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Burocracia Pública na Construção do Brasil, Manuais, Projetos, Pesquisas de Direito do Trabalho e da Segurança Social

Burocracia Pública na Construção do Brasil - Luiz Carlos Bresser Pereira. Ensaio da versão ampliada do trabalho: ''Burocracia Pública e classes dirigentes no Brasil'', junho 2008.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2010

Compartilhado em 07/11/2010

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Baixe Burocracia Pública na Construção do Brasil e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Direito do Trabalho e da Segurança Social, somente na Docsity! Luiz Carlos Bresser-Pereira BUROCRACIA PÚBLICA NA CONSTRUÇÃO DO BRASIL Este ensaio é a versão ampliada do trabalho “Burocracia pública e classes dirigentes no Brasil” publicado na Revista de Sociologia e Política, 2007, n. 28: 9-30. O projeto é de transformá-lo em livro. Esta versão é incompleta, mas está sendo disponibilizada no website para meus alunos do curso Sociedade e Estado no Brasil. Comentários e sugestões são bem vindos. Junho de 2008 Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas. lcbresser@uol.com.br www.bresserpereira.org.br 2 Índice Introdução ........................................................................................................................... 3  1.  SOCIEDADE, BUROCRACIA PÚBLICA E ESTADO ............................................. 19  Formas de estado e pactos políticos ................................................................................. 24  2.  SOCIEDADE PATRIARCAL E MERCANTIL .......................................................... 30  Burocracia patrimonial no Estado Oligárquico ................................................................ 34  3.  REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E NACIONAL ........................................................... 44  Surge a burocracia moderna: 1930-45 .............................................................................. 44  Nacional desenvolvimentismo vitorioso: 1945-60 ........................................................... 53  4.  BUROCRACIA PÚBLICA NO PODER: 1964-1984 ................................................. 61  5.  TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA ................................................................................. 71  Pacto democrático-popular ............................................................................................... 73  6.  A GRANDE CRISE DOS ANOS 1980 ....................................................................... 77  Crise burocrática e republicana ........................................................................................ 77  Retrocesso burocrático ..................................................................................................... 80  7.  PACTO LIBERAL-DEPENDENTE ............................................................................ 83  Governo Collor e rendição nacional ................................................................................. 83  Governo Cardoso .............................................................................................................. 85  Um pacto conservador e globalista ................................................................................... 87  8.  REFORMA GERENCIAL EM UM QUADRO ADVERSO ....................................... 95  9.  UM NOVO PACTO NACIONAL E DEMOCRÁTICO? .......................................... 106  Acordo nacional .............................................................................................................. 107  Coalizão alternativa ........................................................................................................ 111  Conclusão ....................................................................................................................... 119  Referências ..................................................................................................................... 123  5 que compete e coopera na arena internacional e uma subordinação ou inferioridade cultural e política em relação aos países desenvolvidos que saberiam melhor como o Brasil deveria conduzir seus interesses. Esse caráter nacional-dependente do Brasil é uma contradição cuja origem além de estar no atraso do desenvolvimento econômico brasileiro, provavelmente se encontra também na fonte européia das elites brasileiras. Ainda que o Brasil seja uma sociedade mestiça, na qual as raças branca, índia e negra se combinam em partes aproximadamente iguais, suas elites têm ou pretendem ter uma origem principalmente européia. E usam essa origem como uma fonte de legitimação não confessada para sua condição social superior. O custo que pagam por isso, porém, é alto; é o custo de uma dependência cultural e política que as nações asiáticas não têm aí ainda que seu nível de desenvolvimento econômico seja semelhante ao brasileiro. O conceito de sociedade ‘nacional-dependente’ implica reconhecer o caráter intrinsecamente da sociedade brasileira. Implica uma ambigüidade fundamental que torna os membros dessa sociedade permanentemente divididos entre e um nacionalismo liberal e democrático semelhante ao existente nos países ricos e o globalismo ou internacionalismo pregado pelas elites intelectuais e políticas desses países. Neles, ninguém tem dúvida que o capitalismo se caracteriza por uma grande competição entre os estados-nação, e, portanto, que é dever de cada governo defender o trabalho, o conhecimento e o capital nacionais, mas, por que esta convicção é consensual, a expressão ‘nacionalismo’ pode ser reservada ou às violências associadas historicamente ao nacionalismo radical e étnico, ou às manifestações competitivas dos países em desenvolvimento. As nações e seus estados-nação são fenômenos históricos modernos; são uma parte essencial da Revolução Capitalista que não se caracteriza por apenas uma revolução comercial e uma revolução industrial, mas inclui também uma revolução nacional, ou seja, a formação dos estados nacionais. O Brasil passou por estas três revoluções da Revolução Capitalista: passou plenamente pelas duas primeiras, de forma incompleta, pela terceira, não obstante seus atores sociais fundamentais – a burguesia industrial e a burocracia pública ao nível das elites estejam presentes e tenham uma longa história. No início do século XX, Oliveira Vianna assinalava o caráter alienado das elites brasileiras que copiavam as instituições formais dos países desenvolvidos. Depois disso, a sociedade brasileira desenvolveu-se de forma extraordinária 6 em termos de tamanho, complexidade, nível de educação, e qualidade das instituições; deixou de ser uma sociedade autoritária para ser uma sociedade democrática; mas a dependência em relação ao Norte rico, que na primeira metade do século XX diminuíra consideravelmente deixando supor que a revolução nacional estava afinal se completando, voltou a ser dominante depois da grande crise dos anos 1980s. Em conseqüência, o desenvolvimento econômico que ganhara grande impulso a partir dos anos 1930 perdeu fôlego com enfraquecimento da idéia de nação. Em compensação, na segunda metade do século XX, fortaleceram-se as idéias de democracia, justiça social, e proteção do ambiente. Seria possível argumentar que, portanto, a troca foi razoável, mas isto só seria verdade se fosse necessária uma troca entre os objetivos de autonomia nacional e desenvolvimento econômico, de um lado, e liberdade individual, justiça social, e proteção da natureza, do outro. Naturalmente, esta compensação não é necessária. Ela ocorreu no Brasil, onde, durante o século XX, podemos detectar dois grandes ciclos sociais – o Ciclo Nação e Desenvolvimento, na sua primeira metade, e o Ciclo Democracia e Justiça Social, no segundo, seguidos, com uma defasagem, de mudanças ao nível do estado ou da política. Essa alternância não era necessária, uma síntese dos dois ciclos faria mais sentido historicamente, mas a história raramente é racional como quereríamos que fosse. Ainda que a relação entre estado e sociedade seja intrinsecamente dialética já que a nação cria o estado para que este a regule, o vetor dessa relação é claro: o estado enquanto ordem constitucional legal e organização que a garante é sempre expressão da sociedade - do seu nível de desenvolvimento. Para compreendermos a sociedade brasileira no século XX, é necessário que nos debrucemos sobre os ciclos de desenvolvimento pelos quais passaram tanto a sociedade como o Estado brasileiros — os ciclos da sociedade antecipando os do Estado; os primeiros levando a consensos sociais e ideológicos, os segundos, a pactos políticos e ao controle do Estado. No plano da sociedade, já no início do século XX, surgeum ciclo voltado para a identidade nacional e as razões do atraso ou do subdesenvolvimento. Denomino este ciclo que começa com grandes figuras como Silvio Romero, Manoel Bonfim, e Euclides da Cunha, passa por Alberto Torres, Monteiro Lobato, Oliveira Vianna e Roberto Simonsen, alcança um momento clássico nas obras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., e chega a sua definição completa no pensamento dos grandes intelectuais como Ignácio Rangel, Guerreiro Ramos e Hélio Jaguaribe (ISEB), Barbosa Lima 7 Sobrinho e Celso Furtado, Ciclo Nação e Desenvolvimento. 1 No início dos anos 1960, com o golpe de 1964, cuja origem está no acirramento da guerra fria na América Latina e as conseqüentes radicalizações políticas propiciadas pela Revolução Cubana, de 1959, 2 este ciclo nacionalista entra em colapso, na medida em que os empresários industriais, que constituíam a ‘burguesia nacional’ — ou seja, uma classe capitalista comprometida com os interesses nacionais —, e os militares, que sempre foram um esteio do nacionalismo brasileiro, atemorizados com a ameaça comunista, se associaram aos norte-americanos na instauração de um regime militar no Brasil. Já no plano do Estado, que é defasado em relação ao da sociedade, o ciclo correspondente toma a forma do Pacto Nacional-Desenvolvimentista, que começa com o movimento tenentista e a Revolução de 1930 e tem Getúlio Vargas como seu principal ator político. Nesse ciclo o governo lidera com êxito uma estratégia nacional de desenvolvimento voltada para a industrialização substitutiva de importações, e o Brasil alcança as taxas de crescimento mais elevadas do mundo. Depois da redemocratização de 1945, o Pacto Nacional- Desenvolvimentista passa por uma crise política em 1954 que leva ao suicídio de Vargas, restabelece-se com a eleição de Juscelino Kubitschek, e enfrenta nova crise em 1961, que se resolve no golpe militar de 1964. A partir de então o pacto político, que contava com a participação dos empresários industriais, de setores não exportadores da velha oligarquia de origens patriarcais, dos técnicos ou burocratas do Estado e dos trabalhadores organizados, perde a participação dos últimos, transformando-se no Pacto Burocrático-Autoritário formado pelos empresários e a burocracia do Estado, que manterá a estratégia desenvolvimentista até a grande crise dos anos 1980. Essa crise se desencadeia num momento em que o novo ciclo ao nível da sociedade, que denomino Ciclo Democracia e Justiça, já havia dado passos largos no sentido de minar o regime militar. Esse ciclo nasce entre intelectuais de esquerda, geralmente relacionados com a 1 O ISEB — Instituto Superior de Estudos Brasileiros — foi uma organização do Ministério da Educação que existiu entre 1955 e 1964: o grupo de intelectuais que a formou existia desde o início dos anos 1950 através da publicação dos Cadernos do Nosso Tempo (Toledo [org.], 2005). 10 resultados desse grande esforço foram magros, porque o pressuposto em que se baseara — o pressuposto de que o desenvolvimento econômico estava assegurado — revelara-se falso: o crescimento durara dez anos; desde 1980, a economia estava quase-estagnada. Torna-se, assim, cada vez mais claro que o Ciclo Democracia e Justiça esgotou suas virtualidades. Seus grandes objetivos — a democracia e a justiça social — continuam mais válidos e necessários do que nunca, mas a sociedade não sabe mais como avançar, dada a falta de desenvolvimento econômico e o aumento do desemprego. Continuar a aumentar a carga tributária para financiar gastos sociais não é evidentemente uma alternativa realista. O marasmo que caracterizou as eleições presidenciais de 2006 e a falta de debate público real que então se verificou são uma indicação desse esgotamento: os partidos políticos que se originaram desse ciclo não foram capazes de renovar sua visão do país. A democracia foi alcançada, apesar da crise ética por que vem passando; já a diminuição da desigualdade não o foi. Ainda que dados sobre a distribuição de renda, baseados em pesquisas do IBGE, indiquem alguma melhoria nesse setor, são dados equivocados porque incompletos. Como 80% dos rendimentos em que se baseiam essas pesquisas são rendimentos do trabalho, em um país em que eles não representam mais do que um terço da renda nacional, a pesquisa subestima os rendimentos do capital e não leva em consideração, portanto, que, para compensar o aumento do gasto social, houve um brutal aumento dos juros transferidos pelo Estado aos rentistas, ou seja, à parte não produtiva dos ricos. A estratégia de distribuição via gasto social era intrinsecamente limitada. Além do aumento dos juros, ela levou a uma carga tributária altíssima, de 37% do PIB, não havendo mais na sociedade disposição para aceitar novos aumentos. Hoje está mais claro do que nunca que a diminuição da desigualdade só ocorrerá quando o desenvolvimento econômico for retomado e as empresas voltarem a absorver a oferta ilimitada de mão-de-obra que caracteriza a economia subdesenvolvida e dual no Brasil. Se os intelectuais do Ciclo Democracia e Justiça se equivocaram ao contar com as virtualidades do gasto social para distribuir a renda, os ideólogos da ortodoxia convencional enganaram-se ainda mais gravemente ao pressupor que o desenvolvimento seria retomado com as reformas e a política econômica propostas pelos países ricos. Ou a sociedade brasileira repensa a sua história neste último século, e se dá conta de que seus objetivos não podem ser apenas a democracia e a diminuição da desigualdade, mas deve ser também a do desenvolvimento econômico, e que para isso é preciso reconstruir a Nação brasileira, ou então 11 não superará a quase-estagnação em que se encontra. Depois dos dois grandes ciclos por que passou, a sociedade precisa encontrar uma nova síntese que lhe permita celebrar um novo pacto político nacional, popular e democrático. Neste resumo do século XX, como é próprio das sociedades modernas, a classe empresarial e a alta burocracia pública são os dois grupos sociais estratégicos do ponto de vista político. No processo de desenvolvimento capitalista, as classes sociais estiveram sempre em processo de transformação: a aristocracia perdeu poder e relevância durante o século XIX, o mesmo aconteceu com a classe camponesa, a burguesia deixou de ser apenas uma ‘classe média’ para incluir também uma camada alta, a classe trabalhadora diversificou-se e uma parte dela ganhou nível de camada ou estrato médio, e a burocracia, que era um pequeno estamento situado principalmente dentro da organização do Estado, transformou-se em uma grande senão imensa classe profissional ou em uma tecnoburocracia tanto pública quanto privada, e, em conseqüência, a distinção e o conflito entre as duas classes originais reduziram-se ao mesmo tempo que a ação política das classes sociais perdia os contornos firmes que Marx lhes atribuíra. 6 Em todo esse processo, porém, a alta burguesia, formada por empresários e rentistas, e a alta burocracia política, constituída de burocratas profissionais e políticos eleitos, desempenharam sempre o papel político estratégico. 7 Ainda que a partir do século XX, quando a democracia se tornou o regime político dominante, os trabalhadores e as camadas tanto médias burguesas quanto profissionais tenham aumentado sua influência graças ao poder do voto, os grandes empresários e a burocracia política – os primeiros como parte da classe capitalista e os segundos, da classe profissional – foram sempre os principais detentores do poder. E embora com freqüência estivessem em conflito, porque possuem interesses corporativos diferentes, estiveram mais freqüentemente associados em torno da construção e consolidação das respectivas nações. Sempre souberam que seu poder e prestígio dependem 6 Estou usando a palavra ‘classe’ em seu sentido clássico, presente em Marx e também em Weber, como dependente das formas de propriedade. Neste caso, a classe profissional controla a ‘organização’ (tem a propriedade coletiva da organização, conforme discuti em Bresser-Pereira, 1977), de mesma forma que a classe capitalista tem a propriedade individual do capital. Uso ‘camada’ ou ‘estrato’ no sentido da sociologia da estratificação social que se baseia nos critérios de renda, educação e prestígio social; nesse caso, cada classe pode incluir mais de uma camada. 7 Entende-se aqui por rentistas os capitalistas inativos que vivem de dividendos, juros e aluguéis. 