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Anti-Dühring, O - Friedrich Engels, Notas de estudo de Direito

Filosofia - Filosofia

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 03/09/2010

odair-jose-6
odair-jose-6 🇧🇷

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Baixe Anti-Dühring, O - Friedrich Engels e outras Notas de estudo em PDF para Direito, somente na Docsity! Apresenta ANTI-DÜHRING Herr Eugen Dühring's Revolution in Science Friedrich Engels APRESENTAÇÃO Nélson Jahr Garcia (in memorian!) O marxismo é um conjunto de idéias filosófico-ideológicas, com traços de economia. Procura explicar a estrutura e funcionamento do sistema capitalista e avaliar caminhos para a superação de suas deficiências. Suas concepções básicas foram assimiladas, aceitas e seguidas por mais da metade da população do globo terrestre. Infelizmente as idéias de Marx transformaram-se em dogmas religiosos, mesmo quando o tempo começava a abalar seus fundamentos. Qualquer contestação às teses de Marx, Lenin, Stalin, Mao e tantos outros geravam, para o autor da crítica, acusações de "reacionário", "porco revisionista", "burguês explorador", "pequeno-burguês egoísta". Os defensores do ideário capitalista também criaram uma religião, ainda mais severa e intolerante. Os marxistas, socialistas, anarquistas, toda a esquerda enfim eram acusados de "criminosos", "comedores de criancinhas", "vermelhos adeptos do demônio", "risco para a juventude, a família e a religião cristã". Repentinamente caiu o Muro de Berlim. Aliás não caiu, porque bem construído, mas foi derrubado, tijolo por tijolo, pedra por pedra. A derrubada foi feita pelos que não mais suportavam o autoritarismo burocrático-religioso e, há anos, vinham sonhando com a liberdade que, apesar de tudo, ainda não é plena. Hoje se pode conhecer as afirmações marxistas, não como dogmas, mas como um conhecimento que é herdeiro da antigüidade clássica (Grécia, Roma), do Oriente antigo, da Filosofia alemã e francesa, da Economia inglesa. Suas análises são de uma lógica rigorosa, a análise das distorções do capitalismo é sugestiva e intrigante. A leitura e, principalmente, o estudo das obras de Marx permite ao leitor e estudioso aperfeiçoar sua sensibilidade crítica, possibilitando-lhe entender melhor as concatenações que estão na base da Sociedade e do Estado. A dificuldade é que os textos são complexos, discutem minúcias e pormenores nem sempre facilmente compreensíveis de imediato. Talvez seja mais fácil começar com Engels. Friedrich Engels teve uma formação muito semelhante à de Marx, era seu amigo e co-autor em várias obras. Tinha uma linguagem mais clara, direta e objetiva embora sua argumentação nem sempre fosse muito profunda. Escreveu, dentre outros, dois livros: "Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico" e "Anti-Dühring". No primeiro descreve a evolução do pensamento socialista nos séculos XVIII e XIX, suas origens econômicas e políticas; discute suas forças e deficiências (O livro se encontra neste site e em www.ebooksbrasil.com). Em Anti-Dühring, tece críticas severas às obras do pensador, Senhor (Herr) Eugen Dühring. Ao fazê-lo, usa de um humor cáustico e, muitas vezes, extremamente agressivo., vejamos uns poucos exemplos: "Não é bastante que me resolva eu a classificar uma escova de sapatos na classe dos mamíferos, para que a mesma, como que por encanto, apresente glândulas mamárias." "...o Sr. Dühring também nos fala (pág. 84) da "gravitação dos átomos" mas com isso prova unicamente que vive "nas trevas"..." "...o Sr. Dühring fala de coisas que conhece muito pouco." "...todas as demais vitórias do Sr. Dühring, anunciadas por frases pomposas e retumbantes deram como resultado, em todos os setores a que se aplicaram, uma pura farsa." Ao criticar expõe os principais fundamentos do socialismo marxista: "a determinação em última instância pelo econômico"; "a filosofia da natureza"; "os princípios da dialética"; "a violência política"; "capital e mais-valia"; "exploração do homem pelo homem"; “o socialismo” e muito mais. PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO O presente trabalho não é, absolutamente, fruto de um "impulso interior". Muito pelo contrário. Quando, há três anos, o Senhor Dühring surgia, cheio de rompante, apresentando-se, ao mesmo tempo, como adepto e reformador do socialismo, disposto a trazer o século à luta, alguns amigos da Alemanha expressaram várias vezes o desejo de que eu fizesse; no órgão do partido social-democrata, então o Volksstaat, um estudo crítico da nova doutrina socialista. Consideravam tal estudo grandemente útil, a menos que não se quisesse proporcionar ao sectarismo existente no jovem partido, ainda em formação e distante de sua unidade definitiva, uma nova oportunidade para divergência e confusão. Estavam eles, melhor do que eu, em condições de julgar a situação da Alemanha: via-me obrigado a dar-lhes crédito. Demais, pode-se verificar que parte da imprensa socialista se pôs a dar boas-vindas ao novo apóstolo com um entusiasmo que não era unicamente condescendência, mas deixava transparecer alguma inclinação para acolher, sem reservas, o Senhor Dühring, e, o que é mais, a doutrina do Senhor Dühring. Havia mesmo pessoas que já se julgavam no dever de difundir a doutrina entre os trabalhadores. Finalmente, o Senhor Dühring e seus correligionários punham a seu serviço todas os artifícios da propaganda e da intriga para obrigar o Volksstaat a tomar posição definitiva em face da nova doutrina, que entrava em cena com tão consideráveis pretensões. Foi-me preciso, pois, um ano para me resolver a deixar de parte outros trabalhos e trincar esse amargo pomo que, uma vez mordido, tinha que ser comido totalmente. E o mais grave é que esse pomo não era apenas muito amargo, mas, também, muito grande. A nova doutrina socialista apresentava-se como a última distantes, e, hoje, já fora das fronteiras da Europa, prende a atenção em todos os países em que há proletários e cientistas imparciais. Pareceu, então, que havia um público altamente interessado, capaz de acolher, para perpetuar, a polêmica contra a tese do Senhor Dühring (polêmica julgada hoje sem razão de ser por muita gente), e adepto das digressões positivas que acompanham a crítica. Uma observação de passagem: tendo sido criada por Marx, e em menor escala por mim, a concepção exposta neste livro, não conviria que eu a publicasse à revelia do meu amigo. Li-lhe o manuscrito inteiro antes da impressão; e o décimo capítulo da parte segunda, consagrada à economia política (Sobre a história crítica) foi escrito por Marx. Infelizmente, eu o tive de resumir por motivos extrínsecos. Era, aliás, hábito nosso ajudarmo-nos mutuamente na especialização de cada um. Esta nova edição, exceto um capítulo, é idêntica à precedente, De um lado, faltou-me o tempo para a revisão cuidada em que pudesse fazer alterações na exposição. Eu tinha o dever de preparar para a impressão os manuscritos deixados por Marx, diante do que, qualquer outra tarefa é menos importante, Por outro lado, minha consciência opõe-se a qualquer modificação. É esta uma obra de polêmica e não me julgo na obrigação de modificá-la, uma vez que meu adversário em nada se corrigiu. Só poderia aspirar ao direito de replicar ainda uma vez à resposta do Senhor Dühring. Não sei se o Sr. Dühring escreveu alguma coisa respondendo aos meus ataques; e, salvo razão especial, não o lerei jamais: teoricamente liquidei minhas contas com ele. De resto, há outra razão que me obriga a observar, com maior cuidado ainda, o decoro das lutas literárias, em relação ao meu adversário: a vergonhosa indignidade contra ele praticada, posteriormente, pela Universidade de Berlim. A bem dizer, esta última foi punida: uma Universidade que se atreve a cassar ao Senhor Dühring, nas circunstâncias que sabemos, a liberdade de ensinar, não tem o direito de admirar-se de lhe terem imposto o Senhor Schwenninger, noutras circunstâncias que igualmente conhecemos. O único capítulo em que me permiti adições explicativas foi o segundo da terceira parte: Teoria. Ali, tratou-se unicamente de expor um ponto de vista essencial da concepção que represento: meu adversário não poderia, pois, lamentar-se de que me haja esforçado no emprego de linguagem mais acessível, completando a sucessão das idéias sistemáticas. É certo que fui instigado por outros a fazê-lo. Três capítulos da obra (o primeiro da Introdução e o primeiro e o segundo da terceira parte) foram transformados em brochura especial, por meu amigo Lafargue, atendo-se este à tradução francesa da obra; e, quando a versão francesa serviu de base à polonesa e à italiana, fiz uma edição alemã intitulada: "Do socialismo utópico ao socialismo científico", obra que em poucos meses alcançou três edições e apareceu vertida para o russo e o dinamarquês. Em todas as edições, o capítulo em questão era o único que havia sido aumentado: seria um excesso de zelo que me limitasse, na edição da nova obra, ao texto primitivo, em vez da forma ulterior, tornada internacional. Quanto às demais modificações, que desejaria fazer, referem-se principalmente a dois pontos: primeiramente, à história primitiva da humanidade, assunto de que Morgan só nos deu a chave em 1877. Mas, como, em minha obra "As origens da família, da propriedade privada e do Estado", tive ocasião de ordenar e expor a matéria por mim reunida desde o aparecimento deste livro, bastará recorrer a esse trabalho ulterior. Em segundo lugar, teria desejado modificar a parte relativa às ciências naturais. Nota-se ali grande descuido de exposição e há várias coisas que hoje poderiam ser expressas com maior precisão e clareza, Não me arrogando o direito de corrigir, julgo-me na obrigação de fazer esta crítica. Marx e eu fomos, sem dúvida alguma, os únicos que salvaram da filosofia idealista alemã a dialética consciente, incluindo-a na nossa concepção materialista da natureza e da história. Mas uma concepção da história, a um tempo dialético e materialista, exige o conhecimento das matemáticas e das ciências naturais. Marx foi um consumado matemático: mas, de nossa parte, não pudemos estudar senão fragmentariamente, de quando em quando, as ciências naturais. A medida que ocupações comerciais e a minha mudança para Londres mo foram permitindo, fiz uma completa mise en mue, como diria Liebig, das matemáticas e ciências naturais, tarefa em que empreguei quase oito anos. Estava eu em meio desse trabalho, quando me ocupei do Senhor Dühring e de sua pretensa filosofia da natureza. Se, pois, nem sempre atino com a exata expressão técnica, e se, por vezes, me vejo em alguma dificuldade no domínio das ciências naturais, é naturalíssimo. Por outro lado, a consciência da própria incerteza me fez prudente: ninguém me poderá atribuir erros patentes sobre fatos então conhecidos, nem inexatidão na exposição das teorias professadas na época. A tal respeito, só surgiu um grande matemático pouco conhecido, a queixar-se, numa carta dirigida a Marx, de que eu havia criminosamente atentado contra a honra da . Tratava-se, evidentemente, de que eu, ao fazer a recapitulação das matemáticas e ciências naturais, procurava convencer-me sobre uma série de pontos concretos - sobre o conjunto eu não tinha dúvidas, - de que, na natureza, se impõem, na confusão das mutações sem número, as mesmas leis dialéticas do movimento que, também na história, presidem à trama aparentemente fortuita dos acontecimentos; as mesmas leis que, formando igualmente o fio que acompanha, de começo a fim, a história da evolução realizada pelo pensamento humano, alcançam pouco a pouco a consciência do homem pensante; leis essas primeiramente desenvolvidas por Hegel, mas sob uma forma que resultou mística, a qual o nosso esforço procurou tornar acessível ao espírito, em toda a sua simplicidade e valor universal. Será excusado dizer que a velha filosofia natural, - apesar das muitas coisas boas que realmente continha e dos muitos germes fecundos que encerrava (1)- não poderia contentar-nos: conforme se expõe minuciosamente neste livro, consiste-lhe o defeito na forma hegeliana de não reconhecer na natureza nenhum desenvolvimento no tempo, nenhuma "sucessão", mas simplesmente uma "coexistência" (Nacheinandr-Nebeinander). Tal defeito tinha razão de ser, de uma parte, no sistema hegeliano de per si, que não atribuia ao espírito seqüência de desenvolvimento histórico, e, de outro lado, no estado das ciências naturais na época. Assim, Hegel recua, neste ponto, bem para antes de Kant que, em sua teoria da nebulosa, já punha em foco o problema das origens e cujo descobrimento do obstáculo que, segundo se supunha, as marés criavam ao movimento de rotação da terra, anunciava já a consolidação do sistema solar. Finalmente, o problema, para mim, consistia, não em impor à natureza leis dialéticas predeterminadas, mas em descobri-las e desenvolvê-las, partindo da mesma natureza. Seria, no entanto, tarefa de gigante seguir este preceito de forma sistemática e em todos os domínios. Não só porque o objetivo a considerar é de quase impossível cálculo, mas ainda porque em todo este terreno a própria ciência da natureza é dominada por um desenrolar tão violento de fenômenos, que a custo a poderia seguir o homem que dispusesse de todo o seu tempo. Ora, desde a morte de Carlos Marx, meu tempo tem sido ocupado por deveres mais urgentes, que me forçam à interrupção do próprio trabalho. Estou, pois, provisoriamente, na contingência de me limitar, na presente obra, a aguardar a ocasião, se é que ela não virá muito tarde, de reunir e publicar os resultados obtidos, bem como, ao mesmo tempo, os importantíssimos manuscritos matemáticos deixados por Marx, Possivelmente, de resto, o progresso da ciência teórica tornará supérflua grande parte, senão a totalidade do meu trabalho. Porque é considerável a simples tarefa de pôr em ordem as descobertas puramente empíricas, que se acumulam sempre, a fim de tornar progressivamente mais evidente o caráter dialético dos fenômenos, ainda mesmo aos mais recalcitrantes empiristas. As velhas antíteses rígidas, as linhas nítidas de demarcação intransponíveis, desaparecem pouco a pouco. Desde a fluidificação dos últimos gases "autênticos"; desde a prova obtida de que um corpo pode ser reduzido a um estado em que a forma liquida e a forma gasosa são indiscerníveis, os estados de agregação perderam a última parte do caráter que possuíam anteriormente. Com a fórmula da teoria cinética dos gases, pela qual, nos gases perfeitos, os quadrados das velocidades com que se move cada molécula gasosa são, a iguais temperaturas, inversamente proporcionais aos pesos moleculares, o calor entra, por seu turno, na série de fórmulas diretamente mensuráveis. Ainda há dez anos, a grande lei fundamental do movimento, que acaba de ser descoberta, era conhecida como lei da "conservação da energia", simples expressão da indestrutibilidade e da invariabilidade do movimento do ponto de vista puramente quantitativo; mas, cada vez mais, esta estrita expressão negativa se substitui por uma expressão positiva: a da transformação da energia, onde se tem em conta, pela primeira vez, o conteúdo qualitativo do processus e o desaparecimento das últimas reminiscências de um criador sobrenatural. Já não há necessidade de afirmar-se, como se fora novidade, a idéia de que a quantidade de movimento (daquilo a que se dá o nome de "energia") não se transforma quando, de energia cinética, dita "força mecânica", ela se converte em eletricidade, calor, energia potencial e reciprocamente. Ela serve de base, doravante bem mais sólida, do processus de metamorfose em si mesmo, do grande processus fundamental cujo conhecimento encerra o conhecimento integral da natureza. E, desde que a biologia se desenvolve à luz da teoria evolucionista, foram-se apagando igualmente, no domínio da natureza orgânica, uma a uma, as linhas divisórias da classificação: elementos intermediários quase inclassificáveis multiplicam-se dia a dia; qualquer estudo mais acurado nos revela organismos de uma classe em outra e os caracteres distintivos, tornados quase artigos de fé, perdem o seu valor absoluto: possuímos hoje mamíferos ovíparos, e, se a notícia se confirma aves que caminham sobre quatro patas. Se a célula impôs a Virchow, há anos, a contingência de resolver a individualidade animal (consequentemente humana), numa federação de elementos celulares, este fato ainda mais se complica pela descoberta dos glóbulos brancos do sangue, que circulam à maneira de amebas no corpo dos animais superiores. Ora, são estas, precisamente, as contradições diametrais tidas como insolúveis; são estas as linhas divisórias e de distinção determinada classe, mas toda a humanidade, com a instauração do reinado da razão e da justiça eterna. Mas entre eles e os racionalistas abria-se um abismo. Os novos pensadores descobrem que também o mundo burguês, instaurado segundo os princípios do racionalismo, é injusto e irracional, merecendo, portanto, ser desprezado como um traste inútil, da mesma forma como já o foram o feudalismo e as formas sociais que o precederam. Se, até então, a verdadeira razão e a verdadeira justiça não governaram o mundo, Isso se deve a que. segundo o seu modo de ver, ninguém ainda conseguiu alcançá-las. Faltava o homem genial que só agora se ergue frente a humanidade, com o segredo da verdade que por fim foi descoberto. Por que é que só agora esse homem se levanta, por que é que só agora, e não antes nem depois, é que se descobre o segredo da verdade? Não foi porque isso lhe fosse imposto como algo de inevitável, pela concatenação do desenvolvimento histórico mas apenas porque a sorte assim o quis. O mesmo poderia ter ocorrido há quinhentos anos e teria sido poupada a humanidade de quinhentos anos de erros, de sofrimentos e de lutas. Esse modo de ver é, em suma, o de todos os socialistas ingleses e franceses e o dos primeiros socialistas alemães, sem excluir Weitling. O socialismo é a expressão da verdade, da razão e da justiça absoluta, e é suficiente descobri-lo para que se imponha ao mundo por sua própria virtude. E, como a verdade absoluta é independente do espaço, do tempo, do desenvolvimento do homem e da história, só o acaso pode decidir quando e onde se deve revelar o seu descobrimento. Acrescente-se a isso que a verdade absoluta, a razão e a justiça absolutas, variam conforme o fundador de cada escola. E, como o caráter específico da verdade, da razão e da justiça absolutas é agraciado, por sua vez, em cada um deles, com a inteligência pessoal, as condições de vida, o estado dos conhecimentos e a disciplina mental, forçosamente surge um conflito entre as verdades absolutas, não restando outra solução senão a dos atritos ou fusões de umas com as outras. Era, pois, natural e inevitável, que surgisse uma espécie de socialismo eclético e, com efeito, a maior parte dos operários socialistas da França e da Inglaterra têm, nos cérebros, uma mistura pitoresca que admite, aliás, toda uma série de matizes, na qual se fundem os princípios econômicos, as expansões críticas e as representações sociais do futuro, dos diversos fundadores de seitas. Essa mescla é tanto mais fácil de ser composta quanto mais depressa os ingredientes individuais vão perdendo, no curso das discussões, seus contornos agudos e concretos, como se fossem pedras aplainadas pela corrente do rio. Assim, para converter o socialismo numa ciência, só era possível situando-o no terreno da realidade. Entretanto, junto à filosofia francesa do século XVIII surge, logo após, a moderna filosofia alemã, à qual Hegel dá o último remate. O principal mérito dessa filosofia foi a restauração da dialética como forma suprema do pensamento. Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos por natureza e o cérebro mais universal dentre eles, Aristóteles, chegou até a penetrar na forma mais substancial do pensamento dialético. Em troca, a nova filosofia, tendo alguns brilhantes pensadores dialéticos (por exemplo, Descartes, Spinoza), deixou-se dominar cada vez mais pelas chamadas especulações metafísicas, influenciada principalmente pelos ingleses, das quais não se livram também os autores franceses do século XVIII, pelo menos no que se refere às investigações filosóficas. Fora do estrito campo da filosofia, os franceses souberam também criar obras mestras de dialética, como, por exemplo, O Sobrinho do Rameau, de Diderot, e o estudo de Rousseau sobre A origem da desigualdade, dos homens. Resumiremos concisamente os traços principais de ambos os métodos filosóficos, sem que, com isso, deixemos de estudar, mais adiante, com mais detalhes, esse assunto. Se submetermos à consideracão especulativa a natureza ou a história humana ou a nossa própria atividade espiritual. encontrar-nos-emos, logo de inicio, com uma trama infinita de concatenações e de mútuas influências, onde nada permanece o que era nem como e onde existia, mas tudo se destrói, se transforma. nasce e perece. Esta intuição do mundo. primitiva, simplista, mas perfeitamente exata e congruente com a verdade das coisas, foi utilizada pelos antigos filósofos gregos e aparece expressa, claramente, pela primeira vez, em Heráclito: tudo é e não é, pois tudo flui, tudo está sujeito a um processo constante de transformação, de incessante nascer e perecer, Mas esta intuição, por ser exatamente a que reflete o caráter geral de todo o mundo dos fenômenos, não basta para explicar os elementos isolados de que se forma todo esse mundo. E esta explicação é indispensável, pois, sem ela, nem mesmo a imagem total adquirirá sentido exato. Para penetrar nesses elementos, antes de mais nada, precisamos destacá-los de seu tronco histórico ou natural e investigá-los separadamente, cada um de per si, em sua estrutura, causas e efeitos que em seu seio se produzem, etc... Com efeito, é essa a missão primordial das ciências naturais e da história, ramos de investigação que os gregos clássicos situavam, com bastante razão, num plano puramente secundário, uma vez que o seu papel se restringia, substancialmente, a fornecer, por um trabalho de classificação, os materiais científicos. Os rudimentos das ciências naturais exatas não se desenvolveram até chegar aos gregos do período alexandrino e, muito mais tarde, na Idade Média, com os árabes. Na realidade, a autêntica ciência da natureza data somente da segunda metade do século XV e, a partir de então, não fez mais que progredir com velocidade constantemente acelerada. A análise da natureza em suas diferentes partes, a classificação dos diversos fenômenos e objetos naturais em determinadas categorias, a investigação interna dos corpos orgânicos segundo a sua diferente estrutura anatômica, foram outras tantas condições fundamentais a que obedeceram os progressos gigantescos realizados nos últimos quatrocentos anos, no que se refere ao conhecimento científico da natureza. Mas estes progressos processaram-se juntamente com o progresso no modo de analisar as coisas e os fenômenos da natureza, isoladamente, destacados da grande concatenação do universo. Não são, pois, encarados dinamicamente, mas estaticamente, não são considerados como situações substancialmente variáveis, mas como dados fixos, dissecados como materiais mortos e não apreendidos como objetos vivos. Por esse método de observação, ao passar, com Bacon e Locke, das ciências naturais à filosofia, sobreveio a limitação especifica, característica destes últimos tempos, no método metafísico de especulação. Para o metafísico, as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos isolados de investigação, objetos fixos, imóveis, observados um após o outro, cada qual de per si, como algo determinado e perene. O metafísico pensa em toda uma série de antíteses desconexas: para ele, há apenas o sim e o não e, quando sai desses moldes, encontra somente uma fonte de transtornos e confusão. Para ele, uma coisa existe ou não existe, Não concebe que essa coisa seja, ao mesmo tempo, o que é uma, outra coisa distinta. Ambas se excluem de modo absoluto, positiva e negativamente, causa e efeito se revestem da forma de uma antítese rígida. A primeira vista, esse método especulativo parece-nos extraordinariamente plausível, porque é o do chamado senso comum. Mas o verdadeiro senso comum, personagem bastante respeitável dentro de portas fechadas, entre as quatro paredes de sua casa, vive peripécias verdadeiramente maravilhosas, quando se arrisca pelos amplos campos da investigação. E o método do pensamento metafísico, por justo e necessário que seja em vastas zonas do pensamento, mais ou menos extensas, de acordo com a natureza do objeto de que se trata, tropeça sempre, cedo ou tarde, com uma barreira que, franqueada, faz com que ele se torne um método unilateral, limitado, abstrato; perde-se em contradições insolúveis, uma vez que, absorvido pelos objetos concretos, não consegue enxergar as suas relações. Preocupado com sua própria existência, não reflete sobre sua gênese e sua caducidade; concentrado em suas condições estáticas, não percebe a sua dinâmica; obcecado pelas árvores não consegue ver o bosque. Na realidade de cada dia, sabemos, por exemplo, e disso podemos dizer ter toda a certeza, se um animal existe ou não. Mas, se investigarmos mais detalhadamente, veremos que o problema pode complicar-se, e de fato se complica às vezes consideravelmente, como não o ignoram os juristas que, em vão, se atormentam para descobrir um limite nacional, a partir do qual deve ser considerado como um assassinato a morte de um feto no útero materno. Tampouco é fácil determinar fixamente o momento da morte, uma vez que a fisiologia demonstrou que a morte não constitui um acontecimento automático, instantâneo, mas faz parte de um longo processo. Do mesmo modo, pode-se afirmar que todo o ser orgânico é, no mesmo momento, ele mesmo e um outro. Surpreendido em qualquer instante, estará assimilando materiais absorvidos do exterior e eliminando outros de seu seio. Em qualquer momento que o observarmos, veremos