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Enigma do Taylorismo e a Teoria do Valor em Marx: Um Debate Contemporâneo, Slides de Economia Política

MarxismoTeoria do ValorEconomia Política

Augusto discute a relação entre o taylorismo e a teoria do valor de marx, enfatizando a dificuldade de situar o taylorismo na sequência de formas de trabalho expostas por marx em capital. O texto também aborda a polarição causada por engels e sraffa, que levou a uma rejeição da teoria do valor de marx e a uma nova estratégia para afastá-la do ensino oficial. Além disso, o autor examina a questão da redundância da teoria do valor trabalho e a importância de entender a mudança na forma de ataque à teoria.

O que você vai aprender

  • Qual é a relação entre o taylorismo e a teoria do valor de Marx?
  • Como Marx aborda a questão da redundância da teoria do valor trabalho?
  • Qual é a importância de entender a polarição causada por Engels e Sraffa no contexto da teoria do valor de Marx?
  • Qual é a importância da forma de ataque à teoria do valor trabalho mudar?
  • Por que houve uma rejeição da teoria do valor de Marx e como isso afetou a economia marxista?

Tipologia: Slides

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Pamela87
Pamela87 🇧🇷

4.5

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Baixe Enigma do Taylorismo e a Teoria do Valor em Marx: Um Debate Contemporâneo e outras Slides em PDF para Economia Política, somente na Docsity! REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 2013 .49 Ainda sobre taylorismo, capitalismo e Marx Benedito Moraes Neto* Resumo Em sequência, este número da Revista da SEP publica o artigo de Moraes Neto que responde aos renovados argumentos de André G. Augusto, apresentados no artigo imediatamente anterior a este. Ele reafirma mais uma vez que, para ele, o taylorismo é simplesmente uma reinvenção da manufatura. Em consequência, o debate é encerrado, mas a questão central permanece aberta já que André G. Augusto – e nisto ele é acompanhado pelo grosso da literatura – acolhe a tese de que o taylorismo encaixa-se melhor naquilo que Marx chamou de grande indústria. Palavras chaves: taylorismo; processo de trabalho; manufatura; grande indústria; subsunção do trabalho ao capital; trabalho assalariado. Classificação JEL: B51; J50 Introdução Logo no início de sua tréplica, Augusto coloca um aspecto fundamental, por ele denominado de “‘enigma’ do taylorismo”, consistente na “dificuldade de situar o taylorismo na sequencia de formas do processo de trabalho expostas por Marx em O Capital.” (AUGUSTO, 2013, p.27-28) Sempre procurei achar, nos autores lidos, a solução para esse “enigma”, que para eles nem sequer se colocava como tal. Em trabalhos anteriores, discuti criticamente sobre as “soluções” de Aglietta (MORAES NETO,1989), Coriat (MORAES NETO, 1989 e 2008), Palloix (MORAES NETO,1989) e Braverman (MORAES NETO,1995), procurando sempre reforçar minha impressão de que o taylorismo (ou o taylorismo-fordismo) * Professor Adjunto (Livre-Docente) aposentado do Departamento de Economia da UNESP (Araraquara). REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 201350. se caracteriza como uma “reinvenção da manufatura”, ou seja, um processo de trabalho que guarda características muito mais próximas da manufatura do que da maquinaria. Como Augusto abre seu novo texto com a questão fundamental da busca do locus histórico-teórico do taylorismo, seria de se esperar que ela conduzisse toda sua reflexão. Como isto infelizmente não acontece, tentarei mais à frente achar uma possível resposta a partir de seus argumentos, para então colocá-la em debate. Taylorismo e manufatura Augusto reabre logo em seguida a discussão sobre o caráter do trabalho sob a manufatura, travada nos dois textos anteriores. Afirma agora que não compreendi corretamente a natureza da analogia que realizara entre grande indústria e taylorismo, que para mim parecera centrada no fato de que ambas se fundam sobre o trabalho desqualificado. Afirma inclusive que, em seu artigo, em momento algum utilizou a determinação de qualificado/desqualificado para caracterizar o trabalho. Todavia, abre uma brecha ao dizer que “tal distinção estaria implícita na diferenciação que faço entre a manufatura e o taylorismo” (AUGUSTO, 2013, p.28). Na verdade, não está tão implícita assim, como se pode deduzir pelas considerações abaixo extraídas do primeiro artigo de Augusto, pois, ainda que ele não use os termos trabalho qualificado/desqualificado, usa amplamente os sentidos que se deve dar aos mesmos: (...) a manufatura surge a partir de uma mudança na força de trabalho, na transformação do trabalhador em trabalhador especializado. A base artesanal, no entanto, permanece na manufatura. É característico da manufatura que o trabalhador especializado ainda seja um trabalhador de ofício, que detém o controle – mesmo que parcial – do processo de trabalho, um processo que ainda depende de sua habilidade adquirida em um processo de formação mais ou menos longo de acordo com a complexidade das operações exigidas pela especialização do trabalhador. Assim, na manufatura, o processo de trabalho ainda se fundamenta na ‘habilidade profissional do artesão’(Marx). (AUGUSTO, 2011, p. 8-9) “A manufatura, conforme observado anteriormente, tem como base técnica o ofício, a habilidade profissional do artesão. (...) ao eliminar o REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 2013 .53 Para Augusto, portanto, o fato de trabalhadores (na verdade a grande maioria deles) efetuarem trabalhos parciais desprovidos de conteúdo sob o jugo do capital não cria nenhuma especificidade relevante. Nada muda em relação à cooperação simples, na qual, dentre as diferentes tarefas parciais, algumas altamente complexas, os trabalhadores também efetuavam algumas tarefas bastante simples. Tudo continuaria igual, sendo tudo igualmente artesanal, com total controle do processo de trabalho por parte dos trabalhadores. Vejamos, todavia, algumas citações que esclarecem porque, ao invés de equivalência, a manufatura representou um revolucionamento na organização do trabalho em relação à cooperação simples, bem como a natureza desse revolucionamento: Sendo o produto parcial de cada trabalhador parcial apenas um degrau particular no desenvolvimento do mesmo artigo, cada trabalhador ou grupo de trabalhadores fornece ao outro sua matéria-prima. O resultado do trabalho de um constitui o ponto de partida para o trabalho do outro. Um trabalhador ocupa, portanto, diretamente o outro. O tempo de trabalho necessário para alcançar o efeito útil ambicionado em cada processo parcial é fixado de acordo com a experiência e o mecanismo global da manufatura baseia-se no pressuposto de que em dado tempo de trabalho um resultado dado é obtido. Somente sob esse pressuposto os diferentes processos de trabalho, que se complementam mutuamente, podem prosseguir espacialmente lado a lado, simultaneamente e sem interrupção. É claro que essa dependência direta dos trabalhos entre si obriga cada indivíduo a empregar só o tempo necessário à sua função, produzindo-se assim uma continuidade, uniformidade, regularidade, ordenamento e nomeadamente também intensidade de trabalho totalmente diferentes das vigentes no ofício independente ou mesmo na cooperação simples. Que se aplique a uma mercadoria apenas o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, aparece na produção mercantil em geral como compulsão externa da concorrência, porque, expresso superficialmente, cada produtor individual tem de vender a mercadoria pelo seu preço de mercado. O fornecimento de dado quantum de produtos num tempo de trabalho determinado torna-se, na manufatura, lei técnica do próprio processo de produção. (MARX, 1983, p.273) A unilateralidade e mesmo imperfeição do trabalhador parcial tornam-se sua perfeição como membro do trabalhador coletivo. (por exemplo, REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 201354. desenvolvimento unilateral dos músculos, deformação dos ossos, etc.) O hábito de exercer uma função unilateral transforma-o em seu órgão natural e de atuação segura, enquanto a conexão do mecanismo global o obriga a operar com regularidade de um componente de máquina. (grifos meus) (MARX, 1983, p.276) Certa deformação física e espiritual é inseparável mesmo da divisão do trabalho em geral na sociedade. Mas como o período manufatureiro leva muito mais longe essa divisão social dos ramos de trabalho e, por outro lado, apenas com sua divisão peculiar alcança o indivíduo em suas raízes vitais, é ele o primeiro a fornecer o material e dar o impulso para a patologia industrial. (grifo meu) (MARX, 1983, p.285) É muito difícil, portanto, imaginar que os trabalhadores-parciais- desqualificados da manufatura capitalista tivessem o controle sobre o processo de trabalho imaginado por Augusto. Como mencionamos no artigo-réplica, um grau significativo de controle pode ser atribuído aos “artífices da manufatura”, aqueles que desempenhavam as tarefas mais complexas, responsáveis exclusivos pela insubordinação dos trabalhadores manufatureiros. Para estes, faz sentido colocar que ainda permaneceria um forte caráter artesanal em seu trabalho, sendo que, em menor número, possuíam grande importância para o processo produtivo. Como já afirmei acima, minha analogia entre manufatura e taylorismo (especialmente taylorismo-fordismo) está centrada na grande maioria dos trabalhadores manufatureiros, os “peões”. Na verdade, tenho grande dificuldade em diferenciar essencialmente o trabalho de um “peão” da manufatura, o “autômato vivo” de Dugald Stewart, do trabalho de um operário sujeito às normas tayloristas. Augusto contorna essa dificuldade desconsiderando a natureza específica do trabalho manufatureiro desqualificado, pois, para ele, todas as funções na manufatura, sejam simples ou complexas, são igualmente impregnadas de caráter artesanal. A diferenciação entre manufatura e taylorismo terá, então, que ter essa equivocada consideração como ponto de partida: Meu ponto é que no taylorismo a execução já não é mais artesanal. Isso independe do trabalho ser ou não mais ou menos simples, mais ou menos qualificado. Trata-se aqui de uma diferença no princípio organizador REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 2013 .55 da produção, que já não é mais o fundamento técnico empírico, mas sim o científico. (AUGUSTO, 2013, p. 30) A correta afirmação do caráter empírico da produção manufatureira se alicerça, para Augusto, no fato de que esta preserva seu caráter artesanal. Em momento anterior, já deixei claro que considero a natureza imanentemente empírica da manufatura como advinda do fato de que ela se fundamenta no trabalho manual (manufatureiro, em sua maior medida muito distanciado do trabalho artesanal). (MORAES NETO, 1989, p.25-26) Isto permite uma ilação fundamental: desde que o processo de trabalho mantenha sua característica fundamental de trabalho manual, ele será forçosamente empírico. Somente a substituição do trabalho manual pela maquinaria permitirá que o processo produtivo se torne cientificizado. Os próximos passos do debate com Augusto terão que aprofundar esse ponto. Vejamos em primeiro lugar a questão da cientificidade do taylorismo em seus primeiros passos, centrados, como se sabe, na produção industrial. A natureza conceitual do taylorismo estará já estabelecida nesse seu momento inicial, através da prática e das reflexões de Taylor. Para esclarecer este ponto, sigamos Coriat, que, após considerar que o obstáculo a ser removido pelo taylorismo implicava em “expropriar os operários do saber” (CORIAT, 1985, p.90), esclarece que este plano se decompõe nas seguintes fases: 1ª fase: É necessário, em primeiro lugar, reduzir o saber operário, complexo1, aos seus elementos simples e assim proceder a uma espécie de tábua rasa do saber técnico. Esta decomposição realiza-se por meio da medição dos gestos e dos tempos. É a introdução do cronômetro na oficina que vai permitir praticamente realizar este objetivo. ‘A cada gesto corresponde um tempo’, tal a consigna dada aos cronometristas. 2ª fase: Uma vez todos estes gestos fragmentados, este saber em ‘migalhas’ é sistematicamente selecionado e classificado. 3ª fase: Para cada operação apenas se retém ‘the one best way’, ‘a melhor maneira’, a qual consiste numa combinação, e numa só, dos elementos recolhidos. O modo operatório é assim transmitido diariamente aos operários com os tempos requeridos para cada elemento simples. (CORIAT, 1985, p. 90-91) REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 201358. bastante claro nos primeiros momentos da linha de montagem fordista, também a partir de considerações de Henry Ford. (FORD, p.78- 79) Aliás, para a correta compreensão conceitual do taylorismo e do fordismo, Taylor e Ford são as melhores referências. Como conclusão, vale lembrar a noção que se extraiu a partir do caso da manufatura: sempre que o trabalho humano constitua o elemento fundamental da produção, esta terá caráter forçosamente empírico. A cientificização do processo produtivo somente acontece quando se substitui o homem pela máquina, quando, para usar frase famosa de Marx, o processo de produção se transforma numa “aplicação tecnológica da ciência”. Esta questão será tratada novamente mais à frente, em função das colocações adicionais de Augusto a respeito de taylorismo e ciência. Taylorismo e grande indústria Logo no início de seu novo texto, Augusto afirma que “a réplica de Moraes Neto é esclarecedora por apresentar pontos de convergência, e permite o esclarecimento de alguns pontos da tese por mim defendida no artigo original.” (AUGUSTO, 2013, p. 28) (grifo meu) A meu juízo, o ponto de convergência crucial é que Augusto “parte do suposto de que existe uma diferenciação fundamental entre maquinaria e taylorismo- fordismo, coisa que procurei esclarecer em vários escritos.” (MORAES NETO, 2012, p.86). Esta convergência fundamental se reforça no novo texto, ainda que, infelizmente, não consiga ganhar clareza: O que afirmo é que o taylorismo se encontra em continuidade com a grande indústria, e, portanto, não apago a revolução industrial. Defendo que o taylorismo procede da mesma forma que a grande indústria ao eliminar a dependência do ‘modo artesanal de execução do trabalho’ pela aplicação da ciência, ainda que por meios técnicos diferentes. (AUGUSTO, 2013, p. 31) Pode-se mais uma vez notar que, ainda que Augusto enxergue muitos equívocos em meus trabalhos sobre o tema, uma coisa parece lhe ter ficado dessas leituras: a consideração de uma diferença essencial entre taylorismo e maquinaria, coisa inteiramente ausente da literatura REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 2013 .59 fundamental sobre o tema. Como considera os dois processos diferentes entre si, um baseado no uso do ser humano como instrumento de produção, e o outro baseado na aplicação das forças da natureza (ainda que esta diferença essencial não seja deixada muito clara pelo autor, ela é feita e aparecerá num momento a ser explicitado mais à frente), Augusto não precisa fazer a estranha busca de Coriat por “sobras” de trabalho humano na produção sob a maquinaria, para então entrar com a necessidade do taylorismo (CORIAT, 1982 e MORAES NETO, 2008), nem estabelecer a estranha “teoria do cozido” de Braverman, que joga tudo (máquinas e homens) no “caldeirão” da produção capitalista “maquino-taylorizada” (BRAVERMAN, 1977). Com esta abordagem convergente com minhas observações, Augusto enfrenta então o “enigma do taylorismo”. Todavia, como a citação acima explicita, seu enfrentamento é bastante obscuro. Inicialmente, considera taylorismo como algo que vem “em continuidade com a grande indústria”. Logo em seguida, considera que taylorismo e grande indústria são tecnicamente diferentes. Ora, continuidade e diferença não são noções facilmente compatíveis. Vejamos mais algumas