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Guias e Dicas
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BORGES, Liliam Faria Porto. Educação, escola e humanização em Marx, Engels e, Trabalhos de Ciências da Educação

O trabalho discute o entendimento da escola a partir dos conceitos de trabalho e humanização em Marx, Engels e Lukács. A constituição humana por meio da sua intervenção junto à natureza e o estabelecimento das relações sociais são processos educativos que se repetem, tanto na história do homem, quanto no desenvolvimento individual, recolocando, nos processos educativos, a construção do homem como ser social e construindo o longo caminho de distanciamento de sua condição animal. Com base nesse breve panorama, propõe uma análise acerca da escola e do ensino no Brasil, indicando a função social da educação escolar e o significado das perspectivas pedagógicas que secundarizam a relação entre ensinar e aprender. Palavras-chave: Educação. Escola. Humanização.

Tipologia: Trabalhos

2023

Compartilhado em 20/06/2023

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Baixe BORGES, Liliam Faria Porto. Educação, escola e humanização em Marx, Engels e e outras Trabalhos em PDF para Ciências da Educação, somente na Docsity! 101 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul/set. 2017 Artigo Educação, escola e humanização em Marx, Engels e Lukács Liliam Faria Porto Borges Universidade Estadual do Oeste do Paraná Resumo O trabalho discute o entendimento da escola a partir dos conceitos de traba- lho e humanização em Marx, Engels e Lukács. A constituição humana por meio da sua intervenção junto à natureza e o estabelecimento das relações sociais são processos educativos que se repetem, tanto na história do homem, quanto no desenvolvimento individual, recolocando, nos processos educativos, a construção do homem como ser social e construindo o longo caminho de distanciamento de sua condição animal. Com base nesse breve panorama, propõe uma análise acerca da escola e do ensino no Brasil, indicando a função social da educação escolar e o significado das perspectivas pedagógicas que secundarizam a relação entre ensinar e aprender. Palavras-chave: Educação. Escola. Humanização. Education, school and humanization in Marx, Engels and Lukács Abstract The paper discusses the education and school understanding from the working concepts and humanization on Marx, Engels and Lukács. The human constitution through its intervention with nature and the establishment of the social relations are instructional processes that are repeated both in the history of man and in the individual development, replacing in the instructional processes the construction of man, as social being and buil- ding the long distance path of his animal condition. From this such brief panorama, the text proposes an analysis about school and teaching in Brazil indicating the social role of the education at school and the meaning of the pedagogical perspectives that put into second place the relationship between teaching and learning. Keywords: Education. School. Humanization. DOI | 10.21680/1981-1802.2017v55n45ID12747 102 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Educação, escola e humanização em Marx, Engels e Lukács Educación, escuela y humanización en Marx, Engels y Lukács Resumen El trabajo discute el entendimiento de la educación y de la escuela a partir de conceptos de trabajo y humanización en Marx, Engels y Lukács. La constitución humana por medio de su intervención junto a la naturaleza y el asentamiento de las relaciones sociales son procesos educativos que se repiten, tanto en la historia del hombre, como en el desarrollo individual, reemplazando, en los procesos educativos, la construcción del hombre como ser social y construyendo el largo camino de alejamiento de su condición animal. A partir de ese breve panorama, se propone un análisis acerca de la escuela y de la enseñanza en Brasil, que demuestra la función social de la educación escolar y el significado de las perspectivas pedagógicas que ponen en segundo plano la relación entre enseñar y aprender. Palabras clave: Educación. Escuela. Humanización. Humanização e trabalho O planeta Terra, em sua estrutura, é composto por elementos com e sem vida – minerais, vegetais e animais. Sobre essa base natural, ergueu-se o mundo humano e, a