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Revista Brasileira de Educação Especial
Aspectos históricos da
Educação Especial
LUCÍDIO BIANCHETTI
Professor do Centro de Educação da UFSC
Acada um conforme suas necessidades. De cada um conforme
suas possibilidades.
(Desejo comunista/cristão de Marx e Engels, expresso no Mani-
festo do Partido Comunista, publicado em 1848)
Para abordar o tema proposto, vou partir de uma questão/probleima:
De que tipo de corpo, cada classe (grupo, casta, estamento, etc,) dominante, nos
diferentes momentos históricos, precisou, valorizou, estabeleceu como modelo/pa-
drão?
A partir desta questão/problema, vou levantar quatro teses:
1 No decorrer da história da humanidade, a forma como os homens foram e
continuam tratando o corpo revestiu-se e reveste-se de uma quase total irracionalidade.
Esta tese vai fazer com que nos defrontemos com visões de pessoa humana
concebida de forma fragmentada, ora negando o corpo, ora supervalorizando-o em as-
pectos parciais. Em qualquer das situações, o corpo se rebelou e continua se rebelando.
“O corpo tem suas razões”, afirma Thérése Bertherat, a criadora da antiginástica; “O
corpo fala”, afinma Pierre Weil; “o corpo fala e fala demais”, adverte Gaiarsa.
2, Essa irracionalidade revela-se na monstruosidade da padronização, estabele-
cida por diferentes critérios em diferentes momentos históricos.
Essa tese nos coloca diante da atualidade do mito do leito de Procasto. Confor-
me a mitologia grega, Procusto possuía um leito de ferro na entrada da cidade e nele
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estendia todos os viajantes que conseguia aprisionar. O Jeito era a medida. A partir des-
se padrão pré-estabélecido, os corpos que não se adequavam à medida sofriam uma in-
tervenção, isto é, os menores eram espichados, os maiores, amputados. O importante
era salvaguardar a medida prévia, o padrão,
3. Só poderemos entender a história da humanidade se conseguirmos apreen-
der como, nos diferentes momentos históricos, os homens foram atendendo suas ne-
cessidades básicas, ! isto é, como foram construindo a sua existência.
Esta tese nos coloca diante da essencial diferença entre os homes e os outros
animais? Enquanto estes atendem suas necessidades-de forma repetitiva, instintiva,
candidatando-se à extinção, os homens, dada a sua capacidade fmpar de preconceber
o que vão fazer, potencialmente podem resolver o problema da alimentação, habita-
ção, vestuário, transporte, educação, etc., de forma diferente, de acordo com as poten-
cialidades e os empecilhos que as suas relações e o meio foram e continuam criando
historicamente.
4. A questão da deficiência ou a emergência da educação especial, só será com-
preendida se inserida no amplo espectro do processo histórico de como os homens fo-
ram atendendo as suas necessidades básicas e, por decorrência, como foram
construindo a sua existência.
Esta tese vai nos defrontar com a forma como a deficiência foi vista nas socie-
dades primitivas, escravista, feudal e especialmente capitalista e que meios, que méto-
dos, que recursos, que concepções foram utilizadas para a integração ou exclusão/
segregação dos chamados anormais ou deficientes.
PERSPECTIVA HISTÓRICA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
Como já falamos, é na procura do atendimento das necessidades básicas que os
homens constroem a sua existência. Essa construção se dá a partir da interrelação entre
os homens, mediatizados pelo mundo, num momento e local determinados. Nesse afã
histórico, os homens, como afirma Marc, vão estabelecendo relações “determinadas,
necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção, que correspondem a
um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais”,
Uma das decorrências desta citação é a de que fica claro que não podemos fazer
uma análise moralizadora”, procurar heróis ou vilões ou buscar entender o movimento
da história a partir de voluntarismos ou subjetivismos. As questões têm que ser
contextualizadas”.