que em seu organismo morrem umas células e nascem outras. E, no transcurso de um período mais ou menos longo, a matéria de que está formado se renova radicalmente e novos átomos de matéria ocupam o lugar dos antigos, donde se pode concluir que todo o ser orgânico é, ao mesmo tempo, o que é e um outro. Mesmo assim, se observarmos as coisas detidamente, veremos que os dois pólos de uma antítese, o positivo e o negativo, são antitéticos e que, apesar de todo seu antagonismo eles se completam e se articulam reciprocamente. E vemos, também, que a causa e o efeito são representações que só vigoram como tais na sua aplicação ao caso concreto, mas que, situando o fato concreto em suas perspectivas gerais. articulado com a imagem total do universo, se diluem na idéia de uma trama universal de ações recíprocas, onde as causas e os efeitos trocam constantemente de lugar e o que, antes, era causa, toma, logo depois, o papel de efeito e vice-versa. Nenhum desses fenômenos e métodos de investigação se enquadra nos limites das especulações metafísicas. O contrário acontece com a dialética, que encara as coisas e as suas imagens conceituadas, substancialmente, em suas conexões, em sua filiação e concatenação, em sua dinâmica, em seu processo de gênese e caducidade, como os fenômenos que acabamos de expor, que nada mais são do que outras tantas confirmações do método experimental que lhe é próprio. A natureza é a pedra de toque da dialética e não temos outro remédio senão e o trabalho e sobre a harmonia universal e o bem-estar geral das nações como fruto da livre concorrência. Esses fatos não podiam passar desapercebidos, assim como não podia ser ignorado o socialismo francês e o inglês, que eram a sua expressão teórica, embora ainda bastante imperfeita. Mas a velha concepção idealista da história, que ainda não havia sido abandonada, não podia reconhecer sequer interesses materiais de qualquer espécie. Para ela, a produção, como todos os outros fatores econômicos, só existia como acessório, como elemento secundário dentro da "história cultural". Os novos fatos, que a realidade revelava, obrigaram a uma revisão de toda a história antiga e, dessa maneira, ficou demonstrado que a história havia sido, sempre uma história de luta de classes e que estas classes em luta foram, em todas as épocas, condições de produção e de troca, ou seja, fruto das condições econômicas e que a estrutura econômica da sociedade em todos os fatos da história era, portanto. a base real sobre a qual se erigia, em última instância, todo o edifício das instituições jurídicas e políticas, da ideologia filosófica, religiosa, etc.. de cada período histórico. Assim, o idealismo via-se despojado de seu último reduto na ciência histórica. Lançava-se os alicerces para uma concepção materialista e abria-se o caminho para verificar-se que a existência é quem determina a consciência do homem e não é a consciência quem determina a existência, como se afirmava tradicionalmente. Verificamos, assim, que o socialismo tradicional era incompatível com a nova concepção materialista da história bem como a concepção dos materialistas franceses, sobre a natureza, não podia coexistir com a dialética moderna e com as novas ciências naturais. Com efeito, o socialismo críticava o regime capitalista de produção existente e suas conseqüências, mas não conseguiu explicá-lo e, portanto, também não o poderia destruir, limitando-se apenas a repudiá-lo, simplesmente, como imoral. Era preciso, porém, entender esse regime capitalista de produção em suas conexões históricas, como um regime necessário para uma determinada época da história, demonstrando, com isso, ao mesmo tempo, seu aspecto condicional histórico, a necessidade de sua extinção e do desmascaramento de todos os seus disfarces, uma vez que os críticos anteriores se limitavam apenas a apontar os males que o capitalismo engendrava em vez de assinalar as tendências das coisas a que obedeciam. A principal máscara, sob a qual se disfarçava o capitalismo, caiu por terra com a descoberta da mais-valia. Esta descoberta revelou que o regime capitalista de produção e a exploração dos operários que dele se origina tinham, como base fundamental, a apropriação do trabalho não pago. Revelou ainda que o capitalista, mesmo supondo-se que comprasse a força de trabalho de seu operário por todo o seu valor, por todo o valor que representava como mercadoria no mercado, e que este excedente do valor, esta mais-valia era, em última instância, a soma do valor de que provinha a massa cada vez maior do capital acumulado nas mãos das classes possuidoras. Desde então, o processo da produção capitalista e o da criação do capital já não continham nenhum segredo. Estas duas descobertas: a concepção materialista da história e a revelação do segredo da produção capitalista que se resume na mais-valia são devidas a Karl Marx. Graças a estas descobertas, o socialismo converte-se numa ciência, que não é preciso senão desenvolver em todos os seus detalhes e concatenações. Era esse, mais ou menos, o sentido com que se apresentavam as coisas no campo do socialismo teórico e da decadente filosofia, quando o Senhor Eugênio Dühring veio à cena e anunciou, com o auxílio de tambores e fanfarras, a total subversão da filosofia, da economia política e do socialismo, subversão feita unicamente por ele. Vejamos, agora, o que o Senhor Dühring promete e... o que cumpre. Capítulo II - O QUE PROMETE O SR. DÜHRING As obras do Sr. Dühring, que devemos, por ora, tomar em consideração para a nossa análise, são: Curso de Filosofia, Curso de Economia Política e Social e a História Crítica da Economia Política e do Socialismo. No momento, interessa-nos principalmente a primeira das obras por nós citadas. Já na primeira página, o Sr. Dühring se nos anuncia como o homem "que se outorga a representação desse poder (isto é, a filosofia) em sua época e em todo o seu desenvolvimento próximo previsível." Ou, por outras palavras, declara-se como o único filósofo verdadeiro dos tempos presentes e de um futuro "previsível". Quem dele se afasta, saiba que se afasta da verdade, Não é o Sr. Dühring o primeiro que assim raciocina a seu próprio respeito, mas, excluindo-se Richard Wagner - é o primeiro que o afirma com tranqüilidade. E tenha-se em conta que a verdade que ele possui não é uma verdade como outra qualquer, mas "uma verdade definitiva e sem apelação". A filosofia do Sr. Dühring é "o sistema natural ou a filosofia da realidade... A realidade apresenta-se nela de modo tal que exclui toda quimera de representação sonhadora e subjetivamente limitada do mundo". Esta filosofia está, pois, construída de tal modo, que transporta seu autor, por cima das fronteiras, acima de sua limitação pessoal e subjetiva, de modo que nem ele próprio o negará. E, com efeito, nada mais era preciso para que seu autor estivesse em condições de proclamar verdades definitivas e sem apelação, ainda que não tenhamos compreendido, até agora, como pôde realizar-se semelhante maravilha. Este "sistema natural de um saber, precioso por si mesmo, para o espírito, "descobriu, com toda a certeza, sem transigir quanto à profundidade da idéia, as formas fundamentais do Ser", Desde a sua "plataforma verdadeiramente crítica", o Sr. Dühring nos apresenta os elementos de uma filosofia real, projetada, portanto, sobre a realidade da natureza e da vida, ante a qual não se mantém um só horizonte apenas aparente, mas se desenrola ante os nossos olhos surpreendidos, em suas potentes comoções, todas as terras e os céus da natureza exterior e interior; oferece-nos, pois, um novo método especulativo e seus frutos são "resultados e observações radicalmente novos..., idéias originais criadoras de sistema... verdades comprovadas." Nela, temos "um trabalho que encontrará a raiz de sua força na iniciativa concentrada"... supondo-se que isso queira dizer alguma coisa; uma "investigação que desce até as raízes..., uma ciência radical..., uma concepção rigorosamente científica das coisas e dos homens..., um trabalho especulativo que penetra em todos os aspectos e modalidades das coisas..., um esboço criador das hipóteses e conseqüências domináveis pelo pensamento..., o absolutamente fundamental. O Sr. Dühring não se limita a nos oferecer, no campo da Economia Política, "trabalhos histórica e sistematicamente vastos", entre os quais os históricos se distinguem ainda pelo "meu traço historicamente grandioso" e que fazem nascer na economia "ciclos criadores"; além disso, termina suas investigações com um plano socialista completo, pessoal, perfeitamente desenvolvido, da sociedade do futuro, plano que é "o resultado prático de uma teoria clara, que se aprofunda até as últimas raízes" e, portanto, compartilha com a infalibilidade e a virtude de santificação universal, que é o atributo da filosofia dühringuiana, pois, "só sob a forma socialista por mim desenvolvida em meu Curso de Economia Política e Social pode uma autêntica propriedade ocupar o posto dessa propriedade aparente e provisória conquistada pela violência". Já sabe o futuro que, quer deseje ou não, terá que se basear, forçosamente, nessa concepção. Nada nos custaria aumentar essa coleção de elogios dedicados pelo Sr. Dühring ao Sr. Dühring. Mas cremos bastar o que já dissemos para que o leitor tenha algumas dúvidas sobre o fato de ter realmente diante de si um filósofo ou... Não; rogamos ao leitor que reserve sua opinião até conhecer mais de perto o prometido "radicalismo". Se apresentamos todo esse florilégio é porque queríamos simplesmente demonstrar não se tratar de um filósofo e socialista vulgar, desses que se limitam a formular suas idéias deixando que os outros julguem de seu valor, mas de um ser verdadeiramente extraordinário, que afirma possuir a mesma infalibilidade do papa e cuja doutrina, de virtude universalmente santificadora, deve ser aceita. sem discussão, se não se quiser incorrer na mais horrenda das heresias. Não, não se trata, absolutamente, de um desses trabalhos que enchem e superlotam as literaturas socialistas de todos os países e, ultimamente, também da Alemanha, de um desses trabalhos que as pessoas de diversos níveis procuram, com a maior sinceridade, para alcançar conclusões claras sobre os problemas para cuja solução lhes falta, em maior ou menor quantidade, dados e conhecimentos. mas nos quais, apesar de seus defeitos científicos ou literários, merece sempre ser tomada em conta a boa vontade socialista. Nada disso. O Sr. Dühring apresenta-nos doutrinas que ele mesmo proclama verdades definitivas e inapeláveis, e, portanto, de antemão excluem como falsas todas as opiniões diversas. E não só possui a verdade exclusiva. como também possui o único método rigorosamente científico para investigá-la, método perto do qual empalidecem, como falhos de seriedade científica, todos os outros. Ou o Sr. Dühring tem razão e, nesse caso, estaremos diante do maior dos gênios de todos os tempos, do primeiro homem sobre-humano, infalível, ou, então, está o Sr. Dühring equivocado, mas, mesmo assim, seja qual for a nossa opinião, se tomássemos em consideração, benevolentemente, a sua boa vontade, como se esta existisse, isso seria para ele a maior das ofensas. Quando se está de posse da verdade definitiva e inapelável e da única ciência rigorosamente científica, é natural que se manifeste certo desprezo pelo resto da humanidade, ignorante da ciência e extraviada no erro. Nada, tem, portanto, de estranho o fato de O Sr. Dühring falar de seus predecessores com a mais profundo desprezo e só umas tantas pessoas, a quem ele mesmo, como favor excepcional, chama de grandes homens, prevaleçam ante o julgamento de seu "radicalismo". Vejamos o que nos diz dos filósofos: "Leibnitz, carente de todo sentido elevado, é o melhor de todos os possíveis filosofadores cortesãos." Kant é ainda tolerado. Depois dele, entretanto, tudo virou às avessas, pois vieram as tolices e futilidades, tão sem substância e tão enganosas, dos primeiros epígonos, de um Fichte e de um Schelling..., caricaturas monstruosas de incultos filosofastros da natureza..., as "monstruosidades pós-kantianas" e as "fantasias febris" que encontram "num Hegel" o seu remate e sua coroação. Este filósofo falava uma "gíria hegeliana" e natureza e o mundo dos homens. Para a classificação dessa matéria, temos três grupos, que dela se derivam com absoluta espontaneidade: a esquemática geral do mundo, a teoria dos princípios da natureza e, finalmente, a dos princípios do homem. Além disso, essa hierarquia contém uma ordem lógica interna, pois, à frente, estão os princípios formais pelos quais se rege e, logo após, em gradação subordinada, as zonas materiais a que esses princípios se aplicarão. Até aqui, limitamo-nos a transcrever quase que literalmente as palavras do Sr. Dühring. Quando ele fala de princípios, refere-se a princípios de pensamento independentes, não deduzidos do mundo exterior, e de princípios formais, derivados, aplicáveis à natureza e ao mundo dos homens pelos quais, portanto, a natureza e o homem serão regidos. Mas, de onde tira o pensamento esses princípios? Tira de si mesmo? Não, pois o próprio Sr. Dühring diz que, na zona puramente ideal, não há mais do que esquemas lógicos e figuras matemáticas (afirmação falsa, como veremos adiante). Os esquemas lógicos só podem referir- se a formas conceituais, e, aqui, trata-se apenas das formas do que existe, do mundo exterior, formas que jamais o pensamento pode derivar de si mesmo, mas que deve buscar no mundo exterior. Mas isto inverte toda a relação estabelecida: os princípios já não são o ponto de partida da investigação, mas seus resultados finais; não se aplicam à natureza e à história humana, mas deles são extraídos; não é a natureza e o mundo dos homens que se regem pelos princípios, mas só estes é que têm razão de ser quando coincidem com a natureza e com a história. Nisto consiste a verdadeira concepção materialista das coisas, o oposto do que afirma o Sr. Dühring, que é idealista e cuja concepção inverte todas as coisas, construindo o mundo real partindo da idéia, de uma série de esquemas, planos ou categorias existentes e de valor eterno e anterior à existência do mundo, nada mais e nada menos que... um Hegel. Com efeito, coloquemos a Enciclopédia de Hegel, com todas as suas fantasias febris, junto às verdades definitivas e inapeláveis do Sr. Dühring. Ao que o Sr. Dühring chama de esquemática geral do mundo, Hegel chama de lógica. O que o primeiro aplica à natureza como esquemas, o segundo o faz com as categorias lógicas e daí temos a filosofia da natureza, e, finalmente, a sua aplicação ao mundo do homem, que, em Hegel, se chama filosofia do espírito. Como vemos, a "ordem lógica interna" da hierarquia dühringuiana nos encaminha diretamente, "com absoluta espontaneidade", à Enciclopédia de Hegel, donde foi tirada com tal fidelidade, que faria chorar de ternura ao judeu errante da escola hegeliana, o professor Michelet, de Berlim. A isto se chega quando se considera a "consciência", o "pensamento", com um critério absolutamente materialista, como se se tratasse de algo determinado em contraposição; desde o primeiro instante, ao que existe, à natureza. E nada mais se pôde fazer senão admirar que possam coincidir a consciência e a natureza, o pensamento e a existência, as leis do pensamento e as leis naturais. Mas, se queremos, na realidade, saber o que são o pensamento e a consciência e de onde procedem, saberemos, então, que são produtos do cérebro humano e o próprio homem nada mais é de que um produto natural que se formou e se desenvolveu dentro de seu ambiente e com ele. Tiramos, então, a conclusão, lógica por si mesma, de que os produtos do cérebro humano, que não são, em última análise, mais que produtos naturais, não se contradizem, mas se harmonizam com a concatenação geral da natureza. Mas o Sr. Dühring não se conforma com uma concepção tão simples. Ele não pensa apenas em nome da humanidade - o que já seria suficiente - pensa também em nome da essência consciente e pensante de tudo o que existe no mundo. Com efeito, seria "degradar as formas fundamentais da consciência e da cultura, pretender excluir a sua soberana vigência, e os seus títulos incondicionais de verdade ou disso suspeitar por se as considerar atributos humanos." Para que não surja dúvida de que possa existir algum planeta no qual dois e dois sejam igual a cinco, o Sr. Dühring se vê obrigado a prescindir da qualificação do pensamento humano e forçado, com isso, a separar essa função da única base real que para nós existe, - o homem e a natureza -, submergindo, assim, uma ideologia que nada mais é do que o epígono do "epígono de Hegel". Além disso, teremos muitas ocasiões de saudar o Sr. Dühring noutros planetas. Facilmente se compreende que, nessa base ideológica, não é possível fazer-se uma teoria materialista. Adiante veremos como o Sr. Dühring se vê forçado a impor à natureza, mais de uma vez, uma norma consciente de conduta, ou seja, o que vulgarmente chamamos, - um Deus. O nosso filósofo da realidade tinha, entretanto, também outras razões para transplantar a base de toda a realidade do mundo real para o mundo do pensamento. Não é em vão que a ciência desse esquematismo geral do mundo, desses princípios formais de tudo o que existe seja precisamente a base da filosofia do Sr. Dühring. E se pudéssemos derivar o esquematismo do mundo, não de nosso cérebro, mas por meio dele, do mundo real, se pudéssemos derivar os princípios da existência daquilo que existe, não seria necessária essa filosofia, mas, pelo contrário, contentar-nos-íamos com uma série de conhecimentos positivos do mundo e do que nele ocorre, conhecimentos que não formam uma filosofia, mas apenas uma ciência positiva. Como vemos, todo o trabalho do Sr. Dühring seria tempo perdido. E, se não necessitássemos de uma filosofia como tal, tampouco necessitaríamos de um sistema, ou mesmo de um sistema natural de filosofia. A consciência de que a totalidade dos fenômenos naturais forma um conjunto sistemático força a esta ciência verificar essa dependência nas suas diversas partes, tanto nos detalhes como no conjunto. Mas. querer reduzir um sistema científico congruente e fechado, a esse conjunto, pretender tirar uma imagem ideal exata do sistema do mundo em que vivemos, é uma simples quimera, tanto para nós, como para os tempos vindouros. Se, ao chegar a um período qualquer do progresso humano, se tornasse possível construir um sistema definitivo e determinado das concatenações universais, tanto no físico como no espiritual e histórico, ter-se-ia encerrado o ciclo dos conhecimentos humanos e, uma vez que a sociedade se sujeitasse a esse sistema, levantar-se-ia uma barreira a todo o desenvolvimento histórico futuro, o que seria um contra-senso, um absurdo. Os homens vêm-se, pois, colocados ante esta contradição: de um lado, levados a investigar o sistema do mundo, englobando todas as suas condições e relações; de outro, por sua própria natureza e pela natureza mesma do sistema do mundo, não podem jamais resolver por completo esse problema. Mas esta contradição não se baseia apenas na natureza destes dois fatores: o homem e o mundo. A contradição é a alavanca principal de todo o progresso intelectual e resolve-se diária e incessantemente no desenvolvimento progressivo e infinito da humanidade, do mesmo modo que os problemas matemáticos, por exemplo, encontram sua solução numa série infinita ou naquilo que os matemáticos chamam de fração contínua. O fato é que toda a imagem conceitual do sistema do mundo é e continuará sendo sempre, objetivamente, por força da situação histórica e, subjetivamente, por assim o desejar a contextura espiritual de seu autor, uma imagem limitada. É claro que o Sr. Dühring proclama de antemão sua mentalidade como algo que exclui todo o perigo de representação subjetivamente limitada do mundo. Anteriormente, vimos que contava, entre os seus dons, a onipresença, uma vez que podia falar em nome de todos os planetas do universo. Agora, vemos que goza também do dom da onisciência, pois não foi em vão que resolveu os últimos problemas da ciência, fechando, por meio de tábuas, o futuro de toda a ciência do mundo. E, do mesmo modo que age em relação às formas fundamentais do que existe, o Sr. Dühring crê que pode fazer, ao tirar de seu cérebro. acabadas e perfeitas, de um modo apriorístico, isto é, sem considerar a experiência que oferece o mundo exterior, todas as matemáticas puras. Nas matemáticas puras pôde, segundo ele, mover-se livremente a inteligência, com as "suas criações e imaginações próprias"; os conceitos de número e de figura são o "seu objetivo suficiente e a sua própria obra", razão pela qual as matemáticas puras têm "uma validez independente da experiência concreta e do conteúdo real do mundo". É indubitavelmente certo que os conceitos das matemáticas puras regem independentemente da experiência concreta de qualquer indivíduo, ainda que essa virtude não pertença exclusivamente às matemáticas, o que é fato comum comprovado por todas as ciências e, mais ainda, a todos os fatos em geral, cientificados ou não. Os pólos magnéticos, a composição da água por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, o fato de que Hegel está morto e de que o Sr. Dühring está vivo, são fatos que existem independentemente de minha experiência ou da experiência de outras pessoa, e mesmo independentemente da experiência do Sr. Dühring, assim que ele dormir o sono dos justos. O que não é certo é que as matemáticas puras são entendidas pela inteligência apenas com as suas próprias criações e imaginações. De onde são tirados os conceitos de número e figura, senão do mundo real? Os dez dedos pelos quais se aprende a contar e, por conseguinte, a executar a primeira operação aritmética, nada têm de uma livre criação do espírito. E, para contar, não só fazem falta os objetos contáveis, como também a capacidade de prescindir, à vista desses objetos, de todas as suas qualidades, com exceção da do número, capacidade que é fruto de um longo desenvolvimento histórico, empírico. É o mesmo que acontece com o conceito do número, acontece também com o da figura, que é tomado exclusivamente no mundo exterior e não surge no cérebro de ninguém por obra da pura especulação. Tiveram que existir objetos que apresentassem uma forma, e cujas formas pudessem ser comparadas entre si, para que pudesse surgir o conceito de figura. As matemáticas puras versam sobre as formas no espaço e as relações quantitativas do mundo exterior e, portanto, de uma matéria bastante real. O fato de essa matéria se nos apresentar sob forma sumamente abstrata, apenas superficialmente, pode nos fazer crer que não têm sua origem no mundo exterior. O que acontece é que, para poder investigar essas formas e relações em toda a sua pureza, é necessário desligá-las completamente de seu conteúdo, deixando-o de lado como indiferente, para assim chegarmos aos pontos sem dimensões, às linhas sem largura e espessura, aos a, aos b, aos x, e aos y, às pensamento unitário, transforma a unicidade do ser em sua unidade. E como a característica de todo pensamento consiste na aglutinação formadora da unidade, pelo simp1es fato de pensar em si próprio, o ser, o que existe, se concebe como uma unidade e o conceito do mundo se torna indivisível; daí se conclui que, sendo o que existe pensado e o conceito do mundo unitário, o mundo real é igualmente uma unidade indivisível. E assim "as coisas do além não têm mais lugar, uma vez que o espírito aprendeu a discernir o que existe na sua universalidade homogênea". Eis uma batalha do espírito comparada com a qual Austerlitz e Iena Sadow e Sédan desaparecem inteiramente. Em duas frases, numa página somente, após termos mobilizado o primeiro axioma, conseguimos abolir, pulverizando-o, todo o mundo sobrenatural: - Deus, os exércitos celestes, o céu, o inferno e o purgatório, bem como a imortalidade da alma. Como passamos da unicidade do ser à sua unidade? Simplesmente., representando o ser a nós próprios. Desde o momento que estendemos o nosso pensamento unitário em torno dele, como plano, o ser único torna-se no pensamento um ser unitário, uma unidade de idéia, porque a essência de todo pensamento consiste na aglutinação dos elementos de consciência numa unidade. Esta última proposição é simplesmente falsa. Em primeiro lugar, o pensamento consiste tanto em decompor analiticamente os objetos representados na consciência em seus elementos, como em unir os elementos conexos numa unidade. Sem análise, não há síntese. Em segundo lugar, a não enveredar por falsos caminhos, somente os elementos de consciência podem ser, pelo pensamento, reduzidos à unidade, unidade essa que existia previamente nesses mesmos elementos ou nos objetos. Não é bastante que me resolva eu a classificar uma escova de sapatos na classe dos mamíferos, para que a mesma, como que por encanto, apresente glândulas mamárias. A unidade do ser, ou seja, aquilo que justifica a redução à unidade no pensamento, é, pois, justamente o que era mister demonstrar; e, quando o Sr. Dühring nos assegura que concebe o ser como unidade e não como duplicidade, nada mais faz senão expor uma opinião pessoal que a ninguém convence. Seu processo mental, exposto rigorosamente, é o seguinte: "Começo pelo que existe. Penso. pois, sobre o que tem existência real. A idéia do que existe constitui uma unidade. Mas o pensamento e o que existe. têm que estar de acordo, correspondem-se, "coincidem", Portanto, o que existe é também, na realidade, unitário. Donde se conclui que o sobrenatural não existe". Se o Sr. Dühring nos tivesse falado assim, sem subterfúgios, ao invés de nos apresentar os dogmas anteriormente citados, sua ideologia se tornaria compreensível. Querer demonstrar a realidade de um resultado mental qualquer por meio da identidade entre o que se pensa e o que existe é, de fato, uma das fantasias febris mais loucas de... Hegel. Mesmo admitindo que toda a sua argumentação fosse exata, o