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Byron e o Byronismo: A Identidade Lírica e o Homem na Epistémê Moderna, Provas de Filosofia

Michel FoucaultFilosofia da LiteraturaRomantismo

Este artigo apresenta a identidade do eu lírico chamado byroniano, tanto na obra do poeta inglês quanto em autores diretamente influenciados por ele, e compara-a com a figura do homem, epicentro da episteme moderna, conforme apresentada por foucault. O artigo utiliza o poema 'the prophecy of dante' de byron como eixo conductor para mostrar como as características do eu lírico coincidem com a descrição de foucault do homem moderno.

O que você vai aprender

  • Qual é a identidade do eu lírico byroniano?
  • Como Foucault descreve a figura moderna de homem?
  • Qual é a importância do poema 'The Prophecy of Dante' na análise da identidade do eu lírico byroniano?
  • Como a figura do homem, conforme apresentada por Foucault, se relaciona com a identidade do eu lírico byroniano?
  • Como as características do eu lírico byroniano se encaixam na descrição de Foucault do homem moderno?

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Roxana_Br
Roxana_Br 🇧🇷

4.5

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Baixe Byron e o Byronismo: A Identidade Lírica e o Homem na Epistémê Moderna e outras Provas em PDF para Filosofia, somente na Docsity! ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 153 ::: BYRON E O BYRONISMO NO CENTRO DA EPISTÉMÊ MODERNA Pedro Augusto Pinto1 Pedro Ivan Moreira de Sampaio2 Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar a identidade do eu lírico dito byroniano (seja na obra do poeta inglês, seja na obra de autores direta e sabidamente por ele influenciados) com a figura do homem, epicentro da epistémê moderna, consoante apresentado por Foucault em seus escritos dos anos de 1960. Tendo como eixo condutor o poema The Prophecy of Dante, acrescido de outras obras em verso, mostra-se na poesia a construção de um eu cujas características coincidem com a descrição do homem apresentada por Foucault, notoriamente, em As palavras e as coisas. Palavras-chave: Byron – romantismo – Foucault – epistémê moderna – subjetividade. INTRODUÇÃO Existe uma expressão, provavelmente cunhada na França do século XIX, que designa uma forma muito específica de marginalidade. A alcunha se aplica fundamentalmente a uma certa prática de “autoexílio”, uma existência que parece se constituir pela negação de seu próprio tempo, expressa em um modo de vida “escandaloso”, “perverso”, “pecaminoso”, ou caracterizável por adjetivação semelhante. Trata-se de uma vivência de apartamento da sociedade, mas manifesta dentro de seu próprio seio; uma vida cuja simples presença parece desdenhar dos que a rodeiam pelo desapego inconsequente dos principais valores, morais ou materiais, de seu tempo. O termo que designa este curioso exílio manifesto na presença é o poète maudit3. Aquele cuja genialidade traz, em sua marca, o sentimento de constante 1 Mestrando em Cultura e Literatura Russa na Universidade de São Paulo (USP) com estágio de pesquisa no Instituto de Literatura Mundial Górki da Academia Russa de Ciências, é Bacharel em História pela Universidade de São Paulo (USP) com intercâmbio acadêmico na Universidade Estatal de Moscou e na St. Mary's University College (Londres - Reino Unido). 2 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) com período de intercâmbio acadêmico na Université Paris Sorbonne (Paris IV). É mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorando em Filosofia em regime de dupla titulação na Université Paris Descartes (Paris V) e Universidade de São Paulo (USP). 3 O termo em si tem a autoria atribuída a Alfred de Vigny em seu romance Stello de 1832, onde o escritor designa os poetas como: “(...) la race toujours maudite par les puissants de la terre” (VIGNY, Stello, p. 66). A expressão ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 154 ::: inadequação, a sensação própria de ser um espírito aprisionado na matéria e cuja engenhosidade está fadada à incompreensão. Este poeta é aquele que aglutina em si o sublime da poesia com a devassidão da vida. Em todo caso, não nos ocuparemos aqui da história ou a caracterização mais detalhada deste termo. Interessa-nos, como ponto de partida, um poema específico da autoria de um poeta tipicamente maldito, e cuja biografia, por vezes, parece misturar-se à sua obra: trata-se de George Gordon Byron, 6º Barão Byron, ou simplesmente Lorde Byron, e seu poema publicado em 1821, The Prophecy of Dante. A profecia de Dante Poeta. Muitos são poetas que jamais a inspiração Puseram por escrito – e os melhores, talvez; Sentiram e viveram, mas sem concessão Dos pensamentos seus a nenhum ser mais soez; Comprimiram o deus em seu interior E juntaram-se aos astros, sem lauréis na terra, Mais felizes porém que aqueles que o estridor Da paixão degenera, e cuja fama encerra Suas fragilidades, os conquistadores De alto renome, mas cheios de cicatrizes. Muitos são poetas, mas do nome não senhores, Pois que é a poesia mais do que buscar raízes No bem ou mal ultra-emotivos e querer Uma vida exterior além de nosso fado? E novo Prometeu do novo homem ser, Dando o fogo do céu e, tudo consumado, Vendo o prazer da oferta pago, mas com dor, E abutres roendo o coração do benfeitor, Que, tendo dissipado dávida sem par, Jaz encadeado num rochedo junto ao mar?4 em si só ganhou popularidade no final do século, fundamentalmente devido aos artigos de Paul Verlaine no Boletim Lutèce intitulados “Les poètes maudits”. 