamente autoalimentado foram fundadas na emergência de um novo tipo de relações de classe no campo, a saber, relações sociais de tipo capitalista. Tal resultado dependia, por sua vez, do sucesso anterior de um duplo processo de desenvolvimento e de conflito de classe: de um lado, a destruição da servidão, do outro, o impedimento do crescimento da pequena propriedade camponesa. (Brenner, 1976, p.200) Brenner rejeita a hipótese de trans-historicidade que atribui a Cohen, e concede à lógica própria desta ou daquela estrutura econômica a propensão a desenvolver as forças produtivas ou a não as desenvolver. Ao contrário de Cohen, acentua os períodos de transição histórica de uma forma social a outra, interroga o papel espe- cífico desempenhado pela racionalidade dos atores no decorrer desses períodos. Em sua crítica implícita a Cohen, identifica quatro teses explicativas do capitalismo. – Relações de produção específicas condicionam a racionalidade, e com- portamentos individualmente racionais podem ser contraditórios com o desenvolvimento econômico. Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 78 04/08/2017 17:05:44 A transição do feudalismo ao capitalismo interpretada pelo marxismo analítico • 79 – A transição das relações pré-capitalistas às relações capitalistas não é um resultado desejado de ações racionais. – A atividade racional pré-capitalista visava manter as relações pré-capita- listas. – As formas capitalistas de propriedade são necessárias ao crescimento moderno. II.1.2. Uma consequência não intencional de atos racionais Na abordagem smithiana tradicional, um conjunto de interesses pessoais con- duz à adoção racional de regras capitalistas, isto é, à transformação de relações pré-capitalistas em relações capitalistas, que conduz a um processo de crescimento econômico moderno. “Assim, para Smith, a procura racional do interesse pessoal acarreta um desenvolvimento econômico generalizado e contínuo” (ibid., p.66). Brenner atribui a Cohen uma teoria de inspiração smithiana,24 segundo a qual as forças produtivas são crescentes e as relações de produção existentes permitem a adoção de forças até o ponto em que é necessário passar a novas relações para acionar as forças disponíveis, porém sem a associar plenamente a Smith, já que concebe a abordagem de Cohen como “uma estratégia alternativa para chegar ao mesmo fim com a utilização da explicação funcionalista” (Brenner, 1985, p.230). Ele julga essa teoria inapta para explicar o desenvolvimento econômico, cujo processo repousaria em três conjuntos de motivações: o progresso do comércio, a emergência e o desenvolvimento de novas forças produtivas, e o crescimento demográfico. Elas conduziram, juntamente com o aparecimento da propriedade privada, à emergência de motivações capitalistas, ao desenvolvimento do critério de eficácia produtiva para o desenvolvimento da produção, e, por conseguinte, à predominância das relações de propriedade capitalistas levando a uma raciona- lização das estratégias. Para Brenner, “o nascimento das relações de produção capitalistas produz-se como consequência involuntária do funcionamento das regras de reprodução dos atores pré-capitalistas individuais e/ou dos conflitos entre classes pré-capitalistas” (Brenner, 1986, p.91). A questão é então saber como as sociedades pré-capitalis- tas levaram ao desenvolvimento da produção de mercadorias e à troca, e em que medida toleraram as formas técnicas associadas à divisão do trabalho. “Na medida em que não é uma simples extensão quantitativa das forças produtivas conhecidas até então (arroteamento de terras, por exemplo), toda força de produção nova tem por consequência um novo aperfeiçoamento da divisão do trabalho” (Marx, 1845). Para Brenner, o modo de produção feudal é uma exceção entre todos os modos de produção pré-capitalistas, na medida em que é dotado de uma dinâmica para um desenvolvimento sistemático das forças produtivas, mesmo que o faça de 24 Mais precisamente, trata-se de uma teoria que Brenner considera como smithiana, se nos ativermos a uma interpretação da teoria de Smith como teleológica. Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 79 04/08/2017 17:05:44 82 • Crítica Marxista, n.45, p.63-91, 2017. Ora, se o desenvolvimento histórico é dirigido pelo desenvolvimento tecnológico, não é apesar do que fazem os homens, mas antes por causa do que os homens, sendo racionais, são coagidos a fazer. Ele é uma consequência não intencional das ações intencionais dos agentes racionais que, como representantes de classes sociais específicas, agem para satisfazer seus interesses de classe. Nisso, Brenner é caracterizado por Carling (1992) como marxista de escolha racional, visto que o ator feudal seria racional ao transformar as relações existentes em relações ca- pitalistas. Os representantes da classe dominante são coagidos a empregar meios de produção mais eficazes, como agentes racionais. Em suma, apenas ali onde dominam as relações capitalistas de propriedade, todos os atores econômicos são obrigados a adotar como regra de reprodução a colocação no mercado de seu produto (seja ele qual for) pelo preço competitivo, ou seja, o mais baixo. Apenas em tal economia os atores são perpetuamente motivados para reduzir seu preço de custo. Apenas em tal economia existe um mecanismo de seleção natural (ou seja, a concorrência de mercado) para eliminar os produtores que não reduzem o preço de custo. É por essas razões que apenas no âmbito de relações de propriedade capitalistas podemos esperar encontrar um crescimento econômico moderno. (Marx, 1905-1910, Tomo II, p.73-74) Evidentemente, o desenvolvimento das forças produtivas não apresenta inte- resse imediato para o indivíduo, e sim para a humanidade em uma perspectiva his- tórica. Ora, não existe interesse trans-histórico, mas antes uma lógica estrutural e, de alguma maneira, o capitalismo emergiu acidentalmente. Resta que a explicação funcional de Cohen é muito geral e pode justificar situações de desenvolvimento como situações de regressão. Por exemplo, o capitalismo teria surgido quando e porque incentivava o desenvolvimento das forças produtivas. Brenner situa-se num nível mais fraco de abstração na medida em que atribui uma especificidade a cada modo de produção, que possuiria suas próprias contradições entre forças e relações. Ele interroga as leis do movimento próprias dos modos de produção que precederam o capitalismo. Para muitos autores (Gottlieb, 1984; Amin, 1985; Sweezy, 1986) só o capitalismo possui leis internas que permitem o desenvolvi- mento, ao extrair as fontes desse desenvolvimento de uma lógica econômica. Por exemplo, a apropriação das riquezas no modo de produção feudal fundava-se em uma lógica extraeconômica – economia de guerra, apropriação coercitiva, pilha- gem. Por isso, o modo de produção feudal não contém impulsão sistemática ao desenvolvimento da produtividade, e foi a luta de classes que libertou as forças produtivas provocando e dirigindo a passagem ao capitalismo. Brenner levanta a hipótese segundo a qual um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas pode corresponder não a um entrave à tendência ao desenvolvimento, mas à ausência dessa tendência. Somente o capitalismo pode dar estruturalmente uma impulsão ao desenvolvimento das forças produtivas, logo, ao socialismo, e, na ausência Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 82 04/08/2017 17:05:44 A transição do feudalismo ao capitalismo interpretada pelo marxismo analítico • 83 de socialismo, as relações capitalistas são necessárias e suficientes para um de- senvolvimento tecnológico sustentado, suficientes na medida em que os atores são incitados a esse desenvolvimento, necessárias na medida em que as relações pré-capitalistas eram portadoras de estagnação. As capacidades produtivas fixam os limites do possível, mas nada garante que as impulsões das forças produtivas ao desenvolvimento determinem a necessidade e a direção da mudança histórica. Em todos os casos, os dois autores, ainda que suas divergências teóricas pareçam significativas, apropriaram-se de uma metodologia similar que autoriza considerar sua complementaridade. II.3. Uma reformulação do materialismo histórico por Cohen Entre os múltiplos debates, seja dentro ou fora da tradição marxista, é evidente que o marxismo analítico, no seio do qual as contribuições de Brenner e, em me- nor medida, de Roemer – mas igualmente as de Jon Elster, de Erik O. Wright... em outros campos –, exerceu um impacto considerável sobre o pensamento de Cohen, que chegou à conclusão de uma relativa fragilidade de sua defesa inicial. Essa influência não é explícita, mas inscreve-se em um conjunto de contribuições que desempenharam todas um papel. Em particular, as abordagens de Brenner e de Roemer em termos de escolha racional estão claramente em oposição à expli- cação funcional de Cohen, considerada por este a única possibilidade de garantir a validade do materialismo histórico. Pouco depois da publicação de A teoria da História de Karl Marx, Cohen trouxe um conjunto de contribuições nas quais especifica o marxismo como várias teorias, mais do que como uma teoria que se desenvolve sob vários aspectos: “o marxismo não é uma teoria, mas um conjunto de teorias mais ou menos ligadas” (Cohen, 1984, p.3).26 Inscreve-se assim em ruptura com a hipótese de homogenei- dade teórica do marxismo; esse