citações para buscar maiores esclarecimentos: Um último ponto a ser esclarecido se refere às relações entre o taylorismo e o uso da ciência no processo de trabalho. Na verdade, esse é o ponto fundamental da defesa que faço da continuidade entre taylorismo e a aplicação da maquinaria na grande indústria. (AUGUSTO, 2013, p. 37) (...) o taylorismo é uma aplicação do conhecimento científico ao processo de trabalho, e, portanto, parte do mesmo princípio geral de organização geral de organização da produção que a aplicação da maquinaria. (AUGUSTO, 2013, p. 37) A discussão sobre continuidade/diferença entre taylorismo e grande indústria será feita levando em conta três pontos: Primeiro: A proposta de continuidade Augusto não explicita em nenhum momento de seu texto como se pode entender a “continuidade” grande indústria- taylorismo de um REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 201360. ponto de vista histórico-conceitual. Isto a despeito do fato de que seria um aspecto fundamental do desvendamento daquilo que denomina “enigma do taylorismo”. Afinal, se em Marx observamos o desenvolvimento histórico-conceitual cooperação simples – manufatura – maquinaria, de onde viria o taylorismo (visto como diferente da maquinaria) como “continuidade”? A única alternativa seria caminhar junto comigo, afirmando que, num momento mais avançado do capitalismo (na virada do século XIX para o século XX no caso de Taylor, e no início do século XX no caso de Ford), o capital se defronta novamente com sua dependência frente à especial habilidade do trabalho vivo (fato determinado setorialmente), e, dada a impossibilidade técnica de superá- la pela via clássica, através da introdução da máquina, procura fazê-lo pela tentativa de objetivar o elemento subjetivo do processo de trabalho, pela tentativa de transformar o homem em máquina. Ainda que Augusto não assuma esse desdobramento da “convergência fundamental”, não vejo outra alternativa para ele, pois todas as outras tentativas de entendimento da relação histórico-conceitual entre grande indústria e taylorismo são feitas introduzindo no raciocínio um grande complicador, qual seja, a não visualização da diferença entre maquinaria e taylorismo. Segundo: Ciência, maquinaria e taylorismo Um ponto deixado extremamente claro por Augusto em seus textos é a analogia para ele existente entre grande indústria e taylorismo: ambos se fundamentam na aplicação da ciência ao processo produtivo. A diferença está em que, no primeiro caso, a ciência da natureza se objetiva nos elementos materiais do processo de trabalho, enquanto no segundo caso a ciência se acha aplicada ao elemento subjetivo desse processo, ou seja, o trabalho humano Essa diferenciação já fora enfatizada no primeiro artigo: (...) pode-se afirmar que há uma continuidade fundamental entre a grande indústria e o taylorismo. O taylorismo também parte do princípio da tecnologia, da aplicação consciente da ciência ao processo de trabalho; no entanto, o seu objeto é a força de trabalho e não os meios de produção. (AUGUSTO, 2011, p.20) REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 2013 .63 caracteriza essencialmente pela manutenção do ser humano como o instrumento de produção por excelência, que outra ciência poderia ter sido aplicada que não uma ciência do homem? De qualquer forma, para Augusto, a ciência do homem passa a ser utilizada efetivamente a partir da “crise do processo de trabalho”, aparentemente como desdobramento da mesma. Deixando de lado o fato de que essa crise se instalou nos países de capitalismo desenvolvido da Europa e nos Estados Unidos, enquanto que os elementos “científicos” foram aplicados no mesmo momento histórico em grande medida no Japão, cuja crise era de natureza totalmente diversa, vale observar até que ponto conseguem ilustrar a “cientificidade manipulatória”. Vejamos alguns momentos da ilustração de Augusto, bastante informados pela experiência do neo-taylorismo ohnoísta (ou toyotista): (...) a dimensão conflituosa sempre presente no processo de trabalho é manipulada, por um lado, pelo acirramento da competição no interior dos grupos de trabalho e entre estes, bem como por meio da cooptação dos sindicatos como participantes da gerência. (AUGUSTO, 2013, p. 39) (...) os estudos de psicologia motivacional de Albert Maslow aparecem nos manuais de motivação das empresas, como no caso da Toyota do Brasil. (AUGUSTO, 2013, p. 39) Também é considerada ilustrativa a transformação dos empregados em “colaboradores”, típica da experiência organizacional japonesa. (AUGUSTO, 2012, p. 13). Na primeira citação, vale inicialmente perguntar por que Augusto considera de natureza genérica a “dimensão conflituosa no processo de trabalho”. Tratar-se-ia de algo ahistórico, inteiramente descolado da natureza capitalista do processo produtivo? Ora, esta manipulação via “acirramento da competição” só pode ser entendida historicamente, pois ademais de exigir a forma social capitalista para fazer pleno sentido, também exige uma natureza particular da relação capital-trabalho. Num contexto de organização mais desenvolvida da classe trabalhadora, essa armadilha manipulatória perderia sua força. Para o caso da ação sindical, custa crer que Augusto considere este ponto como ilustração de cientificidade. A “cooptação dos sindicatos como participantes da gerência” surgiu no Japão no imediato REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 201364. pós-guerra como resposta específica do capital ao acirramento da luta capital-trabalho. É tão elevado o grau de especificidade histórica dessa “amarração” sindicato-empresa – que parte da existência exclusiva dos sindicatos por empresa, e se sofistica ao fazer com que a subida de alguém na hierarquia sindical tenha grande efeito na ascensão deste alguém na hierarquia da própria empresa – que ela ficou restrita ao caso japonês. Esta “amarração” caracteriza um momento particular de um processo mais geral, qual seja, o de busca de superação da oposição capital- trabalho, o que confere pleno sentido à idéia de que os trabalhadores assalariados não são na verdade empregados, mas sim “colaboradores”. Essa busca teve que estar sempre chancelada objetivamente, através do emprego vitalício e da senioridade como aspecto determinante da ascensão hierárquica. Toda vez que se tentou aplicar os preceitos da administração ohnoísta/toyotista a outros contextos histórico-sociais, o resultado não foi feliz, pelo menos em comparação com os obtidos no Japão. Até mesmo ali a natureza histórico-social dos preceitos organizacionais ohnoístas cobrou sua conta, pois, à medida que a sociedade se desenvolvia, e se sofisticava a formação educacional das camadas mais jovens da população, os poderes manipulatórios/ motivacionais foram perdendo sua intensidade. Terceiro: Maquinaria, taylorismo e emancipação humana Este novo texto apresenta como inovação mais importante a ênfase em um aspecto fundamental, incitado por considerações feitas em minha réplica: trata-se de definir se o taylorismo seria imanentemente atrasado, como postulo, ou se teria um uso potencialmente emancipatório, como quer Augusto. Esta sua posição é inteiramente coerente com sua visão do taylorismo como uma forma particular de transformação do processo produtivo “numa aplicação tecnológica da ciência” e com o lastro marxista de sua análise. Ou seja, tudo que Marx enxergava na maquinaria Augusto tem que forçosamente enxergar também no taylorismo. Seu movimento teórico não é trivial, pois, se por um lado diferencia taylorismo de maquinaria, por outro os identifica, pois ambos acabariam por se ajustar inteiramente às observações de Marx sobre REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 2013 .65 o caráter potencialmente progressista da incorporação da ciência ao processo de produção. Uma questão inicial sobre esse ponto é: como entender o caráter potencialmente emancipatório da máquina? A impressão que dá é que para Augusto (e não só para ele, é verdade), haveria a necessidade de se inventar uma “máquina não-capitalista”, desprovida da interferência malévola do capital sobre sua natureza. Assim se entenderia sua crítica à minha propositura de um “fim da história” para o caso da máquina, ou seja, de que a produção à base de maquinaria é conquista eterna da humanidade. Para Augusto, o fato de Marx colocar o aspecto desde logo evidente de que a máquina é incorporada a serviço do capital a impregnaria de “ciência manipulatória”, ainda que seja difícil entender o significado disto aqui. Como para Augusto a máquina é então historicamente condicionada, a superação do capitalismo teria que nos trazer outra máquina. Esta incorporação da “crítica às forças produtivas capitalistas” se dá, pelo menos, sem a usual ilustração do caráter imanentemente capitalista das forças produtivas capitalistas através do taylorismo-fordismo, bastante comum na literatura. A aceitação de uma diferença essencial entre maquinaria e taylorismo impede Augusto de ir por este caminho. Ele tem então que considerar que existe capitalismo dentro da máquina colocada a serviço do capital, coisa muito difícil de ilustrar. Como enxergar imanência capitalista num tear sem lançadeira, num torno de controle numérico computadorizado, num sistema flexível de manufatura, numa linha de montagem robotizada, num processo produtivo em fluxo contínuo inteiramente automatizado? Ora, se é assim para Augusto, ele não pode considerar ao mesmo tempo a existência de um caráter potencialmente emancipatório nesta máquina. Ao fazê-lo, Augusto teria forçosamente que aceitar que a máquina, tal como desenvolvida dentro do modo de produção capitalista, permitiria um uso emancipatório em outro modo de produção. Teria, portanto, ainda que a contragosto, que considerar que, ao ir-se embora o capital, ficariam as máquinas, ou seja, ficaria (e se eternizaria) a produção enquanto “aplicação tecnológica da ciência”. Se houver necessidade de outra ciência e de outras máquinas, então o caráter potencialmente emancipatório da máquina posta a serviço do capital, e, portanto, a própria natureza autocontraditória deste, se esvai.3 (3). REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 201368. Abstract In sequence, this issue of Journal of SEP publishes Moraes Neto’s paper that responds to the renewed arguments of Andrew G. Augustus, presented in the paper immediately preceding this one. Moraes Neto reaffirms once again that, for him, Taylorism is simply a reinvention of manufacturing. Consequently, the debate is over but the main question remains open because André G. Augusto – and here he is accompanied by the mainstream literature – follows the thesis that Taylorism fits better in what Marx called the modern industry. Keywords: Taylorism, labor process, manufacturing, modern industry; subsumption of labor to capital, wage labor. Referências AUGUSTO, André G. – Forças produtivas capitalistas: seria o taylorismo uma anomalia? In: Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 29, 2011. _________________ – Taylorismo e forças produtivas. Os muitos nomes do trabalho. Revista da SEP, 2012, nº 35, p. 27-48 BRAVERMAN, H. – Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. CORIAT, B. – El taller y el cronómetro: Ensayo sobre el taylorismo, el fordismo y la producción en massa. México: Siglo Veintiuno Editores, 1982. __________ – O taylorismo e a expropriação do saber operário. In: Sociologia do Trabalho: Organização do Trabalho Industrial. Lisboa: A Regra do Jogo Edições, 1985. FORD, H. – Minha vida e minha obra. Rio de Janeiro - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1926. MORAES NETO, B. – Marx, Taylor, Ford: as forças produtivas em discussão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. _________________– Automação e trabalho: Marx igual a Adam Smith? In: In: Estudos Econômicos, vol. 25, n.1, 1995. _________________– As forças produtivas em Marx e o surpreendente século REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 2013 .69 XX. In: Revista de Economia, Universidade Federal do Paraná, vol. 34, número especial, 2008. _________________– Processo de trabalho e eficiência produtiva: Smith, Marx, Talor e Lênin. In: Estudos Econômicos, vol.39, n.3, 2009. _________________– The Topicality of Smithian Manufacturing: Reflections based on the Foxconn case. 30th International Labour Process Conference, Stockholm University, 27-29 March 2012. TAYLOR, F.W. – Princípios de Administração Científica. São Paulo, Editora Atlas, 1982. Notas: 1 Deve-se relativizar essa complexidade do trabalho a ser “taylorizado”, pois atividades de trabalho realmente complexas, como é o caso da tornearia mecânica efetuada com máquinas-ferramenta universais, jamais foram passíveis de “taylorização”. Por isso devem ser vistas com cuidado as referências à “taylorização” da atividade educacional feitas por Augusto (AUGUSTO, 2013, p. 37). Recentemente fui informado de que os mais importantes estabelecimentos de ensino privado (alguns de caráter nitidamente capitalista) de ensino médio e de “cursinho” competem intensamente pelos melhores professores, oferecendo elevada remuneração. E não existe nada mais “taylorizada” do que esta atividade educacional, que de qualquer modo não consegue o objetivo maior de Taylor nesse caso, que seria o de tirar todo o possível trabalho cerebral da sala de aula. 2 Vejamos como Taylor também é esclarecedor sobre esse ponto: “A filosofia da administração por iniciativa e incentivo obriga cada trabalhador a suportar quase toda a responsabilidade, quer no plano geral, quer de cada detalhe do seu trabalho e, em muitos casos, também a escolha de suas ferramentas. Além disso, ele deve fazer todo o trabalho físico. O desenvolvimento duma ciência, por outro lado, envolve a fixação de muitas normas, leis e fórmulas, que substituem a orientação pessoal empírica do trabalhador e que somente podem ser realmente usadas depois de terem sido sistematicamente verificadas, registradas, etc. O uso prático dos dados científicos requer uma sala em que são guardados os livros, notações de rendimentos máximos, etc., e uma mesa para o planejador das tarefas.” (TAYLOR, 1982, p.50) 3 As citações de Marx feitas por Augusto no sentido de ilustrar a noção de que, para aquele autor, “a maquinaria por si só não liberta o homem do papel de instrumento de produção” (AUGUSTO, 2013, p.41) podem levar à ideia da eternização da apendicização, a qual jogaria contra a noção marxiana fundamental da natureza autocontraditória do capital ao desenvolver as forças produtivas. (MORAES NETO, 2004) REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 49-70, junho 201370. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 2013 .73 (Schumpeter, 1934). A economia industrial da inovação reconsiderou essa tipologia e operou novas distinções entre, dessa vez, inovação-produto e inovação-processo, de um lado, e, de outro lado, entre inovação maior (radical) e inovação menor (incremental). Essas tipologias permitem mostrar que as diferentes formas de inovação causam impactos diferenciados sobre o ritmo das mudanças na indústria em geral, e sobre a dinâmica econômica global. A distinção entre inovação-produto e inovação-processo permite evidenciar as dinâmicas setoriais que condicionam os ciclos de vida dos produtos nas diferentes indústrias1. Enquanto isso, a distinção entre inovação maior e inovação menor permite completar a análise das flutuações de longo prazo, aquelas que são subjacentes à evolução macroeconômica. A inovação é um fenômeno de múltiplas dimensões que caracterizam tanto o resultado incerto de decisões empresariais atípicas, quanto a expressão e o escopo de aplicação de novas descobertas ou invenções. O resultado comercial da inovação determina os fundamentos microeconômicos, que são precisamente o produto e o método de produção. No caso da inovação-produto, que é diretamente visível para o consumidor, a empresa inovadora busca difundir rapidamente seu novo bem ou serviço a fim de auferir lucros de monopólio relativo, cuja importância é necessariamente proporcional à dimensão inovadora. Essa dimensão determina o prazo que separa o momento da introdução do novo produto daquele da sua imitação por concorrentes potenciais. Durante esse intervalo de reação, a firma inovadora que visa preservar sua superioridade tecnológica deve dedicar parte de seus lucros à despesa em pesquisa, na perspectiva de desenvolver novas gerações do produto em questão, incluir nele novos opcionais e reforçar o poder de enfrentar eventuais imitações. Esse processo de inovação contínua contribui a melhorar de forma regular a qualidade dos produtos e a aumentar a diversificação da oferta, ao mesmo tempo em que constitui uma barreira à entrada de novos produtores, uma barreira nunca totalmente dissuasiva. Assim, a inovação como instrumento de garantir temporariamente a posição de monopólio sugere novas oportunidades de competição potencial, ao mesmo tempo em que amplia os espaços de valorização capitalista. A empresa não pode evitar facilmente a tendência de queda dos preços de seus produtos em um mercado concorrencial, a menos REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 201374. que crie regularmente novos produtos e preveja a sua introdução no mercado toda vez que sente a ameaça de entrada de concorrentes. A generalização desse comportamento de concorrência concentrada alimenta o processo de inovação-produto. Nessas condições, é possível aparecer uma racionalidade do consumidor que consistiria em adiar as decisões de compra no objetivo de minimizar o processo iminente de obsolescência acelerada do bem adquirido, ou na perspectiva de uma elevação futura da qualidade do produto desejado, ou, ainda, na esperança de uma queda dos preços, devido à desqualificação da oferta corrente. O mercado de informática é um exemplo patente em que os adiamentos de demanda e a antecipação de oferta de equipamentos e softs mais performantes e mais baratos são muito freqüentes. Devido a essas mudanças imprevisíveis, o mercado pode cair numa espécie de “armadilha da inovação”. A demanda estagna em razão da multiplicação das inovações, para se expandir em seguida, a partir do momento em que os consumidores percebem que a relação qualidade/preço atinge um patamar psicológico interessante, ou quando pressentem que as inovações futuras não irão trazer mais do que melhorias marginais. Esse comportamento do consumidor, justificado pela antecipação de uma aceleração no ritmo da inovação tecnológica, é sinônimo de mais incerteza na evolução da demanda, o que torna difícil qualquer previsão segura da conjuntura. Se o ritmo da introdução de novas tecnologias é próprio a cada setor econômico, então a sua aceleração não seria necessariamente capaz de afetar o conjunto da economia e exercer, consequentemente, impacto significativo sobre a demanda global, mesmo que as demandas setoriais estejam afetadas. Contrariamente à inovação-produto, a inovação-processo é bem menos visível, tanto para o consumidor, quanto para a firma concorrente: característica esta que limita sobremaneira o processo da sua difusão. Em geral, a inovação-produto implica também inovação-processo (Kraft, 1987), enquanto que a introdução de uma nova forma de produzir não supõe geração de novo produto, mas somente contribui a melhorar a produção de produtos pré-existentes e/ou a reduzir o custo de sua produção. Neste caso, também, parte do resultante lucro adicional é utilizada para despesas de P&D específicas à firma, de modo a defender e manter os benefícios que derivam da superioridade tecnológica. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 2013 .75 O lucro aparece como o condutor da melhoria nas performances da empresa, particularmente em um contexto de competição capitalista, o qual se traduz sempre por restrições de preço e de eficácia: uma dupla restrição que a inovação-processo permite conciliar, ao aumentar a performance produtiva e reduzir o preço do produto. Porém, aumentar a produtividade implica custos adicionais de investimento e requere tempo de amortizações. Apesar da sua natureza aleatória, o investimento em tecnologia deve então resultar na melhoria do desempenho produtivo, senão a firma inovadora pode se ver fadada ao fracasso2. Essa restrição se impõe a todas as firmas e induz uma aceleração do ritmo de inovações tecnológicas. A partir do momento em que uma ou outra empresa se empenhe a garantir supremacia via inovações, os concorrentes também devem assumir importantes despesas de P&D para acompanhar as mutações, mesmo que não tenham tempo suficiente para amortizar essas despesas, em razão do surgimento contínuo de novas inovações que vêem sempre desqualificar produtos e meios de produção existentes.3 Porém, como os programas de pesquisa podem cair rapidamente na obsolescência e os campos de inovação se deslocar constantemente, a atitude empresarial de adiar as decisões de investimento pode se revelar, como no caso do consumidor que adia suas compras, uma solução igualmente racional, o que pode gerar atraso tecnológico e recessão econômica. As inovações perturbam os ritmos da evolução da demanda e do investimento nos mercados. Situações específicas podem ser distinguidas entre os mercados saturados e os mercados em expansão. Em um mercado em crescimento, cada firma pode aumentar suas vendas sem diminuir o market share do concorrente, em razão da ampliação do mercado. O confronto entre as firmas não é direto, pois o consumidor conquistado por uma firma não representa necessariamente uma perda por outra firma, mas somente um ganho a menos. Em um mercado estagnado ou recessivo, ao contrario, uma firma aumenta sempre sua parte do mercado em detrimento dos concorrentes. Um consumidor ganho por uma firma é um consumidor perdido por outra. O confronto é direto e passa pela inovação. A concorrência exacerba a competição e se reflete no comportamento inovador das firmas. Ao mesmo tempo, como vimos anteriormente, a aceleração das inovações pode ter efeito recessivo ao gerar comportamentos de adiamento de demandas, tanto do REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 201378. setoriais passam por evoluções tecnológicas especificas, vinculadas à sucessão de inovações maiores no tempo. Uma vez que se esgota o fluxo de inovações menores desencadeadas pela inovação maior, a empresa é levada a explorar uma outra inovação maior que possa gerar- lhe nova demanda e relançar o ritmo de suas atividades sob uma nova base tecnológica, provocando um novo ciclo setorial de expansão. O advento de novos ciclos setoriais, assim como o das inovações maiores, não ocorre de forma conjunta em todas as atividades da economia como todo. Portanto, a cada momento há empresas que crescem e criam novos empregos, enquanto outras se contraem e suprimem postos de trabalho. É precisamente essa falta de sincronia que coloca em questão a noção de ciclo longo da economia. A idéia da existência de ciclos longos na atividade econômica capitalista, iniciada pelos trabalhos fundadores de Kondratieff, consolidou-se no período do crescimento sustentado do pós Segunda Guerra Mundial. Estimava-se naquele contexto que o controle da conjuntura econômica estivesse razoavelmente assegurado pela intervenção do Estado, através de políticas macroeconômicas adequadas, ao passo que as flutuações de longo prazo se encontrassem fora do alcance dos poderes públicos. Todavia, como o desempenho econômico corrente não fica imune às mudanças econômicas longas, urgia produzir um conhecimento teórico dos ciclos econômicos, no intuito de poder antecipá-los e regulá-los. Mais tarde, depois da crise do regime fordista de acumulação, a recrudescência da dificuldade em prever as mutações tecnológicas e a internacionalização crescente das economias veio colocar sérias dúvidas nas pretensões das políticas governamentais em monitorar a conjuntura macroeconômica, tornando menos pertinente o conceito de ciclo macroeconômico longo. Numa perspectiva histórica, pode-se observar que a economia mundial como todo cresceu ao longo do século XX a uma taxa média anual abaixo de 2%, enquanto economias nacionais como a do Brasil e dos Estados-Unidos registraram taxas médias acima de 3% e, em outros países também as flutuações em volta da taxa média mundial foram importantes e díspares. Essas diferenças se explicam necessariamente pelas situações contrastantes das economias nacionais, segundo características espaciais, históricas, institucionais e sociais, REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 2013 .79 marcadas pela incerteza irredutível dos adventos e pela evolução incessante das formas culturais que não deixam jamais de afetar os fenômenos econômicos. Se a realidade das flutuações econômicas é um fato incontestável, nada pode sustentar que se devam necessária e exclusivamente à ação endógena de uma dinâmica cíclica inerente ao campo dos ajustamentos econômicos5. As flutuações remetem a irregularidades fundamentalmente imprevisíveis da conjuntura e são, evidentemente, marcadas pela alternância de movimentos de alta e de baixa nas diferentes variáveis econômicas. O surgimento de inovações e os processos associados de difusão no espaço industrial exercem certamente um papel determinante nas oscilações experimentadas de crescimento econômico. Porém, a noção de ciclo é excessivamente constrangedora e, por isso, não tem poder para conjeturar uma ideia de periodicidade ou de recorrência de movimentos oscilatórios; pois, as flutuações econômicas não se reproduzem com períodos e amplitudes regulares. Embora representem uma realidade transformadora, os ritmos de crescimento caracterizam bem mais os múltiplos ciclos de vida dos produtos e das tecnologias - que são específicos a cada indústria - do que ciclos econômicos gerais. As diferentes fases que intervêm na maturação das inovações e sua difusão exercem um papel determinante nesses ciclos setoriais de vida de produtos, mas têm pouca relação com qualquer “fatalidade tecnológica” que determinaria períodos de criação ou de declínio de técnicas e que causaria momentos longos de prosperidade e outros de depressão econômica. Obviamente, o surgimento de inovações radicais abre novas perspectivas de crescimento, regenerando as oportunidades de investimento e ampliando as fronteiras de valorização mercantil. Porém, é menos evidente que essa dinâmica obedeça a ciclos inerentes ao processo de germinação de inovações. Da mesma forma, se as forças de equilíbrio comandam, em boa parte, as variáveis econômicas, essas mesmas forças são, por sua vez, constantemente afetadas por fatos sócio-culturais amplos, que incluem os próprios parâmetros econômicos. A economia não é o mundo desencarnado e fluido do equilíbrio walrasiano, mas apenas uma das múltiplas dimensões da complexidade social, expondo-se necessariamente a todas as influências REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 201380. sociológicas, políticas e históricas. Esses elementos, na sua complexa totalidade orgânica, impedem que se avalie a parte de responsabilidade na evolução econômica de longo prazo que possa caber aos movimentos imputáveis à dinâmica estritamente econômica. O crescimento econômico na Europa dos anos de 1950 e 1960 serviu de referência para muitos economistas que teorizaram sobre a pertinência da noção de “trajetória do crescimento equilibrado”6 e sobre a validação da idéia de “regime de crescimento fordista”7. Esses autores omitiram, todavia, que o período em questão havia sucedido à uma guerra mundial que arrasou grande parte do continente europeu, razão pela qual ignoraram que a evolução econômica é necessariamente conturbada nos períodos históricos de instabilidade sócio-política, ao passo que é mais regular nos momentos de estabilidade. Assim, as flutuações econômicas podem ser explicadas mais pela sensibilidade dos fenômenos econômicos ao ambiente social, institucional e histórico no qual tomam suas formas, do que pela afirmação de alguma suposta dinâmica econômica intrinsecamente cíclica. Crítica do conceito de ciclo longo tecnologicamente determinado O conceito de ciclo econômico é demasiadamente restringente, porque prende os processos de inovação e de difusão a um determinismo tecnológico no qual a inovação intervém como fenômeno despojado de seus próprios atores e isolado do ambiente social em que ocorre. A inovação se deve, no entanto, mais à ação voluntária dos atores que participam no seu processo (empreendedores, pesquisadores, assalariados, instituições, acionários, etc.) do que ao efeito (embora necessário) de um movimento cíclico inelutável que possa sobredeterminar estratégias empresariais ou políticas tecnológicas de nações. Levar em conta a dimensão humana das inovações passa pela consideração da perspectiva histórica e pelo estudo do contexto social abrangente, que intervém obrigatoriamente na dinâmica das mudanças tecnológicas. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 2013 .83 desenvolvimento das indústrias de tratamento da informação. Com a digitalização, a partir dos anos de 1980, esses eixos de desenvolvimento convergiram para a consolidação do setor de tecnologias de informação e comunicação. Essa convergência é o resultado de um século de inovações e descobertas. No início do século XX, quando as necessidades em comunicação se tornaram mais importantes, cientistas e engenheiros tomaram consciência do interesse em utilizar a propagação do campo magnético associado ao campo elétrico, formando assim sinais eletromagnéticos que puderam transmitir mensagens rápidas e à longa distância12. Essa realização teve como base a descoberta das ondas elétricas, em 1865, pelo físico inglês James Maxwell, cujos estudos na época permaneceram no campo teórico e não encontraram aplicação. Vinte anos depois, o alemão Heinrich Hertz desenvolveu um dispositivo técnico capaz de reproduzir essas ondas, que foram então chamadas de ondas hertzianas. Em 1896, o físico russo descobriu um sistema que capta as ondas emitidas pelas descargas das trovoadas, e inventou a primeira antena. Todas essas descobertas e invenções reunidas, logo no início do século XX, resultaram na fabricação do primeiro aparelho de transmissão radiofônica pelo italiano Guglielmo Marconi. Em seguida, a indústria de telefonia começou a utilizar as tecnologias das ondas para tornar possível as ligações intercontinentais. Precisou-se então esperar até a década de 1980 para experimentar a verdadeira revolução da radiotelefonia via satélite, a qual gerou a explosão do telefone celular. Nesse interstício, a expansão do setor de informática e a digitalização transformaram a própria noção de informação, quando a comunicação passou a ser foco de criação. A passagem da energia física à energia informacional não teria sido possível sem a eletricidade. Nesse campo da eletricidade, também, era preciso esperar até os meados do século XIX para que uma série de invenções complementares pudesse revelar o potencial industrial da energia elétrica, que, até então, era apenas objeto de dissertações dos enciclopedistas entusiastas. A partir daquele momento, vários industriais e inventores deslumbraram as potencialidades da eletricidade e desenvolveram inovações decisivas: Edison inventou a lâmpada à incandescência, Gramme construiu o motor elétrico e Siemens criou a locomotiva elétrica. Essas novidades irão desencadear, nas décadas REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 201384. de 1870 e 1880, uma nova onda de industrialização, na qual Thomas Edison, que fundou um verdadeiro império industrial, representou o arquétipo do empreendedor schumpeteriano. Nessa era do domínio da eletricidade, enquanto a Inglaterra e a França permaneceram na estação do vapor, a Alemanha e os Estados Unidos começaram a se impor como países pioneiros, montando prestigiosos grupos industriais, como o Siemens no primeiro país e o Edison-General-Electric e o Westinghouse , no segundo. A escolha dos séculos XIX e XX e a associação respectiva das tecnologias de vapor e de informática são necessariamente redutoras, pois esses dois séculos não são únicos como períodos de expansão tecnológica, mas ambos são caracterizados por um fluxo intenso de inovações. Muitas descobertas científicas e técnicas foram realizadas antes da instauração do capitalismo, até mesmo em periodos remotos. Historicamente, o Museu de Alexandria é testemunha da grande importância do acervo de descobertas que foram mais tarde exploradas pela ciencia moderna e aproveitadas na revoluçao industrial. Muitas coisas eram possíveis de serem realizadas pelos ptolomeus no Egito, trezentos anos antes de Cristo, como a máquina à vapor ou a máquina de voar, não fossem as limitações socioeconômicas da época, como a religião, a ideologia e o modo escravista de trabalho, que nao ofereciam campo para aplicações. Essas descobertas não atendiam diretamente aos interesses das classes dominantes. Resultado: quase todo aquele conhecimento ficou despercebido por vários séculos – todos os séculos da idade média – até que necessidades apareceram e tornaram a sua aplicação real. Todo esse apontamento dos processos históricos do desenvolvimento tecnológico é para mostrar o quanto da importância dos fatores humanos nos processos inovadores e de transformação tecnológica. Mesmo que um determinado país (ou determinada empresa) seja campo de primeiras descobertas pelas quais se afirmam as inovações radicais, pode ele sofrer atrasos crônicos na aplicação de inovações incrementais, se não possuir aptidões sociais e institucionais para formar novas indústrias e novas atividades. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 2013 .85 Importância do contexto social Os elementos culturais, institucionais e demográficos, em função dos países e dos contextos históricos, são cruciais para o favorecimento da adoção de comportamentos inovadores. Deles dependem diretamente os processos de inovação e de difusão das técnicas, muito mais do que de qualquer suposto jogo mecânico de ciclo tecnológico. A consideração do contexto social impede conferir qualquer caráter de automatismo à criação de novas atividades. Se as inovações maiores e as inovações menores se articulam no âmbito de trajetórias tecnológicas que comandam o destino das firmas e dos setores industriais, essas trajetórias não são, contudo, processos mecânicos que possam sobredeterminar o conjunto da atividade econômica. A inovação é sempre o resultado de escolhas humanas realizadas por atores econômicos e sociais animados por motivações múltiplas, como lucro, prestígio, reconhecimento, aventura, etc. Acima de tudo, são decisões empreendedoras que acompanham as potencialidades tecnológicas, e essas decisões supõem incitações e antecipações otimistas. A inovação não é uma expressão inelutável de um suposto trend tecnológico que se imporia aos indivíduos, às firmas e às nações. Ela é, sim, a expressão de motivações e atitudes individuais, de contextos sócio-institucionais com graus variados de receptividade às mudanças e às evoluções. A negação do papel primordial da dimensão humana nos processos de inovação confere um caráter mecanicista à teoria econômica da tecnologia e vai de encontro à visão schumpeteriana dos processos evolutivos. As organizações coletivas – empresas e instituições – articulam as decisões e motivações individuais sem para tanto neutralizá-las. O contexto social intervém como elemento chave que pode favorecer ou não a expressão de escolhas e comportamentos de inovação. Em um dado período, pode existir uma distância entre o potencial técnico e cientifico de uma nação e as suas performances em termos de desenvolvimento de novas atividades, de produtividade e de emprego. Esse gap tecnológico indica que os novos conhecimentos científicos não alimentam, por si, o espaço econômico e não se transformam automaticamente em patentes ou em novas tecnologias ou novos produtos que possam gerar novas empresas e novas atividades. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 201388. estava aberto para todo um paradigma de mecânica, o qual irá encontrar novos impulsos, particularmente através da descoberta de novas fontes de energia, como a eletricidade e o petróleo. Da mesma forma, o século XX foi marcado pelo surgimento paulatino do computador: a nova versão de “máquina universal”, que multiplica a energia mental e aumenta as possibilidades de tratar objetos intangíveis em um vasto campo de atividades econômicas. Todas essas inovações são o fato de atores individuais (empreendedores) e coletivos (firmas, laboratórios, instituições). Esses atores evoluem em ambientes mais ou menos abertos, mais ou menos favoráveis à atitude de inovar. E quanto mais a inovação seja radical, maior será o grau de reatividade do ambiente social sobre o próprio destino do processo inovador. As inovações maiores alimentam a dinâmica econômica, colocando-se na origem de mudanças estruturais que marcam a regulação econômica num longo período de tempo. A sua capacidade de gerar mutações industriais portadoras de novas atividades, de nova demanda e de novos empregos não é, todavia, nenhuma expressão de algum ciclo tecnológico necessário. Mesmo que a inovação afete necessariamente os ritmos de crescimento econômico, ao renovar os campos de oportunidade para o investimento capitalista, esses ritmos oscilantes de desempenho econômico refletem menos um suposto jogo necessário de ciclos tecnológicos longos, do que um universo social de natureza evolutiva, no qual se integram os próprios fatos econômicos. O número de inovações maiores é relativamente pequeno e, todas, exigem um intervalo bastante grande, em função dos contextos histórico e institucional, para que suas potencialidades possam impor- se. No exemplo do mercado de informática, o primeiro computador experimental apareceu durante a Segunda Guerra Mundial, mas o primeiro computador comercial só nasceu nos anos de 1970. Esse mercado expandiu-se, originalmente, com a microinformática, na década de 1980 e, em seguida, deu novo surto com a multimídia, na década de 1990. No entanto, os princípios científicos do computador já tinham sido explicitados na primeira metade do século XX, enquanto que as tecnologias informáticas foram desenvolvidas na segunda metade do mesmo século. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 71-92, junho 2013 .89 Mesmo que as inovações radicais possam potencialmente aparecer em grande número, somente uma parte delas pode dar lugar a novas atividades comerciais, pois a economia precisa de situações de estabilidade social e institucional para poder estimular o surgimento de trajetórias de crescimento sustentável, na base da exploração do conjunto das inovações menores contidas em algumas oportunas inovações maiores. Abstract This paper attempts to show that rhythmic oscillations of economic performances reflect less a game of long technology cycles, than the evolutionary social universe, in which the economic facts integrate themselves. Key-worlds: innovation, long cycle, technologic cycle, social universe Referências ARTHUR W.B., Competing technologies, increasing returns and locking by historical events, The Economic Journal, n°99, NY, 1989. 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Notas: 1 No sentido dado originalmente por Raymond Vernon (1979), que foi o primeiro a desenvolver a teoria do ciclo de vida do produto. Para este autor, as inovações se explicam pelas características gerais do país onde aparecem. O produto passa por diferentes etapas: surgimento, crescimento, maturidade e envelhecimento. Essas fases são associadas ao crescimento da produção e podem ser caracterizadas pela evolução da demanda, pela evolução das técnicas de produção utilizadas em função da importância da demanda e da sua elasticidade-preço e, finalmente, pelas modalidades de abastecimento dos mercados. 2 Como no modelo de Nelson e Winter (Nelson e Winter, 1982). 3 Na indústria dos microprocessadores, por exemplo, esse fenômeno gera evoluções caóticas (Ver Boar, 2009). 4 Por mais detalhes, ver o artigo de Geovanni Dosi (Dosi, 1988). REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 93-108, junho 2013 .93 Teoria do Valor Trabalho: A Crítica de Contradição e a Crítica de Redundância Tiago Camarinha Lopes* Resumo Os dois tipos de crítica à teoria do valor trabalho (a crítica de contradição e a crítica de redundância) são apresentados em conjunto com a reconstrução da história do debate sobre a transformação dos valores em preços de produção. O artigo1 argumenta que o movimento de mudança da crítica de contradição para a crítica de redundância no século 20 expressa o progresso da economia marxista e sua expansão dentro do âmbito oficial de ensino da ciência econômica Palavras-chave: teoria do valor trabalho, Sraffa, problema da transformação. Classificação JEL: B40, B24, B51 Introdução A transformação dos valores em preços de produção é um dos tópicos controversos que tem a capacidade de colocar a teoria de Marx em condições de diálogo com as teorias econômicas tradicionais. Por esse motivo, a organização histórica desse debate pode resultar em soluções práticas para variados problemas. Um dos resultados dessa recuperação é o reconhecimento dos dois principais argumentos usados por economistas para a rejeição da teoria do valor trabalho, que, depois de consolidada pela Economia Política Clássica, ganhou uma nova dimensão sob a pena de Karl Marx. * Doutorando do Instituto de Economia, Universidade Federal de Uberlândia, MG. Contato: tiagocamarinhalopes@gmail.com. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 93-108, junho 201394. O objetivo principal deste artigo é qualificar e diferenciar estes dois tipos fundamentais de crítica à teoria do valor trabalho de Marx: a crítica de contradição e a crítica de redundância. A meta secundária que decorre necessariamente dessa diferenciação é defender que, como a crítica de redundância é inferior à crítica de contradição, duas tarefas emergem para os economistas marxistas.2 O ponto de partida oficial do problema da transformação foi a seguinte pergunta elaborada por Engels em 1885 no prefácio do livro 2 do Capital: como se forma uma taxa média igual de lucro fundamentando- se na lei do valor?3 Entre os economistas da época, dois métodos de tratamento surgiram para dar conta dessa questão. O primeiro é aquele ligado à crítica da contradição entre os livros 1 e 3 do Capital, formulada por Böhm-Bawerk em 18964. A solução do problema, segundo esta linha, é impossível. O segundo método é aquele que remonta aos trabalhos de Bortkiewicz ([1907] 2007). Esse caminho busca seguir a própria estrutura apresentada por Marx no Capital através de formalização e refinamento da exposição. Ele tenta, portanto, resolver analiticamente o problema sem abandonar a teoria marxista. No decorrer do século XX surgem diversos trabalhos que seguem essa linha. O ressurgimento do tema aconteceu devido à obra de Sraffa, Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias, de 19605. A utilização do modelo de Sraffa confirmou a tese da redundância da teoria do valor trabalho, e por isso, Samuelson tentou encerrar o debate nos anos 1970, anos depois de já ter elaborado uma primeira versão para tentar caracterizar a teoria econômica de Marx como inútil6. Mas, surpreendentemente, o debate prosseguiu sob uma nova forma. A polarização causada por Engels e Sraffa indica que é possível identificar claramente duas explicações qualitativamente diferentes para a rejeição da teoria do valor de Marx, e que explicita que houve um avanço devido à falha plena da crítica de Böhm-Bawerk. Desde então, os defensores da teoria do valor dos trabalhadores têm como adversário intelectual uma corrente gestada por Samuelson, que abandona a idéia de que o sistema de valores contradiz o sistema de preços e adota uma estratégia diferente para afastar a economia marxista do ensino oficial: agora, o sistema de valores não está em contradição com o REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 93-108, junho 2013 .95 sistema de preços de produção, mas é, no final das contas, redundante para sua determinação quantitativa, com o que o estudo sobre a teoria do valor se tornaria inútil. Em outras palavras, do ponto de vista dos opositores da escola marxista, mesmo que a teoria do valor trabalho seja cientificamente correta, ela não teria utilidade para a análise e ação sobre o funcionamento da economia capitalista. Para elaborar uma reação adequada à acusação de redundância que afasta a teoria econômica de Marx dos círculos oficiais de ensino, é muito importante entender por que a forma geral de ataque à teoria do valor trabalho mudou de caráter. A confusão constante entre estas duas formas de crítica está na raiz explicativa para a existência de tantas correntes conflitantes dentro da escola marxista contemporânea. A crítica de contradição No prefácio do livro 2 do Capital, Engels coloca a contradição da economia clássica como um desafio aos teóricos da época. De forma resumida, a contradição era a seguinte: os fatos da experiência capitalista mostram que dois capitais de mesmo tamanho resultam em lucros iguais. Mas, se estamos adotando a teoria do valor trabalho, ou a lei ricardiana do valor, se estes capitais colocam em movimento quantidades distintas de trabalho, a geração de valor deve ser diferente para esses capitais de mesmo tamanho. Nesse caso, a quantidade de lucros gerada por eles seria também diferente, em contradição com a constatação empírica de que dois investimentos, independente de sua composição orgânica, devem dar retornos proporcionais ao seu tamanho. Como explicar essa realidade sem abandonar a lei do valor? Esse é o desafio explicitado por Engels no prefácio do livro 2 e um dos tropeços dos clássicos que Marx pretende resolver.7 É importante ter em mente que este é um problema que trata apenas do aspecto quantitativo da teoria do valor. O aspecto qualitativo do valor é desenvolvido por Marx no início do Capital e culmina na diferenciação dos modos de produção assim como no esclarecimento da duplicidade do trabalho enquanto produtor de valor de uso (trabalho concreto) e de valor REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 93-108, junho 201398. descrições textuais da realidade do mercado, ou seja, sem formalizações matemáticas. Ademais, um aspecto que ilustra a predominância da crítica da contradição naquele período era o seguinte: a teoria do valor- trabalho ainda era amplamente aceita no final do século XIX e, portanto, não precisava ser primeiramente justificada. Com isso, todo esforço girava em torno de como conectar a teoria do valor de Ricardo com a de Marx. É importante lembrar, mais uma vez, que se trata aqui apenas do aspecto quantitativo da teoria do valor. Portanto, a continuidade entre a economia política clássica e a economia política de Marx, consubstanciada na questão sobre porque os preços têm a magnitude que têm e não outra, permeia a problemática dos valores e preços desde sua formulação original. Durante este estágio do debate sobre como a lei do valor explica a formação da taxa média igual de lucro, a posição oposta à escola marxista era liderada por Böhm-Bawerk. Seu argumento era o de que a referida contradição entre os valores e os preços era insolúvel, e que, portanto, a teoria de Marx teria fracassado. E, a crítica de redundância dos valores, que defendemos estar representada implicitamente por Wilhelm Lexis já naquela época, não conseguiu se estabelecer, justamente porque a conexão quantitativa entre o sistema dos valores e o sistema dos preços ainda não era completamente compreendida. Desse modo, não foi formulada nenhuma conclusão. O debate continuou, portanto, e