Sr. Dühring não teria ganho uma só polegada de terreno aos espiritualistas, estes lhe responderiam com muita precisão: também para nós o mundo constitui uma unidade; o seu desdobramento em mundo real e mundo sobrenatural somente existe para o nosso ponto de vista especificamente terreno, de homens pecadores; mas, em si e para si, isto é, em Deus, tudo quanto existe constitui uma unidade. Acompanhariam, assim, o Sr. Dühring a percorrer seus amados "planetas" e lhe apontariam um ou vários em que, por não ter havido pecado original, não conhece a distinção entre mundo real e sobrenatural e onde, portanto, a unidade do mundo é um artigo de fé. O mais cômico nessa história é que o Sr. Dühring, para provar a não existência de Deus por meio do conceito do ser, lança mão da prova ontológica da existência de Deus. Diz essa prova: quando pensamos em Deus, nós o concebemos como a soma de todas as perfeições. Ora, a soma de todas as perfeições implica, antes de tudo, na existência, pois um ser inexistente é necessariamente imperfeito. Devemos, pois, incluir a existência no número das perfeições de Deus. Logo, necessariamente, Deus existe, É esse, tal qual, o raciocínio do Sr. Dühring; quando ideamos o ser, ideamo-lo como conceito uno. O que se compreende num só conceito é uno. O que existe não corresponderia, portanto, ao seu conceito se não constituísse uma unidade; Deus, portanto, não existe, etc. Quando falamos do ser e somente do ser, a unidade não pode consistir senão em que todos os objetos de que se trata - são, existem. Na unidade desse ser e em nenhuma outra é que se harmonizam, e a expressão aplicada a todos em comum, isto é, - que todos são - não só não lhes pode conferir quaisquer outras qualidades, comuns ou não comuns, como exclui por enquanto de nossa consideração todas essas outras qualidades. Temos que nos afastar, um só milímetro que seja, desse simples fato fundamental de que todos os objetos têm em comum a existência para que, desde logo, comecem a surgir aos nossos olhos suas diferenças. Decidir se tais diferenças consistem em que uns são brancos, outros pretos; uns animados, outros inanimados; uns, se assim se quer, terrenos, outros supraterrenos; é coisa que não saberíamos fazer baseando nossa conclusão no fato de que unicamente a existência a todos atribuída igualmente. A unidade do mundo não consiste precisamente em existir, se bem que seja isto uma condição de sua unidade, pois, de qualquer modo, é preciso, evidentemente, que ele seja antes de poder ser, uno. É necessário levar-se em conta que a existência começa a ser um problema a partir dos limites de nosso circulo visual. A unidade real do mundo consiste na sua materialidade e esta última prova-se, não com algumas frases de prestidigitador, mas por uma longa e laboriosa evolução da filosofia e das ciências da natureza. Mas prossigamos na leitura do texto. O ser de que nos fala o Sr. Dühring "não é esse ser puro que, idêntico a si próprio, igual a si mesmo, é desprovido de qualquer propriedade concreta que não representa efetivamente senão uma contra-imagem do nada ou da ausência da idéia". Logo, porém, veremos que o mundo do Sr. Dühring começa, sem dúvida alguma, por um ser despido de toda diferenciação interna, de todo movimento e de toda mudança, um mundo que não é, no fundo, mais que um reflexo do nada e não é, pois, senão um nada real. É somente a partir desse ser nada que se desenvolve o estado atual do mundo, diferenciado, mutável, apresentando já uma evolução, um processo de formação; e é somente depois de termos compreendido isso que chegamos a encontrar, de novo, sob essa transformação perpétua, "o conceito do ser universal idêntico a si mesmo". Assim, pois, temos agora o conceito de ser num grau superior, em que compreende em si tanto a permanência quanto a mudança, tanto o ser como o vir- a-ser. Uma vez aí chegados, descobrimos que "o gênero e a espécie, o geral e o particular são caracteres distintivos mais simples, sem os quais a constituição das coisas não pode ser compreendida". Tratam-se, porém, de caracteres distintivos da qualidade. Depois de nos termos ocupado disso, continuemos: "Aos gêneros opõe-se o conceito de grandeza como uma homogeneidade na qual já não se verificam diferenças qualitativas de nenhuma espécie. Dito de outro modo: passamos da qualidade à quantidade, sendo esta sempre mensurável. Comparemos agora essa "nítida classificação dos esquemas gerais" e esse "ponto de vista verdadeiramente crítico", com as ingenuidades, as grosserias e os sonhos febricitantes de Hegel. Verificamos que a Lógica, de Hegel, tem o ser, como ponto de partida, exatamente como a do Sr. Dühring; que o ser se manifesta como nulidade, tal como o do Sr. Dühring: que dessa nulidade do ser foi que se passou ao vir-a-ser, cujo resultado é a existência, isto é, uma forma mais elevada, mais rica, do ser, tal como no Sr. Dühring. A existência conduz à qualidade e esta à quantidade - ainda da mesma forma que no Sr. Dühring. E para que nenhuma peça essencial falte ao sistema, o Sr. Dühring conta-nos o seguinte, noutro trecho: "Do reino da insensibilidade não se passa ao da sensação, apesar de toda a continuidade quantitativa, a não ser por um salto qualitativo do qual... podemos dizer que se diferencia infinitamente da simples variação de graus de uma só e mesma propriedade". É exatamente a linha nodal de desproporções hegelianas em que uma adição ou uma subtração puramente quantitativa produz, em certos pontos nodais, um salto qualitativo. É o caso, por exemplo, da água aquecida ou esfriada, para a qual o ponto de ebulição e o ponto de congelação são os nós ou elos em que se realiza, a uma pressão normal, o salto para um novo estado de agregação, nos quais, consequentemente, a quantidade se transforma em qualidade. Nossa investigação tenta igualmente ir até a raiz das coisas e, ao atingir a raiz dos profundos esquemas fundamentais do Sr. Dühring, encontra... "fantasias febris" de um Hegel, as categorias da Lógica hegeliana (primeira parte, teoria do ser) da qual se originam esses sonhos seguindo as "deduções" rigorosamente conformes à velha "variação de graus" hegeliana, e isso sem procurar esconder o plágio. E, não contente com haver tomado de empréstimo o seu esquematismo daquele, dentre os seus predecessores que ele mais calunia, o Sr. Dühring, depois de ter ele próprio dado o exemplo referido acima, de uma passagem brusca da quantidade em qualidade, tem a ousadia de falar de Marx, nestes termos: "Como é cômico vê-lo (a Marx) referir-se a essa Idéia confusa e nebulosa de Hegel, de que a quantidade se transforma em qualidade! Idéia confusa e nebulosa! Quem é que "se transforma" e quem é cômico, Sr. Dühring? Todas essas lindas idéias não são, portanto, "estabelecidas de maneira axiomática" segundo uma ordem: são, pelo contrário, tranqüilamente importadas de fora, da Lógica de Hegel. E tanto é assim que, em todo esse capítulo, a única coisa que tem a aparência de uma conexão lógica interna é a que .foi emprestada de Hegel, e tudo, finalmente, resulta em inúteis fantasias sobre o espaço e o tempo, a imobilidade e a mudança. Do ser, Hegel passa à substância, à dialética. Aí, trata das determinações reflexas de seus antagonismos e contradições internas (por exemplo, negativo e positivo), depois chega a causalidade ou relação de causa e efeito, finalizando com o estudo da necessidade. Outra coisa não faz o Sr. Dühring. Onde Hegel partes; e a soma total dessa quantidade só pode ser concebida por meio da síntese acabada, ou pela adição repetida da unidade a si própria. Por conseqüência, para conceber, como um todo, o mundo que enche todos os espaços, deveria a síntese sucessiva das partes do mundo infinito ser considerada como acabada, isto é, seria mister, com a contagem de todos os objetos coexistentes, considerar como tendo escoado um tempo infinito. Disso resulta que não se poderia considerar um agregado infinito de objetos reais como um todo determinado, nem, conseguintemente, como objetos simultaneamente determinados. Portanto, um mundo não é infinito quanto à sua extensão no espaço, mas, pelo contrário, é encerrado sempre dentro de seus limites, o que era o segundo ponto a demonstrar". Essas proposições são literalmente copiadas de um livro bastante conhecido que apareceu, pela primeira vez, em 1781 e que se intitula: Crítica da Razão Pura, de Emanuel Kant, e no qual todo o mundo pode lê-las (primeira parte, 2a. seção, livro segundo, capítulo segundo, artigo segundo): Primeira Antinomia da Razão Pura. Portanto, ao Sr. Dühring cabe unicamente a glória de ter batizado uma idéia de Kant, com o nome de "lei do número determinado" e de ter descoberto a existência de um tempo onde ainda não existia tempo, mas sim apenas o mundo. Quanto ao resto, isto é, quanto aquilo que, na análise do Sr. Dühring, tem algum sentido, ao subentender "nós", na expressão "Encontramos", quer se referir a Emanuel Kant; a atualidade das descobertas do Sr. Dühring tem apenas noventa e cinco anos. É, na verdade, extraordinariamente "simples". E é maravilhoso o "alcance até aqui desconhecido" da nova idéia. Mas acontece que Kant não considera, de modo algum, a tese acima, como provada por sua demonstração. Ao contrário, na página seguinte, sustenta e prova que o mundo não tem começo no tempo nem limite no espaço e justamente nisso é que reside a antinomia, a contradição irredutível, segundo a qual podemos provar tanto uma tese como a sua contrária. Talvez pessoas de menor alcance encontrassem motivos para reflexão no fato de "um Kant" achar nisso uma dificuldade insolúvel, nunca, porém, o nosso audacioso fabricante "de resultados e de teorias essencialmente originais": o que lhe pode servir na antinomia de Kant, ele o copia sem pestanejar, pondo o resto de lado. O problema resolve-se muito simplesmente. Eternidade no tempo, infinidade no espaço, essa coisa consiste, por si mesma, tomando as palavras no seu sentido literal, em não ter limite nenhum nem pela frente nem por detrás, nem acima nem abaixo, nem à direita nem à esquerda. Essa infinidade é diferente da de uma série infinita, porque esta começa sempre e necessariamente na unidade, num primeiro termo. Essa representação de série é inaplicável ao nosso objetivo, como verificamos quando a aplicamos ao espaço. A série infinita adaptada ao mundo especial é uma linha tirada em direção ao infinito, a partir de um ponto determinado, numa direção determinada. Isso exprime, mesmo remotamente, a infinidade do espaço? Pelo contrário: bastam seis linhas tiradas a partir desse ponto único, em três direções opostas, para circunscrever as direções do espaço e teríamos assim seis dimensões. Kant o compreendeu tão bem que não foi senão indiretamente, por um rodeio, que ele transportou a sua série numérica para o mundo especial. O Sr. Dühring, pelo contrário, força-nos a admitir seis dimensões no espaço e, logo depois, esquecendo-se do que afirmou, não encontra palavras para exprimir a sua indignação contra o misticismo matemático de Gauss que não queria contentar-se com as três tradicionais dimensões do espaço. Aplicada ao tempo, a linha ou a série de unidades, infinita em suas duas direções, tem um certo sentido como imagem. Mas, se nós nos representamos o tempo como uma série formada a partir da unidade, ou como uma linha tirada a partir de um ponto determinado, estamos desde já estabelecendo que o tempo tem um começo; supomos precisamente o que era necessário provar. Damos à infinidade do tempo um caráter incompleto e unilateral, e, como sabemos, uma infinidade incompleta, unilateral, é uma contradição lógica, exatamente o contrário de uma "infinidade concebida sem contradição". Dessa contradição só podemos sair admitindo que a unidade da qual partimos para contar a série, o ponto a partir do qual traçamos a linha, é uma unidade tomada arbitrariamente na série, um ponto tomado arbitrariamente na linha, de tal modo que resulta indiferente saber onde o colocamos em relação à linha ou à série. É a contradição que consiste em "medir uma série numérica infinita"? Estaremos aptos a examinar mais de perto essa contradição, quando O Sr. Dühring realizar diante de nós o prodígio de contá-la, quando tiver conseguido contar de menos infinito até zero. É claro que, não importa por onde comece a contar, deixará sempre atrás de si uma série infinita e com ela o problema que deve resolver. Que inverta somente a sua própria série infinita 1 + 2 + 3 + 4..., e experimente contar de novo, desde o fim infinito, até a unidade; será evidentemente a tentativa de um homem que não sabe nem do que se trata. Há mais ainda. Quando o Sr. Dühring afirma que a série infinita do tempo escoado foi contado, afirma, implicitamente, que o tempo tem um começo; porque, de outro modo, não poderia mesmo começar a "contar". Introduz, portanto, sub-repticiamente, como hipótese prévia, precisamente o que devia demonstrar. A idéia da série infinita contada, também chamada a "lei universal do número determinado" de Dühring. é, pois, uma contradictio in adjecto, encerra em si não apenas uma contradição, mas uma contradição absurda. É evidente que uma infinidade que tem um fim, mas não tem começo, não é mais nem menos infinita do que aquela que tem um começo, mas não tem fim. O menor senso dialético teria advertido ao Sr. Dühring que começo e fim são conceitos necessariamente ligados, como pólo norte e pólo sul; se se abandona o fim, o começo se torna fim - o único fim da série, e assim reciprocamente. Toda essa quimera não existiria se não fosse hábito dos matemáticos operarem com séries infinitas. Como em matemática é preciso partir do determinado e finito, para chegar ao indeterminado e infinito, é preciso que todas as séries matemáticas, positivas ou negativas, comecem pela unidade, sem o que é impossível calcular com essas séries. Mas a necessidade mental do matemático está longe de ser uma lei que aja necessariamente sobre o mundo real. De resto, o Sr. Dühring não poderá jamais compreender, sem contradição, a infinidade real. A infinidade é, por si mesma, uma contradição prenhe de contradições. Já é contraditório que uma infinidade se componha de quantidades finitas e, no entanto, isso acontece na realidade. Admitir que o mundo material tem limites não conduz a menos contradições que admiti-lo ilimitado. Toda a tentativa para afastar essa contradição leva, conforme vimos, a novas e mais lamentáveis contradições. Precisamente porque é uma contradição, a infinidade é um processo infinito a desenvolver-se, sem fim no tempo nem fim no espaço. A supressão da contradição seria o fim da infinidade. Hegel já o havia visto muito bem e é por isso que trata aos que se dedicam a fantasiar sobre essa contradição com um merecido desprezo. Continuemos. O tempo teve, pois, um começo. Que havia, então, antes do começo? O mundo num estado idêntico a si próprio e invariável. E como, nesse estado, não há mudanças que se sucedam umas às outras, o conceito mais especifico do tempo se transforma na idéia do ser. Primeiramente, é-nos completamente indiferente saber quais os conceitos que se transformam na cabeça do Sr. Dühring: não se trata do conceito do tempo, mas do tempo real, do qual o Sr. Dühring não se desembaraçará tão facilmente. Em segundo lugar, que o conceito do tempo se transforme na idéia geral do ser, isso não nos fará dar um passo à frente, porque as formas essenciais de todo o ser são o espaço e o tempo e um ser fora do tempo é um absurdo tão grande quanto um ser fora do espaço. O ser de Hegel, "ser extinto fora do tempo", e o "ser irrepresentável", de que falam os neo-schellinguianos, são concepções racionais, se as compararmos com esse ser concebido à margem do tempo. O Sr. Dühring, aliás, vai com muita cautela por esse caminho; propriamente falando, é bem um tempo, mas um tempo tal que, no fundo, não se poderia chamá-lo de tempo, pois o tempo não se compõe em si mesmo de partes reais e é somente a nossa inteligência que nele introduz divisões arbitrárias; só um tempo repleto realmente de fatos diferenciáveis pode ser contado, não se podendo mesmo descobrir o que poderia significar a continuidade de uma duração, no vazio, verdadeira quimera. O que essa sucessão poderia significar é-nos, agora, completamente indiferente: a questão é saber se o mundo, no estado aqui suposto, tem ou não uma duração no tempo. Que não se obtém resultado algum medindo uma duração semelhante e muito menos operando com medidas sem desígnio e sem finalidade objetiva, no espaço vazio, sabemos de há muito. E é precisamente no que esse processo tem de inútil que Hegel chama a essa infinidade de má infinidade. Segundo o Sr. Dühring, o tempo não existe senão pela mudança e não é a mudança que existe no tempo e pelo tempo. Justamente por que é tão diverso e independente da mudança, é que se pode medi-lo pela mudança, porquanto para medir é necessário sempre um elemento distinto da coisa que se mede. O tempo, em que se não produzem mudanças cognoscíveis está muito longe de não ser tempo algum, ele é antes o tempo puro, isento de qualquer influência estranha, isto é, é o tempo verdadeiro, o tempo como tal. Realmente, quando queremos conceber a idéia do tempo em toda a sua pureza, fora de todas as misturas estranhas e heterogêneas, somos obrigados a afastar como estranhos todos os acontecimentos diversos que se produzem, simultânea e sucessivamente, no tempo, como alheios a ele, representando-nos, assim, um tempo em que nada se passa. Por aí não fizemos, pois, diluir a idéia do tempo na idéia geral do ser: pelo contrário, foi por aí somente que chegamos à idéia pura do tempo. Mas toda essas contradições e esses absurdos não passam de brincadeiras de criança ao lado da confusão caótica em que se embrenha o Sr. Dühring, com o seu "estado primitivo do mundo idêntico a si próprio". Se o mundo já esteve num estado em que não se produzia absolutamente mudança alguma, como pode passar desse estado à mudança? O que é desprovido absolutamente de movimento). Todos esses fenômenos, porém, se perdem "um pouco na obscuridade" na qual, nos deixa, de fato, o Sr. Dühring. Eis, pois, a que chegamos, após tanta profundeza e exatidão: enterramo-nos, cada vez mais, em maiores absurdos para, enfim, aportar onde fatalmente aportaríamos: na "obscuridade". Isso, porém, não desanima ao Sr. Dühring; já na página seguinte ele tem o desplante de afirmar que "pode dar ao conceito da permanência a si própria, um conteúdo real, partindo diretamente da observação da matéria •das forças mecânicas". E esse homem chama aos outros de "charlatães". Por felicidade, em meio a todo esse caminhar desesperadamente errante e incoerente na "obscuridade", temos um consolo realmente alentador: "A matemática dos habitantes de outros corpos celestes não pode repousar em axiomas diversos dos da nossa", segundo nos assevera o Sr. Dühring. Capítulo VI - FILOSOFIA DA NATUREZA, COSMOGONIA, FÍSICA, QUÍMICA Continuando o exame da obra, chegamos às teorias sobre as origens do mundo atual. Informa-nos que o estado universal de difusão da matéria era já a concepção inicial dos filósofos jônicos, mas que, sobretudo depois de Kant, a hipótese de uma nebulosa primitiva volta a desempenhar um papel, tendo a gravitação e a irradiação do calor servido de meios para a formação progressiva, a partir da nebulosa primitiva. de cada um dos diversos corpos celestes sólidos. No nosso tempo, a moderna teoria mecânica do calor permite formular, com muito mais precisão, as inferências relativas aos estados primitivos do universo. Entretanto, "o estado de difusão gasosa não pode servir de ponto de partida a deduções sérias, se, previamente, não se puder determinar, com a maior concretização, o sistema mecânico que nele se encerra. De outro modo, a idéia não só se perderá nas trevas, mas também, longe de se desfazer, a trela primitiva se tornará mais densa e impenetrável no curso de nossas deduções... Por enquanto, tudo continua ainda no vago e informe de uma idéia cuja difusão é impossível de se determinar mais detalhadamente". E assim "não temos desse universo gasoso senão uma concepção absolutamente aérea". A teoria sobre a gênese dos mundos atuais, pela rotação das massas nebulosas, foi o maior progresso que a astronomia fez desde Copérnico. Pela primeira vez abalou-se a idéia de que a natureza não teria história no tempo. Até então, acreditava-se, os corpos celestes se moviam, constantemente, desde a sua origem, nas mesmas órbitas invariáveis; e se bem fosse admitido que sobre cada um dos corpos celestes os seres orgânicos individuais pereciam, entendia-se que essa morte não afetava. em nada, às espécies e aos gêneros. A natureza estava, de fato, visivelmente empenhada num movimento perpétuo: mas esse movimento parecia não ser mais que a repetição incessante dos mesmos fenômenos. Nessa concepção, que correspondia inteiramente ao método filosófico metafísico, Kant abriu a primeira brecha, e isso de maneira tão científica que a maior parte dos argumentos empregados por ele têm, ainda hoje, um grande valor. É certo que a teoria de Kant não é, ainda agora, rigorosamente mais que uma hipótese. Mas o sistema cosmológico do próprio Copérnico não conseguiu ser senão uma hipótese, até hoje; e, depois que as investigações espetroscópicas, derrubando todos os argumentos contrários. apresentaram a prova evidente de que existem tais massas gasosas ígneas no firmamento, a oposição científica à teoria de Kant foi reduzida ao silêncio. O Sr. Dühring não pode, igualmente, construir o seu mundo, sem apelar para um estado de nebulosidade precedente, mas ele vinga-se exigindo que lhe demonstrem o sistema mecânico dessa nebulosa e, como não pôde ser atendido, investe contra essa demonstração com toda a espécie de epítetos desdenhosos. Infelizmente, a ciência atual não pode definir e concretizar esse sistema, de modo a satisfazer ao Sr. Dühring. E não é capaz, muito menos, de responder a outras perguntas. A pergunta seguinte: por que os sapos não têm rabo? não pôde, até hoje, ser respondida senão pela hipótese de que, possivelmente, o perderam. Se, a propósito, perdendo a calma, disséssemos que tudo Isso é muito vago e informe, que é uma idéia pouco concreta de "perda", uma concepção sumamente "aérea", é possível que uma semelhante aplicação da moral às ciências naturais não nos faça avançar nem um passo. Essas condenações e essas explosões de descontentamento podem ter lugar não importa onde nem quando e é justamente por isso que não devem ser usadas em parte alguma. Se tudo está errado quem é que impede ao Sr. Dühring de descobrir, ele próprio, o sistema mecânico da nebulosa primitiva? Por felicidade, sabemos agora que a massa nebulosa de Kant está bem longe de se confundir com um estado totalmente idêntico do meio universal, ou, melhor, com o estado da matéria, idêntico a si próprio. Eis aí um verdadeiro triunfo para Kant, que tinha razões para se contentar em fazer remontar desde os corpos celestes, atualmente existentes, até a esfera nebulosa, sem lembrar-se, por nada deste mundo, do estado da matéria idêntico a si próprio. Observemos, de passagem, que, na ciência da natureza, a massa de névoa de Kant, que é designada atualmente pelo nome de nebulosa primitiva, não deve ser tomada, como é fácil compreender, senão num sentido relativo. Quando dizemos que ela é nebulosa primitiva, por um lado, queremos dizer que nela está a origem dos corpos celestes existentes e que ela é, por outro lado, a mais antiga forma de matéria a que podemos, até agora, remontar. O que absolutamente não exclui, mas, pelo contrário, supõe que a matéria tenha atravessado, antes da nebulosa primitiva, uma série infinita de outras formas. E nisso o Sr. Dühring não vê nenhuma vantagem. Enquanto somos obrigados, com a ciência, a nos deter provisoriamente na nebulosa primitiva, como numa estação de trânsito, a sua ciência da ciência permite-lhe subir muito mais alto, até aquele "estado do meio universal que não poderia ser concebido, nem como puramente estático, no sentido atual do termo, nem como dinâmico, e que, portanto, de nenhum modo é possível conceber". "A unidade de matéria e força mecânica, à qual damos o nome de meio universal, é uma fórmula por assim dizer lógico-real, da qual nos valemos para designar o estado da matéria idêntico a si próprio, como fase prévia de todas as etapas da evolução que possamos estabelecer." Evidentemente, não terminamos ainda com o estado da matéria idêntico a si mesmo. Esse estado é aqui designado como a "unidade de matéria e força mecânica", "fórmula lógico-real", etc. Assim, logo que cessa a unidade de matéria e força mecânica, o movimento se inicia. A "fórmula lógico-real, não é senão uma fraca tentativa de utilizar. na "filosofia da realidade", as categorias hegelianas do em si (Ansich) e para si (Fursich). Na primeira categoria reside, para Hegel, a identidade primitiva das antíteses ainda latentes e embrionárias, ocultas numa coisa, num fenômeno, num conceito; na segunda. manifestam-se a diferenciação e a separação desses elementos ocultos e começa o seu conflito. É preciso pois, e para isso nos convida O Sr. Dühring, representarmo-nos o estado de imobilidade primitiva como unidade de matéria e força mecânica e a passagem para o movimento como separação e oposição destes dois elementos. O que com isso ganhamos não é a prova da realidade desse fantástico estado primitivo, mas somente a possibilidade de compreendê-lo sob a categoria hegeliana do Ansich e de compreender-lhe a cessação, também fantástica, sob a categoria do Fursich. Continua valendo o auxílio de Hegel! A matéria, diz o Sr. Dühring, é a portadora de tudo o que é real, de tal maneira que não pode haver força mecânica fora da matéria. A força mecânica é, além disso, um estado da matéria. Assim, no estado primitivo, em que nada se passava, a matéria e seu estado, a força mecânica, eram uma e a mesma coisa. A seguir, quando começou a se passar algo, necessariamente esse estado se diferenciou da matéria. Será preciso, pois, que