modo de pensar está presente em sua interpretação inicial do materialismo histórico, considerado independentemente do resto dos trabalhos de Marx. “Marx produziu pelo menos quatro conjuntos de ideias: uma antropologia filosófica, uma teoria da história, uma teoria econômica e um pro- jeto de sociedade futura” (Cohen, 1983a, p.232). A antropologia filosófica, como teoria da natureza humana, corresponderia a “uma concepção que representa os homens e as mulheres como seres essencialmente criativos, que não são realmente eles mesmos senão quando desenvolvem e exercem suas faculdades produtivas” (Cohen, 1984, p.4). Por outro lado, afirmou que o materialismo histórico como teoria marxiana da história e a antropologia filosófica não estão organicamente ligados, que “o mate- rialismo histórico e a antropologia filosófica marxista são independentes” (Cohen, 1983a, p.247). A antropologia filosófica marxiana corresponderia à afirmação segundo a qual os homens são seres criativos por natureza, desenvolvem-se no 26 Tal afirmação constitui o núcleo metodológico do marxismo analítico. Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 83 04/08/2017 17:05:44 84 • Crítica Marxista, n.45, p.63-91, 2017. exercício de seus poderes produtivos, e as condições da liberdade real repousam na existência de uma abundância material. Ela se oporia à teoria da história, que enuncia que os homens são produtivos de maneira não livre, não satisfazendo a natureza seus desejos, e o desenvolvimento do poder produtivo do homem se faz às expensas da capacidade criativa dos homens, que seriam simultaneamente agentes e vítimas desse desenvolvimento. Por fim, Cohen foi levado a interrogar-se sobre a prioridade que atribuíra anteriormente aos aspectos materiais. Acaba por considerar que nada garante essa prioridade, que ele opõe ao caráter indispensável da atividade espiritual – religião, direito, ideologia – para a produção material. Além disso, estima que o caráter central da atividade material não garante seu papel explicativo. A distinção entre forças produtivas materiais e relações de produção sociais que fundava sua defesa do materialismo histórico desaparece e, de defensor da teoria marxiana da história, tornou-se seu crítico. Ele considera que o materialismo histórico está “longe de ser evidente” (Cohen, 1988, p.130). Cohen afastou-se, ao mesmo tempo, da concepção marxiana da história e de seu aspecto materialista. A cada vez, a separação conceitual operada por Cohen remete a uma distinção positivista entre o ser e o dever, e sua apropriação de tal método de exposição remete à sua recusa de aceitar o método dialético como modo de compreensão das contradições sociais, um elemento compartilhado por todos os marxistas analíticos. Para Marx, a eclosão do homem como ser criativo é entravada por relações de produção específicas, mas essas relações de produção contêm a possibilidade de tal eclosão, abrindo a via para a realização de uma forma social superior. Se nos ativermos à sua obra, podemos enunciar que a validade de seus quatro pilares, tais como apresentados por Cohen, decorre de sua unidade dialética, repousando a validade de cada um na dos três outros. É possível afirmar que a validade da teoria da história repousa na da teoria do valor trabalho, da mais-valia e da lei da queda tendencial da taxa de lucro como mecanismo de entrave das forças produ- tivas. A queda da taxa de lucro penaliza a classe capitalista, e mais geralmente corresponde à expressão da incapacidade da classe capitalista para impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas. Isso condiciona a projeção da sociedade futura como sociedade sem classes, ela mesma condição para a realização da antro- pologia marxiana, ou seja, a eclosão dos homens na realização de sua criatividade. É assim evidente que esse distanciamento em relação ao materialismo histórico se inscreve em uma abordagem mais ampla quanto ao pensamento de Marx.27 Para Cohen, a ideia de uma natureza humana produtiva – antropologia filo- sófica marxiana – seria inapropriada à tese segundo a qual a história equivale ao crescimento do poder produtivo humano – materialismo histórico. Igualmente, o livre desenvolvimento do indivíduo não corresponderia plenamente ao desenvolvi- mento completo preconizado por Marx, no sentido em que seria impossível desen- volver-se plenamente sob todos os aspectos. O desenvolvimento da humanidade, 27 Sobre a relação de Cohen com Marx, ver Tarrit (2013b). Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 84 04/08/2017 17:05:44 A transição do feudalismo ao capitalismo interpretada pelo marxismo analítico • 87 econômico” (Cohen, 1974, p.92, sublinhado por Cohen). O erro de Marx teria sido haver inferido, do enunciado segundo o qual as ideias são produzidas por pessoas cuja existência é material, a afirmação segundo a qual elas são produzidas pela situação material. Ele acrescenta que a antropologia filosófica marxiana “favorece um materia- lismo histórico restrito mais do que global” (Cohen, 1984, p.20), visto que não exclui a existência de uma produção espiritual autônoma em relação à estrutura econômica, e, portanto, não necessariamente dominada por ela. O materialismo histórico restrito seria insensível a essa contradição, visto que torna possível o desenvolvimento autônomo da criatividade humana. Cohen “utiliza a concepção marxista da natureza humana como uma arma contra o materialismo histórico global” (ibid.). Isso equivale a atribuir a Marx e a Engels uma atitude redutora no tocante à cultura e às instituições não econômicas. Com efeito, o Prefácio enuncia que “formas de consciência sociais determinadas” (Marx, 1859, p.4) correspondem a uma estrutura econômica. O materialismo histórico restrito visa levar em conta fenômenos tais como a religião ou o nacionalismo. É assim menos materialista do que sua versão original.31 Cohen considera esse movimento como uma resposta ao “desafio [que constitui] o enunciado por Max Weber da Reforma Protestante e suas consequências” (Cohen, 1984, p.11). Weber enuncia que um aspecto particular do desenvolvi- mento da religião, no caso, o desenvolvimento de uma moral incentivando um comportamento individualista, explica a emergência do capitalismo na Europa. Assim, razões econômicas não seriam as principais causas do desenvolvimento do protestantismo. Isto é contraditório com o materialismo histórico global, mas permanece coerente com o materialismo histórico restrito. Todavia, Cohen nuança tal posição rejeitando a afirmação weberiana segundo a qual o protestantismo tem consequências relativamente importantes sobre o desenvolvimento econômico. Apoiando-se nos trabalhos de H. M. Robertson (1933), ele sustenta, contra We- ber, que foi adaptando-se ao capitalismo que a religião protestante incentivou o espírito empresarial. Igualmente, nem todo ramo do protestantismo mantinha a mesma relação com o capitalismo, e mais geralmente, a propensão de diversas variantes do cristianismo para incentivar o capitalismo repousava em questões de circunstância. Conclusão A teoria marxiana da história suscitou um interesse particular no fim dos anos 1970 com a publicação de A teoria da História de Karl Marx: Uma defesa por Cohen, que impulsionou o desenvolvimento do marxismo analítico, cujos debates incidiram notadamente sobre a transição entre modos de produção, em particular 31 Tal evolução inscreve-se na aproximação de Cohen da filosofia política rawlsiana e pós-rawlsiana. Miolo_Rev_Critica_Marxista-45_(GRAFICA).indd 87 04/08/2017 17:05:44 88 • Crítica Marxista, n.45, p.63-91, 2017. entre o feudalismo e o capitalismo. Enquanto Cohen considera, num primeiro tempo, com a Tese da Primazia das forças produtivas, que as relações de produção se adaptam às forças produtivas e se modificam para permitir a continuação de seu desenvolvimento, e, portanto, que o feudalismo deu lugar ao capitalismo, pois as relações de produção capitalistas eram mais capazes de assegurar a função de desenvolvimento das forças produtivas, Robert Brenner estima que as relações de produção feudais não comportavam lógica interna que permitisse o desenvol- vimento das forças produtivas, e considera que a concorrência entre feudalismo e capitalismo foi o motor da mudança histórica. Roemer completa os debates com uma leitura individualista metodológica da história. Cohen posteriormente reduziu amplamente o alcance do materialismo histórico, tanto que, apesar de tentativas significativas, é agora impossível identificar uma teoria da transição do feudalismo ao capitalismo no seio do marxismo analítico, o que enfraquece sensivelmente essa corrente. Resta identificar o que, no seio do marxismo analítico, autoriza um progresso do conhecimento. Referências bibliográficas ALTHUSSER, Louis et al. Lire le Capital. 1.ed. [1975]. Paris: La Découverte, 1996. AMIN, Samir. Modes of production: history and unequal development. Science and Society, v.49, n.2, 1985, p.194-207. ANDERSON, W. H.; THOMPSON, Frank. W. Neoclassical marxism, Science and Society, v.52, n.2, verão 1988, p.215-228. BECKER, Uwe. From social scientific functionalism to open functional logic. Theory and Society, v.17, n.6, 1988, p.865-883. BENSAÏD, Daniel. Marx, l’intempestif. Paris: Fayard, 1995. BRAUDEL, Fernand. Écrits sur l’histoire. Paris: Flammarion, 1969. BRENNER, Robert. 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