12 essencialmente da autonomia e da força do Estado-nação que dirigem, o que os leva a terem interesses comuns que superam eventuais divergências ideológicas. Neste trabalho, procurarei fazer uma análise abrangente do papel desempenhado pela burocracia pública na sociedade brasileira – ou seja, pelo setor da classe profissional constituído pelos servidores públicos, os administradores das empresas estatais, os consultores da administração pública e os políticos profissionais ou burocratas públicos eleitos; como estou interessado em classes dirigentes, minha atenção será dirigida para as camadas altas desses grupos que podem ser denominadas ‘alta burocracia pública’ ou ‘burocracia política’. Incluo os consultores na burocracia pública porque eles são geralmente ex-funcionários, que desempenham um papel importante na definição das estratégias organizacionais e administrativas do aparelho do Estado, constituindo parte da comunidade de gestores públicos. Incluo os políticos porque embora eles tenham com freqüência origem burguesa e mais recentemente também origem trabalhadora, quando são bem sucedidos eles se profissionalizam, e, em conseqüência, a maior parte dos seus rendimentos passa a derivar do Estado. Incluo-os, também, porque, do outro lado, considero que os altos burocratas não eleitos desempenham papeis políticos; sei que os princípios burocráticos não admitem esse fato, mas a questão não é de princípios mas de realidade histórica ou social. O fato de incluir os políticos profissionais no conceito de burocracia pública não significa que ignore a ampla literatura existente sobre os conflitos entre políticos e burocratas, nem que desconsidere a insistência da alta burocracia não-eleita brasileira de se distinguir dos políticos profissionais desde os anos 1930. Há uma longa história desse conflito que até hoje persiste entre altos servidores públicos. Entretanto, o caráter político da atividade dos altos servidores foi amplamente demonstrado na clássica pesquisa realizada nos Estados Unidos por Aberbach, Putnam e Rockman (1981). Por outro lado, como salientaram Loureiro e Abrucio (1999: 70), “o aumento da cobrança democrática por parte da população e com a necessidade de uma atuação cada vez mais eficiente por parte do Estado, o limite entre o que é a tarefa do burocrata e o que cabe ao político vem-se tornando cada vez mais tênue e, em alguns casos, há um total ‘embaralhamento’ das duas funções”. A distinção entre os burocratas ou ‘técnicos’ que seriam competentes e se identificariam com a racionalidade e a eficiência e os ‘políticos’ que seriam clientelistas e despreparados é uma ideologia tecnoburocrática. No Brasil ela se justificava nas fases iniciais do desenvolvimento capitalista brasileiro, quando os 15 conhecimento técnico, organizacional e comunicativo – exatamente o conhecimento que caracteriza os profissionais ou os tecnoburocratas e lhes garante poder e privilégio. São profissionais privados associados intimamente aos capitalistas mas não mais seus meros subordinados que coordenam as organizações privadas e públicas não-estatais. São os profissionais públicos o a alta burocracia pública que dirige os Estados democráticos modernos; dirigem-nos em nome do resto da sociedade mas, evidentemente, também em nome de seus interesses e convicções. Nos diversos estágios do desenvolvimento político, a burguesia será sempre poderosa porque dela depende a acumulação de capital e, portanto, o desenvolvimento econômico; como assinalou Przeworski (1986), os empresários têm um poder de veto – o de suspenderem os investimentos – que lhes dá o papel final no processo político. Os interesses das demais classes, porém, são também de alguma forma atendidos na medida em que o desenvolvimento ocorre, mas, ao contrário do que esperavam generosamente os socialistas, não é a classe trabalhadora, mas é a classe profissional ou tecnoburocrática que mais aumenta seu poder, porque controla um tipo de conhecimento – o técnico, organizacional e comunicativo – que é cada vez mais importante para organizar a produção. Dentro dela, a alta burocracia de funcionários eleitos e de servidores do Estado tenderá a ser especialmente poderosa porque, além de possuir conhecimento, ocupa uma posição estratégica no aparelho do Estado. Entretanto, o poder crescente da classe profissional ou tecnoburocrática está constantemente sendo negado seja porque a classe capitalista não quer reconhecer o fato de que está sendo crescentemente obrigada a dividir com ela poder e privilégio, seja porque seus intelectuais, que muitas vezes se confundem com os intelectuais de esquerda, preferem que essa classe passe despercebida no cenário político e social. Para Guerreiro Ramos (1963: 274), traduzindo uma visão muito comum entre os intelectuais na segunda metade do século XX, “a burocracia é agrupamento que, por força de seu lugar na estrutura social, jamais logra impor suas próprias diretivas à sociedade em geral”. Esta afirmação, entretanto, ou é uma obviedade porque nenhum setor social teria poder para tanto, ou é um equívoco que ignora o poder crescente da classe profissional e, dentro dela, da burocracia pública, na definição das políticas do Estado. Em terceiro lugar, pressuporei que a sociedade brasileira é uma sociedade dependente, ou, mais precisamente, nacional-dependente. Dado seu tamanho e seu nível de desenvolvimento econômico, há muito existem no Brasil as condições ou os interesses necessários para a 16 constituição de uma Nação – tanto assim que entre 1930 e 1980 vimos se afirmar a Nação brasileira –, mas existem também aqui, como em toda a América Latina, fatores econômicos, sociais e culturais que levam nossas elites capitalistas e burocráticas a, com freqüência, não se associarem ao restante da sociedade e assim constituírem uma Nação, mas se associarem ou se subordinarem às elites internacionais. Isto foi verdade em relação a quase toda a elite brasileira no período pré-Revolução de 1930, e voltou a sê-lo especialmente em relação ao setor financeiro, aos grandes rentistas e aos intelectuais a partir do final dos anos 1980, quando essas elites aceitaram subordinar-se às elites dos países ricos. Nesse momento, à Grande Crise da Dívida Externa e a alta inflação que debilitavam a Nação se somou o auge da hegemonia ideológica americana alcançado graças ao colapso do comunismo, e passar a aceitar as orientações vindas do Norte pareceu a única alternativa racional. Em relação aos intelectuais e políticos de esquerda somou-se a isto o ressentimento causado pela participação dos empresários industriais no golpe militar de 1964 – um ressentimento que deu origem a uma equivocada ‘teoria da dependência’ que ao negar a possibilidade de uma burguesia nacional negava a própria possibilidade da existência de uma Nação brasileira. 9 Meu quarto pressuposto é o de que a globalização é a competição generalizada entre os Estados-nação, de forma que esse não é o momento do capitalismo em que os Estados nacionais perderam relevância, mas, pelo contrário, o momento no qual sua capacidade nacional de formular suas próprias políticas tornou-se mais estratégica. Ou, em outras palavras, meu pressuposto é que nunca um acordo nacional amplo baseado na associação entre os grandes empresários e a alta burocracia pública foi tão necessário para o desenvolvimento econômico e social dos países do que hoje; é esse acordo que permite a definição de uma estratégia nacional de desenvolvimento quanto na globalização. Uma Nação é sempre uma sociedade caracterizada pelo acordo de classes – um acordo que não pressupõe a eliminação dos conflitos, mas que pressupõe a solidariedade social quando se trata de competir com outras nações. Na era da globalização, essa competição econômica é mais viva do que em qualquer outro estágio do desenvolvimento capitalista, de forma que, embora mais interdependente, os Estados-nação se tornaram mais estratégicos. Uma ideologia globalista 9 As conseqüências desse ressentimento foram a chamada teoria da dependência associada e o início do que denomino Ciclo Democracia e Justiça Social. Sobre a primeira conseqüência, ver Bresser-Pereira (2005), sobre a 17 vinda do Norte e particularmente do país hegemônico, os Estados Unidos, busca naturalmente demonstrar a perda de autonomia e de relevância dos Estados-nação no capitalismo global, usando para isso a ideologia neoliberal. Meu último pressuposto é o de que esse liberalismo econômico radical não reflete a lógica da eficiência do capitalismo dos profissionais que, embora reconhecendo no mercado um maravilhoso coordenador automático da atividade econômica, conhece suas limitações, e busca através do Estado regulá-lo e corrigi-lo para, assim, alcançar taxas maiores de desenvolvimento econômico. O neoliberalismo é essencialmente uma retórica ideológica da grande burguesia, mas vai além da retórico ao ser, internamente, um instrumento para limitar a capacidade de reivindicação dos trabalhadores e o próprio poder da burocracia pública, e, externamente, sob a forma do que chamo de ‘globalismo’, ao se constituir em uma estratégia para desarmar os concorrentes externos no quadro da globalização. A onda ideológica neoliberal e globalista foi inicialmente um reflexo da crise que ocorre nos Estados Unidos nos anos 1970 devido ao estrangulamento dos lucros provocado pelo aumento da pressão dos trabalhadores por maiores salários, e da nova competição representada pelos NICs (newly industrialized countries) que passavam a exportar manufaturados usando sua mão-de-obra barata. e ao grande aumento dos preços das commodities a partir do primeiro choque do petróleo; mas foi também uma reação ao aumento do poder da alta burocracia pública nos próprios países ricos em decorrência do grande crescimento do aparelho do Estado e do aumento da carga tributária que caracterizaram a transição do Estado Liberal, dominante no século XIX, para o Estado Democrático e Social do século XX. O neoliberalismo do último quartel desse século foi portanto: (1) o instrumento ideológico para o restabelecimento da taxa de lucro e da taxa de crescimento do PIB que caíra nos anos 1970 devido ao aumento do poder dos sindicatos e principalmente ao aumento do preço das commodities que se segue ao primeiro choque do petróleo (1973); (2) uma resposta à ameaça representada pelo surgimento, nos anos 1970, da concorrência dos NICs (newly industrialized countries) que passavam a exportar manufaturados para os países ricos; e (3) uma quebra relativa da clássica aliança que a classe capitalista e a alta classe profissional privada estabelecera com a burocracia pública para promover o desenvolvimento. Entretanto, essa reação neoliberal não afetou a coesão segunda, Bresser-Pereira (2007). 20 mais abrangente de cada Estado-nação já que é a própria ordem pública e a organização que a garante. Mas em nome de quem essa ordem é definida e garantida? Essencialmente, em nome das três classes básicas das sociedades capitalistas contemporâneas: a capitalista, a tecnoburocrática ou profissional e a trabalhadora. O poder dessas classes, naturalmente, variará historicamente: quanto mais democrático for um país, menos poder terão os capitalistas e mais os trabalhadores na própria sociedade, e, em conseqüência, no Estado. Em qualquer hipótese, porém, os dois setores sociais que deterão maior poder político serão o dos grandes capitalistas e a alta burocracia pública que também pode ser simplesmente denominada ‘burocracia política’ já que além dos servidores em sentido estrito inclui os políticos eleitos que vivem de pagamentos do Estado. A aliança entre esses dois setores sociais é muitas vezes identificada na literatura da sociologia política e do desenvolvimento econômico como uma aliança entre os empresários e o Estado, ou, na linguagem americana, como uma coalizão entre “business and government”. No Brasil, essa aliança deu origem ao nacional desenvolvimentismo – a uma bem sucedida estratégia nacional de desenvolvimento. Desde que surge sob a forma do Estado Absoluto, o Estado moderno representa os interesses da sociedade política organizada – é seu instrumento de ação coletiva. É preciso, porém, ter claro que essa sociedade politicamente organizada é inicialmente limitada a uma aristocracia; com o Estado Liberal, amplia-se essa sociedade e a burguesia passa a dela participar; e com o Estado Democrático, já no século XX, as classes médias profissionais e os trabalhadores passam a também fazer parte da sociedade civil ou da Nação e se fazerem representados no Estado. Só a partir de então é legítimo dizer-se que o Estado é o instrumento de ação coletiva por excelência da Nação, mas isto não significa que haja igualdade de poderes. Ainda que o acordo nacional que está na base de qualquer Nação deva ser abrangente, os dois setores estratégicos do ponto de vista político continuam a ser os altos empresários e a alta burocracia pública ou burocracia política. 11 Neste quadro, o Estado não é autônomo mas representa as classes, é uma condensação de forças das classes e grupos sociais; o Estado é a expressão dos poderes existentes na sociedade, nos termos inicialmente propostos por Gramsci e mais 10 Fiz a análise da classe tecnoburocrática principalmente em Bresser-Pereira (1981) A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia. 11 Ver, por exemplo, Tâmara Lothian (1995), Ben Ross Schneider (2004). 21 plenamente expressos por Poulantzas (1968). O Estado será mais ou menos democrático, terá mais espaço para trabalhadores, para a pequena burguesia, e para a classe profissional quanto mais a própria sociedade for democrática, quanto maior poder tiverem os trabalhadores e as classes médias, organizados politicamente em termos de Nação ou de sociedade civil. 12 Esta é uma perspectiva que tem sua origem em Marx e Engels, para os quais o Estado era o comitê executivo da burguesia – com isso eles estavam vendo o Estado como representante de uma sociedade que, naquela época, era dominada pela burguesia. Há em Marx, porém, uma outra versão antes filosófica do que sociológica segundo a qual o estado capitalista é identificado com a lógica do capital. Isto é correto já que só poderá haver capitalismo se o estado garantir a acumulação de capital. Existe, entretanto, nesta idéia o perigo de se voltar a Hegel para quem o Estado era a expressão da razão – razão essa que se materializava na sua burocracia. Essa tese equivocada foi adotada por Weber, e se encontra em marxistas modernos, ao mesmo tempo em que aparece indiretamente no pensamento liberal da escolha racional quando limita o papel do Estado a ‘garantir a propriedade e os contratos’ – o equivalente, na linguagem marxista, a ‘garantir as condições gerais da acumulação de capital’. Offe e Ronge (1976: 123), por exemplo, criticam a perspectiva ‘instrumental’ do Estado e propõem como alternativa um conceito de Estado segundo a qual “o Estado não defende os interesses particulares de uma classe, mas sim os interesses comuns de todos os membros de uma sociedade capitalista de classes”. Ou esta é uma tese equivalente à de que o Estado expressa os interesses dos grupos sociais dotados de poder na própria sociedade, e vai se modificando à medida em que muda a relação de forças sociais (e neste caso estará adotando a tese instrumental que os dois autores criticam, ou significa transformar tanto o Estado quando a ‘sociedade capitalista de classes’ em duas entidades metafísicas de difícil avaliação em uma linha herdada de Hegel. O Estado é, sim, instrumental, mas não é instrumento desta ou daquela classe; é cada vez mais, na medida em que se democratiza, o instrumento de ação coletiva da sociedade. O Estado, portanto, não é a materialização da razão ou da lógica do capitalismo, nem se identifica com sua burocracia, mas é, em cada momento da história, a expressão da sociedade – uma expressão institucional de caráter organizacional e normativo. 12 Organizadas em termos de Nação quando se trata de buscar a autonomia nacional e o desenvolvimento econômico; em termos de sociedade civil, quando os direitos civis e os direitos sociais, e, hoje, os direitos 22 Na medida em que o Estado tem um pessoal, um patrimônio e uma dívida, é uma instituição organizacional ou um aparelho; na medida em que é ordem jurídica com poder de coerção, que é o sistema constitucional-legal, é instituição normativa. Este último fato, este caráter dialético do Estado que o faz regular a sociedade que o cria, entretanto, dá origem a um outro equívoco entre nós geralmente associado a Raimundo Faoro, de que foi o Estado que criou a sociedade no Brasil. Embora a fundação da Nação brasileira por um herdeiro do trono português possa levar a essa conclusão, não é o Estado que criou a sociedade brasileira, mas foi ela que o constitui para que fosse seu principal instrumento de ação coletiva. Na medida em que se adota uma perspectiva weberiana de Estado, esta confusão pode surgir porque o Estado e sua burocracia assumem um caráter relativamente autônomo da sociedade. Na verdade, o que ocorre é que as sociedades podem usar seu Estado de forma mais ou menos intervencionista no processo econômico e social dependendo de uma série de condicionantes históricos. Na França, na Suécia, ou no Brasil, o Estado parece ter tido um papel maior na definição dos rumos sociais do que na Inglaterra ou nos Estados Unidos, mas isto só é verdade porque as respectivas sociedades assim o desejaram. Na Inglaterra e nos Estados Unidos o individualismo predominou; na França, na Suécia e também no Brasil a solidariedade que permite a ação coletiva que é o próprio Estado foi mais forte. No caso da Suécia, a ação coletiva se exerce principalmente na área social; no Brasil, antes de haver sido atingido pela onda neoliberal, essa ação exercia-se principalmente no plano econômico; na França, ocorre no dois setores. Além do maior ou menor individualismo, é preciso também considerar o momento do desenvolvimento econômico, especificamente da Revolução Industrial. Desde o clássico estudo de Gerschenkron (1962), é bem sabido que os países que se atrasaram em sua Revolução Industrial foram levados a dar ao Estado um papel econômico maior nas primeiras fases do que os que se desenvolveram originalmente, como a Inglaterra. E podemos encontrar outras variáveis sociais que ajudam a explicar essa diferença de padrão histórico. Entretanto, não faz o sentido negar o papel decisivo que teve o Estado na formação da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos agindo como instrumento de suas próprias sociedades, como também não faz sentido concluir-se daí que foi o Estado que criou a sociedade no Brasil e não o contrário. É papel do Estado moldar a sociedade, regulá-la, e definir formalmente na republicanos estão em jogo. 25 burocracia pública vai refletir essa condição básica. Enquanto setor de uma classe social, ela vai defender seus interesses, enquanto parte constitutiva do Estado ela vai se identificar com a organização do Estado, vai ‘vestir a camisa’ do Estado ao mesmo tempo em que vai responder às pressões das demais classes sociais. Conforme Paulo Sérgio Pinheiro (1978: 31), em seu estudo sobre as classes médias urbanas na Primeira República, a ação política da burocracia pública “vai depender do funcionamento concreto dos aparelhos de Estado e das relações do Estado com as diversas classes sociais”. Na condição de parte da classe profissional e de elemento constitutivo do aparelho do Estado, a burocracia pública tende a fazer parte da classe dirigente. Já o fazia enquanto burocracia patrimonial, no Império e na Primeira República; o fará enquanto burocracia moderna no momento da proclamação da República e depois de 1930; alcançará