nos contentemos com essas frases mitológicas e com essa vaga afirmação de que o estado da matéria idêntico a si próprio não era nem estático nem dinâmico, nem equilíbrio, nem movimento, como quer o Sr. Dühring? Não saberemos jamais em que lugar a força mecânica se achava, naquele estado primitivo, nem como pôde, sem um impulso de fora, isto é, sem Deus, passar da imobilidade absoluta ao movimento. Antes do Sr. Dühring, os materialistas falaram da matéria e do movimento. Ele reduz o movimento à força mecânica como sua pretensa forma fundamental e por aí se torna impossível compreender a verdadeira relação entre matéria e movimento, a qual, de resto, foi igualmente obscura para todos os materialistas que o precederam. E, no entanto, a coisa é bastante simples. O movimento é o modo de existência da matéria. Nunca, em parte alguma, existiu, nem pode existir, matéria sem movimento. Movimento no espaço absoluto, movimento mecânico de pequenas massas em qualquer dos mundos existentes, vibrações moleculares sob a forma de calor, de corrente elétrica ou magnética, de análise e síntese químicas, vida orgânica: em qualquer uma dessas formas de movimento, ou em várias ao mesmo tempo, é que se encontra, no mundo, cada um átomo de matéria, em cada instante determinado. O repouso e o equilíbrio são sempre relativos, e só têm sentido e razão de ser em relação a tal ou qual forma concreta de movimento. Um corpo, por exemplo, pode achar-se à superfície da terra, em equilíbrio mecânico, estar, do ponto de vista mecânico, em estado de repouso; isso não o impede, absolutamente, de participar do movimento da terra bem como do movimento do sistema solar inteiro, assim como não impede que as suas melhores partículas físicas experimentem as vibrações provocadas por sua temperatura, ou que os seus átomos efetuem um processo químico. Matéria sem movimento é tão inconcebível como movimento sem matéria. O movimento não pode, por conseqüência, ser criado ou destruído, como também não pode ser a própria matéria, e é a isso que a antiga filosofia (Descartes) se refere quando afirma que a quantidade de movimento existente no mundo é sempre a mesma. O movimento não pode, pois, ser criado; ele pode somente ser transmitido. Quando o movimento é transmitido de um corpo para outro podemos considerar que ele se desloca - ativamente - como causa do não outra coisa que, em última análise, está à sua espera por detrás dessa ponte misteriosa. Mas vejamos o que acontece com a teoria mecânica do calor e do calor inativo ou latente que "vinha sendo um impulso" para essa teoria. Se tomarmos um quilo de gelo à temperatura do ponto da congelação e à pressão normal da atmosfera, e o transformarmos, por meio do calor, num quilo de água, tendo-se a mesma temperatura ambiente, desaparecerá, dessa forma, uma quantidade de calor suficiente para elevar o mesmo quilograma de água de 0 a 79 4/10 graus centígrados, ou, se preferirmos, para aquecer de um grau a quantidade 79 4/10 quilos de água. Se aquecermos esse quilograma de água até o ponto de ebulição, ou seja, até 100° e se o convertermos em vapor d'água, desaparecerá, até que a última gota de água se transforme em vapor, uma quantidade de calor aproximadamente sete vezes maior, suficiente para elevar de um grau a temperatura de 537 2/10 quilos de água. Essa temperatura que desaparece, diz-se que fica reprimida ou inativa. Se, pelo resfriamento, o vapor se tornar novamente água e a água se converter em gelo, essa mesma quantidade de calor, que estava até então retida, é posta em liberdade, o que quer dizer que ela pode ser medida ou percebida como calor. Essa libertação do calor, quando o vapor se condensa e a água se congela, é que faz com que o vapor, quando a temperatura alcança 100°, só se converta lentamente em água e que, a partir do ponto de congelação, se opere a congelação pouco a pouco. A questão, desde que os fatos foram colocados, é a seguinte: Em que se transforma o calor, enquanto está retido? A teoria mecânica do calor - segundo a qual o calor consiste em vibrações mais ou menos consideráveis de acordo com a temperatura e o estado de agregação das pequenas partículas fisicamente ativas (moléculas) dos corpos, vibrações essas suscetíveis de adotarem, em certas circunstâncias, qualquer uma das formas do movimento - a teoria mecânica é que explica o fenômeno, dizendo que o calor desaparecido realiza um trabalho, se transmite a um trabalho. Quando o gelo se derrete, a coerência estreita e firme das moléculas entre si, cessa e Se transforma, de um aglomerado coeso, numa dispersão total; quando a água se evapora, no ponto de ebulição, produz-se um estado em que as moléculas soltas não exercem mais ação sensível umas sobre as outras, dispersando-se, sob a influência do calor, nas mais opostas direções. Ora, é evidente que cada uma das moléculas de um corpo em estado gasoso encerram muito mais energia que no estado líquido e, neste, muito mais que no estado sólido. O calor retido, portanto, não desapareceu, mas apenas se transformou, adquirindo a forma da força de tensão molecular. Desde que desaparece a condição pela qual as moléculas podem conservar a sua liberdade absoluta ou relativa umas frente às outras, Isto é, desde que a temperatura alcance um mínimo, seja de 100°. seja de 0°, essa força de tensão desaparece e as moléculas se aglutinam com a mesma força com que antes se destacavam umas das outras; essa força desaparece, mas somente para reaparecer, sob forma de calor, e na quantidade mesma de calor que antes estava retida. Essa explicação é naturalmente uma hipótese, como, aliás, toda a teoria mecânica do calor, pois que ninguém, até agora, viu uma molécula e, muito menos, uma molécula vibrátil. Esta hipótese está cheia de defeitos como, aliás, toda a teoria térmica que é ainda bastante nova; mas pode, pelo menos, explicar os fenômenos sem entrar em contradição com a lei segundo a qual o movimento não se perde, nem se cria, ao mesmo tempo em que é capaz de explicar, com clareza, a existência do calor no curso de suas metamorfoses. O calor latente ou retidão não é, de maneira alguma, um impulso para a teoria mecânica do calor. Pelo contrário, essa teoria dá, pela primeira vez, uma explicação racional dos fenômenos e torna-se estranho que os físicos continuem a dar ao calor, transformado, numa outra forma de energia molecular, o qualificativo antiquado e impróprio de "calor retido". Os estados idênticos a si próprios e às situações de repouso da matéria em estado sólido líquido ou gasoso, representam, pois, trabalho mecânico e esse trabalho mecânico é a medida do calor. Igualmente, tanto a crosta sólida da terra como a água do oceano representam, em seu estado natural de agregação, uma quantidade concreta e determinada de calor posto em liberdade, à qual evidentemente corresponde uma quantidade também determinada e concreta de força mecânica. Quando a esfera gasosa. de que nasceu a terra, passou ao estado líquido e, mais tarde, em grande parte, ao estado sólido, uma quantidade determinada de energia molecular se irradiou no espaço sob a forma de calor. A dificuldade de que fala misteriosamente o Sr. Dühring não existe, como vemos, já que mesmo nas aplicações cósmicas, se. por um lado, podemos encontrar defeitos e lacunas. devido aos meios imperfeitos de conhecimento de que dispomos - por outro lado nunca deparamos obstáculos teóricos intransponíveis. A ponte" do estático ao dinâmico é, aqui também, como sempre, um impulso de fora - resfriamento ou aquecimento ocasionado por outros corpus que agem sobre o objeto em equilíbrio. Quanto mais avançamos na filosofia da natureza do Sr. Dühring. mais nos parecem inconcebíveis e inconsistentes todas as tentativas de explicar o movimento pela imobilidade ou de encontrar a ponte pela qual o que está em repouso e é puramente estático poderia por si mesmo passar ao dinâmico, ao movimento. Nesse ponto, nos desembaraçamos, felizmente, por algum tempo, do famoso estado primitivo idêntico a si próprio. O Sr. Dühring passa agora à química, e, neste campo, revela-nos três leis de invariabilidade da natureza, conquistadas por ele em sua "filosofia da realidade": 1a. - A grandeza ou o volume da matéria universal é invariável; 2a. - o número dos elementos químicos simples é invariável; e 3a. - a grandeza ou volume da força mecânica é invariável. Assim, o caráter não criado é indestrutível da matéria e de seus elementos simples, na medida em que ela os tem, bem como o caráter do movimento, - que são fatos antigos universalmente conhecidos, mas que são expressos de maneira deficiente. - são o único resultado realmente positivo que o Sr. Dühring nos pode dar de sua filosofia natural do mundo inorgânico. Coisas que conhecíamos há muito tempo e nada mais. O que sabíamos, porém, é que se tratava de "leis da invariabilidade" e, portanto, de "propriedades esquemáticas do sistema das coisas". Volta a se dar aqui a mesma história que acima se deu com Kant: o Sr. Dühring arranja, não importa que velha banalidade arqui-conhecida, cola sobre ela uma etiqueta de Dühring e chama as coisas de "resultado e concepções essencialmente originais... idéias criadoras de sistema...ciência radical... Isso, porém, ainda não é razão para desespero. Quaisquer que sejam os defeitos da "ciência radical", - e não há instituição social, por melhor que seja, que não os possua - uma coisa há que o Sr. Dühring pode afirmar com segurança: "O ouro existente no universo existiu necessariamente sempre na mesma quantidade e não pode, assim como a própria matéria universal, aumentar ou diminuir." Mas o que podemos comprar com esse "ouro", o Sr. Dühring infelizmente não nos diz. Capítulo VII - A FILOSOFIA DA NATUREZA. O MUNDO ORGÂNICO "Da mecânica dos choques e pressões até a articulação das sensações e pensamentos, estende-se uma escala una e homogênea de graduações". Por essa afirmação, o Sr. Dühring evita falar por mais tempo sobre a origem da vida, se bem que, de um pensador que acompanhou a evolução do mundo desde o estado idêntico a si próprio, e que tão família se mostra com os outros astros, tenhamos, talvez, o direito de esperar que, nesse problema, nos dê a solução exata. De resto, a afirmação acima não é justa senão pela metade, enquanto não é completada pela linha modal de desproporções de Hegel, da qual já falamos. Ainda que se faça, progressivamente, a passagem de uma forma de movimento a outra, é sempre um salto, uma viravolta decisiva. Assim acontece com a passagem da mecânica dos mundos para a das pequenas massas materiais num mundo concreto e também com a passagem da mecânica das massas para a das moléculas, que compreende os movimentos estudados na física propriamente dita (calor, luz, eletricidade, magnetismo); a passagem da física das moléculas para a física dos átomos - a química - que se processa igualmente por um salto muito nítido, salto esse mais pronunciado ainda na passagem da ação química ordinária ao quimismo da albumina, a que "chamamos vida". No interior da órbita da vida, os saltos tornam-se cada vez mais raros e imperceptíveis. Desse modo é Hegel, mais uma vez, quem deve corrigir o Sr. Dühring. A via conceitual pela qual se passa ao mundo orgânico é fornecida ao Sr. Dühring pela idéia de fim. E outra idéia tomada de Hegel que. na sua Lógica (teoria do conceito) passa, por meio da teleologia ou teoria dos fins, do mundo físico-químico ao mundo vivo. Para qualquer lado que volvamos os olhos, encontramos, nas afirmações do Sr. Dühring. "grosserias hegelianas" que ele põe sem nenhum constrangimento a serviço de sua "ciência radical". Iríamos longe se fôssemos procurar saber em que medida a aplicação das idéias de fim e de meio ao mundo orgânico é legitima e oportuna. Em todo caso, a própria aplicação da idéia hegeliana de "fim interno". isto é, de um fim que não é introduzido na natureza por um ser exterior agindo intencionalmente pela sabedoria de nenhuma "providência", mas que reside na necessidade dos próprios objetos, conduz, constantemente, as pessoas que não têm uma cultura filosófica completa, sem se dar conta disso, à suposição irrefletida de uma norma consciente e intencional nos atos da natureza. O próprio Sr. Dühring, que, à menor tendência "espiritista" em outrem, explode numa indignação moral sem limites, afirma-nos com certeza que "as sensações instintivas foram criadas, em primeiro lugar, graças à satisfação que está ligada a seu funcionamento." Ele nos conta que a pobre natureza "deve sem cessar restabelecer e garantir a ordem no mundo dos objetos e que, além disso, há uma série de outras funções a resolver "que da parte da natureza exigem mais sutilezas do que geralmente se pensa". Mas não só a natureza sabe por que ela cria isto ou aquilo, não só ela deve fazer serviços de criada, não só ela tem o dom da sutileza, o que já seria, portanto, um aperfeiçoamento considerável, no sentido de um pensamento consciente e subjetivo, como tem ainda uma vontade, que são as tarefas suplementares, graças nada". Na verdade, Darwin, quando trata da seleção natural, faz abstração das causas que provocam mudanças em cada um dos indivíduos e se ocupa, primeiramente, da maneira pela qual tais variações individuais gradativamente se tornaram caracteres de uma raça, de uma variedade ou de uma espécie. Para Darwin, trata-se, em primeiro lugar, menos de encontrar essas causas - que até aqui são completamente desconhecidas, não podendo ser indicadas senão de um modo geral - do que achar uma forma racional sob a qual os efeitos se fixam e adquirem uma importância permanente. Que Darwin tenha com isso atribuído à sua descoberta um raio de ação exagerado, que dela tenha feito a mola exclusiva da transformação das espécies, esquecendo-se das causas determinantes das mudanças individuais repetidas, para fixar-se apenas na forma de generalização dessas mudanças, essa é uma falta comum a todos os autores que realizam um progresso real. Além disso, se fosse verdade que Darwin tirou as suas variações individuais do nada e que nisso aplicou somente a "ciência do criador", é mister. necessariamente. que o criador tire igualmente do nada as suas variações, não só imaginárias, mas verdadeiras, das espécies animais e vegetais. Ora, quem deu o primeiro impulso para pesquisar de onde provêm essas metamorfoses e diferenciações? Ainda uma vez Darwin, e nenhum outro. Recentemente, graças principalmente a Haeckel, a idéia da seleção natural foi ampliada e a transformação das espécies foi compreendida como resultado de um processo de ações recíprocas de adaptação e hereditariedade, sendo a adaptação descrita como aspecto modificativo e a hereditariedade como aspecto conservador do processo. Isso também não merece o apoio do Sr. Dühring, "Uma adaptação propriamente dita às condições de vida, tais como são afirmadas ou negadas pela natureza, supõe instintos e atividades que se determinam, por seu lado, por representações. De outro modo, a adaptação não será mais que uma aparência e a causalidade, que se desenvolver, não se elevará acima dos mais baixos graus do mundo da física, da química e da fisiologia vegetal." E a nomenclatura outra vez que aborrece e transtorna o Sr. Dühring. Mas. qualquer que seja o nome por ele dado ao fenômeno. o que importa é saber, sim ou não, se tais fenômenos provocam mudanças nas espécies vegetais e animais. E, no entanto, o Sr. Dühring não nos dá resposta alguma nesse sentido. "Quando uma planta toma, em seu crescimento, a direção em que recebe a luz, esse fato é o efeito da atração que representa uma combinação de forças físicas e de agentes químicos, e quando se quer falar de adaptação, não em sentido metafísico mas no sentido real, isso, fatalmente, é o mesmo que introduzir nos conceitos uma confusão espiritista" Como é severo para com os outros o mesmo homem que sabe científica e exatamente por que a natureza faz isto ou aquilo, que nos fala da sutileza da natureza e até da sua vontade! Confusão espiritista, com efeito, mas de quem? De Haeckel ou do Sr. Dühring? É confusão não apenas espiritista, mas também lógica. Vimos que o Sr. Dühring faz todos os esforços para aplicar, à natureza, a idéia do fim. "A relação de meio e fim não supõe, de modo algum, uma intenção consciente". Mas o que é, então, a adaptação sem intenção consciente, sem transmissão de representações, contra a qual ele se ergue com tamanho ímpeto, senão uma tal atividade teológica inconsciente? Assim, pois, as rãs e os insetos, que se nutrem de folhagens, e que são de cor verde, os animais do deserto que são amarelos da cor da areia, os animais das regiões polares quase sempre brancos, da cor dos gelos, não tomaram essas cores intencionalmente, nem por efeito de nenhuma espécie de representações com essas cores. Pelo contrário, essas cores só se explicam pelo jogo das forças físicas e dos agentes químicos. É inegável, portanto, que esses animais se adaptaram, por meio dessas cores, ao meio em que vivem, e passam dessa maneira muito mais desapercebidos aos olhos de seus inimigos naturais. Do mesmo modo, os órgãos, com a ajuda dos quais certas plantas capturam e devoram os insetos que nelas pousam, adaptaram-se a essa função e de modo conveniente. Se o Sr. Dühring pretende que a adaptação deve ser sempre e usada por uma série de representações, apenas diz, noutras palavras, que a atividade teleológica deve, ela também, fazer-se por força das representações, deve ser consciente, intencional. Isso nos conduz, como de hábito, à "filosofia da realidade", ao criador consciente, à idéia de Deus. "Antigamente - diz o Sr. Dühring - chamava-se deísmo a essa doutrina; mas, também, sobre esse ponto, parece ter- se desenvolvido a coisa para trás." Da adaptação passemos à hereditariedade. Ainda aqui, o darwinismo, segundo o Sr. Dühring, engana-se redondamente. Darwin teria pretendido que todo o mundo orgânico descende de um ser primitivo, sendo, por assim dizer, a linhagem de um ser único. Não haveria, segundo Darwin, coexistência paralela de produtos da natureza, seres da mesma espécie, sem vínculo de descendência. Ele se vê obrigado, pois, a pôr um fim às suas concepções presas ao passado por ter-lhe faltado o fio da procriação ou de qualquer outra transplantação. Mas essa afirmação de que Darwin faz derivar todos os organismos atuais de um ser primitivo e único não é mais que, para falarmos cortesmente, criação e "livre fantasia" do Sr. Dühring. Darwin diz expressamente, na penúltima página da Origem das Espécies (6a. edição) que ela considera "todos os seres, não como criações especiais. mas como descendentes em linha direta de um pequeno número de seres". Haeckel vai ainda mais longe: admite "um tronco absolutamente independente para o reino vegetal, um outro para o reino animal", e, entre esses dois reinos "toda uma série de troncos protistas isolados, cada um dos quais se desenvolvendo de maneira inteiramente independente, a partir de um tipo particular de monera arquigônica"(3). O Sr. Dühring não imaginou esse ser primitivo, senão para desacreditá-lo, anti-semiticamente, equiparando-o a Adão, o protojudeu. Mas, desgraçadamente (refiro-me ao Sr. Dühring) continua ignorando que as descobertas assíricas de Smith, mostraram que esse protojudeu era, na realidade, um proto-semita e que toda a história do Gênesis e do dilúvio universal, que nos conta a Bíblia, se revela um fragmento da velha mitologia religiosa dos pagãos, comum aos judeus, aos babilônios, caldeus e assírios. Trata-se de uma grave censura a Darwin que não pode ser evitada, essa que se lhe faz quando se diz que suas investigações falham quando se rompe o fio da descendência dos seres! Infelizmente é uma censura que se estende a todo o conjunto da nossa ciência da natureza. Uma vez partido o fio da descendência, chega ao fim a missão de todas as demais ciências. Nenhum naturalista conseguiu ainda fazer nascer seres a não ser pela descendência, nem constituir com elementos químicos um simples protoplasma nem mesmo um pouco de albumina. Tudo o que ela pode dizer até agora, com certeza, sobre a origem da vida, é que deve ter sido por meios químicos. Mas talvez a "filosofia da realidade" venha em seu auxilio, ela que dispõe de produtos da natureza coexistentes de um modo independente e sem descender uns dos outros. Qual, portanto, poderia ter sido a sua origem? Geração espontânea? Mas até aqui os mais intrépidos partidários da geração espontânea não pretenderam criar por esse meio senão bactérias, germes de cogumelos e outros organismos muito primitivos - nunca insetos, peixes, pássaros ou mamíferos. Portanto, se essas produções equivalentes da natureza (orgânicas. já se vê, e apenas delas é que se trata) não estão ligadas pela descendência, é preciso que elas próprias, ou cada um dos seus antepassados, tenham sido, "onde se rompe o fio da descendência", postos no mundo por um ato especial de criação. Eis-nos, portanto, às voltas, outra vez, com o Criador ou "com o que se chama deísmo". Além disso, o Sr. Dühring censura Darwin por se ter mostrado muito vulgar "fazendo do simples ato de composição sexual de certas propriedades orgânicas, o principio fundamental da gênese dessas propriedades." É ainda um ato de "criação e livre imaginação" do nosso filósofo radical. Pois, pelo contrário, Darwin declara justamente (página 44) que a expressão seleção natural só abrange a conservação das modificações e não a sua origem. Mas essa nova suposição desarrazoada sobre coisas que Darwin nunca disse serve para nos preparar para a profundeza dühringuiana das seguintes conclusões: "Se se tivesse procurado, no esquematismo interno da procriação, qualquer principio de modificação substantiva, teria sido muito racional, porquanto é uma idéia bastante natural a de harmonizar o principio da gênese geral com o da reprodução sexual, e a de conceber, de um ponto de vista superior, o que se chama de geração espontânea, não como o contrário da reprodução, mas precisamente como um caso de produção." E o homem que pôde redigir semelhante tolice, não hesita em censurar Hegel pela sua "gíria". Mas já é tempo de deixarmos de lado essas recriminações e lamentos aborrecidos e contraditórios com que o Sr. Dühring extravasa seu despeito ante o surto imenso que as ciências naturais devem ao impulso da teoria darwiniana. Nem Darwin nem os naturalistas seus partidários sonham em diminuir, no que quer que seja, os grandes méritos de Lamarck: foram eles, precisamente, os primeiros que lhe defenderam a reputação. Não temos, contudo, o direito de esquecer que, ao tempo de Lamarck, a ciência estava muito longe de dispor de materiais suficientes para poder resolver a questão da origem das espécies a não ser como uma antecipação a sua época, ou, por assim dizer, de uma maneira profética. Sem contar a massa enorme de materiais de zoologia e de botânica, anatômicos e descritivos, que foram reunidos a partir dessa época, surgiram depois de Lamarck duas ciências inteiramente novas e de importância decisiva neste terreno, que estudam - uma a evolução dos germes vegetais e animais (embriologia) e outra - os vestígios orgânicos conservados nas diversas camadas da crosta terrestre (paleontologia). Com efeito, descobriu-se que existe uma coincidência entre a evolução gradativa, segundo a qual os germes orgânicos se tornam organismos adultos, e a série cronológica das plantas e animais que aparecem sucessivamente na história da terra. E foi precisamente essa coincidência que deu à teoria da evolução a sua base mais sólida. Mas a teoria da evolução é ainda bastante nova e, por conseqüência, está fora de qualquer dúvida que as pesquisas ulteriores devem modificar notavelmente as idéias atuais, inclusive as que são estritamente darwinistas, sobre o processo da evolução das espécies. mas, nunca, composição. Teremos ainda o que dizer sobre o que o Sr. Dühring entende, em geral, sobre vida. Em particular, o que ele chama vida é o seguinte: "O mundo inorgânico é também um sistema de movimentos automáticos; mas só a partir do momento em que a circulação das matérias começa a ramificar-se, em sentido estrito, e a desenvolver-se por meio de canais especiais, partindo de um ponto interior para um esquema germinal, transmissível a um ser menor, é que se pode falar de vida propriamente dita no sentido estrito e rigoroso do termo." Essa frase é, no sentido estrito e rigoroso do termo, um sistema de movimentos automáticos. (supondo que isso significa alguma coisa), um sistema de absurdos, sem falar da lamentável gramática do Sr. Dühring. se a vida só começa com a ramificação propriamente dita, é mister lavrar sentença de morte para todo o reino dos protistas de Haeckel e talvez de muitos outros seres, conforme o modo de conceber o conceito de ramificação. Se a vida somente se inicia quando essa diferenciação é transmissível por meio de um pequeno esquema germinal, teremos de concluir que, pelo menos toda a escala de organismos, - desde os inferiores aos unicelulares, inclusive estes - não é vida, mas, pelo contrário, é morte, Se o característico da vida é a circulação das substâncias por meio de canais especiais, temos que excluir da lista de seres vivos, além dos seres que acabamos de falar, toda a classe superior dos celenterados, com exceção das medusas, e, portanto, todos os pólipos e demais seres vegetativos. E se, finalmente, a circulação das substâncias, por canais especiais que partem de um ponto interior, é o critério essencial da vida, devemos considerar como mortos todos os animais que não têm coração ou todos os que têm vários corações. Entre esses se encontram, além dos seres acima citados, todos os vermes, estrelas do mar e rotíferos (anublóida e anulosa, segundo a classificação de Huxley), uma parte dos crustáceos (lagostas etc., e, por fim, até mesmo um vertebrado, o anfioxus, sem contarmos a totalidade das plantas). Como vemos, o Sr. Dühring, no seu exemplo de caracterizar a vida, no sentido estrito e rigoroso do termo, apresenta quatro critérios inteiramente contraditórios de vida, que se