partir dessa mesma natureza, inclui-se o Homem como ser natural, como animal. Ocorre que, ao interagir de forma determinada com a natureza, o homem foi capaz de se diferenciar do mundo natural e, em para- lelo, criar outro mundo, ou seja, o mundo da cultura, o mundo humano. Compreender essa diferenciação da natureza – na medida em que o homem se distancia de sua determinação natural, sem nunca a abandonar – é conceber a ontologia do ser social, como formulou György Lukács, com base em Karl Marx e Friedrich Engels. Assim como todos os seres vivos, em particular os animais, interagem com a natureza para garantir sua sobrevivência, o homem, como um desses, passa a construir formas dessa interação que permitem transformações cruciais a ponto de alcançar a consciência. Com base na ação consciente, é possível compreender de que forma tal ação, antes natural, torna-se ação social, o trabalho. 105 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Liliam Faria Porto Borges poderá realizá-la e ideias sobre como construir as ferramentas para efetivar seu projeto e, ainda, as formas de utilização dessas. E nesse emaranhado, a cons- ciência vai produzindo o homem e a enormidade do mundo humano – cada vez mais afastado da natureza, inclusive em suas necessidades. Educar para Humanizar O desenvolvimento do homem no tempo e no espaço, como resultado do trabalho, produziu as variadas formações históricas e culturais que não permitiriam identificar, nos dias de hoje, as necessidades básicas humanas sem fazer menção à determinada cultura. A constituição de variadas organi- zações sociais determina não apenas as mais diversas formas de definição das necessidades biológicas e culturais, mas também a forma como essas se concretizam. Produtor de necessidades e motor da cadeia de mediações, o traba- lho é histórico e, diferente das abelhas; os homens não nascem aptos a ele. Além das necessidades biológicas básicas, tudo o mais, ou seja, tudo o que se constitui, além do animal humano, é transmitido nas relações sociais. O homem nasce bicho e se faz homem nas relações sociais em que se encontra. Ainda a fome e o instinto reprodutor se darão no homem, determinados pela sua forma social e cultural. E o que parece ser puro instinto se veste de determinações da cultura a ponto de machos e fêmeas não se atraírem por ser da mesma família – ou determinada carne não ser considerada alimento em um grupo carnívoro. Nesse mundo humano, não há determinação genética que cons- titua relações, mas práticas que são vivenciadas e reproduzidas, portanto, aprendidas. O homem deve aprender a ser homem ou não o será. São as apropriações de suas relações sociais que o fazem ser um cavaleiro medie- val ou um professor contemporâneo. Assim, a educação é ontologia humana como parte decorrente do trabalho humano. O exercício hipotético do conto acerca do menino lobo de Kipling (2005)3 permite compreender que não há determinação prévia acerca dos ele- mentos humanizados a não ser a vida social e suas relações, a práxis humana. É na inserção real que nos conformamos à humanidade que nos parece ante- rior ou predeterminada, ou causal ou como queiram as perspectivas idealistas em suas mais diversas expressões. Assim, educar é humanizar, na medida em que, ao se apropriar daquilo que os homens produziram por meio do trabalho, 106 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Educação, escola e humanização em Marx, Engels e Lukács os homens são constituídos e se afastam dos animais. Humanização, nesse sentido, se remete ao afastamento da determinação natural. Se o que caracte- riza o trabalho é a sua âncora teleológica, consequentemente, a consciência passa a ser também determinada pelo entorno histórico e social em que o sujeito está inserido. Esse aparente contraditório é o movimento dialético e multidetermi- nado que define o ser social. A partir da forma como se aprende a ser homem, ou seja, da forma social que determina a consciência, determinam-se – ao mesmo tempo - as formas de consciência com as quais será produzido o mundo onde se vive. O modo pelo qual os homens produzem os seus meios de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já encon- trados e que tem de reproduzir. Não se deve considerar tal modo de produção de um único ponto de vista, a saber: a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, muito mais, de uma deter- minada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos. Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que pro- duzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção (MARX; ENGELS,1984, p.27). Além de individualmente os seres humanos serem determinados, como ser social determinam-se as relações sociais e vale reafirmar a dimensão neces- sariamente social do homem. José Paulo Netto e Marcelo Braz (2006) assim definem essa relação entre o ser individual e a sociedade em que está imerso e as múltiplas determinações de lado a lado. A sociedade não é simplesmente o agregado dos homens e mulhe- res que a constituem, não é um somatório deles, nem algo que paira acima deles; por outro lado, os membros da sociedade não átomos, nem mônadas, que reproduziram a sociedade em minia- tura. Não se pode separar a sociedade dos seus membros: não há sociedade sem que estejam em interação os seus membros singula- res, assim como não há seres sociais singulares (homens e mulheres) isolados, fora do sistema de relações que é a sociedade. O que chamamos de sociedade são os modos de existir do ser social; é na sociedade e nos membros que a compõem que o ser social 107 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Liliam Faria Porto Borges existe: a sociedade, e seus membros, constitui o ser social e dele se constitui (PAULO NETTO; BRAZ, 2006, p. 37). Considerando as colocações acerca da concepção de homem, tra- balho e ser social – e indicado o lugar da educação no processo humanizador do homem, importa discutir a concepção de desenvolvimento inerente à con- cepção de educação. A concepção de desenvolvimento, fortemente marcada pelo pensa- mento positivista revigorado no neopositivismo e suas vertentes, remete à ideia de linearidade e progresso, de etnocentrismo e evolucionismo. Newton Duarte (2012) trata dessa questão ao recuperar os estudos de Lukács4 acerca da esté- tica e ajuda a compreender que, no percurso histórico da humanização – do distanciamento do mundo natural – há um movimento de acúmulo, ainda que esse movimento não seja linear, tampouco homogêneo. Na complexa tensão entre humanização e alienação própria da lógica da organização das socie- dades em classes sociais, em que se constituem processos de desumanização bastante profundos, a possibilidade humana de complexificar a consciência e o pensamento na elaboração da tecnologia, da ciência, sobretudo das artes (objeto de análise de Lukács) é inalienável ao gênero humano e possibilitadora de ampliação da humanização, conforme Mucci (1997). As elaborações do pensamento que conseguem compreender a reali- dade e seus elementos estruturantes, de forma mais próxima do que a realidade concreta se apresenta, permitem o que seria denominado de aproximação da essência do real. Tais elaborações ainda que não se insiram na vida cotidiana da maioria dos homens – por conta da alienação e expropriação da riqueza por eles produzida – redimensionam a forma como se compreende o mundo e se produz a vida humana. Isso não ocorre imediata nem linearmente, mas, em um movimento bastante contraditório, e vai obrigar a reorganização da forma de ser dos homens e seu tempo. À medida que a ciência revisita a compreensão de determinada informação do real, ela também aprofunda a compreensão, supera os elementos de aparência e identifica as conexões além daquelas possíveis até determinado momento, pois ela, a ciência, reescreve, de forma mais aproximada, a verdade sobre aquele elemento. Ainda que, em alguns momentos, possa se afastar dessa verdade, o exercício mesmo da rigo- rosidade científica produz, de forma histórica, condições de continuar a busca 110 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Educação, escola e humanização em Marx, Engels e Lukács É importante pensar, pois, na escultura grega ou na pintura do renascimento ou na música clássica. Esses momentos em que a sensibilidade e o engenho humano produziram – de forma complexa e altamente elaborada – uma sín- tese capaz de comunicar algo, além de seu tempo histórico, inclusive, são indícios do desenvolvimento humano. Ademais, indicam um percurso de afas- tamento da determinação da natureza e podem inclusive sinalizar um projeto de mundo humano, como a construção de outro tipo de sociedade. Isso reforça o argumento de que não há qualquer concessão ao pressuposto