se modificou com a contribuição de Bortkiewicz. Foi nesse momento que o problema da transformação emergiu como um dos tópicos mais intrincados pós-Crítica da Economia Política que entrelaçava a teoria econômica de superfície e a teoria econômica de Marx. O problema da transformação dos valores em preços de produção No livro 3 do Capital, Marx busca superar os problemas quantitativos da teoria do valor clássica9. O ponto central de seu argumento é o de que a lei do valor domina o movimento dos preços. Isso significa que, mesmo que os preços observados no mercado não sejam exatamente iguais às quantidades de trabalho referentes à REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 93-108, junho 2013 .99 produção da mercadoria em questão, existe um mecanismo que explica esse desvio. Marx busca formular um procedimento lógico que modele essa explicação, mas ele não consegue escrever matematicamente aquilo que apresenta em forma de texto. O procedimento que ele adota é muito restrito, e por isso, a partir de então, o problema passou a ser visto não mais como uma falha da economia política clássica, mas uma do próprio Marx. No procedimento de Marx no livro 3 para a conversão dos valores em preços de produção, os preços de custos estão contabilizados em termos de valor. O que significa isso? Resumidamente, o sentido disso é que os capitalistas podem comprar as mercadorias referentes ao capital constante e variável pelos seus valores individuais, como se essas mercadorias tivessem seus preços iguais aos seus valores. Apesar de isso ser possível, no caso da composição orgânica das indústrias produtoras dos valores de uso em questão ser idêntica à composição orgânica média da economia, o normal é que os preços das mercadorias que compõe o investimento também vão desviar de seus valores. Marx percebe a incompletude de sua solução matemática e indica que uma formalização completa ainda deveria ser desenvolvida. “Em virtude do desenvolvimento agora dado ocorreu uma modificação na determinação do preço de custo das mercadorias. Originalmente admitiu-se que o preço de custo de uma mercadoria era igual ao valor das mercadorias consumidas em sua produção. Mas o preço de produção de uma mercadoria é, para o comprador da mesma, seu preço de custo e, por isso, pode entrar como preço de custo na formação do preço de outra mercadoria. Assim como o preço de produção pode desviar-se do valor de uma mercadoria, assim também o preço de custo de uma mercadoria, no qual esse preço de produção de outra mercadoria está incluído, pode estar acima ou abaixo da parte de seu valor global que é formada pelo valor que é formada pelo valor dos meios de produção que entram nela. É preciso não perder de vista essa significação modificada do preço de custo e portanto lembrar que quando, numa esfera particular da produção, o preço de custo da mercadoria é equiparado ao valor dos meios de produção consumidos em sua produção, sempre é possível que haja um erro. Para nossa investigação presente não é necessário examinar mais de perto esse ponto.” (Marx ([1894] 1986), p. 128) REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 93-108, junho 2013100. Por que Marx não examina mais de perto esse ponto? Porque os pressupostos adotados aqui tornam sua solução para o problema necessariamente correta, como fica claro na continuação deste trecho. Mas, se a ciência não pode ser fundamentada em pressupostos, há de se admitir que tal solução, apesar de correta, é incompleta.10 Dessa maneira, o procedimento de conversão de valores em preços de produção deveria ser modificado, expandido, aperfeiçoado. E é aqui que entra a contribuição de Bortkiewicz, marcando o ponto de partida para a busca de um algoritmo que modele completamente a transição do sistema de valores para o sistema de preços de produção. Uma grande quantidade de artigos surge em decorrência deste trabalho, onde o foco principal é claramente no aspecto quantitativo da conversão. A polarização do debate, que antes era clara em relação ao papel da teoria do valor trabalho, diminui, assim como elementos ideológicos saem de cena nesta busca por uma fórmula matemática que resolva o problema técnico em questão. A constante aparição de novas soluções contribuiu para criar a ilusão de que o debate sobre o problema da transformação fosse circular. O sentido econômico da problemática havia de fato desaparecido, e não era mais sabido se o problema tinha sido criado com a intervenção de Bortkiewicz, se ele decorrera de uma falha de Marx ou se ele tinha sua origem mesmo na Economia Política Clássica. De toda forma, foi nessa confusão que o problema da transformação se popularizou mundialmente. É possível pensar neste estágio do debate como um período intermediário entre duas fases de polarização teórica forte. O problema da transformação tradicional é o embate que liga o momento da crítica da contradição à fase da crítica de redundância da teoria do valor trabalho. Como isso ocorre? A conclusão a que se chegou sobre o problema da transformação foi a seguinte: o sistema de valores se diferencia do sistema de preços de produção, e essa diferença é por causa dos critérios de distribuição da mais-valia. No sistema de valores, o critério é o tamanho do capital variável, ou seja, a mais-valia está distribuída em proporção à grandeza do trabalho vivo de cada setor. No sistema de preços de produção, a soma do capital variável com o constante é o critério de distribuição. Qual a relação lógica-matemática entre um sistema e outro? Conforme Pasinetti (1979), a transformação REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 93-108, junho 2013 .103 e da estatística para qualificar e dar sentido econômico ao problema da transformação, em um exercício de recuperação dos textos originais de Marx combinado com as ferramentas de computação de dados econômicos empíricos. O principal aspecto dessa abordagem é o abandono do pressuposto da taxa igual de lucro, prática comum nos modelos de cálculo econômico. Essa suposição ocorre normalmente porque a igualação das taxas é uma experiência real, de modo que a tendência aparece como estado verdadeiro para o teórico. Na prática, as taxas de lucro são sempre diferentes, o que não invalida a idéia de um estado ideal em que a renumeração do capital dependeria apenas de sua grandeza, e não de sua composição entre capital variável e constante. Sem desprezar os esforços realizados por todas estas correntes, uma crítica geral pode ser posta a todas as reações a Samuelson (1971) e Steedman (1977). A falta de visão global da trajetória do problema faz com que todas elas confundam o conteúdo da oposição em relação à teoria do valor de Marx, que se alterou ao longo do debate sobre a relação entre os valores e os preços de produção. Por isso, ao invés dos autores do campo marxista trabalhar de maneira isolada tentando solucionar o problema da transformação mais uma vez (cuja solução culminaria de novo na redundância!), é urgente que se crie uma ação coletiva inteligente para se escapar da armadilha de Samuelson. Por que a crítica mudou de contradição para redundância? Desde que Marx revolucionou a economia política e colocou a teoria do valor trabalho em um quadro analítico mais amplo ao desenvolver aquilo que viria a ser o materialismo histórico, diversos economistas buscaram rejeitar a validade de seus estudos. A teoria do valor trabalho, que reinava absoluta durante o predomínio da economia política clássica, começou a ser atacada como maneira dos quadros reacionários e conservadores se oporem ao possível domínio da ciência econômica pela classe dos trabalhadores. Inicialmente, a forma de atacar a teoria do valor trabalho se assentava na contradição existente entre o sistema de valores e o sistema de preços de produção, ou, analogamente, na contradição entre os livros REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 93-108, junho 2013104. 1 e 3 do Capital. Esta é a crítica de contradição e ela foi preponderante nos embates sobre a teoria do valor até o momento em que uma solução matemática adequada para o problema da transformação tradicional foi encontrada. O processo de desenvolvimento dessa solução contou especialmente com a contribuição inconsciente de Sraffa, cujo propósito primordial não era alterar os alicerces da teoria marxista do valor, mas sim realizar um ataque lógico-formal à teoria marginalista do valor. Mas, provavelmente reconhecendo o potencial de avanço da escola econômica marxista, no início dos anos 1970, Samuelson vinculou a obra de Sraffa com a já delineada crítica da redundância da teoria do valor trabalho na reação de Wilhelm Lexis ainda no final do século XIX. Esta modalidade de aversão tornou-se então o principal veículo agregador de todos interessados em evitar uma expansão oficial da teoria do valor de Marx. A partir daí, as controvérsias em torno do valor que se desenrolam no campo da economia estão balizadas por posições contrárias, onde uma defende a inutilidade da teoria do valor trabalho, enquanto a outra busca defender a relevância e a praticidade da teoria para solução de problemas concretos. É interessante destacar que o ataque à teoria do valor de Marx a partir dos anos 1970 não é realizado de maneira direta pelo próprio Samuelson, mas que ele mesmo se encontra no ponto de contato entre dois grupos em combate. Lerner (1972), por exemplo, acusou Samuelson de ter feito concessões ilegais à teoria do valor trabalho, pois ela seria reabilitada caso fosse descrita apenas como redundante e não contraditória. Em sua reação, Samuelson (1972) expõe com ironia a posição política de Lerner, deixando claro que não há ciência neutra: mesmo reconhecendo a validade científica da teoria do valor trabalho, Samuelson nunca esconde que se opõe aos anseios políticos e ideológicos dos seguidores de Marx. Então, seria Samuelson um “marxista disfarçado de economista vulgar” consciente? Seguindo Engels, mais uma vez, esta é uma questão psicológica que deveria interessar em primeiro lugar os estudiosos da relação intelectualidade e consciência de classe. Para os economistas, a solução do problema não depende de saber se Samuelson queria ou não jogar Sraffa contra Marx, mas sim de apartar seus seguidores brigões. O efeito real de Samuelson (1971) foi a criação de uma controvérsia REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 93-108, junho 2013 .105 escolástica que tem absorvido muito esforço com potencial de ser alocado para o debate Cambridge-Cambridge. Será que a briga infantil Marx versus Sraffa não ajudou os economistas a simplesmente ignorarem o golpe fatal de PCC na teoria do valor utilidade? Independente deste ponto, o importante a concluir neste artigo é que a crítica à economia marxista mudou de “contradição” para “redundância” no desenrolar do debate sobre o problema da transformação. Isso indica que a crítica de Böhm-Bawerk falhou oficialmente, visto que a contradição entre os sistemas é perfeitamente explicável. Além disso, a mudança do caráter da crítica de contradição para redundância implica que a rejeição da teoria econômica marxista sempre é uma questão de decisão política e não técnica. Esse resultado tem uma importância considerável, porque invalida o argumento pretensamente científico de que Marx estaria superado. O enfoque dos adeptos da escola econômica marxista sobre esta questão tem sido na defesa da teoria do valor trabalho, como se o nível de crítica hoje fosse mais refinado do que na época em que prevalecia a crítica da contradição. Defendemos que, ao contrário, a força técnica de rejeição foi diminuída com o choque de Sraffa, abrindo espaço para um aceite silencioso da validade da teoria do valor trabalho, que passa então a ser negada apenas por via da ideologia, já que é admitida explicitamente como uma teoria do valor cientificamente correta. Por conta disso, uma nova tática para lidar com a acusação de redundância precisa ser desenvolvida: ao invés de tentar mostrar a relevância da teoria do valor trabalho, os cientistas econômicos deveriam fazer duas coisas: (i) revelar como o uso politicamente reacionário da teoria de Sraffa evita a expansão do marxismo nas ciências econômicas e (ii) explicar como Marx e Sraffa podem ser postos do mesmo lado da luta. Abstract The two kinds of critique of the Labor Theory of Value (the critique of contradiction and the critique of redundancy) are presented along with the history of the debate on the transformation problem of values into production prices. The paper argues that the REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 93-108, junho 2013108. ser a maneira mais adequada de identificar os verdadeiros opositores à expansão do marxismo nas ciências econômicas. O embate entre marxistas e sraffianos (ou neoricardianos) é muito difícil de ser desfeito, mas não impossível. Caso haja acordo tático entre aqueles com o interesse em comum de ampliar o método do socialismo científico nas ciências econômicas, haverá uma saída. 3 Ver Engels ([1885] 1963). 4 Ver Böhm-Bawerk ([1896] 2007). 5 Ver Sraffa (1960). 6 Ver Samuelson (1957) e Samuelson (1971). 7 Para efeitos formais, o desafio consiste em demonstrar “como, não só sem ferir a lei do valor, mas, ao contrário, fundamentando-se nela, se pode e se deve formar uma taxa média igual de lucro (...)” (Engels ([1885] 1985), p. 17). No atual estágio, a demonstração sem ferir a lei do valor foi feita (solução da contradição), mas a parte “fundamentando-se na lei do valor” ainda não, devido ao predomínio da noção de redundância da teoria do valor trabalho e ao desaparecimento da categoria lei do valor nas ciências econômicas. 8 Ver Lexis (1895). 9 Ver Marx ([1894] 2004). 