excluem uns aos outros, sendo que condena à morte não só todo o reino vegetal, mas ainda cerca de metade do reino animal. Realmente, ninguém poderá dizer que ele nos engana, quando nos promete "resultados inteiramente novos e concepções essencialmente originais". Lê-se, em outro trecho: "Na natureza, igualmente, existe um tipo simples que serve de base a todos os organismos, desde o inferior até o superior" e esse tipo "se apresenta inteiramente visível, nos seus traços essenciais, na mais simples reação da planta mais imperfeita." Essa asserção é também um absurdo "inteiramente visível". O tipo mais simples que se pode observar, em toda a natureza orgânica, é a célula; e, certamente, ela está na base dos mais complexos organismos. Em compensação, entre os organismos mais simples e inferiores, encontram-se muitos que são ainda inferiores à célula, como sejam, a protoameba, simples partícula de albumina, sem nenhuma diferenciação, uma série inteira de outras moneras e todas as sinfonias. Todos esses seres têm apenas um ponto em comum com os organismos superiores: o seu elemento essencial é a albumina e eles exercem, em conseqüência, funções albumínicas, isto é, as funções de viver e morrer. O Sr. Dühring ainda nos conta o seguinte: "Fisiologicamente, a sensação está ligada à existência de um aparelho nervoso qualquer, por mais simples que seja. Portanto, o característico de todos os seres animais é o de serem capazes de ter sensações, isto é, terem percepções subjetivamente conscientes dos estados pelos quais atravessam. A verdadeira linha divisória entre a planta e o animal está ali onde se realiza o salto para a sensação. E esse limite é tão claro e resiste tanto a deixar-se apagar pelas conhecidas formas intermediárias que, justamente essas formações exteriormente indistintas ou indetermináveis são as que se convertem numa necessidade lógica". E acrescenta: "As plantas, pelo contrário, são absoluta e definitivamente desprovidas de todo traço de sensação e até mesmo da possibilidade de experimentá-la". Primeira, advertiremos que já Hegel dizia (Filosofia da Natureza, pág. 351, nota diferencial) que "a sensação é a differentia specifica, a característica absoluta do animal". Eis, portanto, mais um "deslize" de Hegel, que, por meio da simples anexação por parte do Sr. Dühring, foi elevada à nobre categoria de uma verdade definitiva e sem apelação. Em segundo lugar, ouvimos falar, pela primeira vez, de formações intermediárias exteriormente indistintas ou indeterminadas (delicioso patuá) entre o reino animal e o vegetal. Esses seres intermediários existem; há organismos que não se pode categoricamente dizer se são plantas ou animais e, portanto, não podemos estabelecer rigorosamente o limite entre a planta e o animal. E tudo isso sugere ao Sr. Dühring a necessidade lógica de fixar uma característica diferencial que, ao mesmo tempo, afirma ser insustentável. Mas não temos sequer necessidade de percorrer essa duvidosa zona intermediária entre os reinos vegetal e animal. Poderemos dizer que as plantas sensitivas - que ao menor. contato distendem ou contraem as suas folhas ou flores -, ou as plantas insetívoras não possuem o menor traço de sensação e não têm também qualquer possibilidade orgânica de experimentá-la? Nem o próprio Sr. Dühring ousaria afirmar tal coisa, sem cair na "semipoesia anti-científica". Em terceiro lugar, temos mais uma "criação e livre imaginação" do Sr. Dühring ao afirmar que a sensação está sempre, psicologicamente, ligada à existência de um sistema nervoso qualquer, "por mais simples que seja". Não só nos animais primitivos, mas principalmente nos animais vegetativos - em sua grande maioria - não se descobre o menor esboço de sistema nervoso. Não é senão a partir dos vermes que o encontramos regularmente e o Sr. Dühring é o primeiro a afirmar que, nesses animais, a ausência de sensação provém do fato de não terem nervos. A sensação não está ligada necessariamente aos nervos, mas, antes, a certos corpos albuminóides que, até hoje, não foram ainda determinados com precisão. De resto, os conhecimentos biológicos do Sr. Dühring são suficientemente caracterizados por uma pergunta que ele não teme dirigir a Darwin: "Deve-se admitir que o animal provém, por evolução, da planta?" Semelhante pergunta só poderia ser feita por um homem que nada entende nem do que é um animal, nem do que é uma planta. Da vida em geral, o Sr. Dühring diz-nos apenas o seguinte: "A mudança de substâncias que se realiza por meio de uma esquematização, plasticamente modeladora (pode-se saber o que é isso?) continua sendo um caráter distintivo do processo vital propriamente dito." É tudo o que nos ensina sobre a vida. E para. isso temos que nos enterrar até os joelhos na "esquematização plasticamente modeladora". Assim, pois, se queremos saber o que é vida, não teremos outro remédio senão averiguá-lo por nossa própria conta. A troca orgânica de matérias é o fenômeno mais geral e mais característico da vida: isso foi dito, desde há trinta anos, um número incalculável de vezes, pelos que se ocupam de química fisiológica ou de filosofia química. O Sr. Dühring simplesmente o traduz na linguagem elegante e clara que lhe é peculiar. Mas, definir a vida como troca de substâncias orgânicas é defini-la como... vida, pois a troca orgânica de matérias ou o que o Sr. Dühring chama de troca de matérias com "esquematização plasticamente modeladora", é sempre uma expressão que tem, ela própria, necessidade de ser explicada pelo conceito de vida, explicada pela diferença entre o orgânico e o inorgânico, Isto é, entre o que vive e o que não vive. Essa explicação não nos faz, portanto avançar nem um só milímetro. A troca de substâncias tem lugar também fora da vida. Há toda uma série de processos químicos que, por meio de um fornecimento suficiente de matérias- primas, engendram sempre, de novo, as suas próprias condições e isso de modo que a operação é sempre sustentada per um corpo determinado. É o caso da fabricação do ácido sulfúrico pela combustão de enxofre: produz-se um anidrido sulfuroso (SO2) e, introduzindo-se vapor d'água e ácido nítrico, faz-se com que o anidrido sulfuroso. absorvendo o hidrogênio e o oxigênio, se transforme em ácido sulfúrico (H2SO4). O ácido nítrico elimina o oxigênio e reduz-se ao estado de ácido nitroso. Esse ácido nitroso toma logo, do ar, novo oxigênio e passa a um grau superior de oxidação, mas o fez para fornecer imediatamente esse oxigênio ao anidrido sulfuroso e refazer novamente o mesmo processo, de maneira que, teoricamente, uma quantidade infinitamente pequena de ácido nítrico bastaria para transformar em ácido sulfúrico uma quantidade ilimitada de anidrido sulfuroso, oxigênio e água. Uma troca ou assimilação de substâncias tem lugar, além disso, na passagem de líquidos através de membranas orgânicas mortas ou mesmo inorgânicas, como se verifica nas células artificiais de Traube. Vê-se que, ainda aqui, a idéia da troca de substâncias não nos faz avançar um passo, porquanto a troca particular de substâncias, destinada a explicar a vida, tem, ela própria, necessidade de ser explicada pela vida. É preciso, portanto, procurar outro caminho para a solução desse problema. A vida é o modo de existência dos corpos albuminóides e esse meio de existência consiste, essencialmente, no processo de auto-renovação constante dos elementos químicos integrantes desses corpos. Entende-se pela expressão corpos albuminóides, aqueles de que trata a química moderna, que compreende, sob esse nome, todos os corpos complexos, cuja composição é análoga à da albumina normal e que também têm, às vezes, o nome de substâncias protéicas ou proteínas. Essa definição de vida não agrada aos homens, pois a albumina normal é, de todas as substâncias afins, a mais inanimada, a mais passiva, sendo, como a gema do ovo, uma simples substância nutritiva para o germe em gestação. Mas enquanto não nos adiantarmos mais na composição química dos corpos albuminóides, essa denominação será ainda a melhor por ser a mais geral de todas. Por toda a parte onde encontramos uma manifestação de vida, vêmo-la a um corpo albuminóide, e vice-versa, desde que não esteja ainda em curso de decomposição, o corpo albuminóide estará sempre acompanhado de manifestações de vida. Sem dúvida, a presença de outras combinações químicas povos... As verdades concretas de que se compõe, no curso da evolução, por síntese, a mais ampla consciência moral, e o que se pode chamar a "consciência do homem", podem, uma vez investigadas até as suas últimas raízes, pretender para si a mesma validez e o mesmo alcance que as concepções e aplicações das matemáticas. As autênticas verdades são sempre imutáveis, de maneira que é tolice representar a exatidão do conhecimento humano algo destrutível pelo tempo e pelas transformações reais. A segurança de um saber rigoroso e a validez dos conhecimentos mais comuns não nos permitem pois, duvidar, em momentos de reflexão, do valor absoluto dos princípios da ciência. "Já, por si mesma, a dúvida permanente é um estado doentio de fraqueza e não faz senão manifestar um desolado confusionismo que às vezes procura dar-se a aparência de alguma solidez, na consciência sistemática de sua nulidade. Em matéria de moral, a negação dos princípios universais apega-se às diversidades geográficas e históricas dos costumes e dos princípios morais; e, confessando-se a necessidade inevitável do mau e do perverso em moral, acredita-se livre da obrigação de reconhecer a comprovada vigência e a ação eficaz de padrões morais coincidentes. Esse ceticismo dissolvente, que se exerce não contra tal ou qual falso ensinamento objetivo, mas contra a própria capacidade que tem o homem de obedecer a uma moralidade consciente, atinge mesmo alguma coisa pior que o puro niilismo... Ele tem a ilusão de, facilmente, poder governar o seu tumultuoso caos de noções morais desagregadas e de poder abrir as portas ao Capricho destituído de princípios. Mas seu erro é imenso, pois é suficiente que se recordem as aventuras inevitáveis da razão na verdade e no erro. para que se reconheça, revelada por essa analogia, que a falibilidade das leis naturais não exclui necessariamente a possibilidade de saber encontrar o caminho exato." Até aqui, alinhamos tranqüilamente todas essas pomposas declarações do Sr. Dühring sobre as verdades definitivas e sem apelação, a soberania do pensamento, a segurança absoluta do conhecimento, etc... porque, em suma, a questão só podia ser decidida no ponto a que agora chegamos. Até aqui, nos contentávamos em verificar em que medida as proposições concretas da filosofia da realidade tinham "validez soberana", e "títulos incondicionais de verdade". Ao chegarmos aqui, encontramo-nos ante a questão de saber até que ponto os produtos do conhecimento humano podem aspirar a uma validez absoluta e aos títulos incondicionais de verdade. E quando digo conhecimento humano, não é que tenha qualquer intenção de ofender aos habitantes dos outros astros, que não tenho a honra de conhecer; mas é que os animais também têm um conhecimento, embora não seja nunca soberano, o cão, por exemplo, terá o seu dono por um Deus, o que não impede que esse Senhor seja o maior canalha do mundo. O pensamento humano é soberano? Antes de responder sim ou não, é preciso primeiramente saber o que é, na realidade, o pensamento humano. É o pensamento de um só homem? Não. Ele não existe senão como pensamento concreto de muitos milhares de milhões de homens passados, presentes e futuros. Assim, pois, quando eu digo que esse pensamento de todos os homens, inclusive os vindouros, sintetizado no meu espírito, é soberano, capaz de conhecer, de modo absoluto, o mundo real, desde que a humanidade subsista o tempo necessário para isso e que não se produza, nem nos órgãos nem nos objetos do conhecimento, modificação capaz de limitar esse conhecimento, estarei dizendo uma coisa banal e, além disso, estéril. Porque o resultado mais precioso dessa idéia seria tornarmo-nos extremamente desconfiados quanto aos nossos conhecimentos atuais, posto que estamos, segundo toda a probabilidade, ainda quase no início da história da humanidade, tendo as gerações que nos corrigirão de ser seguramente muito mais numerosas que aquelas cujos conhecimentos - não poucas vezes um olímpico desprezo - somos capazes de corrigir. O próprio Sr. Dühring considera necessário que a consciência e, por conseguinte. o pensamento e o conhecimento, só se manifestam numa série de seres isolados. Só num sentido o pensamento de cada um desses seres isolados não pode ser considerado como soberano no sentido de que não conhecemos um poder capaz de impor-lhes, pela força, quando se acham em estado de saúde e de serenidade, um qualquer pensamento... Mas, no que se refere ao valor soberano dos conhecimentos de cada mente individual isolada, sabemos que não pode haver tal valor soberano e todas as nossas experiências passadas nos demonstram que. nesses conhecimentos, sem exceção, está contida uma parte maior de dados retificáveis do que de dados não retificáveis. Em outros termos: a soberania do pensamento realiza-se através de uma série de seres humanos pensantes muito pouco soberanos; os conhecimentos que podem alegar títulos incondicionais de verdade se impõem depois de uma série de erros relativos; nenhuma soberania pode converter-se em plena realidade a não ser através da duração infinita da própria realidade. Encontramos, aqui, a mesma contradição, que já indicamos no trecho acima, entre o caráter, que necessariamente temos que nos apresentar como absoluto do pensamento humano e a realidade desse pensamento numa multidão de seres humanos, isolados, de pensamento limitado. Essa contradição não se pode resolver senão no decorrer de um processo infinito, na sucessão, - para nós, pelo menos, praticamente inacabável - das gerações humanas. Nesse sentido, podemos dizer que o pensamento humano é ao mesmo tempo soberano e não soberano e a sua capacidade cognoscitiva é ao mesmo tempo limitada e absoluta. Soberano e absoluto quanto à sua capacidade, sua vocação, suas possibilidades, sua meta histórica final: não soberano e limitado, quanto à sua aplicação concreta e a realidade de cada caso particular. O mesmo acontece com as verdades eternas. Se a humanidade chegasse. em algum tempo, a um tal grau de progresso que só atuasse com verdades eternas, com produtos do exercício do pensamento que pudessem reivindicar uma validez soberana e títulos incondicionais de verdade, teria alcançado o ponto em que se teria esgotado a infinidade do mundo intelectual, tanto em relação à realidade como em relação à possibilidade, efetuando-se assim o famoso milagre da contagem do inumerável. Mas será possível que existam verdades tão incontestáveis que toda a dúvida a seu respeito nos faça supor, necessariamente, um indício de imbecilidade? Quando dizemos que dois e dois são quatro, que os três ângulos de um triângulo eqüivalem a dois retos, que Paris está em França, que o homem. que não se alimenta, morre de fome, etc... não estamos afirmando verdades incontestáveis? Existem, porventura, verdades eternas, verdades definitivas e inapeláveis? É fora de dúvida que não. E, seguindo a conhecida tradição, poderemos dividir todo o campo do conhecimento em três grandes zonas. A primeira compreende todas as ciências que estudam a natureza inanimada e que, em menor ou maior grau, podem ser tratadas pelos métodos matemáticos: as matemáticas, a astronomia, a mecânica, a física, a química. Se há quem prefira aplicar palavras retumbantes a coisas tão simples, pode afirmar que alguns dos resultados destas ciências são verdades eternas, verdades definitivas e inapeláveis e esse é justamente o motivo pelo qual essas ciências são chamadas de exatas. Mas isso não significa que todos os seus resultados sejam exatos. Ao introduzir as grandezas variáveis e ao estender a sua variabilidade até o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, as puritanas matemáticas cometeram o pecado original, morderam a maçã do bem e do mal, que lhes abriu um caminho de grandes triunfos, mas também de grandes erros. A pureza das verdades absolutas, o valor incontestável das matemáticas havia, desse modo, terminado; iniciou-se a era das controvérsias e assim chegamos a uma situação em que a maioria das matemáticos se debate com as suas diferenciais e integrais, não porque saibam o que estão fazendo, mas por puro ato de fé, porque sempre viram fazer assim. Mas é ainda pior o que se dá com a astronomia e a mecânica, sem falarmos da física e da química: nelas, o cientista move-se dentro de um turbilhão de hipóteses que o assaltam, de todos os lados, como um enxame de abelhas. E é natural que assim seja. A física trata dos movimentos das moléculas; a química, da formação das moléculas, partindo de átomos e, se a interferência das ondas luminosas não é uma fábula, não há a menor esperança de que possamos algum dia chegar a ver esses tão interessantes objetos com os nossos próprios olhos. É assombroso verificar como vão desaparecendo com o tempo, nesse assunto, as verdades definitivas e inapeláveis. Incomparavelmente mais difícil é o terreno em que pisamos em geologia, ciência que estuda, por sua própria natureza, e em primeiro lugar, fenômenos que não só não assistimos, como também não foram assistidos por nenhum outro homem, em época alguma. Aqui, a procura de verdades definitivas inapeláveis é extraordinariamente penosa, e de rendimento escassíssimo, além do mais. A segunda categoria de ciências é a das que têm a seu cargo a investigação dos fenômenos que ocorrem nos organismos vivos. Neste campo de estudos, desenvolve-se uma série tão diversa de ações e de reações, de reciprocas causalidades, que cada problema resolvido coloca um sem-número de problemas novos, além de existirem não poucos problemas que se conseguem resolver apenas pouco a pouco, por meio de investigações que duram às vezes séculos inteiros. Além disso, a necessidade de formar-se uma noção sistemática das concatenações científicas obriga constantemente o cientista a envolver as verdades definitivas e imperecíveis com uma verdadeira floresta de hipóteses. Pense-se na imensa sucessão de fases intermediárias que foi preciso percorrer- se, desde Galeno até Malpighi, para tornar clara uma coisa tão simples como a circulação do sangue nos mamíferos; pense-se no pouco que sabemos do processo de produção dos glóbulos do sangue e na série de elos intermediários que nos faltam, ainda hoje, por exemplo, para poder relacionar racionalmente os sintomas de uma enfermidade com suas causas. De vez em quando, e com muita freqüência, aparece uma descoberta, como esta da célula, que nos obriga a submeter a uma total revisão as noções que considerávamos verdades definitivas e inapeláveis no campo da biologia e a deixar de lado, para sempre, inúmeras delas. Assim, quem se empenha a defender aqui, a todo transe, autênticas verdades imutáveis, está-se restringindo a formular vulgaridades no estilo das que todo e qualquer valor, como meio estritamente científico de expressão; e se tentamos aplicá-la como valor absoluto, fora daquela órbita circunscrita, fracassamos definitivamente, pois os dois pólos da antítese se tocam no inverso do que são, a verdade em erro e o erro em verdade. Tomemos, como exemplo, a conhecida lei de Boyle, segundo a qual, permanecendo invariável a temperatura, varia o volume dos gases na razão inversa da pressão a que estão submetidos, Regnault descobriu que esta lei não era aplicável a certos casos. Se tivesse sido um "filósofo da realidade", deveria ter dito: a lei de Boyle é mutável; não é, portanto, uma autêntica verdade, ou seja, não é uma verdade, mas sim um erro. Mas com isso teria cometido um erro muito maior que o existente na citada lei; a rocha granítica de sua verdade teria desaparecido como se fosse um torrão de areia na imensidade de seu erro; teria convertido o seu resultado originariamente exato num erro tal que, comparada com ele, a lei de Boyle, apesar da poeira de erros a ela aderida, resplandeceria como uma grande verdade. Mas Regnault, como cientista que de fato era, não se deixou levar por semelhantes puerilidades, tendo continuado a pesquisar, até descobrir que a lei de Boyle era apenas aproximadamente certa e que deixava de sê-lo, sobretudo na presença de gases que, quando submetidos à pressão, se tornavam fluidos, ou, mais concretamente, a lei deixava de ser certa a partir do momento em que a pressão se aproximava do ponto de fluidez. A lei de Boyle só se mantinha exata dentro de certos limites. Mas, dentro destes limites, era absoluta, definitivamente verdadeira? Nenhum físico se atreverá a afirmar semelhante coisa. Responderá unicamente que esta lei é efetiva e exata dentro de certos limites de pressão e temperatura e para determinados gases; e mesmo dentro destes limites admitirá a possibilidade de que o seu campo de aplicação se restrinja mais ainda ou que a sua fórmula se modifique como resultado de posteriores investigações.(4) Vemos, pois, aqui, o caráter que assumem, na física, as verdades definitivas e inapeláveis. Por isso, todos os trabalhos realmente científicos se abstêm, cuidadosamente, de empregar termos tão dogmaticamente normativos como os de erro e verdade, que encontramos em grande quantidade em obras como A Filosofia da Realidade na qual pretende o autor nos impor, como sendo o fruto soberano do pensamento soberano, um mero encadeamento de frases sem sentido. Mas, perguntará o leitor ingênuo, onde concretamente o Sr. Dühring disse que o conteúdo de sua filosofia da realidade é a verdade definitiva e inapelável? Onde? Ele o disse, por exemplo, no ditirambo que entoa em homenagem ao seu próprio sistema, na página 12 desse livro do qual tomamos algumas frases do capítulo II desta obra; ou quando diz, no parágrafo que acima citamos, que as verdades morais, sempre que possam ser conhecidas até os seus últimos fundamentos, reclamam os mesmos títulos de efetividade que as verdades matemáticas. E acaso não afirma O Sr. Dühring ter chegado até esses fundamentos últimos, até os esquemas fundamentais do ponto de vista de sua "plataforma autenticamente crítica" e por intermédio de sua investigação, que atinge "as raízes das coisas", transmitindo com isso as verdades morais em caráter definitivo e sem apelação? Pois se o Sr. Dühring não pretende esses títulos nem para si nem para a sua época, se apenas quer dizer que um dia haverá, não se sabe quando, lá pelo nebuloso futuro, no qual se poderão descobrir verdades definitivas e inapeláveis, se, portanto, apenas quer dizer o que diz, vaga e confusamente, quando se refere ao "ceticismo desagregador" e "desesperado confusionismo", porque, então, todo esse barulho? Que deseja, afinal, esse Senhor? Se nada ganhamos com os conceitos de verdade e erro, menos ainda alcançamos com os do bem e do mal. Esta antítese move-se, pura e exclusivamente, dentro da órbita moral, isto é, num terreno que pertence à história humana, onde já sabemos que pouquíssimas verdades definitivas e inapeláveis podem fecundar. As idéias do bem e do mal variaram tanto de povo para povo, de geração para geração, que, não poucas vezes, chegam a se contradizer abertamente. Mas, - replicará alguém com segurança - o que é bem não é mal, o que é mal não é bem, e se se apaga qualquer distinção entre o bem e o mal, ter- se-á destruído a moral, e cada qual poderá fazer ou deixar de fazer o que bem entender. Com efeito, tal é, livre de todo disfarce oracular, a opinião do Sr. Dühring. Mas o problema não é tão fácil de resolver, pois que, assim sendo, não haveriam disputas sabre o que está bem e o que está mal e todo o mundo saberia se orientar sobre o que é bom e sobre o que é mau. Mas vejamos o que acontece em nossos dias. Que espécie de moral nos pregam hoje? Temos, em primeiro lugar, a moral cristã-feudal, que nos legaram os velhos tempos da fé e que se divide, fundamentalmente, numa moral católica e numa moral protestante, com toda uma série de variações e subdivisões que vão desde a moral católica dos jesuítas e a moral ortodoxa dos protestantes, até uma moral de certo modo liberal e tolerante. E, ao lado dessas, temos a moderna moral burguesa e, ao lado da moral burguesa moderna, a moral proletária do futuro. Portanto, somente nos países mais cultos da Europa, nos defrontamos com três grupos de teorias morais, correspondentes ao passado, ao presente e ao futuro, pretendendo esses três grupos dominar, concorrente e simultaneamente. Qual delas é a verdadeira? Em sentido absoluto e definitivo, nenhuma; mas, evidentemente, a que contém mais garantias de permanência é a moral que, no presente, representa a destruição do presente, o futuro, ou seja, a moral proletária. Assim, verificando que as três classes que constituem a sociedade moderna, que são a aristocracia feudal, a burguesia e o proletariado, possuem cada uma a sua moral particular, teremos, necessariamente, de concluir, que os homens, consciente ou inconscientemente, fazem derivar suas idéias morais, em última análise, das condições práticas em que se baseia a sua situação de classe, ou seja, das condições econômicas em que produzem e trocam os seus produtos. Existe, porventura, algum elemento comum às três teorias morais mencionadas, um só elemento que seja que possamos acatar como verdade perene e definitiva? Essas três teorias morais representam outras tantas etapas distintas de um mesmo processo histórico, e por isso têm um fundo histórico comum, o que faz com que forçosamente elas contenham toda uma série de elementos comuns. E não é só. Em fases idênticas ou aproximadamente equivalentes de desenvolvimento econômico, as teorias morais devem necessariamente coincidir, numa extensão maior ou menor. Ao surgir a propriedade privada sobre as coisas móveis, impôs-se, necessariamente, em todas as sociedades nas quais existe essa instituição, um preceito de moral, comum a todas elas: "Não roubarás". Transformou-se este preceito, por