positivista do desenvolvimento linear e progressivo da história. Apresentam-se até aqui, de forma pontuada, alguns argumentos acerca da hipótese do trabalho como produtor do homem e do movimento histórico de desenvolvimento humano. Sabe-se que o homem faz escolhas na construção da história, visto que é determinado como ser social pelas suas condições históricas e, sobretudo, sujeito dessa mesma história; assim, deve-se pensar, a partir de agora, no papel da educação nesse processo humanizador. Educação e saberes escolares O processo educativo é humanizador na medida em que permite que os seres humanos desenvolvam sua capacidade ontológica. Se o Homem é ser social, portanto, ao mesmo tempo, natureza e cultura, toda ampla dimen- são não natural deve ser adquirida nas relações sociais. Assim, é possível inferir que o homem aprende a ser homem a partir das relações em que está posto. Por conseguinte, pode-se entender que a educação é constitutiva do ser humano e a prática social passa a determinar a forma como a dimensão natural acontece. A educação tem uma função social central na humanização do homem e em seu desenvolvimento – como homem individual e como espécie. Todas as relações estabelecidas, portanto, fazem com que todos sejam, ao mesmo tempo, educadores e educandos. Assim, o mais subjetivo de nossos sentimentos é produzido socialmente. E, na história - no tempo, como campo do desenvolvimento humano, os homens se humanizam. Afinal, não é, apenas, na experiência direta que são recebidos os elementos de nossa humanização, mas no legado da humanidade em inumeráveis mediações. Trata-se, então, para se apropriar do objeto dessa reflexão, de deli- mitar em uma organização social aquilo que é denominado de escola e de 111 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Liliam Faria Porto Borges educação escolar. Não cabe, aqui, recuperar a história da instituição escolar, tampouco identificar as distintas formas de organização da escola em dife- rentes tempos e espaços, apenas a compreensão de que, dado determinado desenvolvimento humano, tornou-se necessário sistematizar o conhecimento científico, artístico, filosófico, político e pensar nas formas de transmissão des- ses saberes para as novas gerações. Para a apropriação de tais saberes, surgiu, historicamente, a neces- sidade de uma instituição fundamentalmente educativa – a escola, além da necessidade de proceder a um recorte desses saberes – como saberes esco- lares – e as formas de organizar a sua transmissão como ensino. Do grande conjunto de saberes humanos, portanto, parte deles é objeto de aprendizagem na escola. O trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histó- rica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e con- comitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo (SAVIANI, 1995, p. 17). Assim, determinado conjunto de conhecimentos deve ser apropriado pelos membros de um grupo social. Mais do que isso, a sociedade deverá defi- nir tal espaço com práticas próprias que garantam essa apropriação. Cabe definir qual conjunto de saberes é esse: assim trata-se dos conteúdos escolares e ainda de definir as formas pelas quais esses saberes serão transmitidos, ou seja, por meio de quais procedimentos ocorrerá sua apropriação. O conjunto de saberes que estrutura o processo educativo formal é que corresponde a edu- cação escolar. No que se refere aos saberes escolares, implica compreender que as políticas educacionais orientam a organização de tal processo. Educação e escola no Brasil Na sociedade do capital, toda riqueza humana tornou-se mercado- ria bem como os saberes sistematizados – fonte inclusive de toda tecnologia motora da indústria A apropriação dos resultados da indústria e sua oposição 112 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Educação, escola e humanização em Marx, Engels e Lukács fundamental, a divisão entre o capital e o trabalho, são evidentemente realiza- das de forma desigual na lógica das classes sociais; assim como é desigual a apropriação dos saberes. A classe trabalhadora é expropriada da riqueza humana, inclusive dos saberes e das artes. Assim, uma sociedade de classes apresenta, necessaria- mente, o que se convencionou chamar de escola dual. De um lado, as escolas projetadas para a classe proprietária dos meios de produção; de outro, a escola para a classe trabalhadora. Os