a condição de classe dirigente principal entre 1964 e 1984; e a partir de então perde decisivamente poder juntamente com a burguesia industrial com a qual se aliou desde os anos 1930. Quadro 1: Formas históricas de sociedade e de estado 1821-1930 1930 – 1985 1990 - ... Sociedade Patriarcal- Dependente Nacional- dependente Nacional- Dependente Estado Oligárquico Desenvolvi mentista Liberal- dependente Regime político Oligárquico Autoritário (Democrático entre 1945-1964) Democrático Classes dirigentes Latinfundiários e Burocracia patrimonial Empresários industriais e Burocracia pública Agentes financeiros e Rentistas Administração Patrimonial Burocrática Gerencial As formas históricas do Estado no Brasil estão naturalmente imbricadas na natureza de sua sociedade, e, portanto, expressam de um lado as mudanças por que vai passando a sociedade 26 e, de outro, a maneira pela qual o poder originário, derivado ou da riqueza ou do conhecimento e da capacidade de organização é distribuído nessa sociedade. As formas do Estado brasileiro, pensadas de acordo com esse critério, estão resumidas no Quadro 1. No século XIX a sociedade é essencialmente ‘patriarcal’ e ‘mercantil’ porque dominada pelo latifúndio agro-exportador e pelos comerciantes locais que não incorporam ainda as idéias de progresso técnico e produtividade, enquanto o Estado conta com a participação importante de uma burocracia patrimonial. A primeira forma histórica de Estado, o Estado Patriarcal- Oligárquico, é patriarcal no plano das relações sociais e econômicas internas, e mercantil no plano das relações econômicas externas, e caracterizada pela participação na classe dirigente oligárquica de uma burocracia patrimonial; é um Estado dependente porque suas elites não têm suficiente autonomia nacional para formularem uma estratégia nacional de desenvolvimento: limitam-se a copiar idéias e instituições alheias com pouca adaptação às condições locais. A partir dos anos 1930, quando começa a Revolução Industrial brasileira, a sociedade passa a ser ‘industrial’ porque agora os empresários industriais tornam-se dominantes, enquanto o Estado torna-se ‘nacional-desenvolvimentista’ porque envolvido em uma bem sucedida estratégia nacional de desenvolvimento. No Estado Nacional- Desenvolvimentista, dominante entre 1930 e 1980, a classe dirigente é caracterizada por uma forte aliança entre a burguesia industrial e a burocracia pública, e o período é marcado por um grande desenvolvimento econômico. Além de ser o momento da Revolução Industrial, é também o da Revolução Nacional: é o único em que a Nação se sobrepõe à condição de dependência. Seu sentido político maior é a transição do autoritarismo para a democracia, mas será marcada por dois retrocessos, um em 1937 e o outro em 1964. Os anos 1980s são de crise e de transição, são o momento em que o país atravessará a pior crise econômica de sua história – uma crise da dívida externa e da alta inflação inercial – que merece o nome de Grande Crise dos Anos 1980. Esta crise facilitará a transição democrática, mas, em compensação, debilita a Nação e a leva a se tornar novamente dependente. Surge então a forma de Estado ainda hoje dominante no Brasil: o Estado Liberal-Dependente. A partir de 1991, as políticas públicas, embora conservando o caráter social acordado durante a transição democrática, tornam-se, no plano econômico, novamente dependentes, passando a seguir à risca as orientações vindas do Norte. Sociedade e Estado perdem rumo, o Estado se enfraquece, e se torna incapaz de fazer o que fizera entre 1930 e 1980: coordenar uma 27 estratégia nacional de desenvolvimento. Através da abertura comercial e da abertura financeira, deixa de ter capacidade de se proteger contra a tendência à sobrevalorização da taxa de câmbio que caracteriza os países em desenvolvimento, e entra em fase de desindustrialização e quase-estagnação. O retorno à condição de dependência coincide com pequena diferença com a transição democrática porque ocorre em um momento em que as forças políticas que lideraram a transição não contavam com um projeto alternativo para enfrentar a crise do modelo nacional-desenvolvimentista. E também porque, nos anos 1990, logo após o colapso da União Soviética, a hegemonia ideológica do Norte sobre a América Latina tornara-se quase absoluta. Apesar de ser comum se identificar o período nacional-desenvolvimentista com o corporativismo, não uso esse conceito porque ele antes confunde do que esclarece. Nos anos 1930 há de fato um elemento corporativista no Estado brasileiro que se reflete na Constituição de 1934 que prevê representação classista no Congresso. Entretanto o que geralmente se usa é o conceito de corporativismo de Schmitter (1974) e Cawson (1986), que buscaram explicar sistemas políticos avançados como o da Alemanha, no qual o Estado tem como um de seus papeis intermediar interesses das classes capitalista e trabalhadora representadas por sindicatos. Nesse caso, o ‘corporativismo’ brasileiro é compreendido de maneira negativa, como autoritário e excludente dos trabalhadores (Santos, 1990; Costa, 1999) – o que de fato foi –, mas é preciso entender que o grau de desenvolvimento político do Brasil não possibilitava outra coisa. Neste trabalho examinarei também as reformas do aparelho do Estado. Do ponto de vista administrativo, o Estado será patrimonial até os anos 1930 prevalecendo então a confusão intrínseca ou inerente ao patrimonialismo entre o patrimônio público e o privado. Nos anos 1930 começa a Reforma Burocrática ou do serviço público e a administração passa a ser burocrática ou weberiana, preocupada principalmente com a efetividade da ação pública. A partir de 1995, quando começa a Reforma Gerencial ou da Gestão Pública, a administração assume caráter crescentemente gerencial na medida em que o critério da eficiência torna-se decisivo. A essas formas de Estado correspondem formas de burocracia: patrimonial, weberiana e gerencial, as duas últimas podendo ser consideradas ‘modernas’, mas a weberiana está ainda preocupada com a racionalidade formal da organização e com a 30 2. SOCIEDADE PATRIARCAL E MERCANTIL A sociedade brasileira no período colonial e em boa parte do imperial caracterizou-se por ser ao mesmo tempo patriarcal, baseada no latifúndio auto-suficiente em termos de consumo interno, e mercantil, na medida em que esse latifúndio estava aberto para o exterior na medida em que produzia um excedente econômico destinado ao pagamento dos impostos coloniais e ao consumo de bens de luxo importados da Europa. O grande analista da sociedade patriarcal foi Gilberto Freyre, da sociedade mercantil, Caio Prado Jr. Nos anos 1950, Ignácio Rangel e Celso Furtado sintetizaram os dois aspectos e os relacionaram ao caráter não-sustentado do crescimento econômico brasileiro até meados do século XIX. Fica claro por essa análise que as raízes do subdesenvolvimento brasileiro encontra-se no período colonial muito mais do que no imperial. Entretanto, não obstante a análise dos dois grandes economistas, nessa época era comum aliarem-se os conceitos de imperialismo, lei das vantagens comparativas, e ‘modelo primário-exportador’ para se localizar as raízes do subdesenvolvimento brasileiro no século XIX. Por outro lado, mais recentemente, o uso pouco cuidadoso de estatísticas históricas levou analistas estrangeiros a localizar o atraso brasileiro nas instituições brasileiras do século XIX que não assegurariam de forma satisfatória aos capitalistas a propriedade e os contrtos. Para compreendermos as raízes do atraso brasileiro é necessário situar a revolução capitalista industrial brasileira. O desenvolvimento econômico propriamente dito só começa quando uma sociedade se torna dominantemente capitalista, ou seja, quando sua economia passa a ser coordenada principalmente pelo mercado, o trabalho se torna assalariado, e o excedente econômico deixa de ter principalmente a forma de renda da terra e de lucro mercantil para assumir o caráter de lucro industrial. Enquanto no capitalismo mercantil, o capitalista não pensa em termos de progresso técnico, e está simplesmente buscando no comércio de longa distância um diferencial monopolista entre custo e preço, no capitalismo industrial ou propriamente dito o lucro é derivado da combinação do mecanismo da mais valia com a permanente incorporação de progresso técnico aos investimentos. Enquanto que nas 31 formações pré-capitalistas não há sequer a noção de investimento ou acumulação, e o excedente é aplicado principalmente em templos, instrumentos de guerra e consumo de luxo, e que no capitalismo mercantil o desenvolvimento econômico é eventual podendo os capitalistas a qualquer momento deixar de reinvestir seus lucros sem risco de perder seu capital, no capitalismo industrial o progresso técnico obriga a sistemática reinversão dos lucros acompanhada por permanente inovação como condição de sobrevivência dos empresários e suas empresas. Durante séculos e séculos, a Índia e a China tiveram sociedades pelo menos tão avançadas senão mais do que a sociedade ocidental. Foi só entre os séculos XVII e XVIII que a Inglaterra e a França e depois outros países ocidentais ultrapssaram decisivamente aquelas antigas civilizações que, um século mais tarde, tornaram-se colônias, e dois séculos depois, haviam se tornado subdesenvolvidas. O fato histórico novo que permitiu essa dramática ultrapassagem mudando todo o sistema de poder no mundo foi a Revolução Capitalista. Visto o problema do desenvolvimento brasileiro desta perspectiva, e dado o fato que sua revolução capitalista só realmente passou a ocorrer a partir do final do século XIX e principalmente da Revolução de 1930, enquanto que nos Estados Unidos, por exemplo, essa revolução já está em plena realização um século antes, o problema do subdesenvolvimento brasileiro só pode ter uma resposta na análise do atraso da revolução capitalista. A grande explicação desse atraso encontra-se nos primeiros três capítulos da clássica História Econômica do Brasil de Caio Prado Jr. (1945). Neles, o autor começa por distinguir três formas de colonização – de exploração mercantil, de feitoria mercantil, e de povoamento. As duas primeiras são as manifestações da primeira fase da Revolução Capitalista – a Revolução Comercial - que ocorria na Europa. A colonização por feitoria mercantil ocorrerá nas regiões, como a China e a Índia, que já produziam um excedente comercializável, de forma que o colonizador limitava-se a instalar um enclave comercial em uma cidade costeira, e, a partir dali, comerciar com as populações locai. Já a exploração mercantil será típica de regiões nas quais as populações locais não produzem um excedente mas que oferecem condições de clima e de solo complementares às da Europa que permitem, além da mineração, o desenvolvimento de plantações como as da cana de açúcar, a pimenta, o algodão e o tabaco. Este é o caso do Brasil e do sul dos Estados Unidos. A colonização de povoamento, por sua vez, ocorrerá em 32 regiões que também não produzem um excedente comercializável, e apresentam condições de clima e de solo semelhantes às da Europa. Este é o caso por excelência do norte dos Estados Unidos, da região que significativamente será chamada de Nova Inglaterra. A colonização nessa região significará o transplante de uma parte da sociedade inglesa – uma sociedade que liderava a revolução capitalista. Significará construir na América do Norte, uma sociedade de pequenos proprietários rurais já bem educada que, na primeira oportunidade, copiará a metrópole e iniciará sua própria revolução industrial. Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala (1933), faz o grande elogio da colonização portuguesa. Argumenta que foi esta a primeira vez que uma civilização se desenvolveu nos trópicos. E atribui esse fato ao caráter aventureiro e quase heróico dos portugueses. Na verdade, enquanto colonizadores, os portugueses, como qualquer outro povo imperial, explorou na forma que podia e sabia o Brasil. Sua colonização foi mercantil e não de povoamento não apenas porque o Brasil tinha condições geográficas complementares às de Portugal, mas também porque o próprio Portugal era uma sociedade mercantil decadente sem nenhuma perspectiva de, como aconteceu na Inglaterra, realizar sua Revolução Industrial já na segunda parte do século XVIII. Dessa forma, ainda que a cana de açúcar, e, no século XVIII, a mineração do ouro, tenham produzido um amplo excedente econômico, e que uma parte desse excedente tenha ficado no Brasil – nossa grande arte barroca mostra bem esse fato – isto não significou desenvolvimento econômico na medida em que a idéia de progresso técnico estava ausente, e o reinvestimento dos lucros não era uma necessidade econômica mas uma simples possibilidade. Além disso, para que houvesse desenvolvimento capitalista era necessário que surgisse um mercado interno. Ora, o caráter intrinsecamente dual da sociedade brasileira, que Ignácio Rangel tão bem acentuou em sua Dualidade Básica da Economia Brasileira (1953) impedia a formação de um mercado interno digno desse nome – que oferecesse oportunidade de investimento lucrativo a empresários. O latifúndio era auto- suficiente em termos de mercado interno, só se abrindo para o exterior em termos mercantis para o consumo de modestos bens de luxo consumidos por senhores de engenho, mineradores, e outros latifundiários. A grande massa da população era escrava e analfabeta, e apenas uma educação religiosa marginal procurava resolver o problema. Não constituía, portanto, nem mão-de-obra nem mercado para a indústria. Não bastasse isso, no período colonial investimentos nas indústrias eram proibidos. Essa proibição era desnecessária, já mesmo sem 35 República em uma oligarquia de senhores de terra que era também comerciante mercantil: em uma primeira fase, são os senhores de engenho do Nordeste e os coronéis de gado do sertão; em uma segunda, são os primeiros plantadores de café do Vale do Paraíba; e finalmente, serão os cafeicultores do Oeste paulista os dirigentes econômicos e políticos do Brasil. Segundo Gilberto Freyre (1933: 19) que foi não apenas o grande analista mas também o grande ideólogo da oligarquia de senhores de terra que ele via como uma aristocracia, “a família e não o indíviduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é, desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos bois, ferramentas, a força social que desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América”. Freyre não poderia ser mais enfático. De acordo com a análise clássica de Rangel, a oligarquia no período colonial é também constituída pelos senhores de terras que, internamente, dominam de forma patriarcal os latifúndios, enquanto externamente já constituem uma burguesia mercantil. No século XIX, surge uma burguesia mercantil urbana de grandes comerciantes e mercadores de escravos que passa a partilhar poder e privilégio com o patriarcado rural. Nestor Duarte (1939 [1966]), por sua vez, ao caracterizar o Estado brasileiro, mostra sua dependência da classe patriarcal ou senhorial da qual vai receber o poder político: “O Estado só começa a existir além dessa ordem [senhorial], e, o que é mais, só se exerce, como se desenvolve e circunscreve, dentro do novo círculo que ela lhe abre acima daquele primeiro círculo de sua atuação direta”. A análise marxista de Caio Prado Jr. vai na mesma direção. Faoro não nega a existência desses atores sociais, mas inverte o raciocínio, e entende que o estamento patrimonial que dirige a organização do Estado é a própria classe dirigente. Para ele, o Brasil reproduziu o sistema montado em Portugal no século XIV por Dom João I, o Mestre de Avis que tem como base um estamento originalmente aristocrático, formado pela nobreza decadente que perde as rendas da terra, que vai se tornando cada vez mais puramente burocrático com a entrada de meros letrados, sem perder todavia seu caráter aristocrático. Este estamento não é mais senhorial, porque não deriva sua renda da terra, mas é patrimonial, porque a deriva do patrimônio do Estado, que em parte se confunde com o patrimônio de cada um de seus membros. O Estado arrecada impostos das classes, particularmente da burguesia mercantil, que são usados para sustentar o estamento dominante e o grande corpo de funcionários de nível médio a ele ligados por laços de toda ordem. Faoro está bem ciente de 36 que sua tese conflita tanto com a perspectiva marxista quanto com a liberal. Ele não hesita em se colocar contra ambas: “À crítica de fonte liberal junta-se paradoxalmente no mesmo sentido a crítica marxista. O capitalismo antigo – identificado por simplificação de escola, ao feudalismo, ou ao pré-capitalismo – será devorado pelo capitalismo industrial”. Ora, argumenta Faoro, “a realidade histórica brasileira demonstrou a persistência secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase progressiva, da experiência capitalista. Adotou do capitalismo a técnica, as máquinas, as empresas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar” (1957/75: 734-736). Uma posição intermediária mas que afinal deixa o problema indefinido é adotada por Fernando Uricoechea (1978), que vê a administração imperial como patrimonalista ou prebendária mas salienta que o latifúndio é a prebenda básica que a Coroa portuguesa garantiu aos colonos. 13 Entendo que esta análise de Faoro oferece uma visão nova do Brasil do período imperial e ainda é esclarecedora para o período da Primeira República. 14 Fica claro o papel decisivo desempenhado pela burocracia pública de então – por um estamento burocrático-patrimonial semelhante àquele que dominava Portugal, de origem aristocrática, ligado aqui por laços de família ao patriarcado rural. Enquanto os senhores de terra e os grandes comerciantes e traficantes de escravos se ocupavam da economia, esse estamento dominava com relativa autonomia o Estado e a política. De acordo com a perspectiva de Faoro, haveria uma distinção clara entre a classe dominante de senhores de terra e a classe dirigente de burocratas patrimoniais que leva o raciocínio longe demais. Ainda que possamos e devamos distinguir os dois grupos, os laços familiares e as relações de dependência da elite política em relação à elite econômica eram muito fortes. O poder político da alta burocracia patrimonial dependia do voto a nível local, em um Brasil absolutamente rural, no qual era decisiva a figura do ‘coronel’ que em grande parte se confundia com a do senhor de terras. 