esse simples fato, numa norma eterna de moral? Não. Numa sociedade em que tivessem desaparecido os móveis do roubo, na qual, portanto, de um modo geral, somente poderia roubar uma pessoa anormal, o pregador de moral que subisse ao púlpito para proclamar solenemente a verdade eterna do "não roubarás", seria vitima de zombaria generalizada. Não estamos dispostos, pois, a deixar que nos imponham como lei eterna, definitiva e imutável, um qualquer dogma de moral, sob o pretexto de que também o mundo moral tem os seus princípios permanentes, que se colocam acima da história e das diferenças existentes entre os povos. Pelo contrário, afirmamos que, até hoje, todas as teorias morais foram, em última instância, produtos da situação econômica das sociedades em que foram formuladas. E, como até o dia de hoje a sociedade se desenvolveu sempre por antagonismos de classe, a moral foi também. sempre e forçosamente, uma moral de classe; nalguns casos, construída para justificar a hegemonia e os interesses da classe dominante, noutros, quando a classe oprimida se torna bastante poderosa para rebelar-se contra a classe opressora, a moral é construída para defender e legitimar a rebelião e os interesses do futuro em geral, e da classe oprimida, em particular. Que esta evolução se processa sempre, em largos traços, da mesma forma no campo da moral como no dos demais ramos do conhecimento humano e sempre num sentido de progresso, é o que nos parece indubitável. Mas, apesar de todos os progressos, não se encontrou ainda nenhum modo de fugir da moral de classe. Para se chegar à conquista de uma moral realmente humana, subtraída a todos os antagonismos de classes ou mesmo à sua recordação, teremos, antes, que alcançar um tipo de sociedade na qual não somente se tenha abolido o antagonismo das classes mas também tenha sido esse antagonismo, além de abolido. esquecido e afastado das práticas da vida. Considere-se, pois, quanto é grande a presunção do Sr. Dühring, que, vivendo no seio da velha sociedade de classes, nas vésperas de uma revolução social, tem a pretensão de impor à sociedade sem classes do futuro, uma moral eterna, subtraída às leis do tempo e às mudanças da realidade. Assim mesmo, supondo que conheça - o que até agora ainda não sabemos - ainda que seja apenas em seus traços fundamentais, a estrutura dessa sociedade do futuro. E, para terminar, lembramos uma sua descoberta "fundamentalmente original", mas nem por isso menos "radical": estudando as origens do mal, deparamos com "o fato de que o tipo de gato, que é encontrado nessa espécie animal com a falsidade que o caracteriza, pode ser comparado com a contextura de certos caracteres humanos, colocados, assim. no mesmo plano que esses bichos... O mal não é, pois, nada misterioso. a menos que se queira farejar alguma coisa de místico na existência do gato ou na dos felinos em geral." Concluímos, portanto, que o mal, segundo o Sr. Dühring, é... um gato. O diabo mudou os chifres e as patas por unhas e olhos verdes. Goethe cometeu um erro imperdoável quando, em seu "Fausto", apresentou Mefistófoles na forma de um cão negro, em vez de dar-lhe a figura de um gato. O gato, personificação do mal! Temos, aqui, uma moral aplicável não só a todos os mundos habitáveis, mas também a todos os gatos. Capítulo X - MORAL E DIREITO. A IGUALDADE Já tivemos ocasião de conhecer várias aplicações do método do Sr. Dühring. Consiste ele em analisar um determinado grupo de objetos do conhecimento, em seus pretendidos elementos simples, aplicando a estes elementos uns tantos axiomas não menos simples, considerados evidentes pelo autor, para, em tão despidos de todas as condições nacionais, econômicas, políticas, religiosas, existentes em nosso mundo, que, de todas as características e peculiaridades de pessoa e de sexo, neles só deve restar o mero conceito de homem, de ser humano. Somente assim, poderão ser "completamente idênticos". Como se vê, não estamos precisamente diante de dois homens, mas de dois perfeitos fantasmas, evocados por este mesmo Sr. Dühring. que vive a descobrir e a denunciar, por toda a parte, as reações "espiritistas". Esses dois espectros são naturalmente condenados a fazer tudo o que homem que os evocou deles exija; e por isso são absolutamente indiferentes às outras coisas do mundo para as suas manipulações artificiais. Penetremos, um pouco, na axiomática do Sr. Dühring. Dizíamos que aquelas duas vontades nada podiam exigir de positivo, uma da outra. Se uma delas falta a esse dever e apresenta uma exigência, chegando mesmo a impô-la pela força, cria-se, então, um estado injusto e, deste esquema fundamental, faz o Sr. Dühring derivar a injustiça, a dominação, a escravidão, numa palavra, toda a condenável história desde a antigüidade até os nossos dias. Entretanto, já Rousseau, no estudo que citamos atrás, valendo-se exatamente de nossos dois homens, provou, de modo axiomático, justamente o contrário, ou seja, que entre os dois homens, "A" não pode escravizar "B" pela violência, a não ser colocando-o numa tal situação que "B" não possa prescindir de "A". Esta concepção peca, no entender do Sr. Dühring, por ser excessivamente materialista. Focalizemos, pois, essa mesma coisa, de outro modo. Suponhamos que dois náufragos, sozinhos numa ilha, contratam uma sociedade. Suas vontades, são formalmente idênticas, e ambos assim o consideram, Mas entre os dois sócios existem grandes diferenças materiais. "A" é um homem resoluto e enérgico; "B" ,é indeciso, indolente, preguiçoso; "A" é inteligente, "B" é retardado. É natural que, cedo ou tarde, "A" acabe de impor a sua vontade a "B", primeiramente pela persuasão e, a seguir, pouco a pouco, por força do hábito, mas sempre de um modo livre e espontâneo. Significa a mesma coisa que sejam respeitadas ou desprezadas as formas voluntárias: voluntária ou não, a servidão é servidão. A aceitação voluntária da servidão é encontrada em toda a Idade Média e, na Alemanha, chega mesmo até a Guerra dos 30 Anos. Quando, na Prússia, depois das derrotas de 1806 e 1807, foi abolida a servidão e com ela a obrigação imposta ao nobre feudal de zelar pelos seus súditos, em casos de miséria, enfermidade ou velhice, dirigiram-se os camponeses ao rei para suplicar que os deixasse continuar como servos, pois, de outro modo, quem iria cuidar deles e ampará-los na miséria? O esquema dos dois homens encerra, pois, os germes de desigualdade e servidão, tanto quanto os de igualdade e cooperação. E como, além disso, devemos, a não ser que os condenemos a perecer, concebê-los como cabeças de família, verificamos que esse esquema contém, além do mais, a explicação da escravização hereditária. Mas deixemos por um momento este assunto e suponhamos que nos tenha convencido a axiomática do Sr. Dühring e que estejamos verdadeiramente entusiasmados com a absoluta equiparação das duas vontades, com a "soberania humana geral", com a "soberania do indivíduo", verdadeiras expressões' maravilhosas ao lado das quais o "Único", de Max Stirner, com todas as suas propriedades, fica obscurecido, embora também a ele seja devida uma parte modesta da criação. Admitamos pois que somos todos absolutamente iguais e independentes. Todos? Não, todos não. Existem, também, umas "dependências legitimas", mas estas não se originam de "razões baseadas no exercício das duas vontades, como tais, mas num terceiro fator, como acontece, por exemplo, com as crianças; nestas, este terceiro fator provém da insuficiência de sua própria determinação". Magnífico! Desse modo, não se deve buscar as razões a que se deve a dependência no exercício de ambas as vontades como tais. Como se há de buscar aí a razão quando justamente a dependência consiste em entorpecer o exercício de uma das vontades? Essa razão, deve ser encontrada, como nos diz o Sr. Dühring, "num terceiro fator". Esse terceiro fator é a insuficiente capacidade de determinação concreta da vontade quando sujeita à coerção. O nosso filósofo da realidade tanto dela se distanciou que, como vemos, comparado com expressões abstratas e vazias como a da vontade, o conteúdo real de determinação, própria dessa vontade, se lhe assemelha a um "terceiro fator". Mas, seja o que for, o caso é que a equiparação das duas vontades tem exceções, pois uma vontade não se ajusta à outra, a própria determinação de uma delas é reconhecida como insuficiente. Limitamo-nos a consignar: reteirada número um! Prossigamos. "Ali, onde homem e animal formam uma só pessoa, pode-se perguntar, em nome de uma segunda pessoa completamente humana, se a sua conduta pode, neste caso, ser a mesma que teria sido frente a pessoas exclusivamente humanas, digamos assim... Começamos por supor duas pessoas moralmente desiguais, uma das quais tem, de certo modo, um pouco do caráter das bestas, e, dessa forma, criamos um esquema fundamental ap1icável a todas as relações que podem, de acordo com essa diferença, ser encontrados... entre os grupos humanos e dentro deles." E o leitor, se quiser, que procure entender o atormentado libelo que o Sr. Dühring apresenta ao enveredar por esta última saída, na qual dá voltas e mais voltas, deslizando por sendas tortuosas, como um jesuíta, para acabar sentenciando, judiciosamente, até que ponto pode o homem humano proceder contra o homem bestial; até que ponto lhe é licito empregar contra este último a manobra, a astúcia guerreira e mesmo os recursos da violência, do terror, da mistificação, sem faltar em nada aos postulados da moral imutável. Assim, a igualdade também termina ali onde duas pessoas são "moralmente desiguais". Então, para que esse esforço todo no sentido de reunir dois seres humanos absolutamente idênticos, se sabemos que não existem duas pessoas que sejam moralmente iguais? Pois é o Sr. Dühring quem nos diz que a desigualdade consiste em que uma delas é pessoa humana, enquanto que a outra tem dentro de si uma qualquer coisa de besta. Entretanto, a própria procedência animal do homem já nos indica que ele não pode nunca se desprender totalmente da condição de besta, e que, além disso, o problema da distinção entre a bestialidade e a humanidade é puramente quantitativo, referindo-se apenas a uma diferença de grau. A classificação dos homens em dois bandos nitidamente distintos e separados, o dos humanos e os dos bestiais, os bons e os maus, os cordeiros e os lobos, somente pode ser admitida pela filosofia da realidade e pelo cristianismo, com a diferença de que este é mais conseqüente, pois cria um juiz universal, que tem a seu cargo a tarefa da classificação de cada indivíduo num dos dois grupos. Mas, na filosofia da realidade, quem há de ser o juiz universal? Sucederá com ela o que costuma acontecer, na prática, entre os cristãos, em que os piedosos cordeirinhos se encarregam da função, com grande êxito, como sabemos, de juiz universal de seus próximos, os lobos deste mundo. A seita dos filósofos da realidade, caso fosse fundada algum dia, não poderia ser pior, com relação a esse assunto. Mas isto pouco nos importa; o que nos interessa é tomar nota da concessão que acaba de nos fazer o Senhor Dühring de que a desigualdade moral entre os homens acaba por anular a igualdade. Retirada número dois. Continuemos a leitura. "Se uma pessoa age, respeitando a ciência e a verdade, enquanto que outra se deixa levar por preconceitos... necessariamente, haverá entre elas algumas perturbações... Quando atingirem um certo grau a brutalidade ou as tendências malignas do caráter, produzir-se-á forçosamente um choque... Não são apenas as crianças e os loucos que conhecem outras armas além da força. A sucessão dos grupos naturais e das classes culturais pode tornar uma necessidade inadiável a submissão de cada vontade desviada e hostil, até submetê-la aos vínculos coletivos. Ao fazer tal coisa, respeita-se como igualmente legitima a vontade alheia; o que se dá é que o seu exercício, coletivo quando hostil e prejudicial, provoca uma compensação e, se lhe faltam forças, não faz mais que suportar os efeitos reflexos, provocados pela sua própria injustiça". Como vemos, não é só a desigualdade moral, mas também a desigualdade espiritual que pode deitar por terra a "completa identidade" das duas vontades, instaurando o reino de uma moral que justifica todas as infâmias praticadas pelos Estados civilizados em sua cruzada de rapina contra os povos mais fracos, até mesmo as repugnantes façanhas dos russos no Turquestão. Quando, no verão de 1873, o general Kauffmann caiu, como um vendaval. sobre a tribo tártara dos jomudas, incendiou suas tendas, massacrou. "à boa maneira caucasiana", como rezava a ordem, as mulheres e as crianças, invocava ele também a necessidade inevitável de submeter a vontade "desviada e hostil" daqueles selvagens, para reduzi-los aos "vínculos coletivos", afirmando que os meios postos em prática por ele eram os mais eficazes para conseguir tal coisa; e já se sabe, além do mais, que os fins justificam os meios, O que verificamos é que o general conquistador era um pouco menos cruel, pois não lhe ocorria, além de tudo, rir-se dos jomudas, enganando-os com a fábula de que, ao exterminá-los, como "compensação", não fazia mais que render homenagem à sua própria vontade, acatando-a como "igualmente legitima". Neste conflito, os eleitos são ainda, em última instância, os filósofos da realidade, que dizem agir de conformidade com a verdade e a ciência, e que portanto são chamados a definir o que quer dizer a superstição, o preconceito, a brutalidade, o que são as tendências malignas do caráter e quando é que devem ser indicadas a dominação e a força como meios de compensação. A igualdade fica reduzida, pois, ainda uma vez, à nivelação pela força e a segunda vontade deve ser equiparada à primeira por meio de um ato de submissão, Retirada número três, que, mais que retirada, é já uma fuga vergonhosa. Acrescentaremos, entre parênteses, que a frase segundo a qual a vontade alheia é sancionada como "igualmente legítima", justamente por meio da nivelação pela força, não é mais que uma deturpação da teoria de Hegel, de acordo com o qual o criminoso tem direito à pena: "No fato de ver implícito na pena um direito próprio do criminoso é que se reconhece e se honra a este como um ser racional". (Filosofia do Direito, § 100, nota). Acreditamos que isso é suficiente, Não é preciso seguir passo a passo o Sr. tornando cada dia mais burguesa. O comércio em grande escala e principalmente o comércio internacional e mais ainda o comércio mundial requerem livres proprietários de mercadorias, desembaraçados em seus movimentos, capazes todos de realizar transações, dispondo de um direito igual para todos, pelo menos dentro de cada localidade. A passagem do artesanato para a manufatura pressupõe a existência de um certo número de operários livres - livres, de um lado. dos entraves gremiais e, de outro, donos dos meios de explorarem, por si próprios, a sua força de trabalho - capazes de estabelecer contrato com o fabricante, vendendo-lhe a sua força de trabalho, e que, portanto, sejam capazes de contratar de igual para igual. Finalmente, a igualdade e a igual valorização de todos os trabalhos humanos, na qualidade de manifestações do trabalho da homem, encontrou a sua mais forte expressão. embora inconsciente, na lei do valor da economia burguesa moderna, segundo a qual o valor de uma mercadoria se mede pelo trabalho socialmente necessário contido nela.(5) Mas ali onde as condições econômicas clamavam por igualdade de direitos e por liberdade, a ordem política lhes opunha, a cada passo, os entraves feudais e os privilégios de classe. Por todas as partes se erguiam privilégios locais, barreiras alfandegárias para cada produto, leis de exceção de todo o gênero, prejudicando o comércio não só dos estrangeiros e dos habitantes das colônias, mas até, muitas vezes, de categorias inteiras dos próprios súditos do país; por todas as partes, inúmeros privilégios gremiais barravam-lhes o caminho e se antepunham ao desenvolvimento da manufatura. Os competidores burgueses não encontravam liberdade e igualdade de condições em nenhuma parte, e, entretanto, essa sua reivindicação era essencial e cada vez mais premente. A emancipação dos entraves feudais e a implantação da igualdade jurídica, pela abolição das desigualdades do feudalismo, eram um postulado colocado na ordem do dia pelo progresso econômico da sociedade, e que depressa alcançaria grandes proporções. Embora proclamado este postulado da igualdade de direitos no interesse da indústria e do comércio, não havia mais remédio senão torná-lo extensivo também à grande massa de camponeses que, submetida a todas as nuanças de vassalagem, que chegava até a servidão completa, passava a maior parte de seu tempo trabalhando gratuitamente nos campos do nobre senhor feudal, além de ter de pagar a ele e ao Estado uma infinidade de tributos. Postos neste caminho, não havia outro remédio para os burgueses senão exigir também a abolição dos privilégios feudais, da isenção de impostos para a nobreza, dos direitos políticos singulares de cada categoria social feudal. E como a sociedade não vivia mais num império mundial como o romano, mas sim dividida numa rede de Estados independentes, que mantinham entre si relações de igualdade e tinham chegado a um grau quase burguês de desenvolvimento, era natural que aquelas tendências adquirissem um caráter geral, ultrapassando as fronteiras dos Estados e era natural, portanto, que a liberdade e a igualdade fossem proclamadas direitos humanos. Para compreender o caráter especificamente burguês de tais direitos humanos, nada mais eloqüente que a Constituição norte- americana, a primeira em que são definidos os direitos do homem, na qual, ao mesmo tempo, se sanciona a escravidão dos negros, então vigente nos Estados Unidos, e se proscrevem os privilégios de classe, enquanto que os privilégios de raça são santificados. Sabe-se, por outro lado, que a burguesia, desde o instante em que sai do embrião da burguesia feudal, instante em que, de camada feudal se converte em classe moderna, se vê ladeada, sempre e em todas as partes, inseparavelmente, como por sua própria sombra, pelo proletariado. E ao movimento da igualdade burguesa acompanha, também, como a sombra ao corpo, o movimento da igualdade proletária. Desde o instante em que se proclama o postulado burguês da abolição dos privilégios de classe, ergue-se o postulado proletário da abolição das próprias classes postulado esse que adota primeiro a forma religiosa, baseada no cristianismo primitivo, e que, mais tarde, se apoia nas próprias teorias burguesas da igualdade. Os proletários colhem a burguesia pela palavra: é preciso que a igualdade exista não só na aparência, que não se circunscreva apenas à órbita do Estado, mas que tome corpo e realidade, fazendo-se extensiva à vida social e econômica. E, desde que a burguesia francesa, sobretudo depois da Grande Revolução, passou a considerar em primeira plano a igualdade burguesa, o proletariado francês coloca, passo a passo, as suas próprias reivindicações, levantando o postulado da igualdade social e econômica, e, a partir dessa época, a igualdade se converte no grito de guerra do proletariado, e, muito especialmente, do proletariado francês. O postulado da igualdade tem, pois, na boca do proletariado, uma dupla acepção. As vezes - como sucedeu sobretudo nos primeiros tempos, na guerra dos camponeses, por exemplo, - este postulado significa a reação natural contra as desigualdades sociais clamorosas, contra o contraste entre ricos e pobres, Senhores e servos, famintos e glutões. Este postulado da igualdade não é mais que uma explosão do instinto revolucionário e somente isso é que o justifica. Outras vezes, no entanto, nasce esse postulado como reação contra o postulado de igualdade da burguesia e tira dele muitas conseqüências avançadas, mais ou menos exatas, sendo utilizado como meio de agitação para levantar os operários contra os capitalistas, usando para isso frases tomadas dos próprios capitalistas e, considerado desse aspecto, se organiza e cai por terra esse postulado juntamente com essa mesma liberdade burguesa. Tanto num como noutro caso, o verdadeiro conteúdo do postulado da igualdade proletária é a aspiração de alcançar a abolição das classes. Qualquer outra aspiração de igualdade que transcenda a tais limites desborda, necessariamente, para o absurdo. Demos já alguns exemplos a este respeito e poderemos encontrá-los em abundância quando chegarmos às fantasias sobre o futuro, do Sr. Dühring. Como vemos, a idéia da igualdade, tanto na sua forma burguesa como na proletária, é, por si mesma, um produto histórico que somente podia tomar corpo em virtude de determinadas condições históricas, as quais, por sua vez, tinham por trás de si um grande passado. Está longe, pois, de ser uma verdade eterna. E se alguma coisa é atualmente evidente para o grande público - num ou noutro sentido - se, como diz Marx, - alguma coisa "possui já a completa estabilidade de um preconceito popular", não há de ser devido à sua verdade axiomática, mas por ser resultado da difusão generalizada e da permanente atualidade das idéias do século XVIII. Portanto, se o Sr. Dühring pode se dar ao luxo de colocar os seus dois homens a viver num plano de igualdade, isso se dá. pura e simplesmente, porque para o povo, devido a esse preconceito, parece essa igualdade ser a coisa mais natural do mundo. Não esqueçamos que o Sr. Dühring chama de filosofia natural à sua filosofia, por ser proveniente de toda uma série de coisas que parecem a ele naturalíssimas. Por que é que lhe parecem naturais é uma coisa que não merece a preocupação do Sr. Dühring. Capítulo XI - MORAL E DIREITO. LIBERDADE E NECESSIDADE. "No que se refere aos problemas políticos e jurídicos, os princípios proclamados neste Curso repousam nos mais conscienciosos estudos especializados. Portanto, o ponto de partida será... a matéria de que já tratamos... a exposição conseqüente dos resultados das ciências jurídicas e políticas. Comecei por dedicar-me ao estudo da jurisprudência e não só consagrei a ela os três anos usuais da preparação teórica universitária, como ainda mais três anos da prática judicial, ocupados por um constante estudo, principalmente destinado a aprofundar o seu conteúdo científico... Também enfrentaria seguramente a crítica das instituições de direito privado e suas correspondentes imperfeições jurídicas, com idêntico domínio da matéria, se não estivesse certo de conhecer todos os pontos fracos desta especialidade, da mesma forma que conhecia os seus pontos fortes." Um homem que possui títulos suficientes para falar de si mesmo em tais termos há de nos infundir, forçosamente, uma confiança ilimitada, desde o primeiro momento, ainda mais se compararmos a sua preparação com os "estudos jurídicos primários do Sr. Marx, tão descuidados, segundo ele mesmo confessa". A única coisa que nos assombra é que uma crítica às instituições do direito privado, que se ergue com tanta segurança, se reduza a explicar que "a cientificidade da jurisprudência... não é grande", que o direito civil positivo é a injustiça, pois que sanciona a propriedade baseada na forma e que o "fundamento natural" do direito penal é a vingança, afirmação que não prima pela novidade, a não ser com a roupagem mística do "fundamento natural". Os resultados da ciência política ficam reduzidos às já conhecidas negociações entre os três homens já conhecidos, um dos quais, até agora, vem exercendo a violência sobre os outros, dois, além do que, o Sr. Dühring investiga conscienciosamente se será o segundo ou o terceiro que, em primeiro lugar, introduzirá a violência ou a escravidão. Mas, observemos de perto os conscienciosos estudos especializados e o profundo domínio da ciência, adquirido por nosso jurista, durante os três anos de prática judiciária. Quanto a Lassalle, conta-nos o Sr. Dühring, foi acusado e processado "como instigador de tentativa de roubo de uma maleta", "mas não foi possível uma condenação judicial, tendo-se aplicado a chamada absolvição de instância, que ainda existia nesse tempo... essa meia absolvição". O processo Lassalle, a que se refere, foi julgado em Colônia, em 1848, onde estava em vigor, como em quase toda a província renana, o direito penal francês. Só para os delitos e contravenções políticos era aplicado, em caráter excepcional, o direito nacional prussiano, até que, em abril de 1848, Champhausen aboliu também essa lei de exceção. O direito francês não admite, de modo algum. essa desnecessária categoria do direito prussiano que se chama "instigação a um delito", nem tampouco, como daí se depreende, a instigação a uma tentativa de delito. Reconhece apenas a excitação ao crime; e esta, para ser condenável, deve ser realizada "por meio de presentes, promessas, ameaças, abuso de prestígio ou de força, astúcia ou artifícios culposos." (Código Penal, artigo 60). O Ministério A mesma coisa acontece com os seus lamentos a respeito das intromissões injustificadas do ritual religioso no nascimento, no matrimônio, na morte e nos enterros; de todos os países civilizados de certa extensão, tais lamentos se aplicam somente à Prússia, e. mesmo nesta, já se tornam desnecessários desde a implantação do sistema do Registro Civil. Até mesmo um Bismarck foi capaz de resolver, há pouco tempo, por uma simples lei, o problema que o Sr. Dühring não sonhava que se pudesse resolver a não ser por meio de seus planos "socialitários" sobre o futuro. Na sua "queixa a respeito da defeituosa preparação dos juristas para exercer a sua profissão", aliás extensiva até "aos funcionários da administração", volta a martelar a tecla das lamentações especificamente prussianas. Também o anti-semitismo, tendo ou não importância e que é levado a extremos ridículos, merecendo o entusiasmo do Sr. Dühring, nos demonstra a mesma qualidade, se não especificamente prussiana, pelo menos característica de uma determinada região da Prússia: o Leste do Elba. Com efeito, este filósofo da realidade, que contempla com