É por esta perspectiva que vamos entender a forma das sociedades primitivas,
tanto as dos primórdios dos tempos quanto as mais próximas de nós, tratar aleijados,
cegos, surdos, coxos, paralíticos, enfim, aqueles que nasciam ou eram acometidos de
alguma deficiência. Como o atendimento das necessidades estava totalmente na de-
pendência do que a natureza lhes proporcionava, como, por exemplo, a caça, pesca, as
cavemas para abrigar-se, etc., uma das características básicas destes povos era o noma-
! A questão do atendiment
das necessidades básicas é chav
para entender a história da ht
manidade como uma const.
co. As citações a segui
contribuirão para clarear mai
esta idéia: “o primeiro pressu
posto de toda a existência huma
nae, portanto, detodaa históriz
é que os homens devem esta
em condições de viver para po
der fazer história! Mas para vi
ver, é preciso antes de tuk
comer, beber, ter habitação
vestir-se e algumas coisas mais
O primeiro ato-histárico é, por
tanto, a produção dos meios qui
permitam a satisfação destas ne
cessicades, a produção da pró
pria vida material, e de fato este
éumato histórico, uma condiçãe
fundamental de toda a história
que ainda hoje, como há milha
res de anos, deve ser cumpride
todos os dias e todas as horas
simplesmente para manter os
homens vivos”. CÍ. MARX, Kart
ENGELS, F. A ideologia alemã. 6
ed. São Paulo: Hucitec, 1987, p
39. Engels, ao discursar diante de
sepultura de Marx, em 1883
afirmava: “Marx descobriu a le
do desenvolvimento da históriz
humana: o fato tão simples, mae
que até ele se mantinha ocultc
pelo ervaçal ideológico, de que
homem precisa, em primeiro ly
ger, comer, beber, ter um teto
vestir-se, antes de poder. fazer
política, ciência, are, religião,
etc, que, portanto, a produção
dos meios de subsistência imedi-
atos, materiais e, por conseguin-
te, a correspondente fase
econômica de desenvolvimente
de um povo ou de uma época é a
base...” (Engels, s. d., p. 351).
ZA explicitação desta idéia é
importante, na medida em que
permite que se diferencie aquilo
que é considerado natura! do
socialmente construído, bem
«como da atuação consciente, de-
cidida, da instintiva: “Não se tra-
ta aqui das formas instintivas,
animais, do trabalho. (...) Pressu-
pomas o trabalho sob a forma
exclusivamente humana. Uma
aranha executa operações seme-
lhantes às do tecelão, e a abelha
supera mais de um arquiteto ao
construir sua colméia. Mas o que
distingue o pior arquiteto da me-
lhor abelha é que ele figura na
mente sua construção ANTES
(grifo nosso) de transformá-la
em realidade” (Marx, 1987, p.
202). Duarte Jr (1991, p. 97), ex
pressa esta questão da seguinte
forma: *,..não sendo o homem
cexerminado — biologicamente,
ele inventa a sua maneira de vi-
ver, CRIA (grifo nosso) a sua re-
3 ““Agidéias da classe dominan-
te são, em cada época, as idéias
dominantes; isto é, a classe que é
a força material dominante da
sociedade é, ao imesmo tempo,
sua força espiritual dorminante. À
classe que tem à sua disposição
as meios de produção material
dispõe, ao mesmo ternpo, dos
meios de produção espiritual
(..). As idéias dorrinantes nada
mais são do que a expressão ide-
al clas relações materiais domi-
+ nantes, as relações materiais
dominantes concebidas como
idéias...” (Marx & Engels, 1987,
27%.
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do, Se não fizermos isso, sucumbiremos a julgamentos morais e moralizadores, os
quais não passam de miopia intelectual, Assim, uma análise mais abrangente deve nos
ajudar a entender que a queima de um deficiente, de uma pessoa, supostamente pos-
suída pelo demônio, não era, num primeiro momento, por maldade, sadismo, etc. O ra-
ciocínio maniqueísta que presidia tais episódios era o de que o demônio havia se apos-
sado do corpo da pessoa e que a melhor forma de o humilhar, de lhe impingir uma
derrota era retirar-lhe a posse. É isso que nos ajuda a compreender porque nos autos da
inquisição e nas justificativas da igreja, não se encontram afirmações de que a igreja
queimou pessoas. A expressão que se usa é: “purificação pelas chamas”,
Uma outra forma, embora menos enfática, de a Igreja ver e explicar a existência
de cegos, mudos, paralíticos, loucos, leprosos, enfim, de pessoas portadoras de qual-
quer deficiência, era a de que eles eram instrumentos de Deus para alertar os homens,
para agraciar as pessoas com a possibilidade de fazerem caridade. Assim, a desgraça
de uns proporcionava meios de salvação para os outros. Esta postura pode ser détecta-
. da nas próprias palavras de Jesus, quando os discípulos lhe perguntaram quem tinha
pecado para que o cego nascesse com aquela deficiência/pecado: Resposta:
Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi assim para que se mani-
Jestem nele as obras de Deus (João, 9:3)
Posteriormente esta concepção vai dar origem às Santas Casas de Misericórdia.