13 Em conseqüência dessa análise, a Guarda Nacional, que foi uma instituição dos senhores de terra em oposição ao poder central e ao exército burocrático é entendida como uma manifestação patrimonialista – um patrimonialismo curiosamente antiburocrático. 14 Faoro, entretanto, termina seu livro com um capitulo sobre “a viagem redonda” porque acredita que no último quartel do século XX o Estado e a sociedade brasileiros continuavam essencialmente patrimoniais – o que implica em negar a história. 37 A importância dessa aristocracia burocrática no Império é inegável. José Murilo de Carvalho, em sua notável análise das origens dos ministros do império, assinala que a grande maioria deles era formada por letrados e juristas, que podiam estar ligados às famílias de proprietários de terra, mas eram antes de tudo burocratas patrimonialistas sustentados pelo Estado. Em um primeiro momento, a partir de sua base estamental ou de suas relações com o patriarcado rural, eles estudavam em Coimbra, depois, nas faculdades de direito da Olinda e São Paulo. Apoiados nesse conhecimento vinham a ocupar os altos postos do Império. Segundo Carvalho (1980: 38-1939), “o que acontecia com a burocracia brasileira acontecia também em parte com a elite política, mesmo porque a última em boa medida se confundia com os escalões mais altos da primeira”. Isto, entretanto, assinala o historiador, não significava que a elite imperial fosse, como para Nestor Duarte, “simplesmente a representante dos proprietários rurais”, ou, como para Faoro, “um estamento solidamente estabelecido que se tornava, através do Estado, árbitro da Nação e proprietário da soberania nacional”. Talvez Carvalho faça essa ressalva dado o caráter radical da posição de Faoro, mas a pesquisa histórica que realizou caminha antes na direção de Faoro do que de Duarte – este aqui representando a sabedoria convencional marxista e liberal. A elite política brasileira era fundamentalmente formada por bacharéis ou juristas, e estes eram em regra magistrados, funcionários do Estado, como é próprio do patrimonialismo, enquanto, na Inglaterra, os juristas eram cada vez mais advogados, servindo a burguesia nascente. Estes magistrados apresentavam uma extraordinária homogeneidade, que a educação nas faculdades de direito proporcionava. Homogeneidade conservadora, herdada do conservadorismo atrasado de Coimbra. Por outro lado, conclui Carvalho, ficava assim clara “a capacidade (dessa elite) de processar conflitos entre grupos dominantes dentro de normas constitucionais aceitas por todos constituía o fulcro da estabilidade do sistema imperial”. Sob muitos aspectos, o trabalho realizado por ela durante o Império principalmente, foi admirável. Entretanto, é preciso considerar que toda elite política é culturalmente mais sofisticada do que as elites econômicas que representa, e, por isso, delas se distingue. Para que um político tenha condição de falar em nome do patriarcado rural e dos grandes comerciantes urbanos que constituíam o Brasil, devia estar necessariamente mais preparado, e possuir um status social diferente dos seus representados. Nesse processo, ganhava naturalmente um determinado grau de autonomia, que aparentemente aumentava ainda mais na medida em que em essa elite política era fortemente 40 dependência de todas as classes”. Os testemunhos de Tobias Barreto, Sylvio Romero, e Joaquim Nabuco, entre outros, caminham sempre no mesmo sentido. O emprego público, embora não garantisse plena estabilidade, dada a prática das “derrubadas” quando mudavam ministérios de um partido para o outro, era o único emprego possível para uma ampla classe média desempregada. Dela se recrutava a elite política. Os funcionários faziam parte de uma camada média pequena mas que já é significativa. 15 O ciclo da mineração, como assinala Nelson Werneck Sodré (1968: 69) gerou uma “camada média constituída por todos aqueles que não eram senhores mas não eram também escravos ou servos: pequenos comerciantes, pequenos proprietários de terra, funcionários, padres, militares, artesãos dos diversos ramos... muito mais numerosa na cidade do que no campo”. Com o aumento, ainda que modesto, do aparelho do Estado, funcionários de origens sociais modestas começam a ter um papel social. A burocracia de caráter aristocrático que ocupa os altos cargos do Império começa a ser infiltrada por elementos externos, de origem social mais baixa, como já havia antes acontecido dentro da organização da Igreja Católica. Quando nos referimos a esses funcionários, já não podemos mais falar com precisão de um estamento patrimonial. Pode-se, imaginar que os critérios administrativos eram pessoais, e que a preocupação com a eficiência da máquina estatal fosse nula. José Murilo de Carvalho (1980: 130) salienta que a “classe média desempregada”, a que se referiam Tobias Barreto e Sylvio Romero, formada principalmente de profissionais liberais, em particular bacharéis, e dominantemente mestiços, tinha como vocação o funcionalismo. E acrescenta: não era “a vocação de todos, como exagerou Nabuco, mas o era das minorias urbanas, especialmente de seus elementos mais educados e agressivos”. Não obstante essas limitações, é a burocracia pública moderna que está timidamente surgindo. O acesso, inclusive, não era fácil, especialmente na Marinha e na magistratura, onde mantinha seu caráter aristocrático. Além da modesta emergência de uma classe média de funcionários do Estado, no último quartel do século XIX é possível observar a emergência de dois grupos significativos de maior prestigioso social: de um lado, um grupo de profissionais estrito senso, o dos engenheiros, e de outro, um grupo ligado ao Estado, os oficiais militares. Conforme observa 15 Essa camada formada de elementos pequeno-burgueses e burocráticos era suficientemente pequena para que Gilberto Freyre (1951 [2003]: 53) afirmasse poder ser “quase ignorada sua presença na história social da família 41 Martins (1976: 83-87), “o militar e o engenheiro aqui tomados como tipos ideais são os dois novos atores – que freqüentemente se confundem – que emergem desses setores médios no curso dos últimos dois decênios do século XIX e dos primeiros do século XX. Eles vão se opor ao bacharel”, que, também como tipo ideal, correspondia então à burocracia patrimonial. Os militares do Exército formam o primeiro grupo burocrático a fazer parte da classe dirigente brasileira, ao lado da oligarquia econômica e burocracia patrimonial de bacharéis que também vai se tornando moderna. A maior autonomia dos militares manifestar-se-á pela primeira vez na proclamação da República, no governo Deodoro da Fonseca, e principalmente no governo Floriano Peixoto. Os esforços da oligarquia para cooptar os militares, entretanto, acabam vitoriosos a partir do final de 1894, com a eleição de Prudente de Moraes para a presidência da República. “É preciso assinalar, continua Martins, que, para esses novos atores, o conhecimento passa de ornamental a instrumental na medida em que os militares e os engenheiros transformam o conhecimento ‘científico’ em instrumento de ascensão social e de recurso político análogo ao conhecimento análogo e rival ‘jurídico’ do bacharel”. 16 É no Exército que ocorre o primeiro desenvolvimento de uma moderna burocracia pública no Brasil. Só é possível se falar em um exército profissional no Brasil após a Guerra do Paraguai, mas, apesar de presença militar na proclamação da República, esse exército é ainda incipientemente organizado. Os oficiais se dividem em ‘científicos’ e ‘tarimbeiros’, ou seja, entre aqueles que possuem um curso superior, e os limitados à carreira no próprio Exército. Essa é uma classificação significativa porque sugere que começa a se formar uma burocracia interna ao Estado, e o Exército é a instituição que funciona como uma agência a promover a mobilidade social de uma elite técnica ou intelectual proveniente da baixa classe média. Conforme observa Edgard Carone (1972: 353), “o Exército representa, no Império, uma das poucas oportunidades de trabalho e de ascensão, numa sociedade em que a pouca mobilidade e a estagnação impedem à sociedade brasileira quaisquer veleidades”. Na República, devido à imigração que ganha força a partir de meados do século XIX, e à industrialização ocorrida em São Paulo, a partir do final do século, as classes médias urbanas começam a se desenvolver. Os empresários industriais serão essencialmente imigrantes de classe média (Bresser-Pereira, brasileira”. 16 Itálicos do autor. 42 1964), ou seja, imigrantes que já chegam ao Brasil com um nível econômico e educacional de classe média. A ascensão social desse grupo será realizada na indústria, que, no entanto, ainda não tinha condições de empregar administradores de nível médio – o surgimento de uma burocracia privada de administradores de empresas só ocorreria depois da Revolução Industrial desencadeada em 1930 (Bresser-Pereira, 1962) porque a partir de então o tamanho das empresas aumenta consideravelmente e os empresários, embora conservando o controle das empresas, passam a oferecer à população um número crescente de oportunidades de emprego de nível médio. O desenvolvimento organizacional do exército era obstaculizado pela oligarquia que se sentia mais à vontade com a Guarda Nacional. Desde o Império as funções do Exército haviam sido limitadas às de defesa contra o inimigo externo, enquanto se atribuía à Guarda Nacional o papel de manutenção da ordem interna. A Guarda Nacional era uma instituição que servia principalmente as oligarquias regionais possuindo características típicas dos exércitos, ou seja, de organizações militares permanentes. Conforme observa Sodré (1968: 127), “na prática, e em especial no que diz respeito ao recrutamento, é que se verifica a diferença entre uma e outra organização, o carinho dedicado à Guarda Nacional, o desprezo dedicado ao Exército”. A luta pela extinção da Guarda Nacional e pelo recrutamento obrigatório como uma prerrogativa do Exército será a luta política e institucional principal que os militares brasileiros desenvolveram nos primeiros 30 anos da República Velha, até serem vitoriosos. Para essa vitória, são importantes as reformas que já começam em 1907-8, com Hermes da Fonseca como Ministro da Guerra, e que ganham intensidade com a vinda da Missão Francesa, em 1915. Essas reformas dão finalmente ao Exército um caráter de organização burocrática moderna, profissional. Também será fundamental a mobilização dos oficiais de patentes mais baixas, primeiro os ‘jovens turcos’, que fazem estágios na Alemanha, e depois os tenentes que darão origem, a partir dos anos 1920, ao movimento do tenentismo. Talvez, entretanto, o fato político mais significativo seja a aliança política que se estabelece entre os militares do Exército e a nova burguesia industrial nacional que prospera em São Paulo. Essa aliança se estabelecerá a partir da criação, pela alta burguesia paulista, após a Primeira Guerra Mundial, de diversas ligas políticas entre as quais se salienta a Liga de Defesa Nacional, que unirá empresários e militares na luta pelo serviço militar obrigatório. A burguesia paulista “aproveita-se da nova campanha do serviço militar obrigatório para gravitar outra vez em 45 Revolução de 1930 marcou a integração da classe média moderna nas classes dirigentes brasileiras. Mas não apenas da classe profissional, que se manifestou principalmente ao nível do Exército e dos tenentes. Também da classe média burguesa - da burguesia industrial que não participou ativamente da revolução mas foi afinal sua grande beneficiada, porque a partir de 1930 o desenvolvimento industrial brasileiro ganha um grande e decisivo impulso, e porque Getúlio Vargas, membro da velha oligarquia, teve visão política e, compreendendo que o desenvolvimento econômico do país dependia da industrialização, tratou de integrar a burguesia industrial em um pacto político informal, nacional-desenvolvimentista, que denomino Pacto Popular-Nacional. 18 A partir da disputa ocorrida nos anos 1960 entre a escola de sociologia de São Paulo e o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) pelo monopólio do conhecimento sociológico legítimo, formou-se uma espécie de ‘consenso’ quanto ao caráter não-burguês mas oligárquico da Revolução de 30, e, portanto, da sua importância menor na história brasileira. Não é o caso, aqui, de resenhar essa visão equivocada que, ao rejeitar a possibilidade de uma burguesia industrial nacional no país, renunciou também à idéia de Nação. Hoje, essa questão está superada: sabemos que 1930 foi um divisor de águas da história brasileira, que a Revolução Industrial brasileira começou então marcando o fim do Estado Oligárquico e o início do Estado Nacional-Desenvolvimentista. Esta transformação, entretanto, só foi possível porque a própria oligarquia se dividira regionalmente, os setores voltados para o mercado interno dessa oligarquia se aliando às camadas médias urbanas na luta por uma maior participação política. Nos termos de Nelson Werneck Sodré (1962: 322), “desde o momento em que a classe dominante se apresentava cindida, surgia a possibilidade de recompor a aliança entre os setores daquela classe e os grupos atuantes da classe média”. O comando coube a um político autoritário e nacionalista cujo liberalismo e positivismo da juventude, importados da Europa, cederam à realidade de um país que não havia ainda realizado a sua Revolução Capitalista mas apenas sua Revolução Mercantil. Getúlio Vargas liderou uma 18 A partir de 1930 teremos quatro pactos ou coalizões políticas informais: o Pacto Nacional-Popular (1930- 1960), o Pacto Popular-Nacional (1964-1977), o Pacto Popular-Democrático (1977-1987), e o Pacto Liberal- Dependente (1990-...). Os períodos vazios são de crise. Todos os pactos são burgueses, pois contam com a participação da classe capitalista; são populares quando contam com a participação dos trabalhadores; são nacionais quando rejeitam com razoável êxito a dependência (Bresser-Pereira, 1968/2003). 46 coalizão política heterogênea, a Aliança Liberal, para realizar a revolução, e, depois, gradualmente, sem plano mas com sentido de oportunidade, capacidade de conciliação, espírito republicano, e visão do futuro, estabeleceu uma nova coalizão política baseada na aliança entre os setores substituidores de importação da velha oligarquia, os empresários industriais, os técnicos e os militares do governo, e os trabalhadores urbanos. 19 Antes de 1930 não havia um Brasil feudal, como os intérpretes da primeira metade do século XX supuseram, mas houve um capitalismo patriarcal e mercantil, que, durante a Primeira República, esteve sob o domínio da burguesia cafeeira paulista. Nesse período, entretanto, ocorria em São Paulo a emergência de uma burguesia industrial de imigrantes e descendentes de imigrantes com pouca ou nenhuma capacidade de formulação e de atuação política. 20 Graças, porém, à liderança de Getúlio Vargas, e às condições favoráveis que se abriram para o Brasil com a crise do sistema central nos anos 1930, a burocracia pública moderna terá afinal um papel entre as classes dirigentes brasileiras em associação com a nova burguesia industrial manufatureira e com setores da oligarquia voltados para o mercado interno. Entre 1930 e 1964 essas três classes dirigirão o país em substituição à oligarquia agro-exportadora associada aos interesses externos. Durante 15 anos Vargas governará sob regime semi-autoritário ou abertamente autoritário (Estado Novo). O período autoritário trouxe consigo abusos, mas foi funcional para que a transição de poder se realizasse, para que a Revolução Nacional (a formação do Estado-nação) e a Revolução Industrial completassem a Revolução Capitalista. Antes não existia democracia, mas o regime eleitoral viciado impedia qualquer mudança – mudança que o sistema autoritário permitiu. O voto secreto alcançado logo após a Revolução de 1930 foi fundamental para que o poder não voltasse para a oligarquia agrário-exportadora em um país que ainda permanecia principalmente agrícola e pecuário. Conforme observa Pedro Cezar Dutra Fonseca (1989: 144 e 184), em sua análise dos governos Vargas, a Revolução de 1930 foi originalmente burguesa e oligárquica; obviamente não criou a burguesia industrial porque “hoje há vasta bibliografia mostrando a importância da indústria brasileira na República Velha”; mas se sua origem foi oligárquica e burguesa, seus resultados foram eminentemente burgueses ou capitalistas; “a partir de 1930 começou no Brasil um novo 19 A expressão “substituidor de importações” para caracterizar o setor da oligarquia agro-pecuária que participou de Revolução de 1930 é de Ignácio Rangel (1980: 47). 47 tipo de desenvolvimento capitalista. Em linhas gerais, este consistiu em superar o capitalismo agrário e comercial assentado nas atividades exportadoras de produtos primários, rumando para outro cuja dinâmica iria gradualmente depender da indústria e do mercado interno”. Conforme assinalou Octavio Ianni (1971: 13), “o que caracteriza os anos posteriores a 1930 é o fato de que ela cria condições para o desenvolvimento do Estado burguês.” No seio da burocracia pública foram os militares e, especificamente, os ‘tenentes’ que desempenharam um papel político decisivo. Virginio Santa Rosa (1933), San Tiago Dantas (1949) e Werneck Sodré (1968) explicaram o tenentismo como uma expressão da insatisfação das camadas médias, enquanto José Murilo de Carvalho (1978: 183) recusa essa tese afirmando que é preciso compreender o tenentismo no quadro da organização militar, já que “a sociologia tem demonstrado exaustivamente que as organizações possuem características e vida próprias que não podem ser reduzidas a meros reflexos de influências externas”. Outros a recusaram de maneira mais confusa por terem dificuldade teórica de admitir um papel para camadas médias urbanas no processo político. A oposição definida por Carvalho é interessante porque lança luz sobre o fenômeno do tenentismo, e o caracteriza como um movimento militar. Não há razão, entretanto, para se optar por uma ou outra explicação já que as duas são complementares. Conforme observa Maria Cecília Forjaz (1978: 20), “o comportamento político-ideológico dos tenentes só pode ser explicado pela conjugação de duas dimensões: sua situação institucional como membros do aparelho militar do Estado e sua composição social como membro das camadas médias urbanas”. O movimento tenentista, que surge das revoltas de 1922, 1924 e 1926, é um fenômeno político e militar original. Embora os tenentes tenham se revoltado contra a hierarquia do Exército – e não há maior afronta para uma organização militar burocrática do que isto – eles não foram expulsos do Exército, e as punições que sofreram afinal foram menores, porque eles se revoltavam em nome do prestígio e da missão do Exército. 