um desprezo soberano todos os preconceitos e superstições, se deixa influenciar profundamente pelas quimeras pessoais até o ponto de querer qualificar o preconceito popular contra os judeus, herdado da beataria medieval, de preconceito natural" baseado em "fundamentos naturais" lançando a seguinte afirmação digna de nota: "O socialismo é a única força capaz de fazer frente a Estados de população com uma forte mescla judia." (Estados de mescla judia! Que linguagem!) Parece que é suficiente. Todas aquelas pretensões de erudição jurídica, se reduzem - no melhor dos casos - à vulgaríssimos conhecimentos profissionais de um vulgaríssimo demagogo prussiano. E a ciência jurídica e política, cujos frutos nos são oferecidos, consequentemente, pelo Sr. Dühring, se restringe ao raio de ação do direito nacional prussiano, Afora os conhecimentos de direito romano que possui qualquer profissional do direito, atualmente, mesmo na Inglaterra, a sua ciência jurídica limita-se simplesmente ao direito nacional prussiano, esse código ilustrado do despotismo patriarcal, escrito num alemão que se parece com o que aprendeu o Sr. Dühring, código que parece estar cheio da era pré-revolucionária, pelas suas glórias morais, pelo seu estilo vago e pela falta de consciência jurídica, bem como pelos açoites que adotava como meio de tortura e como pena. Fora disso, nada reza conforme a cartilha do Sr. Dühring: para ele não existe o moderno direito civil francês, nem tampouco o direito inglês, com a sua peculiaríssima evolução e suas garantias de liberdade pessoal, desconhecidas estas em todo o continente. Uma filosofia "que não se deixa limitar pela aparência de nenhum horizonte, mas que revolve numa profunda comoção todas as terras e todos os céus interiores e exteriores da natureza", não tem outro horizonte real senão as fronteiras das seis províncias orientais do velho reino da Prússia, e, também, uns dois ou três palmos de terra, que ficam do outro lado dessas fronteiras e nos quais vigora o nobre direito prussiano; fora desses horizontes, não estremecem terras nem céus, não se revolve natureza alguma exterior ou interior; o que somente se agita é um quadro da mais crassa ignorância, com respeito ao que ocorre no resto do mundo. Não é fácil falar de moral e de direito sem tocar no problema do chamado livre arbítrio, o problema da responsabilidade humana, o problema das relações entre a necessidade e a liberdade. Em relação a este problema, a filosofia da realidade nos oferece não apenas uma, mas duas soluções. "Todas essas falsas teorias da liberdade devem ser substituídas pelo caráter da relação, em que se fundem, como a experiência nos revela, partindo, de um lado, a penetração racional e, de outro, os impulsos instintivos, como para formar uma força intermediária. A observação fornece-nos os fatos fundamentais dessa espécie de dinâmica e podemos também calculá-los, com antecedência, de uma maneira mais ou menos boa, no que concerne ao gênero e à grandeza, com relação mesmo ao que não foi observado. Desse modo, caem por terra todas essas tolas figurações a respeito da liberdade interior com as quais se remoeram e se torturaram os homens durante milhares de anos, deixando, em seu lugar, alguma coisa de positivo e de útil para a organização prática da vida." De acordo com essa idéia, a liberdade consiste em que a penetração nacional leva o homem para a direita e os impulsos irracionais para a esquerda, formando um paralelogramo de forças em que o movimento real toma a direção da diagonal. A liberdade seria, pois, a linha média entre a razão e o instinto, entre a inteligência e a irreflexão, poder-se-ia determinar o grau de liberdade, em cada indivíduo, de modo empírico, por meio de uma "equação pessoal", para dizê-lo em linguagem astronômica. Vamos encontrar, páginas adiante, a seguinte afirmação: "Baseamos a responsabilidade moral na liberdade, mas esta significa para nós apenas a receptividade do homem em relação aos móveis conscientes, como resultado da inteligência natural e adquirida. Todos estes móveis agem com o caráter inflexível das leis naturais, apesar de se perceber um possível antagonismo entre eles; e é precisamente com este caráter necessário e inelutável que podemos contar como pontos de apoio para as alavancas morais." Essa segunda definição da idéia da liberdade, que se choca flagrantemente com a primeira, não é mais do que uma fraca vulgarização da filosofia hegeliana. Foi Hegel o primeiro que soube expor de um modo exato as relações entre a liberdade e a necessidade. Para ele, a liberdade não é outra coisa senão a convicção da necessidade. "A necessidade somente é cega enquanto não compreendida," A liberdade não reside, pois, numa sonhada independência em relação às leis naturais, mas na consciência dessas leis e na correspondente possibilidade de projetá-las racionalmente para determinados fins. Isto é verdade não somente para as leis da natureza exterior, mas também para as leis que presidem a existência corporal e espiritual do homem: duas espécies de leis que podemos distinguir, quando muito, em nosso pensamento. mas que, na realidade, são absolutamente inseparáveis. O livre arbítrio não é. portanto, de acordo com o que acabamos de dizer, senão a capacidade de decisão com conhecimento de causa. Assim, pois, quanto mais livre, for o juízo de uma pessoa com relação a um determinado problema, tanto mais nítido será o caráter de necessidade determinado pelo conteúdo desse juízo; ao contrário, a falta de segurança que, baseada na ignorância, parece escolher, livremente, entre um mundo de possibilidades distintas e contraditórias, está demonstrando, desse modo, justamente a sua falta de liberdade, está assim demonstrando que se acha dominada pelo objeto que pretende dominar, A liberdade, pois, é o domínio de nós próprios e da natureza exterior, baseado na consciência das necessidades naturais; como tal é, forçosamente, um produto da evolução histórica. Os primeiros homens que se levantaram do reino animal eram, em todos os pontos essenciais de suas vidas, tão pouco livres quanto os próprios animais; cada passo dado no caminho da cultura é um passo no caminho da liberdade. Nos primórdios da história da humanidade, realizou-se a descoberta que permitiu converter o movimento mecânico em calor: a produção do fogo pela fricção; o progresso tem, atualmente, como sua etapa terminal, a descoberta que transforma, inversamente, o calor em movimento mecânico: a máquina a vapor. E apesar do colossal abalo de libertação que a máquina a vapor trouxe ao mundo social - e que até hoje ainda não deu sequer a metade de seus frutos - é indubitável que a produção do fogo pela fricção, nos tempos primitivos, foi superior àquela descoberta como condição emancipadora. O fogo, obtido dessa forma, foi que permitiu ao homem o domínio sobre uma força da natureza, emancipando-o definitivamente das limitações do mundo animal. A máquina a vapor não poderá jamais representar um passo tão gigantesco na história do homem, por mais que apareça, ante nossos olhos, como a representação de todas essas gigantescas forças produtivas a ela incorporadas e sem as quais não seria possível instaurar um regime social livre de todas as diferenças de classe, no qual desapareçam as preocupações com relação aos meios de subsistência individual e se possa falar, pela primeira vez, de uma liberdade verdadeiramente humana, de uma vida em harmonia com as leis naturais que conhecemos. O simples fato de toda a história anterior à nossa época poder ser designada como a história do período que começa com a descoberta prática, que converte o movimento mecânico em calor e culmina com a descoberta que transforma o calor em movimento mecânico, esse simples fato indica como é jovem ainda a história humana, e também como seria ridículo querer imprimir às nossas idéias atuais um caráter absoluto. Mas o Sr. Dühring compreende a história de outro modo. De maneira geral, a história, concebida como sendo a história dos erros, da ignorância e da barbárie, da violência e da escravização, é matéria que repugna à filosofia da realidade; para essa filosofia, a história, focalizada concretamente, se divide em duas grandes épocas, a saber: 1) do estado da matéria idêntica a si mesmo até a Revolução Francesa; e 2) da Revolução Francesa até o Sr. Dühring. Neste segundo período, o século XIX continua sendo "ainda essencialmente reacionário e, no terreno espiritual, chega a ser ainda mais (!) reacionário do que o século XVIII", apesar de já trazer em suas entranhas o socialismo e, com este, "o germe de um renascimento muito mais poderoso do que o concebido (!) pelos precursores e heróis da Revolução Francesa. O desprezo em que a filosofia da realidade tem toda a história anterior a este período se justifica da maneira seguinte: "Os poucos milênios a que se pode remontar a recordação histórica, por meio de documentos originais, para estabelecer a estrutura da humanidade até os nossos dias, não significam grande coisa, quando se pensa na série de milênios que ainda estão por vir... O gênero humano, considerado como um todo, é ainda muito jovem, e, quando chegar o dia em que as documentações científicas retrospectivas possam operar com dezenas de milhares e não apenas com milhares de anos, o caráter espiritualmente pueril e incipiente de nossas instituições ter-se-á imposto, indiscutivelmente, como sendo uma hipótese evidente sobre a nossa época, que será, então, considerada como a mais primitiva das antigüidades." Sem nos determos na configuração realmente "vigorosa e antiquíssima" dessa última frase, teremos que observar duas coisas. Em primeiro lugar, essa "primitivíssima antigüidade" será sempre, aconteça o que acontecer, um período delicadas". Mas como, no seu curso de economia, o Sr. Dühring dedica uma série de ditirambos à destilação de aguardente, devemos por isso entender que a sua proibição não é extensiva a estas bebidas, mas somente ao vinho e à cerveja. Proíbe-nos, também, o uso da carne e essa proibição eleva a filosofia da realidade àquelas alturas em que se colocou, em seu tempo, com tanto êxito. Gustavo Strouvé: nas alturas da mais pura futilidade. Ademais, podia o Sr. Dühring ser um pouco mais liberal no que se refere aos espirituosos. Um homem que reconhece que não pode encontrar ainda a ponte entre a estática e a dinâmica, devia ter razões de sobra para julgar com certa benevolência a um pobre diabo, que, tendo dobrado o cotovelo mais do que podia, busca também, em vão, a ponte entre a dinâmica e a estática. Capítulo XII - DIALÉTICA. QUANTIDADE E QUALIDADE "A primeira e mais importante das teses sobre as propriedades lógicas fundamentais do ser refere-se à exclusão da contradição. O contraditório é uma categoria que somente pode ocorrer numa combinação especulativa, mas nunca na realidade. Não existem contradições nas coisas, ou, dito de outro modo, a contradição posta na realidade é o cúmulo do absurdo... O antagonismo de forças que se medem umas às outras em determinado sentido e, inclusive, a forma fundamental de todas as ações na realidade do mundo e dos seres que nele habitam. Mas esta divergência entre as diferentes direções de força dos elementos e dos indivíduos, não se concilia, de modo algum, com a idéia de absurdos contraditórios... Podemo-nos, sentir, neste ponto, satisfeitos por poder desfazer, com uma imagem clara do verdadeiro absurdo que representa a contradição na realidade, a névoa que parece levantar-se dos pretendidos mistérios da lógica, demonstrando a inutilidade do incenso que se gastou, aqui e ali, em homenagem ao fetiche de barro da dialética da contradição, grosseiramente talhado e burilado na esquemática dos antagonismos do mundo". É isso, mais ou menos, tudo o que o Curso de Filosofia nos diz sobre a dialética. Na sua História Crítica, o Sr. Dühring focaliza, de um modo completamente diferente, a dialética da contradição e nela, principalmente, a doutrina de Hegel. "Na lógica hegeliana, ou melhor, na teoria do Logos, o contraditório não reside no pensamento, que, por sua própria natureza, só pode ser representado como função subjetiva e consciente, mas que existe objetivamente e pode ser apalpado, digamos, de um modo corporal, nas coisas e nos próprios fenômenos; ou seja, o contra senso não é de fato uma combinação impossível de pensamentos, mas sim uma potência real. A realidade do absurdo é o primeiro artigo de fé na unidade hegeliana da lógica e da falta de lógica... Quanto mais contraditório, mais verdadeiro, ou melhor, quanto mais absurdo, mais verossímil. Esta máxima, que nem sequer é nova, pois provém da teologia da revelação e da mística, é a expressão pura e simples do chamado principio dialético." A idéia contida nesses dois trechos citados pode ser resumida pela afirmação de que a contradição é o absurdo e que, portanto, não pode se dar no mundo da realidade. Com efeito, para quem se ufana de possuir um sadio senso comum esta tese terá a mesma força de evidência que teria se disséssemos que uma reta não pode ser curva, nem uma curva pode ser reta. Entretanto, o cálculo diferencial, apesar de todos os protestos do sadio senso comum, equipara, em certas circunstâncias, as retas às curvas, atingindo, assim, resultados que jamais poderiam ser alcançados se os matemáticos comungassem com o presunçoso e sadio senso comum em considerar como absurda a identidade da curva e da reta. Considerando-se o papel de suma importância que a chamada dialética da contradição tem desempenhado na filosofia, desde os gregos antigos até os filósofos atuais, mesmo um adversário um pouco mais forte do que o Sr. Dühring sentir-se-ia na obrigação de lançar contra ela argumentos que não fossem apenas uma afirmação e umas tantas injúrias. Certamente, desde que nos limitemos a focalizar as coisas como se fossem estáticas e inertes, contemplando-as isoladamente, cada uma de per si, no tempo e no espaço, não descobriremos nestas coisas nenhuma contradição. Encontrar- nos-emos com determinadas propriedades, umas comuns e outras diferentes e até mesmo contraditórias entre si, mas que não encerram uma contradição verdadeira uma vez que esta se encontra distribuída entre diversos objetos. Nos limites desta zona de observação podemos aplicar o método vulgar da metafísica sem nenhum perigo. Mas a coisa é diferente se quisermos focalizar os objetos dinamicamente, acompanhando-os em sua mobilidade, vendo-os transformar-se, viver, e influir uns sobre os outros. Ao pisar neste terreno, cairemos imediatamente numa série de contradições. O próprio movimento, por si mesmo, é uma contradição; o deslocamento mecânico de um lugar para outro somente pode ser realizado por estar um corpo, ao mesmo tempo, no mesmo instante, num e noutro lugar e também pelo fato de estar e não estar o corpo ao mesmo tempo no mesmo local. A sucessão continua de contradições desse gênero, ao mesmo tempo formadas e solucionadas, é precisamente o que constitui o movimento. Temos, pois, diante de nós, uma contradição "que existe objetivamente e que pode ser apalpada, digamos, de um modo corporal, nas coisas e nos próprios fenômenos". Que diz a este respeito o Sr. Dühring? O Sr. Dühring afirma que, até hoje, "na mecânica racional não se encontra nenhuma ponte que ligue o estritamente estático e o dinâmico". O leitor, finalmente, perceberá agora o que está oculto por detrás dessa frase da predileção do Sr. Dühring e que se resume no seguinte: A inteligência que só sabe pensar metafisicamente não pode, de modo algum, passar da idéia do repouso à idéia do movimento, porque o obstáculo da contradição lhe barra o caminho. Para os que assim pensam, o movimento é, como contradição, alguma coisa de totalmente inconcebível. E ao afirmar que o movimento é inconcebível dá como reconhecida, sem querer, a existência dessa contradição, reconhecendo, portanto, a existência de uma contradição que se encontra objetivamente nas coisas e nos fenômenos e, além disso, que esta contradição é uma força efetiva. E, se o simples movimento mecânico, a simples mudança de um para outro lugar, contém uma contradição, suponha-se então a série de contradições que estarão contidas nas formas superiores de movimento da matéria, e, em particular, na vida orgânica e na sua evolução. Vimos atrás que a vida consiste, precisamente, essencialmente, em que um ser é, no mesmo instante, ele mesmo e outro. A vida não é, pois, por si mesma, mais que uma contradição encerrada nas coisas e nos fenômenos, e que se está produzindo e resolvendo incessantemente: ao cessar a contradição, cessa a vida e sobrevem a morte. Vimos também como, no próprio mundo do pensamento, não poderíamos estar livres de contradições, como, por exemplo, a contradição entre a capacidade de conhecimento do homem, ilimitada interiormente e a sua existência real, no seio de um conjunto de homens, cujo conhecimento é limitado e finito exteriormente. Essa contradição, no entanto, se resolve na sucessão infinita, pelo menos para nós, das gerações, num progresso ilimitado. Como já vimos, uma das bases fundamentais das matemáticas superiores é, precisamente, a contradição, que consiste em equiparar, em certas circunstâncias, as retas às curvas. Uma outra contradição das matemáticas superiores é a que se observa quando se cruzam duas linhas; estas, na distância de cinco ou seis centímetros do ponto de interseção, se tornam linhas paralelas, que, por mais que se prolonguem, até o infinito, não se hão de encontrar. Entretanto, é por estas contradições e por outras, ainda mais acentuadas, não só que se encontram resultados exatos, como também se alcançam resultados perfeitamente inexeqüíveis nos limites das matemáticas inferiores. Não nos é necessário, todavia, sair dos quadros limitados destas matemáticas inferiores, para encontrar contradições em todos os terrenos. Não há uma contradição, por acaso, no fato de que uma raiz de A seja uma potência de A, e, ainda mais, que encontremos: Não há uma contradição no fato de que uma grandeza negativa não possa ser quadrado de nenhuma outra, embora toda grandeza negativa multiplicada por si mesma dê um quadrado positivo? A raiz quadrada de menos um (- 1) é, pois, não somente uma contradição, mas simplesmente uma contradição absurda, um verdadeiro contra-senso. Entretanto, é, em muitos casos, o resultado necessário de uma operação matemática exata; e mesmo, onde estariam as matemáticas, tanto as elementares como as superiores, se lhes fosse proibido operar com a raiz quadrada de menos um? As próprias matemáticas, ao tratar das operações sobre grandezas variáveis, penetram no terreno dialético, e é significativo o fato de que foi o filósofo dialético Descartes quem levou este progresso ao campo das matemáticas. Pois bem; a relação que existe entre as matemáticas das grandezas variáveis e as de grandezas invariáveis, é a mesma que medeia entre a lógica dialética e a metafísica. Isso não impede, de modo algum, que a grande maioria dos matemáticos não aceite a dialética fora desses limites e não poucos deles continuem a servir-se dos métodos obtidos pelo método dialético, à maneira antiga, limitada e metafísica. Poderíamos deter-nos a examinar mais de perto o antagonismo de forças do Sr. Dühring e a esquemática antagônica do mundo, se, sobre esse assunto, ele nos oferecesse alguma coisa a mais que simples frases. Depois de as ter formulado, não sabe o nosso autor apresentar esse antagonismo em ação, nem uma só vez, na esquemática do mundo, nem na filosofia da natureza. Esta é a maior prova de que o Sr. Dühring nada sabe fazer de positivo com "esta forma fundamental de todas as ações na existência do mundo e dos seres que o habitam". Quando se tem conhecimento de como se reduziu a "teoria do ser" de Hegel a esta vulgaridade de forças que se movimentem em direção determinada, mas não por um processo de contradições. o melhor que se tem a fazer é evitar cuidadosamente qualquer aplicação de um tal lugar comum. Um outro pretexto em que se apoia o Sr. Dühring para dar vazão à sua cólera antidialética é O Capital de Marx. "Falta de lógica natural e inteligível, que serve produzida, deveria dar trabalho a oito operários, possuindo, portanto, quatro vezes a soma de valor de que tiveram necessidade para sustentar dois trabalhadores. Somente depois de estabelecer estas condições e, de acordo com outros desenvolvimentos chamados a ilustrar e a fundamentar o fato de que não basta uma pequena soma qualquer de valor para que se possa converter em capital, mas que, para isso, um período todo de evolução e um ramo inteiro de produção deverão ultrapassar um determinado limite mínimo, somente depois de tudo isso e em relação a estes fatos é que Marx adianta: "Aqui, como nas ciências da natureza, se comprova a verdade da lei descoberta por Hegel em sua Lógica, segundo a qual, ao chegar a um determinado ponto, as mudanças meramente quantitativas se convertem em variações qualitativas." Poderá o leitor, agora, admitir o alto e nobilíssimo estilo que permite ao Sr. Dühring, atribuir a Marx justamente o contrário do que ele na realidade diz. Marx afirma que o fato de uma soma do valor poder se converter em capital somente quando ultrapassa um limite mínimo, que varia segundo as circunstâncias, mas que, em cada caso, é um limite concreto, que esse fato prova a verdade da lei hegeliana. E que é que o Sr. Dühring diz sobre essa afirmação? O seguinte: "Porque, de acordo com a lei formulada por Hegel a quantidade se transforma em qualidade, por isso e em virtude disso, é que uma quantidade aumentada, ao chegar a um determinado ponto, se converte em capital. Como vemos, é justamente o contrário. Quando examinávamos a crítica que o Sr. Dühring fazia de Darwin, tivemos ocasião de conhecer esse método, que consiste em falsear as citações, sem dúvida porque assim o exige "o interesse da verdade plena" e assim o reclamam os "deveres para com o público não arregimentado". Essa prática constitui uma necessidade interna arraigada na filosofia da realidade. O que não se pode negar é que ela oferece, a quem a maneja. um processo bastante "sumário". Além disso, o Senhor Dühring apresenta as coisas como se Marx tivesse falado de uma "quantidade aumentada" qualquer, quando, na realidade, se trata, concretamente, de uma quantidade invertida em matérias-primas, instrumentos de trabalho e salário. O Sr. Dühring as prepara de modo a que apareçam nos lábios de Marx como um puro absurdo, e, logo depois, comete a desfaçatez de considerar "cômico" e ridículo o absurdo que ele mesmo acaba de engendrar. Faz com Marx exatamente a mesma coisa que com Darwin. Constrói um Marx imaginário, feito à medida de suas forças, para poder, logo depois, triunfar sobre ele. Não resta dúvida de que o seu "caráter histórico" é "grandioso". Mais atrás, ao examinarmos a esquemática do mundo, vimos que, com o Sr. Dühring, se tinha passado a quase desgraça de ter reconhecido e aplicado, num momento de debilidade, essa linha nodal de desproporções, como a chama Hegel, na qual, em certos pontos, as transformações quantitativas se convertem de repente em saltos qualitativos. Citávamos um dos exemplos mais conhecidos: o da transformação dos estados da agregação da água que, sob a pressão normal do ar, ao chegar a zero centígrado, se converte de um corpo líqüido em corpo sólido e aos 100°, de líquido em gasoso, caso esse que demonstra como, ao alcançar esses dois pontos decisivos, uma simples mudança quantitativa de temperatura provoca uma transformação qualitativa no corpo. Centenas de casos como estes, tomados da natureza ou da sociedade humana, poderiam ser lembrados para demonstração dessa lei Assim, por exemplo, em O Capital de Marx, toda a seção 4a., dedicada ao estudo da produção da mais-valia relativa ao âmbito da corporação, da divisão do trabalho, e da manufatura, da maquinaria e da grande indústria, contém inúmeros casos de simples mudanças quantitativas que fazem transformar-se a qualidade e, de mudanças quantitativas que fazem com que se transforme a qualidade das coisas podendo-se dizer, portanto, para usar uma expressão que tanta indignação provoca no Sr. Dühring, que a quantidade se converte em qualidade e vice-versa. Temos, por exemplo, o fato de que a colaboração de muitas pessoas, a fusão de muitas forças numa só força total, cria, como diz Marx, uma "nova potência de forças" que se diferencia, de modo essencial, da soma das forças individuais associadas. Para sua maior perplexidade, no trecho que, no interesse da verdade plena, o Sr. Dühring virou às avessas, Marx acrescenta a seguinte observação: "A teoria molecular, aplicada à química moderna e desenvolvida cientificamente pela primeira vez por Laurent e Gerhardt, descansa nesta mesma lei." O que conclui de tudo isso o Sr. Dühring? Ele sabe que "ali, onde, como acontece ao Sr. Marx, e a seu rival Lassalle, a ciência sob medidas, aliada a um pouco de filosofia rasteira, forma o mesquinho arcabouço das pretensões eruditas, ali é que se nota, precisamente, uma maior ausência dos elementos eminentemente modernos de cultura, que são os métodos das ciências naturais"; ao contrário disso, o Sr. Dühring toma sempre por base de suas investigações, como já vimos, "os dados, fundamentais das ciências exatas no campo da mecânica, da física, da química", etc. Entretanto, para que também possam os outros julgar, com pleno conhecimento de causa, vamos examinar um pouco mais detidamente o exemplo que Marx deu em sua nota. Trata-se das séries homólogas de combinações de carbono, muitas das quais já são conhecidas, cada uma delas tendo a sua própria forma algébrica sintética. Assim, pois, Se, do mesmo modo que os químicos, chamarmos um, átomo de carbono de C, um átomo de hidrogênio de H um átomo de oxigênio de O e por n o número dos átomos de carbono encerrados em cada combinação, podemos expor as fórmulas moleculares de algumas dessas séries, do seguinte modo: Série da parafina normal: CnH2n + 2 Série de alcooes primários: CnH2n + 20 Série dos ácidos graxos monobásicos: CnH2n O2. Se tomarmos como exemplo a última dessas séries e adotarmos, sucessivamente, n=1, n=2, n=3, etc., teremos os seguintes resultados (deixando de pôr os isómeros): ácido fôrmico - CH2O2 - ponto de ebulição: 100 ° - ponto de fusão: 1.