que podem consumir mercadorias mais elaboradas, ou seja, a classe dominante, acessa uma escola que lhes permite a apropriação de saberes mais complexos, mais elaborados, mais desenvol- vidos. A arte como conteúdo escolar é uma boa medida dessa escola. Afinal, a condução pela classe dominante, dos processos produtivos e da condução política da sociedade depende de um preparo considerável. A lógica social em que se está inserido distribui, de forma proporcional, às classes o capital e os saberes. Em nossa sociedade brasileira, contemporânea, de forma geral, a escola particular é aquela que se organiza em diversos níveis de estrutura. Todavia, as mais onerosas são as que oferecem maior universo formativo a seus alunos. Pode fazer parte do “conjunto de mercadorias educacionais adquiri- das” a carga horária ampliada, laboratórios, biblioteca, professores altamente capacitados, atividade extraclasse, estudos do meio, e efetivo acesso à cul- tura, às artes e às ciências. Para os filhos da classe trabalhadora, a escola pública e estatal. A escola, como tudo no capitalismo, é, necessariamente, de classe, e, à medida que se constitui como pública e estatal é parte do Estado, com todas as decorrências por ser estrutura jurídico-política de determinada forma- ção social. Muitos estudos têm revelado o quanto a escola pública – de forma geral, quando não cumpre seu papel de formadora de sujeitos humanizados – permite a alienação e a precarização, humana necessária à submissão à lógica de classes. Um exemplo é o emblemático trabalho A produtividade da escola improdutiva de Gaudêncio Frigotto (1999). Em tese, a função da escola na sociedade seria transmitir os saberes sistematizados pelo homem, a ciência, a filosofia, as artes. Ademais, permite a compreensão da prática social, a sociedade e suas relações. Conforme Saviani (1995), isso significa produzir na singularidade do aluno aquilo que a 115 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Liliam Faria Porto Borges construção do homem no interior das relações sociais, manifestada sob a forma de crítica à escola tradicional. A denúncia é sistematizada em quatro pontos interligados, mas expos- tos de forma bastante didática A escola tradicional não considera o aluno real, mas uma abstração idealizada. Ela fragmenta o real e lida com conhecimento pronto, acabado, desvinculado da realidade e relega o aluno a uma condição passiva. Contrapondo-se a tais pontos, se propõe o aluno concreto, a busca da totalidade, a identificação de conteúdos que sejam de interesse dos alunos e a construção do saber pelo aluno, agente de seu processo de conhecimento. A desmontagem do discurso pela análise cuidadosa de Klein (2002) revela o quanto há de pragmatismo filosófico nas soluções indicadas e mais, o quanto o aparente discurso materialista histórico e dialético se revela, no limite, como individualismo liberal. O reducionismo revela-se ao ser identificado o aluno concreto não como o ser social posto na totalidade das relações sociais de produção, mas vinculando-o a uma comunidade. Mas, o gueto, o local, o espaço ao entorno são suficientes para determinar a concretude do aluno que, em vez de ganhar o peso do ser do seu tempo, limita-se a um espécime pontual enclausurado em um cotidiano e desenho geográfico bastante limitado. De fato, as considerações que completam essa afirmação dão mar- gem à compreensão de que existe uma realidade do aluno que se processa à margem de outra realidade que não é a dele. A realidade fica assim, fragmentada em tantas partes quanto forem os ambientes em que as pessoas vivem, e se supõe que cada um desses fragmentos tem, no seu próprio interior, os elementos que o determinam. Mais uma vez, aqui, abstraem-se as relações mais amplas que fazem com que, para além das diferenças individuais, locais, regionais, todos os homens se encontrem e se reconheçam como homens de uma mesma sociedade (KLEIN, 2002, p. 53). A compreensão da totalidade como contraposição do real, por mais legítima que se apresente, revela-se como arremedo ao identificar uma totali- dade em si fragmentada – a totalidade do aluno e a totalidade do conteúdo. A totalidade do aluno se remete a um individualismo extremado – a ideia do aluno como um todo, como um indivíduo único – sua individualidade, sua par- ticularidade, seu ritmo, seu interesse, seus desejos, seus medos, seus