21 Embora eles tenham participado de revoltas ou de revoluções, eles partilhavam uma ideologia essencialmente burguesa como a de Vargas. Não era, entretanto, uma ideologia liberal, mas uma ideologia nacionalista e intervencionista. O liberalismo é sem 20 A grande exceção foi Roberto Simonsen. 21 Conforme observa José Augusto Drummond (1986: 51) em seu estudo sobre o movimento tenentista, os tenentes “não perderam seu valorizado vínculo com as instituições militares e nem a sua patente de oficiais”. 50 criação do Conselho Federal do Serviço Público Civil, Vargas lança seu governo nessa empreitada. A Reforma Burocrática de 1936 que tivera como precursor o embaixador Maurício Nabuco, terá em Luiz Simões Lopes a figura política e administrativa principal. 24 Em seguida, a Carta Constitucional de 1937 dá um passo adiante com a exigência de concurso público para os funcionários públicos e com a previsão de um departamento administrativo junto à presidência da República. No ano seguinte, este último dispositivo se efetiva com a criação do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) que passou a ser o poderoso órgão executor da reforma. 25 Isto, entretanto, não significava que Vargas alimentasse ilusões quanto à possibilidade de um Estado organizado de forma plenamente ‘racional’ e de políticas públicas coerentes. Esse ideal tecnocrático que foi forte no período militar de 1964-85 inexistia em Vargas. Conforme assinalou Wirth (1970: XVI), “Getulio parecia satisfeitíssimo com um sistema contingente, um aglomerado ad hoc de grupos e personalidades em torno da presidência”. Com o Estado Novo, o autoritarismo brasileiro ressurgia com força mas agora revestido de um caráter modernizador. Para justificar a decisão arbitrária o governo apelou para a luta contra o comunismo e o integralismo, movimentos que haviam recentemente tentado tomar o poder, mas a sua verdadeira lógica estava na orientação de Vargas e de uma parte importante das elites nacionalistas brasileiras de levar a cabo a Revolução Nacional iniciada em 1930: de realizar a revolução modernizadora do país, dotá-lo de um Estado capaz, e promover a industrialização não obstante a insistência da oligarquia agrário-mercantil no caráter 23 Citado por Dutra Fonseca (1986: 160). 24 Maurício Nabuco foi o pioneiro da reforma burocrática no Brasil ao estabelecer os princípios do mérito no Itamaraty no final dos anos 1920. Entretanto, Luís Simões Lopes foi o principal empresário público da reforma. “Lopes é o principal empresário de políticas públicas no período 1934-1937, embora Nabuco jogasse um papel importante em iniciar o processo de definição da reforma, e Vargas tenha sido o empresário político durante todo o tempo” (Francisco Gaetani, 2005: 99). Luiz Simões Lopes continuaria seu trabalho de racionalização do aparelho do Estado através da criação, em 1944, da Fundação Getúlio Vargas, que, através da Escola Brasileira de Administração Pública, tornar-se-ia o centro principal de estudos sobre a administração pública no país. Em 1954, cria em São Paulo a Escola de Administração de Empresas de São Paulo, e, nos anos 60, seu Curso de Administração Pública. Sobre essa reforma é também significativa a contribuição de Lawrence S. Graham (1968). 25 O DASP foi criado pelo Decreto-lei 579, de junho de 1938. Era, essencialmente, um órgão central de pessoal, material, orçamento, organização e métodos. Absorveu o Conselho Federal do Serviço Público Civil que havia sido criado pela Lei n° 284, de outubro de 1936, a qual instituía também o primeiro plano geral de classificação de cargos e introduzia um sistema de mérito. 51 ‘essencialmente agrícola’ do Brasil. Embora a Revolução Nacional fosse uma revolução burguesa, o Estado Novo dará ênfase no papel da técnica e dos técnicos ou profissionais cujo papel, nas empresas e principalmente na organização do Estado, era estratégico para o desenvolvimento econômico buscado. Conforme observou Maria Celina D’Araujo (2000: 31) “o Estado Novo enalteceu a técnica em contraposição à política, veiculada como o lado sujo dos ‘interesses privados’”. Representou, assim, no plano administrativo, a afirmação dos princípios centralizadores e hierárquicos da burocracia clássica. Beatriz Wahrlich, cujo livro A Reforma Administrativa da Era de Vargas (1983) constitui a obra básica para a análise da Reforma Burocrática de 1936, assim resume as principais realizações do DASP: ingresso no serviço público por concurso, critérios gerais e uniformes de classificação de cargos, organização dos serviços de pessoal e de seu aperfeiçoamento sistemático, administração orçamentária, padronização das compras do Estado, racionalização geral de métodos. 26 Além disso, o DASP cooperou no estabelecimento de uma série de órgãos reguladores da época (conselhos, comissões e institutos), nas áreas econômica e social. E as primeiras empresas estatais, como a Companhia Nacional de Álcalis e principalmente a Companhia Siderúrgica Nacional de Volta Redonda, foram criadas, abrindo novos espaços para o crescimento e o prestígio da burocracia pública. O DASP foi o agente principal da Reforma Burocrática. Estava inspirado nos princípios da ‘administração pública científica’ que dominava então o pensamento administrativo nos Estados Unidos, e sua ênfase fundamental foi na criação de um quadro de administradores públicos profissionais no Brasil admitidos por concurso público. Seu trabalho não foi fácil nem linear. E mereceu muitas críticas como as de Mario Wagner Vieira da Cunha (1963: 92): “seu defeito maior foi ter procurado criar um divórcio, inocente ou não, entre a administração pública e o quadro social e econômico a que devia servir... A implantação de suas soluções resultou uma disciplina artificialmente sobreposta às reais condições de trabalho”. Este problema se revelava, por exemplo, na distinção forte entre os servidores de carreira, concursados, e os ‘extranumerários’. Com isso se buscava a separação entre uma classe média de altos servidores públicos e uma classe baixa de 26 Beatriz Wahrlich (1915-1994) foi uma das fundadoras da EBAP (Escola Brasileira de Administração Pública) da Fundação Getúlio Vargas. Pela qualidade de seus estudos, de sua pesquisa e de seu ensino, merece o título de patrona intelectual da Administração Pública no Brasil (Wahrlich, 1970, 1983, 1984). Estudou profundamente a Reforma Burocrática de 1936/38, e foi a principal teórica da Reforma Desenvolvimentista de 1968 – uma reforma que pré-anunciou a Reforma da Gestão Pública ou Reforma Gerencial do Estado de 1995. 52 trabalhadores do Estado – uma distinção real mas que enfrentava problemas porque já então estava claro o desenvolvimento econômico rápido por que passava o país, exigindo a admissão, nos quadros do Estado em sentido amplo, inclusive das empresas estatais, de administradores de alto nível que não faziam parte das carreiras de Estado. Por outro lado, se admitiam por concurso e se garantiam estabilidade a servidores de baixo nível que deveriam ser antes extranumerários, enquanto o clientelismo político, que retorna a partir da democratização, em 1945, levava à admissão no serviço público de pessoal sem as necessárias qualificações. Não há dúvida, entretanto, que graças a essas iniciativas foi possível ao Brasil ser um dos primeiros países em desenvolvimento a realizar a primeira grande reforma administrativa do Estado, que é a Reforma Burocrática, já nos anos 1930. Ainda que, de um lado, ela estivesse sistematicamente ameaçada pelo clientelismo, e, de outro, não estivesse aberta às necessidades impostas pela dinâmica do crescimento econômico, ela estabeleceu as bases de uma administração pública profissional no Brasil. A criação do DASP, entretanto, interessa-nos mais neste trabalho na medida em que representou uma formalização do crescente poder político da burocracia pública no Brasil. Simões Lopes foi um homem muito próximo a Getúlio Vargas, o que facilitou que este usasse o órgão com um escopo muito mais amplo do que o da reforma do aparelho do Estado. O DASP passou a órgão de assessoramento técnico por excelência do presidente. O DASP era chamado a opinar sobre os mais diversos assuntos que estivessem em discussão dentro do governo, de forma que assim Getúlio Vargas podia usar os argumentos técnicos do órgão para suas decisões políticas. Em certos momentos, o papel dos profissionais era o de meramente justificar as decisões já tomadas, mas em muitos outros Vargas realmente se valia dos conselhos e sugestões dos técnicos ou dos intelectuais públicos que se reuniam em torno do DASP e mais amplamente em torno do governo para tomar suas decisões. Não apenas através do DASP, mas dos Conselhos de Geografia e de Economia e Finanças, e do Ministério da Educação, que também foi uma fonte de pensamento da época, e de outros órgãos públicos que foram criados a partir de 1930, o Estado brasileiro se reorganizou, ganhou consistência administrativa e um sentido nacional para sua ação, ao mesmo tempo em que uma rígida disciplina fiscal o mantinha sadio no plano financeiro. Com isso, estava sendo construído um Estado forte – capaz – um Estado cuja alta burocracia pública passava, pela primeira vez, a ter um papel decisivo no desenvolvimento econômico brasileiro: um Estado que deixava de ser 55 comércio internacional que fora a principal arma ideológica do imperialismo liberal para dificultar a industrialização dos países periféricos e dependentes. A política econômica do Brasil desde 1930 constituíra-se em uma antecipação a essas críticas da mesma forma que as políticas fiscais expansionistas de Franklin Delano Roosevelt haviam antecedido a Teoria Geral de Keynes. Por outro lado, as idéias dos grandes intelectuais do ISEB, Guerreiro Ramos, Ignácio Rangel, Vieira Pinto e Hélio Jaguaribe serão fundamentais para legitimar a industrialização substitutiva de importação no plano político. Serão eles que diagnosticarão e defenderão com mais vigor e coerência o pacto político formulado por Getúlio Vargas e a correspondente estratégia nacional de desenvolvimento – o nacional-desenvolvimentismo. São eles que mostram que o Brasil fora uma semicolônia até 1930, dominada por uma oligarquia agrário-mercantil aliada ao imperialismo, e que a partir de 1930 começa a Revolução Industrial e Nacional Brasileira, baseada em uma coalizão política formada pela burguesia industrial, a burocracia pública, os trabalhadores, e a oligarquia substituidora de importações. Esta análise ganha consistência e força quando, em 1950, Getúlio Vargas é eleito presidente da República com uma grande maioria de votos. Nos quatro anos que se seguem, até seu suicídio em 1954, o nacional-desenvolvimentismo de Vargas será conduzido sempre por ele mesmo, e por uma assessoria econômica da Presidência da República liderada por dois altos burocratas públicos – Rômulo de Almeida e Jesus Soares Pereira. Essa assessoria logra restabelecer as bases do desenvolvimento nacional a partir da criação de novas empresas estatais para se encarregar do desenvolvimento da infra-estrutura econômica do país; a Petrobrás e a Eletrobrás serão os principais resultados desse trabalho. Por outro lado, um outro grupo de técnicos mais liberais e mais comprometidos com a cooperação internacional, do qual fazem parte Ary Torres, Roberto Campos, Lucas Lopes e Glycon de Paiva, reúne-se em torno da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, que, no entanto, sob o comando de Vargas, realiza um trabalho que antes complementa do que neutraliza a tarefa do primeiro grupo. Contribuía para isso o fato de que esses trabalhos e debates se realizavam em um quadro intelectual em que o planejamento econômico do desenvolvimento estava legitimado: o quadro da Teoria Econômica do Desenvolvimento (development economics) que nasce dos estudos de Rosenstein-Rodan, Nurkse, Myrdal, Lewis, Singer, Rostow, Celso Furtado e Raul Prebisch – um grupo de economistas do desenvolvimento originados no processo de criação 56 das Nações Unidas e, indiretamente do Banco Mundial. O liberalismo da época, portanto, era muito relativo, nada tendo a ver com o neoliberalismo que surgiria nos Estados Unidos nos anos 1960 e se tornaria dominante nos anos 1980. As novas empresas estatais e a decisão do Estado de investir na infra-estrutura econômica representavam vitórias para a ala nacionalista da burocracia pública econômica que assim concretizava seus planos de desenvolvimento e ao mesmo tempo criava postos de trabalho, prestígio e poder para si própria. Sua grande vitória, porém, será a criação do BNDE, em 1952, por proposta do Ministro da Fazenda da época, o empresário industrial de São Paulo, Horácio Lafer. A idéia começara a ser estudada em 1942, no âmbito da Comissão Cooke ,enviada por Franklin Roosevelt a pedido de Vargas para promover o desenvolvimento industrial do Brasil. Corwin D. Edwards, membro da Comissão, da qual participavam alguns industriais e o ex-tenente João Alberto, propõe a criação de um banco de investimento, e o tema passa a ser seriamente estudado pelo governo. Ainda nesse ano Vargas encarrega o DASP de formar uma comissão para estudar o problema, da qual farão parte o próprio João Alberto, Simões Lopes e dois banqueiros, Gastão Vidigal e Gesteu Pires. Os industriais recebem a idéia com entusiasmo. Roberto Simonsen passa a ser um ativo defensor da idéia. Já naquele momento, entretanto, ficava clara a constituição, dentro da tecnoburocracia pública e, mais amplamente, dentro das elites técnicas e industriais do país, de duas alas, a nacionalista e a liberal, que terão como seus principais expoentes o empresário Roberto Simonsen e o economista Eugênio Gudin, respectivamente.. O debate que se trava então entre os dois, o primeiro defendendo a industrialização apoiada por uma ativa política de planejamento, e o segundo afirmando a vocação essencialmente agrária do Brasil e rejeitando a intervenção do Estado, ficou na história do país. O Banco do Brasil se encarregava, então, do financiamento da produção, e, com a criação da Carteira de Exportação e Importação, CEXIM, passa a financiar o comércio exterior brasileiro. Continuava, entretanto, sem um órgão apropriado o financiamento dos investimentos industriais. Isto só ocorrerá em 1952, depois da volta de Vargas ao governo. Forma-se, então, a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, de 1951. Essa comissão fora antecedida, durante o governo Dutra, em 1948, por uma missão americana, a Missão Abink, que tivera como contraparte brasileira Otávio Gouvêa de Bulhões; não obstante seu corte liberal, aceitara o projeto de se estabelecer no país um “capitalismo industrial”. Esta proposta vai ganhar consistência no seio da Assessoria 57 Econômica e da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos criada para discutir e formular um plano de desenvolvimento para o país e seu financiamento internacional. Embora dominada pelo campo liberal, a Comissão Mista propõe que o Estado se encarregue da infra-estrutura (energia, transportes, comunicações) enquanto a iniciativa privada e estrangeira se encarregariam da mineração (principal interesse estratégico dos Estados Unidos naquela época em relação ao Brasil) e o Estado brasileiro garantiria o acesso de empresas americanas a seu mercado. Havia, naturalmente, um conflito entre os dois grupos de tecnoburocratas públicos, principalmente porque o grupo nacionalista queria o monopólio estatal do petróleo, enquanto que o segundo o rejeitava. Mas estavam os dois grupos igualmente voltados para o planejamento econômico e a montagem de uma infra-estrutura de transportes e de energia de base estatal. Na política da Comissão Mista já estava delineado o que viria a ser o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Para obter os recursos americanos o governo deveria apresentar uma contrapartida nacional – um problema que o Ministro da Fazenda resolve pela criação de um suplemento de 15% sobre o imposto de renda. Colocava-se, então o problema da definição do órgão que implementaria o plano qüinqüenal que estava sendo elaborado a partir dos novos recursos financeiros. Em fevereiro de 1952, Vargas submete ao Congresso, a partir do conselho de Lafer, mensagem propondo a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – uma autarquia autônoma que serviria de base para o planejamento econômico e o financiamento dos investimentos necessários à infra-estrutura e à industrialização; uma instituição que tem tido um papel decisivo no desenvolvimento econômico do país desde então. Além de contribuir para o desenvolvimento econômico, o BNDES passaria a ser, a partir de então, e até hoje – não obstante todos os acidentes por que passou a burocracia pública brasileira – uma das bases da autonomia e de poder da burocracia pública brasileira. O BNDES, assim como o Banco Central, a Petrobrás, e alguns outros órgãos orientados para a coordenação econômica, seriam a materialização da estratégia de insulamento burocrático que caracteriza o desenvolvimento econômico de países como o Brasil em que a burocracia pública joga um papel decisivo, mas a democracia nascente obriga os políticos ao exercício da prática do clientelismo. Enquanto os órgãos pertencentes principalmente aos ministérios sociais são objeto de repartição política entre os partidos que apóiam o governo, e os órgãos 60 revoluções se consumam, consuma-se também a Revolução Capitalista: o Brasil já não era mais uma sociedade mercantil e patriarcal, mas uma sociedade capitalista industrial na qual a acumulação de capital e a incorporação de progresso técnico passavam a fazer parte integrante do processo econômico. Este já é um mundo diverso do mundo patrimonialista descrito por Faoro, que, congelando a sociedade e o Estado nessa formação, pretende que o Governo Vargas foi ainda uma expressão do Estado patrimonial. Faoro é claro a respeito: “De D. João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações... a persistência secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase progressiva, da experiência capitalista.” Ora, ao insistir nesta tese, Faoro (1957/75: 733-736) ignora a diferença fundamental entre o patrimonialismo e a burocracia racional-legal, que Weber tanto salientou. Não considera o caráter essencialmente tradicional do Estado patrimonial, em oposição ao caráter moderno, racional- legal, do capitalismo industrial e da burocracia moderna. Erro que Sérgio Buarque de Holanda (1936/69: 106), por exemplo, embora escrevendo muito antes, não cometeu quando afirmou: “O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático, quanto mais caracterizados estejam os dois tipos”. Entretanto, um acontecimento não previsto– a Revolução Cubana de 1959 que em breve se transforma em um episódio chave na Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética – mudará no plano político o quadro otimista que o governo Kubitschek deixara, enquanto uma crise econômica interna aprofundará a crise política. Durante o governo Collor a burocracia pública viverá em sobressalto devido à política radical que as autoridades econômicas adotam para reduzir as despesas do Estado. Ocorre então uma tentativa de ‘desmonte’ do estado. Existe, entretanto, uma iniciativa positiva que é a tentativa de transferir para o setor público a ‘estratégia da qualidade total’ – uma forma de gestão bem sucedida no setor privado. Esta iniciativa apontava para o novo. O mesmo não se pode dizer da criação das ‘câmaras setoriais’ – segundo Eli Diniz (1997: 139), “esse mecanismo plano de governo abrangente como foi aquele programa. 