A transição de feudalismo ao capitalismo vai trazer mudanças profundas que
vão repercutir em todas as direções. Acontece que.o capitalismo, “aparece como um
poderoso sistema, um processo civilizatório, impondo-se a todas as outras formas so-
ciais de vida e trabalho”. (Tanni, 1992, p. 20).
Nesta perspectiva, nenhuma classe e muito menos a burguesia, passa de domi-
nante à hegemônica se ela não conseguir se apossar de todos os aparatos que compõem
uma sociedade e lhe der a sua direção. É assim que, a partir do século 16, a burguesia,
enquanto classe em processo de hegemonia, vai permeabilizar e impregnar a si e tudo
o que a cerca com o seu ideário que vai ser batizado de liberalismo. Sem esse processo
civilizatório, a hegemonia não seria possível, e nem teriam se estabelecidas as condi-
ções materiais que possibilitaram a Marx e Engels a afirmação segundo a qual as idéias
dominantes de uma época são as idéias da classe dominante,
Vamos procurar entender um pouco o que foi essa transição e em que medida
isso afetou a questão dos chamados deficientes.”
Não há como negar que o século 16 é um divisor de águas na história da huma-
nidade. O gradativo predomínio de uma produção voltada para o mercado, a possibili-
dade de acumulação, o desenvolvimento de uma ciência e tecnologia que garantirão
um gradativo domínio do homem sobre a natureza, diferencia-se radicalmente da si-
tuação anterior em que os homens viviam diutuma e miseravelmente envolvidos com
a produção para a subsistência. Este novo momento histórico gradativa e potencial-
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mente vai colocando as condições para que os homens passem do reino da necessidade
para o reino da liberdade.
O expansionismo, a necessidade e a busca de novos mercados, as navegações,
etc. desafiaram a ciência, impulsionaram descobertas. Paralelo a esses avanços, na base
material, vão sendo forjadas, em nível teórico-ideológico, as explicações e posterior-
mente as justificativas para a hegemonia burguesa. O que vai ficando claro na práxis
dos homens é que o teocentrismo vai cedendo espaço ao antropocentrismo, Devemos
lembrar, porém, que a igreja e a nobreza não saíram de cena gratuita e facilmente. E,
neste aspecto, a burguesia foi revolucionária, Debateu-se contra a ordem feudal, im-
pondo o seu projeto, sendo a Revolução Francesa o ponto de chegada da fase revolu-
cionária da burguesia.
O que é certo é que nesta nova fase o homem passa para o centro do palco, pro-
curando escrever, encenar e dirigir a peça, não aceitando mais a posição de figurante,
Com Copémico e Galileu, a teoria geocêntrica é questionada e derrubada. Com
Francis Bacon, a forma própria greco-romana e medieval de pensar, o dedutivismo, re-
cebe um golpe fatal. O experimentalismo, o indutivismo ganha espaço com a nova for-
ma de produzir conhecimento. Na esteira dessa forma de pensar e fazer ciência é que
Bacon vai sé debater para que a natureza seja pesquisada e ao ser conhecida e respei-
tada (“Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece”, afirma no Aforis-
mo II), possa ser dominada e colocada a serviço do homem. Outra contribuição de
Bacon foi a de que os instrumentos, os aparelhos, igualam os homens.
A lente de aumento, inventada por Galileu, foi colocada entre o observador e o
objeto observado e, gradativamente, os homens foram percebendo que, além do ma-
crocosmo, existe um fantástico mundo microscópico que precisava ser desvendado.