sonhos, 116 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Educação, escola e humanização em Marx, Engels e Lukács absolutamente descolados da determinação social de cada uma dessas indivi- dualidades e, como decorrência, a realidade, também, se fragmenta – e com ela os conteúdos. A saída indicada pelo pensamento pedagógico em questão é a soma das partes, o multidisciplinar, o multicultural, a integração das partes. Anestesiando dessa forma o centro nervoso que unifica todos os membros, só resta aos autores clamar para que cada membro, com uma vida que lhe é própria, se reintegre ao corpo, relacionando-se não mais a partir daquele centro – agora subjugado – mas, a partir de uma ligação mecânica com os outros membros (KLEIN, 2002, p. 61). A postura que denuncia os saberes prontos e acabados caracteriza desprezo pela síntese histórica dos saberes acumulados enquanto riqueza humana, sobretudo, a relativização da ciência. A identificação dos discursos científico, filosófico e artístico – como saberes distantes da realidade dos alu- nos – e reafirmados como desinteressantes e descolados do seu universo de interesses, descarta aquilo que seria o objeto em si da escola – sua função social por excelência. Em seu lugar, a realidade do aluno no limite da empi- ria, do senso comum, da repetição de elementos, das práticas e percepções que crianças e jovens acessam em seu cotidiano – sem a menor necessidade de irem à escola. A construção conceitual – base da elaboração do pensa- mento – limita-se a conceitos já construídos e simpáticos, porque são familiares. Afinal, a autora afirma a impossibilidade de haver interesse por algo que não se conheça. Nesse movimento empobrecedor, há uma apologia dos sentidos, supervalorização da experiência individual e particular, e, ainda a afirmação da miséria e da expropriação a que estão submetidos os alunos das classes populares. Causa no mínimo estranheza a contradição que salta a vista nessas proposições: por um lado declara-se a intenção de uma ‘educação em favor das classes populares’; de outro, respeita-se exatamente aquilo que, nos alunos das classes populares, é expressão da expropriação. Se estamos convencidos de que a sua fonte de vida é a condição de todo Bem e Verdade, não se explica nossa luta por mudanças sociais. Penso ser necessário invertermos o eixo de nossas preocupações: é preciso respeitar o homem, opondo-se às condições reais de vida que o condicionam a um estado de misé- ria, ignorância, doença etc (KLEIN, 2002, p. 88). 117 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Liliam Faria Porto Borges Se a escola não se compromete com o enriquecimento humano no sentido da humanização aqui defendido, no limite, opera a expropriação, contribui com o movimento próprio da lógica intrínseca ao modo de produção capitalista que é a alienação da classe trabalhadora. Essa questão recoloca o grande debate acerca de a escola ser espaço de dominação ou de libertação de classe. Na direção que se pretende argumentar, ela é, na sua promessa, espaço de humanização e, no movimento da luta de classes, é fundamental perseguir, exigir, lutar para que ela cumpra esse papel. A escola precisa garantir o acesso das classes trabalhadoras aos con- teúdos sistematizados pela humanidade; como os sujeitos da escola pública – alunos e professores - são oriundos dessa mesma classe, é imperativo ter cla- reza das pedagogias escolhidas como orientadoras das práticas educativas. A sedução do discurso pedagógico do “aprender a aprender” que se enraíza na crítica acerca da falência da escola tem uma direção política. Assim, urge perguntar a quem serve essa pedagogia, ou como fez Klein (2002): Quem tem medo de ensinar? Portanto, o conjunto de análises críticas e a contundência do fracasso da escola, sobretudo a pública, elaboram a demonização da transmissão. Nesse sentido, entende-se aqui transmissão, socialização, comunicação. O termo transmissão é, de certa forma, proibido no interior do debate pedagó- gico como a constatação do desrespeito ao outro, da autoridade da escola tradicional e da empáfia do detentor do saber que oprime e diminui o seu aluno. Desse universo, muitas vezes, real na escola tradicional, demonizou-se a essência da escola e sua função, contudo, o papel social do professor se perdeu no ar. Por isso, ele procura, constrangido, seu lugar como facilitador, colaborador, mediador, porém não mais como transmissor de saberes. Dessa forma, chega-se ao último ponto levantado por Klein, se o pro- fessor não é o detentor de saberes e não lhe cabe ensinar, é mister que o aluno seja senhor do seu processo de aprendizagem, desde a determinação dos con- teúdos que lhe apeteçam até as formas e práticas do fazer escolar. A-histórico, individualista e com limitada compreensão das relações que o cerca, o aluno é o centro de um processo que começa e termina em si mesmo. A relação rompida – ensinar/aprender é substituída pela aprendiza- gem em si, sozinha, alheada e se daria pela construção do conhecimento. 