61 representou a retomada das experiências – utilizadas em vários graus de êxito no passado – voltadas para a construção de espaços de elaboração de metas e diretrizes acordadas entre elites estatais e representantes da iniciativa privada”. Esta iniciativa foi recebida calorosamente por vários setores que esperavam ver restabelecida a antiga forma de associação entre os empresários e a burocracia pública, mas era uma tentativa de se voltar ao passado em um quadro em que o Estado, totalmente afogado na crise fiscal e na alta inflação, não tinha mais poder para intervir no plano econômico de forma efetiva. O maior ‘sucesso’ das câmaras foi o chamado Acordo das Montadoras que, significativamente, beneficiou um conjunto de empresas multinacionais. Burocracia pública no poder: 1964-1984 O Brasil, no final dos anos 1950, no quadro da estratégia nacional-desenvolvimentista era um país em pleno desenvolvimento econômico que havia praticamente completado sua Revolução Industrial e Nacional. Em 1959, porém, ocorre a Revolução Cubana – uma revolução que inicialmente era apenas anti-oligárquica e antiimperialista, mas que, no quadro da Guerra Fria, e dado o fato de os Estados Unidos não aceitarem a nacionalização de empresas americanas que os revolucionários começavam a realizar, transforma-se em uma revolução comunista apoiada pela União Soviética. Wright Mills viajou para Cuba logo após a revolução, verificou que revolução não era comunista, e apelou a seus compatriotas americanos que a aceitassem ao invés de lançar o país nos braços do comunismo. Seu Listen Yankees (1960), entretanto, não foi ouvido, e Fidel Castro caminhou em direção ao comunismo. Não cabe aqui discutir quais foram as conseqüências dessa revolução para o povo cubano; para a América Latina e particularmente para o Brasil, porém, não há dúvida que foram desastrosas. A revolução socialista em Cuba, em um momento em que a economia da União Soviética estava ainda crescendo aceleradamente e Kruschev prometia alcançar em breve o nível de desenvolvimento dos Estados Unidos, levou imediatamente a uma radicalização política de setores importantes da esquerda brasileira que imaginaram poder repetir aqui a experiência cubana. Esta radicalização aconteceu aqui em um momento em que, à crise econômica provocada pelos gastos excessivos e pela apreciação do câmbio durante o governo Kubitschek, somava-se a crise política causada pela eleição e subseqüente renúncia 62 do presidente Jânio Quadros, e pela assunção à presidência da república de João Goulart. Goulart, por suas tendências de esquerda, não contava com a confiança da burguesia que agora se unificava politicamente, depois de haver permanecido dividida durante 30 anos, nem com a confiança dos militares que também rejeitavam radicalmente o socialismo ou o comunismo. O resultado da radicalização da esquerda e do alarmismo da direita, em um quadro de crise econômica e instabilidade política, foi o golpe militar de 1964 que ocorre com o apoio dos Estados Unidos. O Pacto Popular-nacional de Vargas reunindo burguesia industrial, burocracia política e trabalhadores, que estava em crise desde 1960, rompeu-se definitivamente. O novo pacto que reunirá toda a burguesia e a burocracia política na qual os militares voltam a ser preeminentes é o Pacto Burocrático-Autoritário. O Ciclo Nação e Desenvolvimento que caracterizara a sociedade durante todo a primeira metade do século estava encerrado na medida em que os dois setores mais nacionalistas da classe capitalista e da burocracia pública, respectivamente os empresários industriais e os militares, haviam se aliado aos americanos. Um pouco mais tarde, no final dos anos 1960, começaria, no âmbito da sociedade, outro ciclo que denomino Ciclo Democracia e Justiça Social – um ciclo no qual a sociedade esquecia a idéia de Nação aceitando a dependência e supunha o desenvolvimento econômico assegurado (estávamos em pleno ‘milagre econômico’); mas, em compensação, definia como objetivos sociais básicos a correção das duas distorções que aquele desenvolvimento causava: o autoritarismo e a desigualdade. No âmbito do Estado, entretanto, a estratégia nacional-desenvolvimentista teria prosseguimento no quadro de um pacto político no qual a burocracia política, principalmente militar, mas também civil, matinha sua aliança com a burguesia, e principalmente com a burguesia industrial. O modelo político, além de autoritário, era excludente do ponto de vista político e social, afastando os trabalhadores e as esquerdas do poder, e promovendo uma forte concentração de renda da classe média para cima, no quadro do que chamei ‘modelo de subdesenvolvimento industrializado’. 31 31 Analisei esse novo modelo originalmente em Bresser-Pereira (1970); incluí e ampliei análise em Desenvolvimento e Crise no Brasil (1968/2003: 168-178) a partir de sua terceira edição, de 1972; e a completei no livro Estado e Subdesenvolvimento Industrializado (1977). Neste livro faço ampla discussão da classe média profissional e da sua burocracia pública. 65 especial ao desenvolvimento de recursos humanos para o sistema de planejamento. Já o DASP, restrito à administração do pessoal, mantinha-se preso aos princípios da Reforma Burocrática de 1936, que, no entanto, não lograva levar adiante. O conceito de “carreira” manteve-se limitado aos escalões inferiores, enquanto os cargos de direção superior passavam a ser preenchidos a critério da Presidência da República, sendo o recrutamento realizado especialmente através das empresas estatais, de acordo com a filosofia desenvolvimentista então vigente. Em 1974, por proposta de Mario Henrique Simonsen, então Ministro da Fazenda, é criado o CDE (Conselho de Desenvolvimento Econômico) constituído pelos ministros da área econômica com a função de coordenar a ampla política econômica do regime militar. O novo conselho, que foi amplamente estudado por Adriano Nervo Codato (1997: 341) procurou superar a heterogeneidade política e organizacional que existe em todo Estado moderno através de um processo forte de centralização: “o ‘fechamento’ do aparelho do Estado, operado pelo governo Geisel com a reforma administrativa iniciada em 1974, exerceu impacto não desprezível nos mecanismos de intermediação de interesses”. Entretanto, era incompatível com um sistema no qual os empresários buscavam se relacionar diretamente com as diversas agências do Estado e delas obter benefícios nem sempre coerentes entre si. Por isso, afirma Codato, “o CDE foi antes vencido não propriamente por sua incapacidade para coordenar um Estado fragmentado”, mas, no quadro do processo de transição democrática que começaria a ocorrer logo depois, “pela ação política do conjunto da burguesia nacional”. A partir de 1979, Hélio Beltrão, que havia participado ativamente da Reforma Desenvolvimentista de 1967, volta à cena, agora na chefia do Ministério da Desburocratização do governo Figueiredo. Entre 1979 e 1983 Beltrão transformou-se em um arauto das novas idéias; criticando, mais uma vez, a centralização do poder, o formalismo do processo administrativo, e a desconfiança que estava por trás do excesso de regulamentação burocrática, e propondo uma administração pública voltada para o cidadão. Seu Programa Nacional de Desburocratização foi por ele definido como uma proposta política visando, 66 através da administração pública, “retirar o usuário da condição colonial de súdito para investi-lo na de cidadão, destinatário de toda a atividade do Estado”. 34 Em síntese o Decreto-Lei 200 foi uma tentativa de superação da rigidez burocrática, podendo ser considerado como um primeiro momento da administração gerencial no Brasil. A reforma teve, entretanto, duas conseqüências inesperadas e indesejáveis. De um lado, ao permitir a contratação de empregados sem concurso público, facilitou a sobrevivência de práticas clientelistas ou fisiológicas. De outro lado, ao não se preocupar com mudanças no âmbito da administração direta ou central, que foi vista pejorativamente como ‘burocrática’ ou rígida, deixou de realizar concursos e de desenvolver carreiras de altos administradores. O núcleo estratégico do Estado foi, na verdade, enfraquecido indevidamente através da estratégia oportunista ou ad hoc do regime militar de contratar os escalões superiores da administração através das empresas estatais. Desta maneira, a reforma administrativa prevista no Decreto- Lei 200 ficou prejudicada, especialmente pelo seu pragmatismo. Faltavam-lhe alguns elementos essenciais para que houvesse se transformado em uma reforma gerencial do Estado brasileiro, como a clara distinção entre as atividades exclusivas de Estado e as não-exclusivas, o uso sistemático do planejamento estratégico ao nível de cada organização e seu controle através de contratos de gestão e de competição administrada. Faltava-lhe também uma clara definição da importância de fortalecer o núcleo estratégico do Estado. Graças ao ajustamento macroeconômico, ao fortalecimento das empresas estatais, à nacionalização da telefonia e ao grande desenvolvimento que passa a conhecer a partir de então, sob o comando do Ministro das Comunicações, Euclides Quandt de Oliveira, e às reformas, principalmente tributária e administrativa, o Estado se fortalece, seu projeto de industrialização recupera substância, e o país volta ao desenvolvimento econômico de forma acelerada. Contribui para o ‘milagre econômico’ (1968-74) que então ocorre uma nova política macroeconômica pragmática comandada desde 1968 por Antonio Delfim Netto, que percebe que a inflação residual tinha antes caráter administrado ou de custos do que de demanda; seguindo então os ensinamentos de Ignácio Rangel, aproveita a oportunidade e adota uma política expansiva que leva a uma queda da taxa da inflação. Enquanto isso ocorria 34 Hélio Beltrão (1984: 11); ver Wahrlich (1978b). 67 no plano macroeconômico, no seio da burocracia pública no qual os políticos haviam perdido poder, a nova estrutura do aparelho do Estado e o fortalecimento do núcleo de empresas estatais facilitam o processo de desenvolvimento econômico do lado da oferta agregada. A liderança do esforço de planejamento da oferta que ocorre então caberá, durante grande parte dos anos 1970, ao Ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso. O êxito econômico do empreendimento leva a um novo aumento do poder e influência da tecnoburocracia pública. E levam, também, a um aprofundamento da sua aliança com a burguesia industrial através da execução dos dois PNDs. Não obstante o êxito da burocracia pública em promover o desenvolvimento econômico, e os esforços do governo de implementar a Reforma Desenvolvimentista através do Ministério do Planejamento, a crítica do sistema administrativo brasileiro porque não se adaptar ao modelo clássico de administração pública continuava viva, e vai aparecer principalmente no estudo realizado por Edson Nunes (1984) que vê nessas práticas um obstáculo central ao desenvolvimento econômico do país e a estratégia de insulamento burocrático como a forma de contornar o problema. Embora essa crítica fosse compreensível, não era, entretanto, inteiramente justificada. O clientelismo que havia ressurgido em 1946 com a primeira democratização, voltaria em 1985, com a redemocratização. Durante o regime militar, porém, ele permanece presente, sem, entretanto, impedir que o Estado realizasse seu papel de promoção do desenvolvimento econômico. Isto foi possível porque através do sistema paralelo havia surgido uma burocracia pública de alta qualidade, bem preparada, bem paga, que teve um papel fundamental na execução dos projetos de desenvolvimento industrial de então. Forma-se, então, no país, dentro da burocracia pública, não obstante a mobilidade dos altos burocratas, uma nítida clivagem entre os altos funcionários públicos e os dirigentes das empresas estatais. Na pesquisa que Luciano Martins (1985: 72 e 208) dirigiu, em 1976, “o problema central que se coloca é o das articulações entre o setor governo e o setor produtivo do Estado”: os executivos públicos do segundo setor ganham grande autonomia, seus salários se descolam dos dos funcionários, e os controles sobre eles passam a ser relativamente reduzidos. A forma de seu recrutamento é antes por cooptação do que por concurso; e sua auto-identificação é com a condição de ‘executivos’ e não de ‘funcionários’; na pesquisa com 107 altos servidores, 77% dos servidores do governo ou aparelho do Estado e 95% dos executivos das empresas estatais se 70 Estado brasileiro. Embora por outras vias, Gilda Portugal Gouvêa (1994), ao analisar a reforma financeira realizada no âmbito do Ministério da Fazenda entre 1983 e 1987 por um grande número de técnicos, entre os quais João Bastista de Abreu, Osires de Oliveira Lopes Filho, Maílson da Nóbrega e Yoshiaki Nakano, chega a conclusões semelhantes. O episódio que analisou, cujos últimos atos eu assinei como Ministro da Fazenda, foram o último grande momento da burocracia política brasileira – um grupo social que então já estava em plena crise. 71 4. TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA Os tempos gloriosos da burocracia política no poder, porém, estavam contados desde a derrota, nas eleições parlamentares de 1974, do partido modernizador-autoritário de apoio dos militares – a Arena. Esta derrota dá início a um processo de gradual distanciamento da burguesia brasileira do regime militar, que se transformará em rompimento depois do ‘pacote de abril’ de 1977 – um ato de aprofundamento do autoritarismo. A chegada à presidência da república. Em janeiro de 1974, do General Ernesto Geisel, um militar desenvolvimentista que liderava o ‘setor brando’ do regime autoritário abriu novas perspectivas para o país não apenas econômicas porque ele então define um ambicioso II Plano Nacional de Desenvolvimento que ignorava a crise mundial desencadeada com o choque do petróleo de 1973, mas também política porque, para aqueles que acreditavam que a dinâmica redemocratização se daria no entrechoque entre ‘brandos’ e ‘duros’, os primeiros passavam a ter o comando do país. O II PND propiciava um aprofundamento da aliança entre a burocracia política e os empresários. O sistema autoritário chegava a seu auge, mas os militares sentiam- se inseguros depois da afirmação democrática que representaram as eleições de 1974, quando um grande número de senadores do MDB, o partido da oposição, logra se eleger. Este fato explica por que o novo presidente, aconselhado pelo seu Chefe da Casa Civil, General Golbery do Couto e Silva, toma as primeiras iniciativas visando promover a abertura política que então é chamada por eles próprios de ‘distensão’. Dessa forma, os militares reconheciam a inevitabilidade da redemocratização, mas procuravam postergá-la através de um processo de redemocratização ‘lento e gradual’. O fato de que a economia mundial já entrara em retração desde 1973, entretanto, mostrava que esse projeto não tinha grande probabilidade de êxito, e que o início da verdadeira transição democrática – uma transição demandada pela sociedade – estava apenas à espera de uma crise do regime para se desencadear. Ainda no final de 1974, logo após a derrota eleitora, uma primeira crise se desencadeia a partir do discurso do economista liberal e ex-ministro da 72 fazenda, Eugênio Gudin, pronuncia ao receber o título de “Homem de Visão’ da revista Visão. Nesse discurso, Gudin que apoiara sempre os militares, faz, entretanto, uma crítica candente do processo de ‘estatização’ – de aumento do tamanho do aparelho do Estado e do grau de intervenção regulatória do Estado sobre a economia. Esta crítica ganha logo apoio dos empresários, que continuavam a apoiar o regime, mas que, através campanha pela desestatização, iniciavam o processo gradual de mudança do modelo político (Bresser-Pereira 1976). Em um primeiro momento, a crítica é impessoal. Crtitica-se a intervenção do Estado na economia sem indicar responsáveis. Mas aos poucos a parte mais vulnerável naquele momento da burocracia pública, a civil, passa a ser fortemente criticada pelos privilégios que inevitavelmente obtivera, por suas ‘mordomias’. Ilustra bem essa crítica uma grande reportagem com o título significativo, “Os superfuncionários”, publicada em duas partes por O Estado de S.Paulo (1976). Os abusos já haviam levado o governo a limitar os serviços de que poderiam se beneficiar burocratas e políticos, mas o decreto com esse objetivo logo ficou conhecido como “Lei das mordomias”. A crise que dará início ao processo de transição democrática ocorrerá em abril de 1977, quando o Presidente Geisel, diante de dificuldades que enfrenta em aprovar no Congresso um projeto de reforma do Poder Judiciário, fecha temporariamente o Congresso e muda a Constituição por decreto. O ‘pacote de abril’, como o conjunto de medidas autoritárias então promulgadas foi então chamado, causa uma reação forte em toda a sociedade, inclusive na burguesia. Pela primeira vez desde 1964, os empresários passam a manifestar insatisfação com o regime e a demandar o retorno da democracia. Desde o final do ‘milagre’, em 1974, a burguesia brasileira não se sentia mais tão identificada politicamente com os militares. Em 1975, a grande campanha contra a estatização que ela promove, era uma forma indireta de criticar o regime, e me levou a escrever um artigo com a pergunta no título, “estatização ou redefinição do modelo político?” (Bresser-Pereira 1975). A reação da burguesia ao pacote de abril confirmou que se tratava, realmente, de uma redefinição de alianças políticas que se delineava – o que me levou a escrever uma série de artigos na Folha de S.Paulo em 1977 e 1978 que se transformaram no livro O Colapso de uma Aliança de Classes (1978) – provavelmente o primeiro trabalho no Brasil analisando e prevendo a transição democrática que ocorreria alguns anos mais tarde. 