Com. Newton impõe-se uma visão mecanicista do universo pouco a pouco utilizada
como parâmetro para analisar o microcosmo também. É assim que entendemos, por
exemplo; a nova linguagem, as metáforas utilizadas para definir partes do corpo huma-
no, à luz do mecanicismo newtoniano: o coração passou a ser chamado de bomba, o
rim de filtro, o pubmão de fole e, mais tarde, o cérebro como o protótipo do computador
perfeito. Portanto, o corpo passou a ser definido e visto como uma máquina. Daqui vai
emergir um resultado desastroso, como veremos posteriormente: se o corpo é uma má-
quina, a excepcionalidade ou qualquer deficiência nada mais é do que a disfunção de
uma peça. Se na Idade Média a deficiência está associada a pecado, agora está relacio-
nada à disfuncionalidade. .
Com John Locke emerge vigorosamente a luta contra a monarquia, enfim, con-
tra os privilégios supostamente advindos de Deus. Mas, principalmente, sua luta é con-
tra o inatismo, contra a idéia e a prática comum de privilégios hereditários. Para o que
nos interessa, destaca-se em Locke a idéia da “tabula rasa”, que, no fundo, é a idéia de
igualdade, um dos cinco pilares do liberalismo, consagrados pela Revolução Francesa,
que são: individualismo, liberdade, propriedade e democracia, somados à igualdade.
JO TOFFLER, Alvin. À terceira
onda. São Paulo: Record, 1980,
p.62
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Deste clássico do pensamento burguês, deve-se reter principalmente a sua luta
pela igualdade de todos os homens, cujas repercussões serão interessantes na análise
posterior da educação especial.
Vitoriosa a Revolução Francesa, gradativamente passa a emergir o caráter rea-
cionário da burguesia. Os mesmos direitos para cuja conquista ela se debateu heroica-
mente, junto com os seus parés do terceiro estado, agora, enquanto classe hegemônica,
passa a sonegar para os. outros. E os princípios da liberdade e principalmente da igual-
dade, não passam de caricaturas, de um formalismo.
Em termos de formas de produção, a humanidade passou do artesanato para a
manufatura no século 16 e desta para a maguinofatura, a partir do século 18. Na forma
artesanal, o ritmo de produção é acoplado às necessidades de consumo e às possibili-
dades e limites do corpo. Na vigência da maquinaria, o ritmo passa a ser ditado pela
máquina, já que a produção é em série, única forma de suprir um mercado que é omeio
pelo qual a burguesia alcança o seu fim, que é o lucro, a acumulação.
Com a produção em série vai se impor o especialismo. De cada pessoa exige-
se apenas eficiência no desempenho de uma tarefa. No nível teóricofprático, isso vai
fazer gmergir a contribuição de Taylor e H. Ford. Com Taylor surgiu a gerência cien-
tífica, com destaque para os dois princípios que vão consagrar a divisão entre o trabalho
manual e o intelectual. Suas duas regras básicas são: tudo o que se relaciona ao plane-
Jamento é função do escritório; tudo o que se relaciona com a execução deve estar afeto
à oficina. E o objetivo passou a ser a busca do homo sapiens para o escritório, para o
planejamento, e o homo jaber para a oficina, sendo o protótipo deste o homem-boi, o
homem-gorila. Músculos e não cérebro se buscava.
Com Ford, a divisão do trabalho chega ao paroxismo. Da sua biografia foi reti-
zada a seguinte citação, que acredito ser por si só reveladora:
Pela época que Henry Ford começou a fabricar o Modelo T. em
1908, não eram necessárias 18 operações diferentes para com-
pletar uma unidade, mas 7.882. Em sua autobiografia Ford re-
gisirou que destas 7.882 tarefas especializadas, 949 exigiam
“homens fortes, fisicamente hábeis e praticamente homens per-
feitos"; 3.338 tarefas precisavam de homens de força física ape-
nas “comum”, a maioria do resto podia ser realizada por
“mulheres ou crianças crescidas' e, continuava friamente, veri-
ficamos que 670 tarefas podiam ser preenchidas por homens
sem pernas, 2.637 por homens com uma perna só, duas por ho-
mens sem braços, 715 por homens com um braço só e 10 por
homens cegos”. Em suma, a tarefa especializada não exigia um
homem inteiro, mas apenas uma parte, Nunca foi apresentada
uma prova mais vívida do quanto a superespecialização pode
ser brutalizante 10
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Fénelon vai se preocupar com a educação das moças, assunto que até o séc. 19
não havia merecido nenhuma atenção,
No século 20, temos um Piaget, Vygotsky, Emilia Ferreiro, cada um preocupa-
do com questões relacionadas a como se dá a aprendizagem e ao desenvolvimento de
métodos para facilitá-la.