120 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Educação, escola e humanização em Marx, Engels e Lukács mercadoria e da propriedade privada que suponha uma sociedade em que o indivíduo apreenda sentidos ou conteúdos, que possa se entender pleno no coletivo e que sua realização seja a realização do outro, conforme Marx (1982, p. 5): “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!”. Para que se possa construir tal sociedade, é fundamental que se dete- nha o domínio do acúmulo produzido na sociedade capitalista para que se possa proceder à superação – no movimento dialético de negação por supera- ção. A transformação ocorre, necessariamente, a partir do que se tem – afinal, se está considerando o pressuposto materialista e sobretudo histórico; nessa hipótese, o novo só pode nascer do velho. Nesse processo, essas forças produtivas terão que passar por profundas transformações, pois muitas de suas atuais característi- cas não serão adequadas a uma situação em que os objetivos da produção material e não material não sejam mais aqueles determinados pela lógica econômica capitalista. Ocorre que as transformações radicais das forças produtivas não acontecerão a partir do nada, mas sim a partir da apropriação do que já existe (DUARTE, 2014, p. 37). Importa ressaltar na argumentação de Duarte (2014) que a superação da alienação é necessária para que se possa socializar a riqueza humana – a “realização plena da educação escolar não será alcançada na sociedade capitalista”. Isso não exime a pedagogia comprometida com a luta social de construir, cotidianamente, as condições para a humanização; e ainda que muitas pedagogias progressistas pretendam fazê-lo, a alternativa que descon- sidera a apropriação dos acúmulos da ciência, tecnologia, filosofia e arte permite um caminho contrário daquele que defende. Nesse ponto, encontra- -se o volume da produção de Duarte na crítica às chamadas pedagogias do “aprender a aprender”. Entre tais equívocos, sobressai aquele que entende ser necessário aproximar a escola da vida. Quanto mais as ações realizadas no interior das escolas se asse- melham ao cotidiano da sociedade capitalista, mais alienante se torna a educação escolar. Ao contrário das acusações feitas à escola ao longo do século XX, de distanciamento em relação à vida, minha interpretação é a de que à medida que a escola foi se universalizando, a burguesia e seus aliados foram pondo em ação 121 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Liliam Faria Porto Borges mecanismos que aproximam as atividades educativas escolares às formas mais alienadas que a vida assumiu na sociedade capitalista (DUARTE, 2014, p. 38). Em “Vygotsky e o ‘aprender a aprender’: crítica às apropriações neo- liberais e pós-modernas da teoria vygotskyana” (DUARTE, 2001a), o caminho percorrido pelo autor pretende refletir, analisar e denunciar a diluição de teo- rias revolucionárias em educação em meio a formulações conservadoras na compreensão da educação escolar e da relação entre ensinar e aprender. A obra se inicia com uma leitura de documentos importantes e orien- tadores de políticas educacionais como o Relatório para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) da Comissão internacional sobre Educação no Século XXI e os Parâmetros Curriculares Nacionais. Logo, isso indica que mais que se apropriar de conhecimentos e da ciência, o papel da educação escolar é estimular os estudantes a conhecer e desenvolver métodos para construir conhecimento, como atividade principal e capacitadora para os desafios do século XXI. Ocorre que, orientada pela ideologia pós-moderna e neoliberal, essa hipótese se reafirma na negação da transmissão de conteúdos e na condenação dos