75 assumir a liderança política do país porque lhes faltava como a toda a sociedade brasileira uma estratégia ou um projeto, e porque haviam se comprometido com o Plano Cruzado. Após seu fracasso, ao invés de perceberem que estava na hora de abrir a economia para torná-la mais competitiva, e de reformar o Estado para reconstruí-lo, ao mesmo tempo em que se administrava o câmbio e se impedia que a tendência à sobre-apreciação inviabilizasse o desenvolvimento industrial, insistiram, inclusive através da nova organização que criam em 1988, o IEDI, em lutar contra a abertura comercial e em defender o estabelecimento de uma política industrial indefinida, com isto se mantendo enfraquecida politicamente. Essa estratégia não fazia sentido dada a crise fiscal do Estado e a dimensão da dívida externa em que o país estava mergulhado. O discurso perdera começo, meio e fim. Em conseqüência abriu-se espaço para que as idéias neoliberais e “globalistas” entrassem de roldão no país a partir da quase-hiperinflação de 1990. 36 Por outro lado, a burocracia política ampliada que ganhara poder com a transição democrática, agitava de forma populista e irresponsável a bandeira de um nacional-desenvolvimentismo que, mesmo na sua versão responsável, já estava superado pelo fato de que o estágio de desenvolvimento econômico do país já não autorizava uma política protecionista e uma intervenção do Estado promovendo poupança forçada e investindo através de empresas estatais. Nos dois primeiros anos do regime democrático o novo grupo no poder ignorou a crise fiscal e a necessidade de rever a forma de intervenção do Estado na economia. O retorno da democracia havia transformado a retomada do desenvolvimento e a realização da justiça social em uma questão de vontade. Vargas nunca pensara desta forma. Era populista no plano político, não no da política econômica. Foi só no final de seu período, nos governos Kubitschek e João Goulart, que o populismo econômico caracterizara o nacional-desenvolvimentismo; agora voltara a caracterizar o Pacto Democrático-Popular de 1977. Estas ilusões pareceram confirmar-se quando o Plano Cruzado, concebido com competência a partir da teoria inercial da inflação, foi deturpado de forma grosseiramente populista, e durante um ano produziu uma falsa prosperidade. Após seu fracasso, houve uma tentativa de ajuste fiscal, correção da apreciação cambial, e renegociação da dívida externa através da securitização dessa dívida com um desconto durante minha passagem pelo Ministério da Fazenda (1987); essa tentativa, entretanto, não contou com o 36 Entendo por globalismo a ideologia nascida da globalização que afirma a perda de autonomia e relevância do 76 apoio necessário do restante do governo e da sociedade brasileira que testemunhava, perplexa, a crise do regime pelo qual tanto almejara. Ao invés do ajuste e da reforma, o país, sob a égide de uma coalizão política populista no Congresso – o Centrão – mergulhou em 1988 e 1989 no descontrole da política econômica e, no início de 1990, na hiperinflação. O Pacto Popular-Nacional, além de haver logrado restabelecer a democracia no Brasil, deixou como herança uma bela e generosa contribuição – a Constituição de 1988. Essa constituição reflete os ideais democráticos, sociais e nacionalistas da grande mobilização popular que foram as Diretas Já. Seu principal mérito foi haver definido com clareza os direitos civis, políticos e sociais dos cidadãos; dessa forma também definia os grandes objetivos políticos da nação: a liberdade ou a democracia, a segurança, o desenvolvimento econômico, a justiça social e a proteção do ambiente. No plano dos direitos sociais, seu maior avanço foi ter definido o direito universal dos brasileiros aos cuidados de saúde. Por haver feito essa definição ampla dos direitos sociais, a Constituição de 1988 foi insistentemente acusada pelo pensamento neoliberal e conservador por ser não ser realista e estabelecer direitos impossíveis de serem cumpridos. Entretanto, um dos papéis de uma constituição democrática é definir os valores e objetivos nacionais. Por outro lado, especialmente em relação ao direito universal à saúde, a Constituição de 1988 se revelou efetiva. Foi fundamental a existência do dispositivo constitucional para que o SUS (Sistema Único de Saúde) lograsse dotação orçamentária para garantir o atendimento de saúde a toda a população. No plano democrático, definiu naturalmente uma democracia representativa, mas abriu espaço para que esta se torne participativa através de uma série de dispositivos que implicam participação popular. No campo de desenvolvimento nacional, estabeleceu restrições ao controle estrangeiro em um número limitado mas necessário de setores. Estado no mundo moderno, em que prevaleceriam não apenas um mercado mas uma sociedade global. 77 5. A GRANDE CRISE DOS ANOS 1980 Os anos 1980 foram, portanto, anos de profunda crise. Crise econômica, crise política, crise principalmente da burocracia pública. E não apenas da burocracia pública militar mas também da civil. Afinal, ainda que o poder final, entre 1964 e 1984, tenha ficado com os militares, os burocratas públicos civis partilharam com eles e com a burguesia o poder. Uma crise econômica é um fenômeno de instabilidade macroeconômica que se manifesta pela queda da renda muitas vezes acompanhada do aumento da inflação. Já uma crise política, é uma crise de poder que, quando grave, se manifesta pela mudança do poder e da coalizão política que o sustentara. E se manifesta também pelo fato que fatos históricos novos impuseram uma redefinição da estratégia nacional de desenvolvimento – uma redefinição que a antiga coalizão não revela capacidade de fazer. No caso da crise brasileira dos anos 1980 tudo isto aconteceu e mais um fato: a nova coalizão – o Pacto Democrático Popular de 1977 – não tinha uma alternativa de desenvolvimento a propor. Tinha, sem dúvida, uma estratégia política – o restabelecimento da democracia – e uma estratégia social: a busca da redução do alto grau de injustiça social existente no Brasil através do aumento das despesas públicas na área social. Não tinha, entretanto, uma estratégia de desenvolvimento alternativa. Crise burocrática e republicana Neste quadro de crise geral, e de crise da própria burocracia pública que perdeu poder em 1984, o que ocorreu com ela? Poderíamos responder, primeiro, que a crise da burocracia pública havia sido apenas parcial, já que muitos dos seus setores, principalmente nos estados governados desde 1983 por governadores democráticos, ela já se aliara à grande coalizão democrática – o que é verdade. Segundo, poderíamos responder que, mesmo a nível federal, ela sabia que também seria necessária no regime democrático, de forma que não teria dificuldade em se adaptar. Finalmente, poderíamos dizer, reforçando a última tese, que o etos 80 que não implicam a participação dos estados e municípios, logra aumentar a carga tributária a seu favor. Retrocesso burocrático No plano político-administrativo, a transição democrática teve também um preço: o retrocesso burocrático de 1988. Contraditoriamente, entretanto, enquanto o país se descentralizava no plano da federação, através da Constituição de 1988, voltava a centralizar-se no plano administrativo, limitando drasticamente a autonomia das agências e empresas do Estado que o Decreto-lei 200 assegurara, e retornando aos ideais da Reforma Burocrática de 1936. O capítulo sobre a administração pública da Constituição de 1988 foi o resultado do esforço deliberado da burocracia pública que atribuiu à informalidade burocrática do regime militar expressa no Decreto-lei 200 e na administração paralela os problemas do Estado brasileiro, e convenceu os constituintes que estava na hora de voltar aos princípios da Reforma Burocrática de 1936 e a ‘completá-la’. Embora muitos de seus membros estivessem comprometidos com a onda de clientelismo que ocorreu com o advento da democracia, não hesitaram, geralmente usando argumentos de esquerda e democráticos, em influir para que a Constituição, e depois a legislação complementar que a seguiu – principalmente a Lei do Regime Jurídico Único –, adotassem uma combinação de princípios burocráticos clássicos com o estabelecimento de privilégios para si próprios. A administração pública voltava a ser hierárquica e rígida, a distinção entre administração direta e indireta praticamente desaparecia. O regime jurídico dos funcionários passava a ser único na União, e em cada nível da federação. As orientações desenvolvimentistas da administração pública, que vinham sendo implantadas no país desde 1967, foram mais que ignoradas, enquanto a burocracia aproveitava para estabelecer para si privilégios, como a aposentadoria com vencimentos plenos sem qualquer relação com o tempo e o valor das contribuições, e a estabilidade adquirida quase que automaticamente a partir do concurso público (Hochman, 1992). Um grande mérito, porém, teve a Constituição de 1988: exigiu concurso público para entrada no serviço público, reduzindo assim substancialmente o empreguismo que tradicionalmente caracterizou o Estado patrimonialista. 81 O retrocesso burocrático ocorrido em 1988 resultou da crença equivocada de que a desconcentração e a flexibilização da administração pública que o Decreto-Lei 200 teria promovido estavam na origem da crise do Estado, quando esta derivava, antes de mais nada, da crise fiscal a que levou a estratégia desenvolvimentista. Embora alguns abusos tenham sido cometidos em seu nome, a reforma de 1967 havia se constituído em um avanço pioneiro da história da administração pública brasileira. Em segundo lugar, resultou do ressentimento da velha burocracia situada nos cargos da administração direta contra a forma pela qual seus membros haviam sido tratados durante o regime militar, freqüentemente preteridos em relação aos administradores das empresas estatais. Em terceiro lugar, foi a conseqüência da perda, pela burocracia, em conjunto com seu aliado tradicional, a burguesia industrial, de um projeto nacional comum para o país: o projeto nacional-desenvolvimentista. Esse projeto estava esgotado, mas nada viera para substituí-lo a não ser a idéia correta, mas negativa, de que era necessário proceder o ajuste fiscal. Ora, quando um grupo social perde objetivos nacionais e, adicionalmente, se sente ameaçado, é natural que recorra ao método do salve-se quem puder – da busca de vantagens. Em quarto lugar, decorreu do fato de que a burguesia aderiu, sem restrições, à campanha pela desestatização que acompanhou toda a transição democrática pelo lado da direita. Esta campanha levou os constituintes a aumentar os controles burocráticos sobre as empresas estatais; este fato, somado ao seu uso imoderado para contrair dívida externa no final do regime militar, e, já nos anos 1990, à aceitação da determinação da ortodoxia convencional de que seus investimentos financiados fizessem parte do déficit público, tiveram como resultado tornar tais empresas gradualmente inviáveis do ponto de vista econômico, e facilitar uma privatização em parte necessária, mas que foi levada além do razoável ao incluir serviços públicos monopolistas ou quase-monopolistas. O retrocesso burocrático de 1988 foi acompanhado de mudanças organizacionais no aparelho do Estado federal. O DASP foi extinto em 1986, dando lugar à SEDAP - Secretaria de Administração Pública da Presidência da República, que, em janeiro de 1989, foi extinta, sendo incorporada na Secretaria do Planejamento da Presidência da República. Em março de 1990 renasce o DASP com a criação da SAF - Secretaria da Administração Federal da Presidência da República, que, entre abril e dezembro de 1992, foi incorporada ao Ministério do Trabalho, voltando a ser secretaria da presidência em 1993. Nesse processo de reorganização sob a égide do retorno à burocracia o órgão de treinamento do governo federal, 82 a FUNCEP, foi transformado na ENAP (Escola Nacional de Administração Pública) tendo como modelo a ENA (École Nationale d’Administration) da França. Por outro lado, foi criada a carreira dos gestores públicos (Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental) – uma carreira de altos administradores públicos que obviamente fazia falta no Brasil, mas que naquele momento recebeu uma orientação rigorosamente burocrática voltada para a crítica do passado patrimonialista, ao invés de se voltar para o futuro e para a modernidade de um mundo em rápida mudança, que se globaliza e se torna mais competitivo a cada dia. 39 Em síntese, o retrocesso burocrático ocorrido no país entre 1985 e 1989 foi uma reação ao clientelismo que dominou o país naqueles anos, mas também foi uma afirmação de privilégios corporativistas e patrimonialistas incompatíveis com o ethos burocrático. Foi, além disso, a conseqüência de uma atitude defensiva da alta burocracia, que, sentindo-se acuada, e injustamente acusada, defendeu-se de forma irracional. O resultado foi o desprestígio da administração pública brasileira, não obstante o fato de que esta seja majoritariamente formada por profissionais competentes, honestos e dotados de espírito público. 40 39 A mudança nesse sentido passaria a ocorrer em 1995 quando essa carreira é transformada em peça fundamental da Reforma Gerencial. 40 Sobre a competência e o espírito público da alta burocracia brasileira ver os livros de Schneider (1991) e Gouvêa (1994), e o trabalho de Hochman (1992). Escrevi os prefácios dos dois livros quando não imaginava que um pouco depois viria a ser Ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado. 85 em relação ao Brasil. Dele passam também a ser excluídos os empresários industriais e a burocracia pública que, entre 1930 e 1986, haviam sido as duas principais classes dirigentes. Tanto uma quanto a outra haviam ficado marcadas pelo fracasso do Plano Cruzado que as havia identificado com o protecionismo e o estatismo, as duas ‘bêtes noires’ da ideologia neoliberal que invadia o país naquele momento de forma triunfante. Através do acordo que o Brasil assina com o FMI em dezembro de 1991, o país se subordina formalmente à ortodoxia convencional. O país estava naquele momento com seu déficit público zerado devido ao grande ajuste fiscal realizado pelo Plano Collor, mas a inflação inercial estava em torno de 20% ao mês. Para baixá-la o novo Ministro da Fazenda eleva a taxa de juros brutalmente, esperando que com isso – nos termos da carta de intenção assinada com o FMI – a taxa de inflação caísse gradualmente para 2% no final de um ano. 42 Dado, entretanto, o caráter inercial da inflação, a taxa de inflação permanece no mesmo nível, não obstante o desaquecimento econômico e o déficit público que a elevação da taxa de juros provocam. Além desse acordo com o Fundo Monetário Internacional que será danoso para o país ao implicar em brutal aumento da taxa de juros paga pelo Estado sem que a inflação seja controlada, o governo toma outras duas decisões que mostram claramente a rendição do país à ortodoxia convencional e ao neoliberalismo. O governo aceita realizar a abertura financeira, eliminando os controles sobre as entradas e saídas de capitais (e assim perdendo controle sobre seu preço macroeconômico mais estratégico – a taxa de câmbio), e se submete aos interesses dos países ricos nas negociações da Rodada do Uruguai da OMC que diminuíram gravemente o espaço de política econômica dos países em desenvolvimento. Governo Cardoso Dois anos depois, já no governo Itamar Franco, o Plano Real logra afinal neutralizar a alta inflação inercial que penalizava o país desde 1994. A aplicação de uma estratégia de estabilização baseada na URV – uma estratégia heterodoxa que fugia aos ditames de Washington e Nova York, entretanto, durou o período que foi necessário para implementar o Plano Real (primeiro semestre d 1994). O governo Fernando Henrique Cardoso, que começa 42 Em 1991, Marcílio Marques Moreira substitui Zélia Cardoso no Ministério da Fazenda.l 86 em janeiro de 1995, retorna decididamente à ortodoxia convencional iniciada em 1991, ao mesmo tempo que consolida o domínio do capital rentista e financeiro no Brasil associado aos interesses estrangeiros. O consenso de Washington volta a ser plenamente dominante. Ainda no segundo semestre desse ano, a taxa de câmbio se aprecia fortemente, e, logo em seguida a taxa de juros é elevada para níveis estratosféricos. A macroeconomia da estagnação começava, assim, seu curso no Brasil. A reforma da Constituição de 1988 então encetada permite a desnacionalização de setores estratégicos da economia brasileira inclusive dos bancos comerciais. A prioridade para empresas e indústrias nacionais nos fornecimentos ao Estado, que todos os grandes países praticam, foi também eliminada do texto constitucional. Qualquer política ou dispositivo legal que tivesse caráter nacional era agora acusado de ‘atrasado’. Embora o país sempre houvesse crescido fundamentalmente com poupança interna até os anos 1960, aceita-se a proposta da ortodoxia convencional de que o crescimento deveria agora ser feito com poupança externa, ou seja, com déficits em conta corrente. A busca de poupança externa é transformada na grande política de desenvolvimento a partir da justificativa equivocada que “o Brasil não tem mais recursos para financiar seu desenvolvimento econômico”. 