Temos um Freinet preocupando-se com as crianças do meio rural e com o sin-
dicalismo.
Apareceu um Paulo Freire dando uma atenção à alfabetização de adultos.
Porém, dentro do grande leque de preocupações com as especificidades que de-
ram corpo à pedagogia da existência, quero destacar a emergência da preocupação
com os cegos, mudos, idiotas, cretinos, loucos, dementes, enfim, aquela parcela de cri-
anças que não se encaixavam no padrão de normalidade e que acabavam estigmatiza-
das, segregadas, excluídas. Acontece, porém, que a preocupação com a especificidade
do deficiente vai percorrer um longo e tortuoso caminho. Gradativamente, a partir do
século 16, a questão da deficiência vai passar da órbita de influência da igreja para tor-
nar-se objeto da medicina? E quando falo igreja não me refiro apenas à igreja católica.
Martinho Lutero, no séc. 16, sugeriu a um príncipe que afogasse uma criança portadora
de deficiência, dado que seu comportamento em nada se enquadrava na normalidade
estabelecida. Vejamos a manifestação de Lutero:
Há oito anos vivia em Dessau um ser que eu, Martinho Lutero,
vie contra o qual lutei: Há doze anos, possuía vista e todos os
outros sentidos, de forma que se podia tomar por uma criança
normal, Mas ele não fazia outra coisa senão comer, tanto como
quatro camponeses na ceifa. Comia e defecava, babava-se, e
quando se lhe tocava, gritava. Quando as coisas não corriam
como queria, chorava. Então, eu disse ao príncipe de Anhalt: se
eu fosse o príncipe, levaria essa criança ao Moldau que corre
perto de Dessau e a afogaria. Mas o príncipe de Anhalt e o prín-
cipe de Saxe, que se achava presente, recusaram seguir o meu
conselho. Então eu disse; pois bem, os cristãos fario orações di-
vinas na igreja, a fim de que Nosso Senhor expulse o demônio.
Isso se fez diariamente em Dessau, e o ser sobrenatural morreu
Hesse mesmo ano... BB
Com Paracelso e Cardano, no século 16, enquanto médicos e alquimistas, a vi-
são teológica de deficiência perde força, mas vai acabar colocando as bases para uma
interpretação organicista. Nomes como os de Esquirol, Belhorame, Pinel, Fodéré, Mo-
rele outros colaboraram para a afirmação de uma visão fatalista da deficiência e que o
inatismo era a explicação aceitável e que pouco era possível fazer. Em síntese: o remé-
dio era segregá-los, já que os excepcionais eram vistos como um perigo para si e para
a sociedade,
o
12 “De todo modo, diversas
vantagens se oferecem para o
deficiente ao passar das máôs do
inquisidor às mãos do médico”,
afirma PESSOTTI, Isaias. Defici-
ência mental: da superstição à ci-
ência São Paulo: Educ/TAO,
1984.
13 PESSOTT, Isaias, op. e p.
f
14 C5 LAJONQUIERE, Leandro
de. Olegado pedagógico de Jean
ltard, Em: Educação e filosofia,
Uberiêndia, v. 6, n. 12, p. 37-52,
fender. 1992; PESSOT TF, Isaias,
op. cit.