° ácido acético - C2H4O2 - ponto de ebulição: 118° - ponto de fusão: 17.° ácido propriônico - C3H6O2 - ponto de ebulição: 140° - ponto de fusão: - ácido butirico - C4H8O2 - ponto de ebulição: 162° - ponto de fusão: - ácido valeriânico - C2H10O2 - ponto de ebulição: 175° - ponto de fusão: - e assim sucessivamente, até chegar ao ácido melíssico (C30H60O2) que não se funde até os 80° e não tem ponto de ebulição pela simples razão de que esse ácido se decompõe ao se evaporar. Temos, pois, aqui, toda uma série de corpos qualitativamente distintos, formados pela simples adição quantitativa de elementos que são, além do mais, agregados sempre na mesma proporção. Esse fenômeno ainda se torna mais claro quando todos os elementos, que entram na composição, variam na mesma proporção e na mesma quantidade, como acontece com a série das parafinas normais (CnH2n+2). A primeira fórmula é o metano (CH4) que é um gás; a fórmula mais elevada que se conhece é o hecdecano (C16H34), corpo sólido formado por cristais incolores, que se funde a 21.°, e que só atinge o seu ponto de ebulição a 278°. Em ambas as séries basta acrescentar CH2 ou seja, um átomo de carbono e dois de hidrogênio, à fórmula molecular do membro anterior da série, para que se tenha um corpo novo; donde se conclui que uma mudança puramente quantitativa da fórmula molecular faz surgir um corpo qualitativamente diferente. E estas séries são apenas um exemplo fácil e palpável; em quase todos os campos da química, a começar pelos diferentes óxidos de nitrogênio ou pelos diversos oxiácidos de fósforo ou de enxofre, pode-se observar, a cada passo, como "a quantidade se converte em qualidade e como esta, que se considera como uma idéia nebulosa e confusa de Hegel, pode ser tocada corporalmente, por assim dizer, nas coisas e nos fenômenos, sem que exista a menor confusão nem a menor nebulosidade a não ser na cabeça do Sr. Dühring. O fato de ter sido Marx o primeiro que pôs em relevo esse fenômeno e o fato de ser o Sr. Dühring capaz de ler essa argumentação sem entendê-la, nem superficialmente, pois, se a tivesse entendido, não teria cometido essa inaudita atrocidade, bastam para tornar claro, sem que seja preciso recapitular a famosa filosofia dühringuiana da natureza, se é Marx ou Dühring que sente falta, neste terreno, dos "elementos eminentemente modernos de cultura que são os métodos das ciências naturais", qual dos dois conhece, e qual ignora os "dados fundamentais... da química". Para terminar este capítulo vamos dar um testemunho final a favor da mudança da quantidade em qualidade: o testemunho de Napoleão. Napoleão descreve o combate travado entre a cavalaria francesa, cujos soldados eram pouco afeitos à equitação, mas que eram, no entanto, disciplinados, e os mamelucos, cuja cavalaria era a melhor do seu tempo para os combates individuais, mas que eram indisciplinados. Eis o que nos diz Napoleão: "Dois mamelucos sobrepujavam, indiscutivelmente, a três franceses; 100 mamelucos faziam frente a 100 franceses; 300 franceses venciam 300 mamelucos e 1.000 franceses derrotavam, inevitavelmente, 1.500 mamelucos". Da mesma forma que, em Marx, a soma do valor de troca tinha que alcançar um limite mínimo determinado, embora variável, para se converter em capital, vemos que, na descrição napoleônica, o destacamento de cavalaria tem que alcançar um determinado limite mínimo para que a força da disciplina que se encerra na ordem unida de combate, e no emprego das forças, com base num só plano, possa se manifestar e se desenvolver até o ponto de poder aniquilar massas numericamente superiores de uma cavalaria irregular, composta de melhores montarias e de soldados tão bravos pelo menos quanto os outros. Que nos diz sobre isso o Sr. Dühring? Não acabou por sucumbir Napoleão na sua luta contra a Europa? Não sofreu ele derrotas sobre derrotas? Por que foi derrotado Napoleão? Pura e exclusivamente por ter desejado aplicar à tática da cavalaria a confusa e nebulosa idéia de Hegel... Capítulo XIII - DIALÉTICA. NEGAÇÃO DA NEGAÇÃO "Este esboço histórico (o da gênese da chamada acumulação primitiva do capital, na Inglaterra) é, até agora, o que há de melhor, relativamente, no livro de nos referimos atrás, quer a que está contida na primeira edição da História crítica, em nenhuma das duas consegue o Sr. Dühring descobrir esse monstro da "propriedade ao mesmo tempo individual e social", mas apenas adverte o leitor, na segunda edição de seu livro, e, assim mesmo, depois de uma terceira leitura que se fizer. Nesta segunda edição, refundida à maneira socialista, o Sr. Dühring mostrou grande interesse em colocar nos lábios de Marx os maiores absurdos possíveis no que se refere à organização futura da sociedade, para que, com isso, ressaltasse ainda mais triunfalmente aquilo que ele chama de "Comuna econômica, por mim esboçada, econômica e juridicamente, em meu Curso". Se tomarmos tudo isso em consideração, teremos forçosamente de concluir que o Sr. Dühring, de um modo deliberado e consciente, "ampliou beneficamente" - é claro que beneficamente para ele, - a idéia de Marx. Vejamos agora que papel desempenha para Marx a negação da negação. Nas páginas 791 e seguintes expõe ele os resultados finais das investigações econômicas e históricas, que constam de cinqüenta páginas anteriores, sobre a chamada acumulação primitiva do capital. Antes de sobrevir a era capitalista, dominava, pelo menos na Inglaterra, a pequena indústria baseada na propriedade privada do operário sobre os meios de produção. A chamada acumulação primitiva do capital se caracterizou, nestas condições, pela expropriação desses produtores imediatos, isto é, pela abolição da propriedade privada, baseada no trabalho do próprio produtor. Efetivou-se tal coisa porque aquele regime de pequena indústria era compatível somente com as proporções mesquinhas e primitivas da produção e da sociedade, engendrando, tão logo os meios materiais de produção atingiram um certo grau de progresso, a sua própria destruição. Esta destruição, que consistiu na transformação dos meios individuais e dispersos de produção em meios de produção socialmente concentrados, constitui a pré-história do capital. A partir do momento em que os operários se transformam em proletários, em que as suas condições de trabalho passam a ter a forma de capital, a partir do instante em que o regime capitalista de produção começa a se mover por sua própria conta, a socialização do trabalho e a mudança do sistema de exploração da terra e dos demais meios de produção, e, portanto, a expropriação dos proprietários privados individuais, é preciso, para continuarem progredindo, que seja adotada uma nova forma. "Não se trata mais de expropriar o operário que produz por sua própria conta, mas o capitalista explorador de muitos operários. E essa nova expropriação se realiza pelo jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, pela concentração dos capitais. Cada capitalista devora muitos outros. E, ao mesmo tempo em que alguns capitalistas expropriam a muitos outros, desenvolve-se, em grau cada vez mais elevado, a forma cooperativa do processo de trabalho, a aplicação técnica e consciente da ciência, sendo a terra cultivada mais metodicamente, os instrumentos de trabalho tendem a alcançar formas que são manejáveis unicamente pelo esforço combinado de muitos, economizam-se os meios da produção, em sua totalidade, ao serem aplicados pela coletividade come meios de trabalho social, o mundo inteiro se vê envolvido na rede do mercado mundial, e, com isso, o regime capitalista passa a apresentar um caráter internacional cada vez mais acentuado. E, deste modo, enquanto vai diminuindo progressivamente o número dos magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta, no pólo oposto, proporcionalmente, a pobreza. a opressão, a escravização, a degradação e a exploração. Mas, ao mesmo tempo, cresce a revolta da classe operária e esta se torna cada dia mais numerosa, mais disciplinada, mais unida e organizada pelo próprio método capitalista de produção. O monopólio capitalista transforma-se nas grilhetas do regime de produção que com ele e sob as suas normas floresceu. A concentração dos meios de produção e a socialização do trabalho chegam a um ponto em que se tornam incompatíveis com a sua envoltura capitalista. E a envoltura se desagrega. Soou a hora final da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados." Após termos transcrito este trecho, perguntamos ao leitor: onde estão os tais labirintos dialéticos e os tais arabescos imaginativos, onde estão estas idéias confusas e embrulhadas, segundo as quais tudo é uno e o mesmo, onde estão estes milagres dialéticos feitos para os crentes, esse emaranhado de enigmas dialéticos e essa deturpação da teoria do Logos de Hegel, sem os quais, Marx, segundo o Sr. Dühring, é incapaz de desenvolver suas doutrinas? Marx demonstra, apoiando-se simplesmente na história, conforme se vê no pequeno trecho transcrito, que, do mesmo modo que, em sua época, a pequena indústria, ao expandir-se, criou, por força de uma necessidade, as condições de sua própria destruição, isto é, as condições para a expropriação dos pequenos proprietários, o atual regime capitalista de produção engendra as condições materiais pelas quais deverá necessariamente perecer. Trata-se de um processo histórico, e pelo fato de ser esse processo não só histórico mas também dialético, por fatal que isso possa parecer ao Sr. Dühring, a culpa não é precisamente de Marx. Ao chegar a este ponto, depois de desenvolver e esgotar a sua demonstração, baseada na História da Economia, Marx afirma: "O regime capitalista de produção e de apropriação, ou, o que vem a significar a mesma coisa, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, baseada no trabalho do próprio produtor. A negação da produção capitalista surge dela própria, pela necessidade imperiosa de um processo natural. É a negação da negação." Vemos, assim, que Marx, ao encarar esse fenômeno como um caso de negação da negação, não tem em mente a idéia de demonstrá-lo, por meio desse argumento, como um fenômeno de necessidade histórica. Pelo contrário: somente depois de haver provado historicamente o fenômeno que já se passara parcialmente e que terá necessariamente que se desenvolver daqui por diante, é que o define como um fenômeno sujeito em sua realização, a uma determinada lei dialética. E é suficiente essa explicação. O Sr. Dühring volta a incorrer, pois, num ato de falsificação, quando afirma que a negação da negação se vê aqui obrigada a prestar serviços de parteira para fazer o futuro surgir das entranhas do passado quando sustenta que Marx se socorre da negação da negação para convencer os seus leitores da necessidade da aplicação do comunismo aos capitais e à terra, o que é; seja dito entre parênteses, uma nova contradição corpórea do Sr. Dühring. Já supõe uma total ausência de conhecimentos do que é a dialética, o fato de considerá-la o Sr. Dühring como um expediente meramente probatório, que é, aliás, o modo pelo qual as pessoas de horizonte limitado costumam usar a lógica formal ou as matemáticas elementares. A lógica formal também é, antes de mais nada e acima de tudo, um método de perscrutar novos resultados progressivos do conhecido ao desconhecido. Dá-se o mesmo, ainda com um sentido mais evidente, com a dialética que, além disso, rompendo os estreitos horizontes da lógica formal, representa, por si mesma, o germe de uma ampla concepção do mundo. E a mesma coisa ocorre também com as matemáticas. As matemáticas elementares, que operam com grandezas constantes, se movem, pelo menos em termos gerais, dentro das fronteiras da lógica formal; as matemáticas das grandezas variáveis, cujo setor mais importante é o cálculo infinitesimal, não são, em essência, nada mais que a aplicação da dialética aos problemas matemáticos. Aqui, o aspecto puramente probatório fica, de uma vez por todas, relegado a um segundo plano, substituído pela aplicação variada e constante do método a novas zonas de investigação. Mas, a rigor. quase todas as demonstrações das matemáticas superiores, a começar pelas introdutórias ao cálculo diferencial, são falsas do ponto de vista das matemáticas elementares. O mesmo acontecerá, como se pretende aqui, se desejarmos aplicar, por meio da lógica formal, os resultados obtidos no terreno dialético. Querer provar alguma coisa, pela simples dialética, a um metafísico tão declarado como o Sr. Dühring, seria perder tempo, e seria tão infrutífero, como aconteceu quando Leibnitz e seus discípulos quiseram provar, aos matemáticos de sua época, as operações do cálculo infinitesimal. As diferenciais causavam àqueles cavalheiros exatamente a mesma indignação que hoje a negação da negação causa ao Sr. Dühring, na qual, além do mais, a diferencial desempenha, como veremos, um papel de relevo. Aqueles cavalheiros foram, entretanto, pouco a pouco, pelo menos aqueles que sobreviveram àquela etapa, se rendendo à nova doutrina, embora resmungando, não por que esta convencesse, mas por que a verdade se impunha cada dia com mais força. O Sr. Dühring anda pelos quarenta, conforme sua própria informação, e podemos garantir que passará pela mesma experiência que aqueles matemáticos, se alcançar a idade avançada, como é, aliás, nosso desejo. Mas, afinal, em que consiste essa espantosa negação da negação, que amargura a vida do Sr. Dühring, até o ponto de ver nela um crime imperdoável, algo como se fosse um pecado contra o Espírito Santo a que os cristãos não admitem salvação possível? Consiste, como veremos, num processo muito simples, que se realiza todos os dias e em todos os lugares, e que qualquer criança pode compreender, desde que o libertemos da envoltura enigmática com que o cobriu a velha filosofia idealista e com que querem continuar cobrindo-o, porque assim lhes convém, os fracassados metafísicos da têmpera do Sr. Dühring. Tomemos, por exemplo, um grão de cevada. Todos os dias, milhões de grãos de cevada são moídos, cozidos, e consumidos, na fabricação de cerveja. Mas, em circunstâncias normais e favoráveis, esse grão, plantado em terra fértil, sob a influencia do calor e da umidade, experimenta uma transformação específica: germina. Ao germinar, o grão, como grão, se extingue, é negado, destruído, e, em seu lugar, brota a planta, que, nascendo dele, é a sua negação. E qual é a marcha normal da vida dessa planta? A planta cresce, floresce, é fecundada e produz, finalmente, novos grãos de cevada, devendo, em seguida ao amadurecimento desses grãos, morrer, ser negada, e, por sua vez, ser destruída. E, como fruto desta negação da negação, temos outra vez o grão de cevada inicial, mas já não sozinho, porém ao lado de dez, vinte, trinta grãos. Como as espécies vegetais se modificam, com extraordinária lentidão, a cevada de hoje é quase igual à de cem anos atrás. Mas tomemos, em vez desse caso, uma planta de ornamentação ou alma e, por fim, ao monoteísmo. Desse modo, o materialismo primitivo se via negado pelo idealismo. Mas, com o desenvolvimento da filosofia, também o idealismo se tornou insustentável e, por sua vez, teve de ser negado pelo materialismo moderno. Este não é, entretanto, como negação da negação, a mera restauração do materialismo primitivo, mas, pelo contrário, corresponde à incorporação, às bases permanentes deste sistema, de todo o conjunto de pensamentos, que nos provêm de dois milênios de progressos no campo da filosofia e das ciências naturais e da história mesma destes dois milênios. Não se trata já de uma filosofia, mas de uma simples concepção do mundo, de um modo de ver as coisas, que não é levado à conta de uma ciência da ciência, de uma ciência à parte, mas que tem, pelo contrário, a sua sede e o seu campo de ação em todas elas. Vemos, pois, como a filosofia é, desse modo, "cancelada", isto é, "superada ao mesmo tempo que mantida"; superada, com relação à sua forma; conservada, quanto ao seu conteúdo. Pois ali onde o Sr. Dühring não vê mais que "um jogo de palavras", se esconde, para quem sabe ver as coisas, um conteúdo e uma realidade. Finalmente, até a teoria rousseauniana da igualdade, que tem apenas um eco apagado e falseado nas futilidades do Sr. Dühring, foi incapaz de se constituir sem os serviços de parteira da negação da negação hegeliana: e isto, mais de 20 anos antes do nascimento de Hegel. Longe de se envergonhar de tal coisa, essa teoria exibe, quase ostensivamente. em sua primeira versão, a marca de suas origens dialéticas. No estado de natureza e de selvageria, os homens eram iguais; e como Rousseau considera já a linguagem uma deturpação do estado de natureza, tem razão quando aplica o critério da igualdade, assim como, ao mesmo tempo, pretendeu classificar hipoteticamente, como homens-bestas, sob a designação de "alalos" (seres privados de fala). Mas estes homens-bestas, iguais entre si, levavam sobre os outros animais a vantagem de serem animais perfectíveis, de terem capacidade de desenvolvimento; eis onde está, segundo Rousseau, a fonte da desigualdade. Rousseau vê, assim, no nascimento da desigualdade um progresso, mas este progresso é contraditório, pois implica, ao mesmo tempo, num retrocesso. "Todos os demais progressos (a partir do estado primitivo da natureza) foram, aparentemente, outros tantos dados para o aperfeiçoamento do indivíduo humano", mas, na realidade, o que o progredia era a decadência da espécie. A elaboração dos metais e o fomento da agricultura foram as duas artes, cuja descoberta provocou esta grande revolução". (Rousseau se refere à transformação das florestas virgens em terras e campos de trabalho, à generalização da miséria e da escravidão, como efeito da implantação da propriedade). "Para o poeta, o ouro e a prata, assim coma para o filósofo o ferro e o trigo, civilizaram o homem e arruinaram o gênero humano". Cada novo avanço da civilização é, por sua vez, um novo avanço da desigualdade. Todas as instituições que nascem nas sociedades, no decorrer do processo de civilização, se convertem no inverso de sua primitiva finalidade. "É indiscutível, sendo uma lei fundamental de todo o direito político, que os povos começaram por aceitar príncipes que protegessem a sua liberdade e não que a destruíssem. Entretanto. esses príncipes se converteram, por força da necessidade, em opressores dos povos que deveriam proteger, e levaram essa opressão até um ponto em que a desigualdade, elevada ao máximo, tem que se converter novamente no contrário do que é, isto é, em fonte de igualdade: frente ao déspota, todos os homens são iguais, pois todos se reduzem a zero. "Ao chegar a essa fase, o grau máximo de desigualdade é o ponto final que, fechando o ciclo, toca já o ponto inicial do qual partimos: ao chegar a este ponto, todos os homens são iguais, pelo fato de serem nada e, como súditos, têm todos, como única lei, a vontade de seu Senhor". Mas o déspota é Senhor somente quando tem em suas mãos a força e, por isso, "no caso de ser derrotado, não pode se queixar de ter sido derrotado pelo uso da força..." "A mesma força que o susteve, o derruba, e tudo se passa, de acordo com uma causa adequada e de acordo com a ordem natural". Significa isso que a desigualdade se transforma novamente em igualdade, mas esta já não é a igualdade rudimentar e primitiva do homem "alado", em estado natural, mas é a liberdade superior do contrato social. Os opressores se convertem em oprimidos. É a negação da negação. Em Rousseau, já nos encontramos, pois, com um processo quase idêntico ao que Marx desenvolve em O Capital. Além de todas as expressões dialéticas que são exatamente as mesmas empregadas por Marx, encontramos também processos antagônicos por natureza, cheios de contradições, contendo a transmutação de um extremo em seu contrário e, finalmente, o ponto nevrálgico de toda a questão, a negação da negação. Assim, já em 1754, Rousseau, que ainda não se podia exprimir pela nomenclatura hegeliana, estava, 23 anos antes do nascimento de Hegel. devorado até a medula pela peste da filosofia hegeliana, pela dialética da contradição, pela teoria do Logos, pela teologia, etc.. etc. E quando o Sr. Dühring, reduzindo a zero a teoria rousseauniana da igualdade, opera com os seus dois homenzinhos triunfais, se vê forçado a deslizar por um plano perigoso, que o leva, irremediavelmente, para a negação da negação da qual está querendo fugir. O estado em que floresce a igualdade desses dois homens e que nos é apresentado, sem dúvida, como um estado ideal, recebe à página 271 da Filosofia o apelido de "estado primitivo". Mas, ao chegar à página 279, este "estado primitivo" se transforma, por lei necessária, no "sistema de rapina": primeira negação. Graças, entretanto, à filosofia da realidade, conseguimos abolir este "sistema de rapina", para implantar, sobre suas ruínas, a Comuna econômica inventada pelo Sr. Dühring e baseada na igualdade: negação da negação, igualdade elevada a uma potência mais alta. É divertido ver como, além de ampliar de modo benéfico o nosso horizonte visual, o próprio Sr. Dühring acaba cometendo, também, sem que se dê conta, contra a sua augusta pessoa, o horrendo crime, que é o de incorrer na intolerável negação da negação. Que vem a- ser, finalmente, a negação da negação É uma lei extraordinariamente geral, e, por isso mesmo, extraordinariamente eficaz e importante, que preside ao desenvolvimento da natureza, da história e do pensamento; uma lei que, como já vimos, se impõe no mundo animal e vegetal, na geologia, nas matemáticas, na história e na filosofia. A esta lei, o próprio Sr. Dühring acaba por se submeter, embora sem o saber, apesar de todos os obstáculos e maldições que lança contra ela. Já se disse que o processo que atravessa, por exemplo, o grão de cevada, desde a sua germinação até que desapareça a planta a que ele deu a vida, é uma negação da negação, e, com isto, não se pretende, de modo algum, prejulgar o conteúdo concreto deste processo. Pois, se se pretendesse afirmar o contrário, quando se sabe que o próprio cálculo integral - como já vimos - é também negação da negação, seria cair no absurdo de sustentar que o processo de vida de um grão de cevada eqüivale ao cálculo diferencial, e o que fazemos com o cálculo diferencial poderíamos aplicar até ao socialismo. Isso é o que os metafísicos constantemente críticam na dialética. Quando se diz que todos esses processos têm de comum a negação da negação, o que se pretende é englobar a todos, sob esta lei dinâmica, sem se prejulgar, no entanto, de modo algum, o conteúdo concreto de cada um deles. Esta não é a missão da dialética. que tem apenas por incumbência estudar as leis gerais que presidem à dinâmica e ao desenvolvimento da natureza e do pensamento. Poder-se-ia objetar, ainda, que a negação, que se realiza neste processo, não é a verdadeira negação; um grão de cevada é também negado quando é moído, da mesma forma que um inseto é negado quando esmagado, e a grandeza positiva A quando é negada se a anula etc. Ao se negar a afirmação: "a rosa é uma rosa", quando se diz que "a rosa não é uma rosa", qual é o resultado se, logo depois, se torna a negar esta negação, para dizer: "Sim, a rosa é uma rosa"? Outros não são, com efeito, os argumentos principais levantados pelos metafísicos contra a dialética, argumentos dignos da estreiteza de horizontes, característica dessa maneira de pensar. Negar, em dialética, não consiste pura e simplesmente em dizer não, em declarar que uma coisa não existe, ou em destruí-la por capricho. Já Spinoza dizia: Omnis determinatio est negatio, toda determinação, toda demarcação é, ao mesmo tempo, uma negação. Além disso, em dialética, o caráter da negação obedece, em primeiro lugar, à natureza geral do processo, e, em segundo lugar, à sua natureza especifica. Não se trata apenas de negar, mas de anular novamente a negação. Assim, a primeira negação será de tal natureza que torne possível ou permita que seja novamente possível a segunda negação. De que modo? Isso dependerá do caráter especial do caso concreto. Ao se moer o grão de cevada, ou ao se matar o inseto, está-se executando, inegavelmente, o primeiro ato, mas torna-se impossível o segundo. Portanto, cada espécie de coisas tem um modo especial de ser negada, que faz com que a negação engendre um processo de desenvolvimento, acontecendo o mesmo com as idéias e os conceitos. No cálculo infinitesimal, nega-se, de um modo diferente, a obtenção de potências positivas que partem de raízes negativas. Mas estes métodos diferentes de negar devem ser conhecidos e apreendidos, como acontece com todas as outras coisas. Não basta que saibamos que a muda de cevada e o cálculo infinitesimal se encontram sob as leis da negação da negação, para que possamos cultivar com sucesso a cevada ou para que possamos realizar operações de diferenciação ou integração, da mesma maneira que não nos é suficiente conhecer as leis que regem a determinação do som, pelas dimensões das cordas, para que saibamos tocar violino. Mas é evidente que não pode sair nada de um processo da negação da negação que se limite apenas à puerilidade de escrever num quadro negro um A, e logo depois apagá-lo, ou a dizer que uma rosa é uma rosa para, logo em seguida, dizer que não é. Somente se poderia provar, dessa forma, a idiotice de quem se entrega a tais divagações. Isso não obsta, porém, a que os metafísicos pretendam demonstrar que, se nos empenharmos em raciocinar sobre a negação da negação, somente poderemos utilizar este processo. Chegamos, pois, à conclusão de que é o Sr. Dühring a única pessoa que quer mistificar as coisas quando afirma que a negação da negação é uma quimera analógica, inventada por Hegel, emprestada do campo da religião, e calcada sobre
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