10 Alguns autores defendem que não há nada de errado com a solução de Marx, como se ela fosse perfeita. Esta tem sido a linha da TSSI (Temporal Single System Interpretation – Sistema Único Temporal), cujos principais representantes são Freeman, Kliman e Wells (2004). REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 109-120, junho 2013 .109 Uma crítica da teoria da produtividade marginal como preço do capital Fred Moseley*1 Resumo Neste pequeno artigo, Fred Moseley faz um resumo bem didático das críticas à chamada teoria da produtividade marginal, centrando-se na determinação do preço do capital (entendido este de modo vulgar e fetichista como máquinas, equipamentos etc.). Ele mostra cabalmente, do ponto de vista lógico e científico, que não há qualquer razão séria e competente para mantê-la como uma concepção válida do lucro e da taxa de lucro. Afirma, ao final, que se domina amplamente e é amplamente empregada, isto ocorre somente por razões ideológicas: essa “teoria” dá suporte ao capitalismo. Palavras chaves: teoria da produtividade marginal; teoria do lucro; teoria neoclássica; ideologia econômica. Classificação JEL: D01; B41 Introdução A questão mais importante na teoria do capitalismo refere-se ao lucro – donde vêm os lucros, o que determina a sua magnitude? O lucro é o principal motivo e a finalidade primordial da produção capitalista; é o determinante basilar da dinâmica da acumulação de capital. Se os lucros são altos, a taxa de acumulação será forte, o desemprego cairá e as condições gerais do sistema serão boas (ter-se-á um período de prosperidade). Por outro lado, quando os lucros são baixos ou * Professor do Mount Holyoke College, nos Estados Unidos. Correio eletrônico: fmoseley@ mtholyoke.edu. O artigo aqui traduzido foi publicado originalmente na revista on-line Real- World Economic Review (março de 2012). REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 109-120, junho 2013110. insuficientes, a taxa de acumulação será fraca, o desemprego crescerá e as condições gerais do sistema serão más (ter-se-á um período de crise e recessão ou depressão). Em adição, a questão da origem do lucro é também importante por uma razão ideológica e ética. Se a fonte do lucro é o trabalho e o esforço dos capitalistas, então a obtenção de lucros por eles é justa, boa e equitativa. Por outro lado, se a fonte do lucro é o esforço dos trabalhadores, então a obtenção de lucro pelo capitalista vem a ser exploração, sendo então o capitalismo um sistema inerentemente injusto e pérfido. A questão do lucro é a principal questão na teoria de Marx do capitalismo. A maior parte do volume primeiro de O Capital trata dela; as principais conclusões desse autor se seguem de sua teoria básica do lucro. (A questão do lucro foi também enfatizada pelos economistas clássicos, especialmente por Ricardo). Em contraste, essa questão recebe muito menor atenção na teoria neoclássica. Como se verá abaixo, o retorno do capital é redefinido na teoria da produtividade marginal como “preço do capital”. Nessa teoria, o capital e o retorno do capital sempre mereceram menor atenção do que o trabalho e o salário; em décadas mais recentes, a questão antecedente tem sido quase que completamente ignorada. Eis que a teoria da produtividade marginal continua sendo a mais aceita pelos economistas neoclássicos como explicação do retorno do capital, sendo também altamente empregada por eles em estudos empíricos. A teoria da produtividade marginal da distribuição foi desenvolvida no final do século XIX por J. B. Clark (nos Estados Unidos), por Philip Wicksteed (na Grã-Bretanha), assim como por outros. As variáveis explicadas nas versões modernas dessa teoria são os preços dos fatores de produção – o preço do trabalho (salário), o preço do capital (do qual falarei bem mais, abaixo) e o preço da terra (que irei ignorar no que se segue). De acordo com essa teoria, os preços dos fatores de produção são determinados por suas demandas e ofertas. As funções de demanda por trabalho e por capital são derivadas essencialmente do mesmo modo, a partir da função de produção [Q = f(K, L)] e por meio da condição de maximização de lucro; por esse caminho se chega à tese de que o preço de cada fator se iguala ao REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 109-120, junho 2013 .113 os seus produtos marginais. Porém, qual o significado de “produto marginal das matérias-primas”? O conceito de produto marginal das matérias- primas requer que o produto possa crescer por meio do aumento das matérias-primas em uma unidade, mantendo-se todos os outros insumos constantes. Porém, como é possível aumentar o produto se o trabalho e o capital são mantidos constantes – por qual mágica? Em consequência, o conceito de produto marginal das matérias-primas é também inválido; as matérias-primas não podem ser incorporadas de um modo razoável à teoria da produtividade marginal. O modo como os economistas neoclássicos procuraram tratar o problema das matérias-primas – especialmente nos trabalhos empíricos – tem consistido em desprezá-las, ou seja, eles têm suposto que as funções de produção são “funções de produção de valor adicionado”, sem incluir nelas as matérias-primas (e os bens intermediários em geral) como insumos. Porém, essa solução não funciona, porque a função de produção é um conceito físico – que consiste numa relação entre quantidades físicas de insumos e de produtos – e o valor adicionado é um conceito nominal – qual seja ele, a diferença entre o preço do produto e os preços dos bens intermediários. Pode-se subtrair o preço dos bens intermediários do preço do produto para calcular o valor adicionado, porque ambos os preços estão expressos em termos nominais; assim sendo, eles são comensuráveis. Contudo, não se pode subtrair a quantidade física de bens intermediários das quantidades físicas de produto, porque os bens intermediários e o produto são diferentes espécies de bens físicos; assim sendo, eles são incomensuráveis. Não há uma unidade comum de medida em termos da qual se possa fazer a subtração. Assim, a expressão “função de produção em valor adicionado” é um oximoro.5 Oferta de Capital – não há teoria Adicionalmente, além desse problema insuperável que afeta a demanda de capital e o produto marginal do capital, há também outro problema nessa concepção, pois não existe qualquer teoria da oferta de capital. Assume-se geralmente que os bens de capital, ao invés de serem REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 109-120, junho 2013114. comprados, são alugados pelas firmas produtoras de bens finais; nesse sentido, supõe-se que a oferta de bens de capital é provida pelas firmas que os alugam.6 Ora, como se tem de admitir, também, que os bens de capital não são produzidos no período corrente, não há função de produção e, assim, não há também função custo a partir das quais seja possível derivar a oferta de bens de capital das firmas que os alugam, pelo menos do modo usual. Logo, em adição ao problema da “curva Kd ilegítima”, há o problema “não existe qualquer curva Ks ”; em consequência, não há qualquer teoria do preço do capital enquanto um valor determinado por Kd e Ks. Disto se conclui que o gráfico do mercado de um bem de capital deve ter sempre a seguinte aparência: O gráfico é vazio, mas isto não é um erro. A verdade é que a própria teoria é vazia. Preço do capital – determinado pelos custos Alternativamente, o que é algumas vezes oferecida (se alguma teoria do preço do capital encontra-se efetivamente apresentada, o que é raro) é uma teoria do preço de equilíbrio de longo prazo do capital, tal como este seria determinado pelos custos das firmas que os alugam REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 109-120, junho 2013 .115 (pois, no longo prazo, a competição e a mobilidade do capital entre as indústrias eliminaria supostamente os “lucros econômicos” ou as “perdas econômicas” dessas firmas). Os custos das firmas alugadoras de bens de capital têm dois componentes: um deles explícito, a depreciação (custo periódico do uso dos bens de capital) e um implícito, o juro, o qual responde pelo “custo de oportunidade” de investir nesse bem de capital (ao invés de numa aplicação alternativa). O componente de depreciação é igual ao produto do preço do bem de capital quando este é comprado (PG) e da sua taxa de depreciação (d); já o componente juro (ou seja, o “custo de oportunidade”) é igual ao produto do preço do bem de capital quando comprado e da taxa de juros prevalecente (ou da taxa de lucro) na economia (r). Algebricamente, tem-se: PK = d PG + r PG Assim, é possível ver que o preço do capital não é um preço de mercado atual, mas, ao invés, um preço hipotético construído na suposição de que exista um “custo de oportunidade” implícito. Não fica claro, entretanto, por qual razão se procura empregar esse preço irreal, o qual nunca é observado nas economias capitalistas. Pode-se ver ainda que, mesmo ao assumir de um modo implausível que a demanda de capital pode ser derivada de algum modo, ela não teria qualquer papel na determinação do preço de equilíbrio de longo prazo do capital. Este preço é determinado somente pelos custos. O gráfico do mercado do bem de capital, nessa linha de explicação, teria a seguinte aparência: REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 109-120, junho 2013118. utilizando-a para explicar o “preço do capital”, uma variável que não é um preço atual e não tem qualquer interesse teórico. Conclusão Em conclusão, está claro que a teoria da produtividade marginal do capital e do preço do capital é algo horrível, pois é logicamente contraditória e vazia em seu conteúdo. Ainda assim, porém, continua sendo largamente aceita por quase todos os economistas do mainstream, especialmente no trabalho empírico. Por que isto acontece? Penso que duas razões são perfeitamente claras: 1) A teoria da produtividade marginal fornece um suporte ideológico crucial para o capitalismo, pois argumenta que os lucros são produzidos pelos bens de capital de propriedade dos capitalistas. Assim, tudo se torna equitativo no capitalismo, pois não há mais exploração dos trabalhadores. Em geral, todos recebem uma renda que é igual à sua contribuição para a produção. 2) A principal teoria alternativa do lucro é a de Marx. As conclusões dessa teoria (que há exploração dos trabalhadores, conflito entre trabalhadores e capitalistas, depressões recorrentes etc.) são muito subversivas para serem aceitas pelo mainstream. Essas, porém, são razões ideológicas – não científicas. Se a escolha entre a teoria de Marx e a teoria da produtividade marginal fosse feita com base em padrões científicos, critério de consistência lógica e poder explanatório empírico, a teoria de Marx deveria ganhar sem mesmo precisar lutar. A teoria de Marx é uma dedução lógica rigorosa com base na teoria do valor trabalho. Ademais, ela tem um poder de explanação muito impressionante (explica os conflitos salariais, a extensão da jornada de trabalho, a intensidade do trabalho, a REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 109-120, junho 2013 .119 mudança tecnológica inerente, a desigualdade crescente, as depressões recorrentes, etc.). A teoria da produtividade marginal, em contraste, é uma teoria contraditória sem qualquer poder explanatório. Creio, por isso, que se deva desafiar e criticar a teoria da produtividade marginal em toda ocasião que se apresente, procurando desenvolver e ensinar a teoria de Marx, pois ela vem a ser a melhor alternativa enquanto teoria do lucro. Abstract In this short paper, Fred Moseley summarizes didactic and critically the so-called theory of marginal productivity, focusing on the pricing of capital (understood as machinery, equipment etc. in a normal, vulgar and fetishistic way). It fully shows, from a scientific and logic point of view, that there is no serious reason to keep this piece of argument as a valid theory of profit and profit rate in economic theory. If it is accepted widely in Economics and is widely used in empirical studies, it is only for ideological reasons: it supports capitalism. Keywords: marginal productivity theory, theory of profit; neoclassical theory; economic ideology. Referências Moseley, Fred – A critique of the marginal productivity theory of the price of capital. In: Real-world Economics Review, nº 59, março de 2012, p. 131-137. ___________ – Mankiw’s attempted resurrection of marginal productivity theory. In: Real-world Economics Review, nº 61, outubro de 2012, p. 115-124. Notas: 1 Desejo expressar aqui os meus agradecimentos aos muitos estudantes que, ao longo dos anos, ajudaram-me a desenvolver essa crítica, por meio de discussões. Estou ansioso para receber comentários dos leitores – por favor, enviem as suas opiniões para o correio eletrônico fmoseley@mtholyke.edu. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 109-120, junho 2013120. 2 Mais precisamente, a condição de maximização de lucro da firma é que o preço de cada fator deve ser igual ao produto marginal, o qual vem a ser igual ao produto marginal físico multiplicado pelo preço unitário do produto. Esta complicação será ignorada no que se segue porque a questão chave diz respeito à existência ou à inexistência do produto físico marginal. 3 Há também uma contradição lógica fundamental entre as curvas de oferta e de demanda de trabalho, Ls e Ld, porque Ls é definida em unidade de horas e Ld é definida em unidades de trabalhadores (o produto marginal é o produto extra que resulta da adição de um trabalhador para um dado montante de capital). Essa contradição torna a análise do chamado “mercado de trabalho” incoerente. 4 A ausência de um método satisfatório de agregação de capital significa que a “função de produção agregada” empregada nos modelos de crescimento em macroeconomia não é um conceito teoricamente válido, apensar de seu uso difundido. Há duas outras áreas da teoria econômica em que as teoricamente ilegítimas funções de produção agregadas são ainda largamente utilizadas nos estudos empíricos, quais sejam, na histórica econômica e na economia do desenvolvimento. Já a teoria de Marx não tem “problema de agregação” porque o conceito de capital é aí definido em termos de dinheiro (e valor trabalho), os quais são facilmente agregáveis. 5 Se as matérias-primas não são incluídas nas funções de produção, então elas não podem ser incorporadas aos custos de produção na teoria da firma (isto é, na teoria da oferta do produto). Nesse caso, a condição de maximização de lucros para as firmas (preço = custo marginal) ficaria errônea porque o custo marginal não incluiria os custos das matérias-primas. Ademais, se as firmas baseiam suas decisões de oferta no custo marginal sem inclusão das matérias-primas, suas decisões não maximizariam os lucros. Elas iriam produzir mais produto do que aquele que maximizaria o lucro, o que lhes traria perdas. 6 Gregory Mankiw, em seu muito bem vendido livro-texto intermediário, Macroeconomia, assume que as firmas alugam bens de capital das famílias. Porém, como disse um estudante, zombando dessa suposição ridícula, “na minha casa não há nenhum bem de capital”. A apresentação de Mankiw da teoria da produtividade marginal do capital está examinada em detalhes em outro artigo (Moseley, outubro de 2012). 7 Esse suposto irrealista leva também à seguinte conclusão bizarra: se as firmas produtoras pagam o retorno médio do capital para as firmas alugadoras na forma de um aluguel, então no longo prazo as firmas produtoras não obterão lucro algum. Porém, por que as firmas capitalistas deveriam continuar alugando bens de capital, assim como continuar produzindo, se elas não obtém lucro no longo prazo? REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 121-128, junho 2013 .123 do desemprego. O keynesianismo não reconhece a existência de um processo automático capaz de remediar a crise, daí que defenda a necessidade da intervenção estatal. A apreensão do dinheiro por parte das correntes keynesianas é mais diferenciada do que aquela da escola neoclássica; comum a ambas, porém, é a ampla tendência para reduzir o dinheiro a uma simples função essencial. Para ambas essas teorias, o dinheiro é acima de tudo uma ajuda ao funcionamento econômico – pouco importante segundo a escola neoclássica, mas bem importante conforme o keynesianismo. A questão de saber o que é o dinheiro, e como ele está ligado a um modo específico de socialização inerente à sociedade produtora de mercadoria, nunca é mesmo posta. Dinheiro – meramente um instrumento privilegiado? Essa questão, porém, foi central no exame que Marx fez do dinheiro. Várias correntes nos movimentos trabalhistas ingleses e franceses do século XIX lutaram para reformar o capitalismo mudando o sistema monetário: assim, para eles, a produção privada de mercadoria seria mantida, mas o dinheiro seria substituído por cupons que denotavam horas trabalhadas ou por certificados que davam direitos a bens (a semelhança das entradas de teatro). Em contraste com esses esforços reformistas, Marx tentou mostrar que o modo de produção burguês necessita de um meio de troca particular, o dinheiro, o qual por sua própria natureza não é uma coisa inócua como uma entrada de teatro. Os produtores privados e individuais de mercadoria estão ligados entre si por meio da divisão societária de trabalho, mas os seus produtos adquirem o caráter social somente retrospectivamente, a saber, quando eles realizam os seus valores no mercado. Numa sociedade baseada na troca, o caráter social dos bens produzidos não consiste somente em sua capacidade de satisfazer as necessidades das pessoas; os produtos devem manter uns com os outros uma relação quantitativa de troca, devem possuir “valor” em adição ao seu valor de uso. Na sociedade burguesa, a riqueza se torna uma quantidade abstrata: não consiste de uma multiplicidade de valores de uso e de amenidades, REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 121-128, junho 2013124. mas, ao invés, consiste de “valor”. Mas o “valor” não pode ser apreendido por meio da consideração de uma única mercadoria, pois ele existe somente na relação