43 Na verdade, essa política só causaria apreciação da taxa de câmbio, aumento artificial dos salários e do consumo interno, e a substituição da poupança interna pela externa, ao mesmo tempo que endividava o país. 44 Os resultados são uma profunda desnacionalização da economia brasileira, duas crises de balanço de pagamentos, e baixas taxas de crescimento, não obstante, a partir do início dos anos 2000, um enorme aumento dos preços das commodities exportadas pelo Brasil permitir que em cinco anos se dobrem as exportações. Desde 1995, portanto, até hoje, a economia brasileira passa a ser dominada pela anti- estratégia de desenvolvimento econômico que é a ortodoxia convencional. Em conseqüência, não obstante a alta inflação esteja estabilizada, e os capitais estrangeiros, na forma de investimentos diretos e financiamentos, se tornem abundantes, a economia brasileira crescerá lentamente, ficando sistematicamente para trás não apenas dos demais países em 43 Poupança externa é déficit em conta corrente; quando um país incorre em déficit em conta corrente sua taxa de câmbio se aprecia em relação àquela que existira se houvesse equilíbrio em conta corrente. 87 desenvolvimento que adotam estratégias nacionais de desenvolvimento e realizam o catch up mas também dos países ricos. Um pacto conservador e globalista O Pacto Liberal-Dependente que se torna dominante no Brasil a partir de 1990 é um pacto conservador e globalista. Por ser conservador, nos primeiros momentos – durante os anos 1990 nos quais a hegemonia neoliberal era absoluta em todo o mundo – contou com a participação dos empresários do setor produtivo e de amplos setores da burocracia pública. Desde o início dos anos 2000, entretanto, a crise da hegemonia americana abre novas perspectivas para o país. Os empresários industrias dão-se conta da incompatibilidade da ortodoxia convencional com o desenvolvimento econômico, demonstrada pelo fracasso das reformas neoliberais em todo o mundo e principalmente na América Latina, e, como seus interesses estão diretamente relacionados com esse desenvolvimento, estão em busca de alternativa. A coalizão política dominante desde 1991, o Pacto Liberal-Dependente, passa, assim, a ser constituída pelos diretos interessados em suas idéias e propostas: os rentistas que se beneficiam dos altos juros pagos pelo Estado, os agentes do setor financeiro que recebem comissão dos rentistas quando não são eles próprios rentistas, e os proprietários de empresas de serviços públicos operando em situação de monopólio ou quase-monopólio. Estas categorias, especialmente a dos rentistas, não são claramente distintas. Há grandes e pequenos rentistas, e entre eles há os que são também empresários, ou que são também assalariados. Entretanto, em termos de ação política, ou a pessoa se comporta principalmente como rentista, ou principalmente como empresário ativo ou membro da classe média profissional. Por outro lado, por ser globalista, ou seja, por estar baseado na crença de que os países do Norte estão interessados no desenvolvimento dos países do Sul — diretamente e através de suas instituições de controle, como o FMI e o Banco Mundial —, essa coalizão conta com a participação distante, mas efetiva, dos governos e das elites desses países, e com a participação mais direta das empresas multinacionais aqui situadas. Enquanto os rentistas, o setor financeiro e o grande capital investido nos serviços públicos interessam-se 44 Poupança externa é déficit em conta corrente; quando um país incorre em déficit em conta corrente sua taxa de câmbio se aprecia em relação àquela que existira se houvesse equilíbrio em conta corrente. 90 público pela burocracia, esta análise é enviesada. Captura do Estado em países em desenvolvimento não é privilégio dos políticos ou da burocracia. Os políticos são sempre poderosos, mas são poucos, e sempre representam interesses de outros grupos. A burocracia de Estado é um grupo estratégico dentro da classe média profissional ou tecnoburocrática, mas não tem poder significativo no Brasil desde o colapso do regime militar. No Pacto Popular-Democrático ela não teve força porque estava sendo sempre acusada pelos novos governantes de haver participado do regime militar. Colocada fora do poder, ela limitou-se a se defender corporativamente, como o fez, por exemplo, com a Lei do Regime Único, na qual foi capaz de amealhar uma série de privilégios. 46 No Pacto Liberal-Dependente ela é vista como o adversário. No presente, a se acreditar na economia política do Pacto Liberal-Dependente, poder-se-ia crer que a burocracia do Estado e mais amplamente a classe média profissional têm grande poder. Não é verdade. Os dois partidos dominantes nesse período, o PSDB e o PT, são dois partidos fundamentalmente apoiados na classe média profissional ou burocrática, mas são um misto de burocracia pública e privada. Contam com militantes na burocracia do Estado, mas sua base de apoio é a grande classe média de administradores, professores, intelectuais, líderes sindicais e líderes associativos de todos os tipos. No quadro ideológico da ortodoxia convencional, a burocracia do Estado é o grande inimigo. Uma espécie de anjo do mal ou, então, uma erva daninha que impede o desenvolvimento brasileiro... Não poderia ser de outra maneira, dado seu caráter neoliberal e o fato de que a origem das suas idéias está nos países ricos e na hegemonia global que deles parte. Para que exerçam sua dominação, para que consigam neutralizar a capacidade competitiva do país em desenvolvimento, nada mais estratégico do que dividir para reinar, nada mais importante do que minar o acordo básico que forma uma Nação: o acordo entre os empresários ativos e a burocracia do Estado. Nos próprios países ricos existe também o discurso visando diminuir o tamanho do Estado e fazendo a crítica da burocracia, mas o fato objetivo é que o tamanho do Estado, medido pela carga tributária, não diminuiu desde 1980; diminuiu o ritmo de crescimento mas continuou 46 Esta lei foi reformada, com a eliminação desses privilégios, no período em que fui ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-1998). 91 crescendo, e que o acordo nacional entre as grandes empresas e as burocracias de Estado continua valendo. Já nos “laboratórios”, que são, para os ideólogos do Norte e para organizações como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, as economias em desenvolvimento, uma possibilidade sempre tentadora é a de transformar a retórica neoliberal em prática concreta, e, além de fazer a crítica da intervenção do Estado, minar o acordo das elites empresariais locais com as burocracias de Estado. Ora, é esse acordo que permite que o Estado se torne um instrumento do desenvolvimento econômico; é ele que permite que não apenas a política industrial, mas toda a política macroeconômica do país seja pensada em termos de apoio à empresa nacional. Quando a esse acordo se juntam os trabalhadores, como é próprio das democracias, o Estado, além de instrumento do crescimento econômico, torna-se também instrumento da diminuição das desigualdades e do aumento da coesão social. Na medida em que a ortodoxia convencional é a expressão prática da ideologia neoliberal, ela é a ideologia do mercado contra o Estado e sua burocracia. Enquanto o novo desenvolvimentismo quer um Estado e um mercado fortes, e não vê contradição entre ambos, a ortodoxia convencional quer fortalecer o mercado através do enfraquecimento do Estado, como se houvesse um jogo de soma zero entre as duas instituições. Francis Fukuyama (2004), insuspeito nessa matéria, reconheceu recentemente este equívoco da política norte-americana. A ortodoxia convencional é, portanto, a partir da segunda metade do século XX, a versão do laissez-faire que foi dominante no século anterior. O tamanho do Estado cresceu em termos de carga tributária e em termos de grau de regulação exercido sobre o mercado, como decorrência do aumento da dimensão e da complexidade das sociedades modernas. Um Estado forte e relativamente grande é condição para um mercado forte e competitivo. A ortodoxia convencional é a reação prática contra esse crescimento do aparelho do Estado. É certo que o Estado também cresceu por mero burocratismo, para criar cargos e empregar a burocracia, mas a ortodoxia convencional não está interessada em distinguir o crescimento legítimo do crescimento ilegítimo do Estado. É a ideologia do Estado mínimo, do Estado polícia, do Estado que se preocupa apenas pela segurança interna e externa, deixando a coordenação econômica, os investimentos na infra-estrutura e mesmo os serviços sociais de saúde e educação por conta do mercado. É a ideologia individualista que supõe que todos são igualmente capazes de defender seus interesses. É, assim, uma ideologia de direita, dos mais poderosos, dos mais ricos, dos mais educados — da alta burguesia e da alta tecnoburocracia. 92 O fato de ela estar correta em criticar a ineficiência do Estado não a torna aceitável, já que essa ineficiência é óbvia. Seu objetivo é baixar os impostos e os salários reais diretos e indiretos através da desproteção ou precarização do trabalho e, assim, tornar as empresas mais competitivas em um mercado internacional de países em desenvolvimento com mão-de-obra barata. A política econômica que vem sendo posta em prática no Brasil desde 1990 é a política do Pacto Liberal-Dependente. O Estado brasileiro não está, naturalmente, completamente capturado por seus membros. Estes recebem os maiores benefícios, que não são apenas os benefícios clássicos e legítimos que um Estado capitalista garante aos empresários: a ordem pública, a garantia da propriedade e dos contratos. São hoje, principalmente, os juros pagos aos rentistas. São também os lucros e royalties pagos às empresas multinacionais, que se beneficiam do mercado interno brasileiro sem reciprocidade. Os setores excluídos do pacto, porém, têm poder suficiente para receber sua parte. Os grandes empresários industriais e dos serviços recebem empréstimos a juros subsidiados do BNDES; os agricultores contam com financiamentos a juros subsidiados do Banco do Brasil; as grandes empresas de serviços públicos, com lucros monopolistas; a classe média conta com uma universidade estatal gratuita; a burocracia do Estado, com um sistema de aposentadoria privilegiado; e os pobres têm para si formas de renda mínima que no Brasil ganharam o nome de “bolsas”: Bolsa Escola, Bolsa Família. Mas o fato é que o aparelho do Estado brasileiro funciona como uma enorme agência de transferência de renda. Os pobres, que são os principais pagadores de impostos da enorme carga tributária brasileira, recebem de volta uma parcela pequena do que contribuem na forma daquelas “bolsas” que, a meu ver, são as únicas legítimas. Se dividirmos a despesa pública em despesas legítimas e capturas, as capturas citadas na forma de juros acima do razoável e de subsídios os mais diversos devem representar quase um terço da despesa pública, como vimos no Capítulo 6. A coalizão política dominante é naturalmente a principal beneficiária. E, para ela, as instituições estratégicas que devem ser capturadas são a universidade e o banco central. A captura da universidade escapa ao objeto deste livro, mas ela é essencial, já que vivemos no capitalismo do conhecimento ou dos técnicos, em que dominação não é mais pela força, mas pela hegemonia ideológica. A estratégia fundamental de dominação foi levar os jovens 95 7. REFORMA GERENCIAL EM UM QUADRO ADVERSO Entre 1987 e 1991 o Brasil viveu sob profunda crise: crise econômica de alta inflação, de moratória da dívida externa; mas crise principalmente política, porque marcara o colapso do Pacto Popular-Democrático de 1977, ou seja, o fim da aliança histórica entre os grandes empresários industriais e a burocracia política, e a substituição na direção do país dessas duas classes pelos grandes rentistas que vivem de juros, pelos agentes financeiros que vivem de comissões pagas pelos rentistas, pelas empresas multinacionais que então já se haviam apoderado de grande parte do mercado interno brasileiro e se interessavam por câmbio apreciado para enviarem maiores rendimentos para o exterior, e pelos interesses estrangeiros no Brasil igualmente interessados em taxa de câmbio não competitiva. Neste quadro, em que os empresários industriais estavam marginalizados, a burocracia pública via tudo o que fora levada a acreditar no período desenvolvimentista negado, e passava a ser dirigida por uma ‘equipe econômica’ constituída de economistas estranhos a ela, que haviam realizado PhDs nos Estados Unidos e voltavam para trabalhar no mercado financeiro. Por outro lado, durante o governo Collor, havia sido realizada uma tentativa de desmonte do aparelho do Estado inspirada no mesmo neoliberalismo e na mesma ortodoxia convencional que orientava a política econômica. É nesse quadro desfavorável à burocracia pública inclusive seu segmento mais alto, a burocracia política, que terá início, no governo Fernando Henrique Cardoso, a Reforma Gerencial ou Reforma da Gestão Pública de 1995. Essa reforma, que coube a mim e à minha equipe no MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado) idealizar e implementar, se impunha dado o grande crescimento que o aparelho do Estado experimentara na área social desde 1985 para fazer frente aos compromissos de aumento do gasto social em educação, saúde e assistência social estabelecidos durante a transição democrática. 96 Reformas gerenciais já vinham ocorrendo em alguns países desenvolvidos desde a década anterior, como resposta ao fato de que a transição do Estado Liberal para o Estado Democrático ocorrida nesses países no começo do século XX havia levado ao aumento do tamanho do Estado e, portanto, à sua transformação em um Estado Democrático e Social, e porque a globalização que então ganhava momentum aumentava de forma extraordinária a competição entre os Estados-nação e obrigava suas organizações, tanto privadas quanto públicas, a se tornarem mais eficientes. A administração pública burocrática e sua burocracia weberiana eram adequadas para um pequeno Estado Liberal; no quadro dos Estados democráticos e sociais do final do século, em um mundo mais competitivo do que em qualquer outra época de sua história, não havia alternativa senão enveredarem pela reforma da gestão pública ou reforma gerencial. A necessidade de mudança começa a ficar clara durante o governo Collor – um governo contraditório senão esquizofrênico que começa fazendo a afirmação do interesse nacional, mas afinal se curva à ortodoxia convencional, que dará os passos decisivos no sentido de iniciar as necessárias reformas orientadas para o mercado, mas comete equívocos graves. Na área da administração pública, as tentativas de reforma do governo Collor foram equivocadas ao confundir – como a direita neoliberal que então chegava ao poder o fazia – reforma do Estado com corte de funcionários, redução dos salários reais, diminuição a qualquer custo do tamanho do Estado. A burocracia pública que havia visto o aparelho do Estado ser enrijecido e formalizado durante o retrocesso burocrático que ocorreu em torno da Constituição de 1988, resistia o quanto podia às reformas atabalhoadas do governo. Quando Itamar Franco chega ao poder, essas reformas são abandonadas, embora fosse evidente a necessidade de se fazer algo para voltar a flexibilizar a administração pública. A onda ideológica neoliberal vinda do Norte, entretanto, tornara-se dominante na sociedade. Este fato se reflete no governo Fernando Henrique Cardoso que começa em 1995 com um programa de reformas constitucionais visando privatizar os serviços públicos, reformar a previdência pública, e com uma política econômica ortodoxa baseada em taxas de juros elevadíssimas e taxa de câmbio sobrevalorizada. Estava claro, porém, para mim que a grande crise que o país enfrentava desde os anos 80, era uma crise do Estado – uma crise fiscal, administrativa e de sua forma de intervenção na economia – de forma que a solução não era substituir o Estado pelo mercado como a ideologia liberal propunha, mas reformar e reconstruir o Estado para que este pudesse 97 ser um agente efetivo e eficiente de regulação do mercado e de capacitação das empresas no processo competitivo internacional. Dessa forma, quando o novo presidente transforma a SAF (Secretaria da Administração Federal) no MARE, eu não demorei em fazer o diagnóstico e definir as diretrizes e objetivos da minha tarefa. Começava então a Reforma Gerencial de 1995. Não fui eu quem solicitou a mudança de status e de nome do ministério, mas esta mudança provavelmente fazia sentido para o presidente: desta forma ele fazia um desafio ao novo ministro, e à equipe que eu iria reunir em torno de mim. A resposta ao desafio foi elaborar, ainda no primeiro semestre de 1995, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e a emenda constitucional da reforma administrativa que afinal seria aprovada três anos depois (Emenda 19). Tomávamos como base as experiências recentes em países da OCDE, principalmente o Reino Unido, onde se implantava a segunda grande reforma administrativa da história do capitalismo – a reforma gerencial do final deste século. As novas idéias estavam ainda em formação; surgira no Reino Unido uma nova disciplina, a new public management, que, embora influenciada por idéias neoliberais, de fato não podia ser confundida com as idéias da direita; muitos países social- democratas estavam na Europa envolvidos no processo de reforma e de implantação de novas práticas administrativas. O Brasil tinha a oportunidade de participar desse grande movimento, e constituir-se no primeiro país em desenvolvimento a fazer a reforma. Quando as idéias foram inicialmente apresentadas, em janeiro de 1995, a resistência foi muito grande. Tratei, entretanto, de enfrentar essa resistência da forma mais direta e aberta possível, usando a mídia como instrumento de comunicação. O tema era novo e complexo para a opinião pública, e a imprensa tinha dificuldades em dar ao debate uma visão completa e fidedigna. Não obstante, a imprensa serviu como um maravilhoso instrumento para o debate das idéias. Minha estratégia principal era atacar a administração pública burocrática, ao mesmo tempo em que defendia as carreiras de Estado e o fortalecimento da capacidade gerencial do Estado. Dessa forma confundia meus críticos, que afirmavam que eu agia contra a burocracia pública, quando eu procurava fortalecê-los, torná-los mais autônomos e responsáveis. Em pouco tempo, um tema que não estava na agenda do país assumiu o caráter de um grande debate nacional. Os apoios políticos e intelectuais não tardaram, e afinal quando a reforma constitucional foi promulgada, em abril de 1998, formara-se um quase-consenso
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