15 Esta afirmação poda ser con-
ferida na seguinte citação: “cer-
tamente eu não posso ensinar a
feitura e a escrita aos idiotas sem
iniciá-los nas noções que elas su-
põem: é preciso que o conheci-
do conduza logicamente ao
desconhecido (..) é de Seguin a
distinção entre operações con-
cretas (que. ele chamava de
“educação fisiológica”) e formais
(chamadas de “método fistológi-
co". PESSOTTI, Isaias, op. cit.
p. [27-128,
16 PESSOTT Isaías, op. cit, p.
125.
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Essas idéias ultrapassaram os séculos, chegando ao atual, trazendo uma pesada
e onerosa herança, tendo no nazismo, na perseguida purificação da raça, na Alemanha
(bem como na Bosnia hoje), na idéia do arianismo como raça superior, uma das suas
derivações.
Porém, este é um dos lados da moeda. O outro vai apresentar uma bela e edifi-
cante história, tendo em Jean Karde E, Seguin os nomes mais representativos no século
19 e Maria Montessori, no nosso século. O ponto de partida vai ser a descoberta e ten-
tativa de integração à sociedade francesa, do início do século 19, de Vitor, o selvagem
de Aveyron. Enquanto para Pinel e outros, na perspectiva médica-organicista-fatalista,
Vitor não passava de um idiota, para Itard, porém, na perspectiva pedagógica, ele pode
ser educado. E Itard vai dedicar muito tempo de sua vida a esta tarefa/missão. O relato
dos avanços e fracassos no processo de educação de Vitor, narrados por Itard, são as
mais belas páginas da história da Educação Especial. !*
E. Seguin vai mais a fundo nas pesquisas, experimentos e na proposição de
um método para educar deficientes e, embora isso não seja citado, ele é o precursor .
de Piaget na criação da teoria psicogenética!S, Conforme afirma Pessotti: “Itard é o
precursor, mas Seguin é o criador da teoria psicogenética; (...) pretende chégar a um
método aplicável não só aos idiotas, mas a qualquer deficiência mental”, 16
A sua grande conquista vai se manifestar em três direções. complementares, al-
- tamente favoráveis aos deficientes:
* À possibilidade e a necessidade da prevenção
*"A educabilidade do deficiente
* A integração do deficiente como meio e fim
LIMITES E POSSIBILIDADES
Limites
* Em maior ou menor grau, os portadores de deficiência continuam sendo se-
gregados/usados. Um exemplo ilustra esta afirmação. Na revista Isto é, n. 1228, há
uma reportagem sobre uma nova metodologia para treinamento de executivos, visam-
do habilitá-los a enfrentar os imprevistos do agitado mundo dos negócios. Um grupo
de executivos foi isolado numa casa de campo, num fim de semana, e todos os funci-
onários foram dispensados, desde o porteiro ao cozinheiro. Ao recepcionar o grupo, o
diretor comunicou-lhe o seguinte: “Amanhã de manhã, vocês receberão aqui 30 crian-
ças excepcionais surdas-mudas. Devem entretê-las e cuidar delas até a noite”. (Jardim,
1993).
* A educação especial vista como um meio no que se refere a campo de traba-
lho.
* Alógica capitalista do lucro como fim que faz com que se invista naquilo que
garante retorno imediato. Isso dificulta que se solucionem problemas para os quais já
há tecnologia.
Revista Brasileirá de Educação Especial
* A valorização do corpo enquanto objeto de luxo para desfile/exposição. A re-
portagem de capa da Revista Isto é, n. 1225, com o título “Marvada carne”, é indica-
dora desta tendência,
* Num país que comercializa a saúde, a doença, a deficiência é uma necessida-
de...
Possibilidades
* A luta pela integração do deficiente, tanto na escola quanto na sociedade.
* As possibilidades da tecnologia que praticamente indifereciam uma pessoa
considerada normal e uma com qualquer deficiência. Confiram-se o que Bacon falava
no século 17: “os instrumentos igualam os homens”.
* A gradativa desativação de um sistema especial e paralelo de ensino.
* A superação gradativa da linguagem estigmatizada e estigmatizadora dos de-
ficientes
Até pouco tempo sempre procurou-se remédio ou explicação para a doença
instalada, dando ênfase ao curativo. Hoje atua-se mais no preventivo.
A formação de equipes e o avanço em direção à interdisciplinaridade, com a
clareza da necessária profundidade dos especialistas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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