entre as mercadorias. Ademais, o “valor” tem apenas uma expressão limitada e local por meio da relação particular de uma mercadoria com outra. O valor da mercadoria apenas pode obter uma expressão universal e socialmente válida quando aparece incorporado numa forma independente de “valor” – isto é, quando ele se representa numa coisa que, na relação com todas as outras mercadorias, não figura simplesmente como mais uma mercadoria, mas como uma expressão de “valor” por excelência.2 Somente nessa situação pode uma simples mercadoria afirmar o seu caráter de “valor” independentemente do seu caráter concreto como valor de uso. A riqueza abstrata necessita de uma forma material particular de existência – e o dinheiro é exatamente essa forma. Numa sociedade baseada na troca de mercadorias, o dinheiro não é meramente um instrumento mais ou menos importante; é necessariamente um meio de socialização econômica. Os produtores individuais de mercadoria não estabelecem as suas relações sociais uns com os outros enquanto pessoas. Precisamente, porque os indivíduos isolados desaparecem atrás de seus produtos, a sua coesão social – num sentido bem literal – se torna reificada (em alemão: verdinglicht), ou seja, é aprisionada numa coisa, ou seja, no dinheiro. O dinheiro não é simplesmente – como a escola neoclássica mantém – uma simplificação do processo de troca, a qual em princípio pode ser dispensada. Ao invés, o dinheiro é um meio por meio do qual os produtores individuais e isolados de mercadorias se relacionam e, assim, se conservam uns em relação aos outros. Enquanto dinheiro, a coisa adquire propriedade social e poder social. Marx apresenta essa qualidade “transcendental” da coisa como fetichismo.3 E esse fetichismo não é meramente uma ilusão, uma espécie de “falsa consciência”. Em verdade, na sociedade burguesa, o dinheiro possui o maior poder. Porém, ele só possui esse poder devido às relações sociais específicas que lhe estão subjacentes: os possuidores atomizados de mercadoria estabelecem as suas relações sociais uns com os outros por meio dessa “coisa”, do dinheiro. O dinheiro tem poder porque todos os atores sociais se relacionam com o dinheiro como dinheiro, REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 121-128, junho 2013 .125 isto é, como uma representação independente de “valor”. Assim que os indivíduos começam a agir como possuidores de mercadorias, que trocam produtos, eles não têm outra possibilidade senão manter contato com o dinheiro. Posto isso, note-se que o fetichismo contém de fato um aspecto ilusório, pois o dinheiro parece ter um poder social que lhe é inerente. Mas, de fato, esse poder é resultado de um processo social automático que escapa à cognição usual das pessoas no dia-a-dia. O processo se consuma em seu próprio resultado. A produção de mercadoria é impossível sem a correlação entre as mercadorias e o dinheiro. Por essa razão, há um importante limite para todo projeto utópico; se alguém deseja a abolição do dinheiro, deve almejar também a abolição do conjunto das relações societárias que o requerem. Não se pode ter uma sem a outra. Do dinheiro ao capital Se a totalidade do processo social de reprodução é mediada pela mercadoria e pelo dinheiro, isto é, se a produção de mercadoria não está restrita a existir em um nicho no interior de outro modo de produção (como foi o caso, inicialmente, no período feudal da Europa Ocidental), então o dinheiro adquire nova qualidade como capital. A incorporação autônoma de “valor”, por meio da qual a socialização econômica da produção de mercadoria é realizada, ela mesma se torna o fim principal da atividade econômica. Precisamente porque o dinheiro é a encarnação da riqueza abstrata, a qual não está sujeita a limites imanentes, ninguém nunca terá “suficiente” dele a sua disposição. O comércio e a produção devem não apenas gerar dinheiro, mas sim, eles devem gerar continuamente novas somas de dinheiro. A generalização da produção de mercadorias é somente possível quando a própria produção é transformada em produção capitalista, quando a multiplicação e o aumento da riqueza abstrata se torna o fim direto da produção e todas as outras relações sociais ficam subsumidas a esse fim. O “poder destrutivo do dinheiro”, o qual foi objeto de muita crítica nos modos de produção pré-capitalistas (por muitos autores da Grécia Antiga, por exemplo) está enraizada precisamente nesse processo de REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 121-128, junho 2013128. determinado, de modo algum, a quantidade e a qualidade da regulação necessária para controlar “efetivamente” os fluxos de capital. Nesse sentido, as demandas dos críticos da globalização por mais regulação não são necessariamente pouco realistas ou impossíveis de serem introduzidas. Porém, pode-se duvidar de que essa regulação venha a suprimir os piores aspectos do capitalismo. Mesmo num capitalismo altamente regulado, a satisfação das necessidades e dos desejos, a eliminação das desigualdades sociais, ou mesmo uma boa vida, não são objetivos próprios da atividade econômica. Esta visa – isto sim – a valorização, a acumulação de riqueza abstrata – um fim para o qual os seres humanos e a natureza são apenas meios – meios estes, aliás, que estão sendo constantemente administrados para aquela finalidade seja atingida. Abstract In this short article, the author introduces didactically the concept of money that is found in Marx’s papers. Comparatively, he mentions how money is apprehended by the neoclassical school and the Keynesian school of Economics. He introduces capital showing that it is as a development of money. He explains, in addition, the main connection between the economic crisis and financial crisis, that is, credit leverage. Keywords: concept of money, functions of money, money in Marx; credit leverage; financial crisis. Notas: 1 Tradução de artigo publicado na revista on-line MRZine, em 03/11/2006. 2 Isto é mostrado na seção “Forma do valor ou o valor de troca” no primeiro capítulo de O Capital. 3 Em O Capital, Marx mencionou que o mero produto é uma “coisa sensível”, mas que ele se torna, enquanto mercadoria, uma “coisa sensível suprassensível”. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013 .129 Da controvérsia brasileira sobre o dinheiro mundial inconversível Eleutério F. S. Prado* Resumo Esta nota1 faz um retorno à controvérsia brasileira sobre o dinheiro mundial inconversível, travada entre 1998 e 2002, da qual participaram diretamente Gentil Corazza, Reinaldo Carcanholo, Claus Germer e indiretamente Leda Paulani. Enquanto os três primeiros discutiram por meio de artigos publicados na Revista da SEP, a última forneceu à controvérsia um material de fundo, por meio de sua tese de doutoramento que versou sobre o dinheiro. Nesse retorno não se examinará os argumentos contidos na controvérsia numa perspectiva de história do pensamento econômico. Eles serão examinados numa visada crítica que procura discutir certas questões e dificuldades aí presentes. O objetivo final é recuperar um debate importante, propondo uma nova solução para o enigma do dinheiro mundial inconversível presente na teoria marxista. Palavras chaves: dinheiro mundial; marxismo; dinheiro fictício; inconversibilidade; dialética do dinheiro. Classificação JEL: B14; P16 Introdução Nesta nota faz-se um retorno à controvérsia brasileira sobre o dinheiro mundial inconversível, travada entre 1998 e 2002, da qual participaram diretamente Corazza (1998; 2002), Carcanholo (2001; * Professor sênior do Departamento de Economia da USP/SP. Correio eletrônico: eleuter@usp. br. Página na internet: http://eleuterioprado.wordpress.com. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013130. 2002), Germer (2002) e indiretamente Paulani (1991). Enquanto os três primeiros discutiram por meio de artigos publicados na Revista da SEP, Paulani forneceu à controvérsia um material de fundo, por meio de sua tese de doutoramento que versou sobre o dinheiro. Nesse retorno não se examinará os argumentos contidos nos artigos seguindo a sequência cronológica em que estes foram publicados, mas se procurará expor os principais dentro de uma ordem lógica que possibilite eliminar o mais possível certas dificuldades. O objetivo final é discutir um tema relevante, contribuindo para o seu esclarecimento e, talvez, para a solução da questão suscitadora da controvérsia. Note-se, de início, que essa controvérsia surge no âmbito do marxismo porque, em 1971, o governo norte-americano declarara o dólar como inconversível em ouro.2 O dólar, como se sabe, assumira a posição de dinheiro mundial pelo Acordo de Bretton Woods que vinha vigorando na regulação do sistema monetário internacional no pós-guerra. Por esse acordo, firmado 1944, o tesouro norte-americano garantia a conversibilidade do dinheiro que emitia a uma taxa fixa de 35 dólares por onça de ouro. Ora, essa nova realidade institucional entrara em conflito aparente com a concepção de Marx de dinheiro mundial. Pois, segundo ele, na esfera do comércio internacional, o dinheiro tem de existir segundo o seu conceito, ou seja, como dinheiro-ouro: “ao sair da esfera interna de circulação, o dinheiro desprende-se das formas locais (...) e reassume a forma originária de barras dos metais preciosos” (Marx, 1983A, p. 119). Ora, o dinheiro não só abandonara o corpo consistente de metal precioso, mas se transformara aparentemente em dinheiro puramente fiduciário mesmo na esfera das relações mercantis internacionais. Diante desse fato, poder-se-ia considerar a referida concepção de Marx como historicamente datada, um erro que o tempo veio revelar, ou ela forneceria ainda um fundo teórico irrecusável e necessário para compreender as formas contemporâneas do dinheiro no capitalismo? A controvérsia brasileira sobre o dinheiro mundial inconversível é um capítulo rico na tentativa histórica de compreender um problema teórico importante. Por isso mesmo, ele merece mais atenção, pelo menos uma atenção igual àquela que tem sido dada normalmente ao que é produzido no exterior nessa área do conhecimento econômico. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013 .133 direta, diz-se simplesmente que a mercadoria é valor de uso e valor. Daí se segue que o valor de uso e o valor sejam postos socialmente pelo trabalho no objeto de trabalho. O valor de uso é posto pelo trabalho enquanto trabalho concreto, ou seja, enquanto relação do homem com a natureza. Já o valor é posto pelo trabalho enquanto trabalho abstrato formado no processo social como um todo, ou seja, como relação socialmente vinculante dos homens entre si. Assim se entende porque Marx afirma que o trabalho abstrato é a substância do valor e porque explica a sua determinação quantitativa como tempo de trabalho socialmente necessário para produzir a mercadoria. Até esse momento da exposição, foi feita uma distinção entre a coisa em sua fisicalidade, a coisa como valor de uso e a coisa como mercadoria. Logo, não se pode estabelecer uma identidade entre coisa física e mercadoria, tal como o faz implicitamente Germer ao argumentar contra Corazza. Pois, a coisa física considerada é já, simplesmente, a materialidade que recebeu a forma mercadoria. E por coisa física que se tornou valor de uso não se entenda apenas aquilo que, após ter sido produzido pelo trabalho, passa a ter uma existência independente (os bens), mas também aquilo que se consome imediatamente assim que é produzido (os serviços). Ademais da forma valor de uso, a mercadoria recebeu também a forma de valor que se expressa no valor de troca (uma quantidade determinada de outra mercadoria). Note-se agora, passando para o momento seguinte, que Marx tem por verdade a seguinte afirmação: conquanto nem toda mercadoria seja dinheiro, é certo que o dinheiro é mercadoria, mas propriamente uma mercadoria sui generis. Logo, considera-se aqui como correta a afirmação de Germer acima citada, segundo a qual “o dinheiro é o nome que se dá à mercadoria que desempenha a função de equivalente geral de valor”. Mas, o que significa dizer que dinheiro é mercadoria? Significa afirmar que o dinheiro é também, tal como todas as outras, valor de uso e valor. Eis que é valor porque todo montante de dinheiro contém um determinado quantum de trabalho abstrato; ademais, é valor de uso porque funciona como equivalente geral e tem várias funções na circulação das mercadorias. Completando o parágrafo imediatamente precedente ao anterior, note-se agora que não se pode endossar a proposição de Germer segundo REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013134. a qual “o dinheiro e o material de que é feito são a mesma coisa”. O dinheiro é uma forma; o material do dinheiro é um suporte dessa forma. Ao confundir a forma com o suporte da forma, ele cai no fetichismo da mercadoria e do dinheiro. Como se sabe, é correto dizer que, nas condições históricas do capitalismo inglês dos séculos XVIII e XIX, “o dinheiro era ouro”, mas não se pode afirmar que aí, nessas condições, “o ouro era dinheiro”. Pois, nessa segunda expressão confunde-se a forma social “dinheiro” com o valor de uso “ouro” ou, pior ainda, com matéria natural “ouro”. E isto é precisamente o que faz Germer quando identifica peremptoriamente o dinheiro e o material do dinheiro. Na primeira expressão, diferentemente, indica-se que o ouro, devido às suas propriedades naturais excepcionais, foi o material escolhido pelo processo social para figurar como dinheiro em certo espaço histórico – mas que, entretanto, ele próprio, em si mesmo, não era dinheiro. Por isso, ela (a primeira expressão) é dialeticamente correta. Dinheiro como forma Logo na introdução de seu artigo que dá origem à controvérsia, Corazza afirma que “para Marx, o aspecto mais importante do dinheiro não consiste em ser uma mercadoria, mas pura forma imaterial do valor” (Corazza, 1998, p. 45). Ora, é evidente que a primeira parte dessa afirmação é, senão totalmente incorreta, pelo menos bem ambígua. Pois, facilmente se comprova que o caráter mercadoria do dinheiro é crucial na apresentação do próprio dinheiro em O Capital. Depois de chegar à “forma geral de valor” em que o linho é selecionado como mercadoria extra do mundo das mercadorias ordinárias, Marx diz, por exemplo, que “a forma valor geral relativa do mundo das mercadorias imprime à mercadoria equivalente, excluída dele, o linho, o caráter de equivalente geral” (Marx, 1983A, p. 67). Contudo, é evidente também que a segunda parte de sua afirmação aponta para algo correto. Pois, o dinheiro é mesmo forma do valor, vindo a ser, precisamente, a forma equivalente geral. Entretanto, para que essa correção seja estabelecida com precisão é preciso dispensar certos termos nela contida. A afirmação de Corazza deve ser modificada. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013 .135 Primeiro, porque o dinheiro não pode ser dito “pura forma” do valor. Na verdade, como já foi dito, ele é uma forma não pura, pois requer um material que lhe sirva de suporte: o ouro, a prata, etc.; justamente por essa razão, como se sabe, o dinheiro é uma forma reificada. Note-se, de passagem, que pura forma é produto da abstração e, como tal, não pode existir no mundo real. Segundo, porque não é adequado se referir ao dinheiro como sendo uma “forma imaterial”, conquanto seja preciso afirmar fortemente que ele é uma forma. Embora a forma dinheiro não possa ser dita material em si mesma, ela é forma impressa necessariamente em determinada matéria, isto é, na matéria específica que o processo social põe como dinheiro. Pois, como se sabe, forma e matéria são determinações reflexivas na lógica dialética que vem de Hegel. E isto está expresso no texto de O Capital. Depois de se referir ao dinheiro como mercadoria equivalente geral, Marx diz expressamente que a “sua própria forma natural” – ou seja, a matéria própria do dinheiro posta como dinheiro – “é a figura de valor comum a esse mundo”, isto é, ao mundo das mercadorias (Marx, 1983A, p. 67).6 Por que Corazza quer “resgatar a natureza formal e imaterial do dinheiro em Marx”? Por que se refere ao dinheiro como uma “pura forma imaterial do valor”? A resposta surge quando se nota a sua preocupação de fundo, a qual se revela na seguinte frase: “afirmar que o dinheiro é necessariamente uma mercadoria, o ouro, torna difícil, para não dizer impossível, sua utilização para explicar os fenômenos monetários contemporâneos” (Corazza, 1998, p. 55). Como julga que o ouro perdeu, em suas palavras, a capacidade de representar o valor da riqueza criada, ele quer salvar a concepção marxiana de dinheiro diante do advento histórico do dinheiro mundial inconversível (o dólar papel). Assim, para fugir da “materialidade do dinheiro” (sic!), ele passa a acolher somente a sua “imaterialidade” (sic!). Ora, nesse caminho, ele cai – ainda que motivado pelo próprio modo de ser aparente do objeto – numa concepção convencionalista de dinheiro, pois passa a admitir que o suporte da forma seja irrelevante enquanto tal, já que vem a ser algo instituído pelos homens.7 Como Corazza, tal como Germer, identifica também mercadoria com a matéria que lhe dá sustentação, afirma que dinheiro, por ser imaterial, não é mercadoria. E nisso difere de Germer já que REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013138. Dinheiro fictício Para prosseguir, é preciso fazer aqui um desafio ao argumento de bom senso de Germer. De fato, não é estritamente verdade que para medir pesos de objetos físicos em geral seja necessário possuir um estalão que tenha peso. Pois, bem se sabe que é possível medir pesos por meio do grau de expansão longitudinal de uma mola de aço. A mola enquanto um objeto físico certamente tem peso, mas ela não mensura o peso de outros objetos porque tem peso, mas porque ela é capaz de representar peso por meio de uma equivalência de forças. Veja-se aonde se chegou com essa argumentação: a) não é possível medir peso sem um padrão de peso, isto é, sem a definição de um quantum de peso que funcione como unidade; b) o mensurador de peso, no entanto, não precisa ele próprio ter o peso definido como padrão, pois pode em princípio representá-lo de outra forma. Subjacente a essa representação de peso se encontra sempre e necessariamente uma relação de equivalência de forças, mas esta pode permanecer implícita, configurando-se, então, como um enigma no campo da Física. É óbvio que essa ciência natural resolveu já este enigma há muito tempo.9 Quando se examina o caso do dinheiro-papel de curso forçado, admitindo que ele seja dinheiro plenamente, o enigma se apresenta assim: a) o suporte dessa forma de dinheiro, embora seja mercadoria papel- impresso, não é mercadoria que possa funcionar imediatamente como equivalente geral, pois o valor-trabalho aí implícito, diferentemente daquele existente na mercadoria ouro, é muito inferior ao valor-trabalho que eventualmente possa representar na sua condição de equivalente geral; na verdade, do ponto de vista prático, o valor aí existente deve ser considerado nulo; b) o dinheiro mundial no capitalismo contemporâneo é o dólar e esse dinheiro-papel, ao ser tomado como pleno, também tem de funcionar como medida de valor, mas como pode fazê-lo sem conter valor-trabalho? Como resolver essa dificuldade? Por um lado, é preciso negar que o dinheiro-papel venha a ser plenamente dinheiro. Mas, por outro, é necessário admitir que possa, de certo modo, representar um valor que não possui já que porta uma equivalência implícita com o ouro. Mas, nesse caso, como é possível pensar essa relação socialmente tácita de valor? REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013 .139 Antes de tentar dar resposta a essa pergunta, é preciso examinar uma proposta hegeliana para a boa compreensão do dinheiro mundial inconversível na tradição marxista. Paulani, com o intuito de sustentar a relevância das concepções de Marx para o entendimento do capitalismo contemporâneo, enxerga o advento dessa forma de dinheiro “como uma espécie de ‘realização’ de um processo de autonomização das formas sociais que está inscrito na própria mercadoria e que a empurra lógica e ontologicamente em direção às formas mais abstratas de riqueza como o capital financeiro e o capital fictício” (Paulani, 2011, p. 51). Nesse sentido, ela explica esse aparecimento como resultado de uma tendência que estaria inscrita na própria lógica que preside o movimento das formas sociais. Estas, no modo de produção capitalista, por negação dialética, tenderiam a perder a sua aparência natural e a se transformarem em “formas verdadeiramente sociais”. Por mais interessante que possa ser esse esclarecimento do sentido lógico da transformação do dinheiro, julga-se aqui que ele, em si mesmo, não explica a natureza qualitativa do dinheiro-papel. Ademais, nele não há qualquer suspeita de que possa haver uma conexão implícita do dinheiro-papel com o dinheiro-ouro. Em especial, não responde como o dinheiro-papel pode medir valor sem ser valor ele mesmo.10 Por isso, aqui se vai procurar outro caminho. Segundo a concepção de Marx em sua formulação original – ainda que Corazza discorde –, se o dinheiro exerce a função de medida de valor, tem necessariamente de ser valor, já que essa função decorre imediatamente do fato de que é equivalente geral. Conforme a experiência histórica contemporânea – ainda que Germer resista a essa evidência –, o dinheiro mundial figura como algo que não tem valor intrínseco. A solução desse enigma requer, pois, uma solução no âmbito da dialética: a contradição que aparece no curso da análise só pode ser o reflexo de uma contradição real: o dinheiro mundial atual tem valor e não tem valor, ou seja, ele tem valor meramente fictício. Destarte, para apreender essa contradição é preciso suprimir e superar a polaridade em questão, chegando ao conceito de dinheiro fictício. Tem-se assim, portanto, uma forma de valor que “não” possui valor, mas o representa de algum modo. Note-se que o “valor” do dinheiro fictício é normalmente apreendido pelos agentes que atuam no processo mercantil como poder de compra. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013140. Nesse sentido, parece correta a afirmação de que a existência do dinheiro fictício como dinheiro mundial só veio ocorrer historicamente com o desenvolvimento do capitalismo no âmbito mundial. O seu vir a ser, entretanto, pode ter ocorrido já quando o ouro foi se tornando mera reserva fracionária. Não importa. Para efeito desse estudo, constata-se apenas que está presente no capitalismo contemporâneo centrado nos Estados Unidos e que se manifesta como dólar. Diante da evidência histórica, mantém-se aqui a tese de que o dinheiro, agora fictício, não poderia se sustentar no mundo atual se não tivesse uma relação de equivalência implícita com o ouro, o qual, aliás, continua tendo um papel importante nas reservas monetárias dos países centrais. E se rejeita a tese oposta segundo a qual “no século XX, cresceu extraordinariamente a importância do dinheiro de crédito, de tal modo que a conexão do equivalente geral à mercadoria [ouro] foi completamente dissolvida” (Ivanova, 2012). Pois, essa autora, como muitos outros que ousam pensar o dinheiro, tomba na ilusão convencionalista ao admitir a completa independência do suporte da forma em relação ao ouro. É preciso lembrar aqui que Marx rejeitou firmemente a tese de que o dinheiro possa ser uma mera convenção. Por exemplo, numa nota de rodapé de O Capital, ele criticou Fullarton por sustentar que “um valor dessa espécie [ou seja, notas de papel não conversíveis] poderia servir a todos os objetivos de um valor intrínseco e até mesmo tornar supérflua a necessidade de um padrão de valor” (apud Marx, 1983A, p. 109). Essa possibilidade, para ele, era inexistente. Ora, essa afirmação de conteúdo teórico inequívoco tem também um contexto histórico bem característico. Marx pressupõe aí que a “moeda papel é signo do ouro ou signo do dinheiro” (Marx, 1983a, p. 109). Ora, essa vem a ser a primeira forma lógica do dinheiro-papel, mesmo se ela está de acordo com a realidade histórica de meados do século XIX. De qualquer modo, sendo assim – e isto é bem óbvio –, o dinheiro-papel significa simplesmente, em última análise, qualitativa e quantitativamente, “ouro”. Aqui, porém, enfrenta-se uma realidade histórica diversa que exige um passo lógico adicional na compreensão do dinheiro. Pois, este aparece na sociedade contemporânea como dinheiro-papel cujo valor não pode ser resgatado, de modo garantido pelo Estado, por meio de troca por ouro. Esse dinheiro, entretanto, ao contrário do mero signo REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013 .143 ouro mesmo quando recebia uma solicitação de governos de potências estrangeiras – mesmo quando essas potências eram suas aliadas na Guerra Fria. Isto não significa, porém, que esse ato não superara certas resistências importantes. Ademais, é certo também que ele vinha à luz para produzir consequências econômicas relevantes. Pois, a regra de conversibilidade do dólar estava associada à manutenção da paridade cambial entre as nações mais importantes do sistema capitalista mundial. Enquanto existiu, ela exigia um esforço permanente dos Estados Unidos e das outras potências aliadas na Guerra Fria (Europa Ocidental e Japão) para sustentar o sistema de taxas de câmbio fixas.12 Assim que foi eliminada, a regra de conversibilidade do Acordo de Bretton Woods abriu caminho para a instituição generalizada do regime de câmbio flutuante. Ademais, ela deixou de impor constrangimentos à política monetária desses países e, em particular, à política monetária da potência hegemônica. Ao fazê-lo, abriu caminho para a expansão do crédito e, assim, para a explosão financeira que sobreveio nas décadas seguintes. Como se sabe, também, valendo ou não a regra oficial de conversibilidade, os capitalistas privados sempre puderam transformar os seus dólares em ouro, caso o desejassem, nos mercados específicos em que se transaciona essa commodity. Mesmo se essa conversão se mostrava impossível para todo o montante existente de dólar-papel, para cada pequena parte dele, para cada capitalista em particular, ela permanecia como uma possibilidade efetiva. É sempre por meio de uma falácia de composição praticamente existente que o sistema se sustentava já antes e continuou a se sustentar depois que a janela oficial de conversibilidade se fechou. De qualquer modo, sempre existiu o canal por meio do qual podia se estabelecer socialmente a equivalência do dinheiro-papel com o dinheiro-ouro. Essa relação, contudo, não é de modo algum tranquila nem no curto nem no longo prazo; ao contrário, não só permanece em constante mudança, mas pode se afastar tanto que vem sugerir ao observador empírico que não existe.13 Se em Marx não há conceito de dinheiro fictício, há de capital fictício e este permite pensar a questão aqui examinada por analogia. Segundo ele, capital fictício é uma representação nominal de capital, REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013144. mesmo quando vem a ser uma duplicata de papel de capital real (uma ação, por exemplo). Dito de outro modo, capital fictício não é capital propriamente dito já que este tem necessariamente valor intrínseco; vem a ser sim, diferentemente, capital ilusoriamente real. O que é importante notar é que, mesmo não sendo efetivamente real, o capital fictício é negociável como se o fosse, ou seja, ele “circula normalmente como valor-capital”. Assim, por meio de certos mercados, está permanentemente em relação de equivalência com o capital real, ainda que, como assevera Marx, “o seu montante de valor possa cair ou subir de modo inteiramente independente do movimento de valor do capital real, o qual são títulos” (Marx, 1983B, p. 20). De igual modo, julga-se aqui, o valor fictício do dinheiro-papel oficialmente inconversível está também numa relação de equivalência – que se impõe tendencialmente por meio de flutuações sempre que a emissão não seja excessiva – com o valor real do ouro, por meio do mercado de ouro. Assim se explica como o dinheiro mundial inconversível, mesmo “não” sendo valor, é capaz de mediar a mensuração do valor. Eis que ele representa valor por meio de uma equivalência complexa com o valor do ouro. O dinheiro fictício é uma forma que adere a um material, o papel moeda, que funciona como uma mercadoria virtual. O seu “valor” é socialmente válido, mesmo se não contém qualquer átomo da substância trabalho. A validade social desse valor, entretanto, é colocada em questão nos processos inflacionários que se tornaram endêmicos nas economias capitalistas contemporâneas. A concepção de Marx de dinheiro mundial é historicamente datada, mas também possui um fundo teórico que é irrecusável. Um dinheiro-papel – dólar norte-americano – tornou-se efetivamente o dinheiro mundial e ele não é um mero signo do ouro.14 Porém, ele não pode ser dinheiro sem manter uma relação de equivalência implícita com o ouro. Se essa relação implícita desaparecer, ele vira fumaça, assim como vira fumaça uma ação (capital fictício) que representa um capital real que foi inteiramente queimado pelo fogo. Tudo isso é evidentemente bem implausível da perspectiva da ciência positiva; desse modo, porém, não se pode compreender verdadeiramente qualquer sociedade. Eis que na constituição de toda sociedade estão presentes idealidades objetivas, as quais não são meramente intersubjetivas. REVISTA Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 35, p. 129-152, junho 2013 .145 Condições históricas A solução aqui proposta para a questão do dinheiro mundial inconversível no âmbito do marxismo contém elementos que já estavam esboçados de certo modo no artigo original de Carcanholo, no qual ele procurou relacionar o capital especulativo à “desmaterialização” (sic!) do dinheiro (Carcanholo, 2001). Pois, diferentemente dos dois outros autores antes discutidos, ele quis enfrentar as contradições lógicas apresentadas pelo dinheiro no seu curso histórico de desenvolvimento. O problema surge, para ele, porque a ausência de valor intrínseco inerente às formas existentes de capital fictício parece estar em contradição com a sua necessária presença no dinheiro-mercadoria tal como este foi pensado por Marx. Ao seu modo, ele interroga essa incongruência mediante a seguinte frase: “podemos seguir sustentando como ‘definição’ eterna que dinheiro = ouro?” (Carcanholo, 2001, p. 39). Para continuar é preciso refazer essa questão de um modo mais rigoroso: se, para se desenvolver, o capital especulativo faz uso de meios meramente simbólicos, porque o dinheiro deveria estar prisioneiro da mercadoria dourada como seu suporte necessário?15 Ora, Marx não define rigidamente o dinheiro como ouro, mas conclui que a forma dinheiro, enquanto medida de valor, requer necessariamente como suporte uma mercadoria real. Ademais, ao contrário do que supõe Carcanholo, o seu texto mostra abundantemente que no exercício de outras funções, o dinheiro passa a requerer suportes menos restritivos, sem qualquer valor intrínseco apreciável. Ademais, para ele, a medida de valor é uma função intrínseca, necessária e sistêmica do dinheiro que é negada na aparência pelas práticas mercantis e, assim, pela consciência dos agentes. Estes, imersos no mundo das mercadorias, preocupam-se meramente, isto sim, com a formação dos preços. A resposta que dá a sua própria questão tem, entretanto, certo interesse. Para apreciá-lo, é preciso perceber, em primeiro lugar, que a forma equivalente geral já é, ela mesma, segundo o próprio Marx, uma representação, qual seja, uma representação universal de valor. Depois de citar uma frase de Marx em que este afirma do dinheiro que ele se exclui em relação a todo e qualquer valor de uso para cumprir a sua
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