acúmulos da ciência moderna. Tal caminho analítico permite que o autor, no terceiro capítulo, recu- pere elementos de sua obra A Individualidade para Si (DUARTE, 2012) em que ocorre um esvaziamento da individualidade no mundo capitalista – e o ser social vem substituindo a sociabilidade pela mediação da mercadoria. Essa, como explica Marx, assume dimensões humanizadas – em sua reifica- ção – na mesma medida em que os seres humanos se desumanizam. O mesmo movimento ocorre na escola – condições abstratas de aprender substituem con- teúdos científicos e artísticos. Aprender a aprender é muito mais desejável do que saber história, matemática ou dominar a língua portuguesa. Duarte segue afirmando a necessária retomada de Vygotsky pelo pen- samento materialista histórico e dialético e de sua rigorosa vinculação a Marx e direciona os últimos capítulos a defender a distinção entre Vygotsky e outros autores. Inicialmente, os pensadores da chamada psicologia sócio-histórica alertam para a necessária revisão das traduções de seus escritos. Na sequên- cia, focaliza Piaget quando afirma o radical antagonismo entre esses autores, identificando-os com propostas pedagógicas, vinculadas ao projeto capitalista de mundo e de escola em oposição ao projeto de mundo socialista. 122 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Educação, escola e humanização em Marx, Engels e Lukács Neste texto e na importante obra “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco: A Dialética em Vygotsky e em Marx e a questão do saber objetivo na educação escolar”, Duarte (2000) recupera o “Manuscrito de 1929” de Vygotsky, para afirmar que [...] a relação filogênese-ontogênese no desenvolvimento orgânico é distinta da mesma relação no desenvolvimento cultural: enquanto o embrião humano se desenvolve sem interagir com o organismo adulto, o desenvolvimento cultural da criança só ocorre por meio da interação com o adulto, isto é, com o ser mais desenvolvido (DUARTE, 2000, p.1). A relação entre o mais desenvolvido e o menos desenvolvido como mote do desenvolvimento tem por fundamentação o estudo de Marx sobre a anatomia de o homem constituir a chave da anatomia do macaco. Nessa argumentação, ele recupera as relações entre a dialética em Vygotsky e em Marx. De forma didática, o autor reconstrói metodológica e epistemologica- mente a compreensão da dialética nos autores. Duarte defende a tese de que “a psicologia vygotskyana fornece apoio a uma pedagogia que valorize a transmissão das formas mais desenvolvidas do saber objetivo produzido pela humanidade” (DUARTE, 2000, p. 1). A afirmação contundente desses estudos é a de que a escola cum- pre um papel que, efetivamente, contribui com o processo de construção do homem mais humanizado quando possibilita que os alunos aprendam con- teúdos da ciência, filosofia e das artes. Dessa recuperação dos conteúdos das relações, Newton recupera e reafirma - na defesa do debate acadêmico, instaurado entre estudiosos da educação que apresentam como marxistas - a concepção de trabalho educativo. A definição de trabalho educativo proposta por Saviani não é outra coisa senão uma síntese das possibilidades máximas de educação que se constituíram historicamente e se apresentam na sociedade contemporânea de maneira extremamente contraditória e heterogê- nea. É uma definição ao mesmo tempo histórica, ontológica, ética e política (DUARTE, 2014, p.42). A máxima de Marx e Engels, − presente no início deste texto − de que o trabalho produziu o homem é que essa é uma atividade humana e 125 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Liliam Faria Porto Borges KLEIN, Lígia Regina. Alfabetização: quem tem medo de ensinar? 4. ed. São Paulo: Cortez; Campo Grande: Editora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, 2002. ______. 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Liliam Faria Porto Borges Universidade Estadual do Oeste do Paraná | Campus de Cascavel | Paraná Programa de Pós-Graduação em Educação 126 Revista Educação em Questão, Natal, v. 55, n. 45, p. 101-126, jul./set. 2017 Artigo Educação, escola e humanização em Marx, Engels e Lukács Centro de Educação, Comunicação e Artes Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais | GPPS E-mail |liliam.borges@unioeste.br Recebido 29 maio 2017 Aceito 9 jun. 2017
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