4 BYRON, Poemas, p. 112-113. The prophecy of Dante Canto the fourth Many are Poets who have never penned Their inspiration, and perchance the best: They felt, and loved, and died, but would not lend Their thoughts to meaner beings; they compressed The God within them, and rejoined the stars Unlaurelled upon earth, but far more blessed Than those who are degraded by the jars Of Passion, and their frailties linked to fame, Conquerors of high renown, but full of scars. Many are Poets but without the name; ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 157 ::: Nesta continuação, o lorde inglês não apenas se inclui no texto como ainda o faz de forma desafiadora ao conclamar: “que seja: nós podemos suportar”. O ponto é que o poeta se constitui como a figura de um espírito flamejante aprisionado em uma forma de argila, mas esta é sua natureza própria de bardo. Desafiar a adversidade do mundo com a beleza do verso é o devir deste ser. De modo que a contingência de um mundo mesquinho rejeita o verso e isto intensifica o brilho da poesia. A dura imanência não é o outro do poeta, mas o todo do qual ele faz parte e, por isso, é, ao mesmo tempo, a possibilidade do poema. Não é, então, gratuito que “o desespero e o gênio são frequentemente conexos”. A paixão temporal é, assim, a desgraça do poeta e a condição de existência do verso. É desta maneira que se pode afastar a ideia de que o poema apresenta duas concepções distintas de poeta, para compreender que ambas as figuras de poeta coexistem em um todo, a dualidade em questão habita um único ser, frágil e conflituoso, uma desarmoniosa conjunção de espírito e matéria. O homem, na analítica da finitude, é um estranho duplo empírico-transcendental, porquanto é um ser tal que nele se tomará conhecimento do que torna possível todo conhecimento.7 Para além desta figura do poeta, o principal elemento que se pode destacar da contingência à qual ele é sujeitado no poema é um tema marcante de toda a geração romântica inaugurada pelo lorde, ou das muitas para as quais Byron viria a exercer um papel central: trata-se do tema da morte, recorrente na obra destes escritores conhecidos como “ultrarromânticos”. É evidente que esta temática não é, em si, uma novidade nas artes. A morte já apareceu com destaque, por exemplo, no século XV como sendo o termo final, o ponto inexorável do destino, uma presença desencarnada que ronda e pode pôr termo à toda vida.8 Naquela época, o retrato da morte, como uma figura esquelética portando um sorriso quase irônico, carregava em sua imagem o trágico do fim. Tratava-se da figuração de um riso que antevia o abismo, a histérica gargalhada ante a tragédia inevitável do vazio da morte.9 Transfused, transfigurated: and the line Of Poesy, which peoples but the air With Thought and Beings of our thought reflected, Can do no more: then let the artist share The palm, he shares the peril, and dejected Faints o'er the labour unapproved — Alas! Despair and Genius are too oft connected. […] 7 FOUCAULT, As palavras e as coisas, p.439. «L’homme, dans l’analytique de la finitude, est un étrange doublet empirico-transcendantal, puisque c’est un être tel qu’on prendra en lui connaissance de ce qui rend possible toute connaissance » (FOUCAULT, Les Mots et les choses, p. 329). 8 FOUCAULT, Histoire de la folie à l’âge classique, p. 30-31. 9 Para citar apenas uma referência literária, pode-se destacar a obra de Guyot Marchant intitulada Danse Macabre. Este título, em verdade, marca todo um gênero presente na literatura, teatro escultura, mas, especialmente na pintura, e cujo expoente mais conhecido talvez seja o afresco no Cimetière dês Saints-Innocents em Paris. ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 158 ::: Já no século XIX, o reaparecimento do tema não se dá nestes termos. A morte no poema de Byron a Dante não se configura em um trágico término no vazio. É bem verdade que, se tomamos outro poema, talvez até mais famoso do lorde inglês, o Lines inscribed upon a cup formed from a skull, a morte vem carregada de ironia, e o riso reaparece no próprio cálice feito de um crânio, cheio de vinho, onde outrora brilhara a razão. Versos Inscritos numa Taça Feita de um Crânio 10 Não, não te assustes: não fugiu o meu espírito Vê em mim um crânio, o único que existe Do qual, muito ao contrário de uma fronte viva, Tudo aquilo que flui jamais é triste. Vivi, amei, bebi, tal como tu; morri; Que renuncie e terra aos ossos meus Enche! Não podes injuriar-me; tem o verme 10BYRON, Poemas, p. 106-107. Lines inscribed upon a cup formed from a skull Start not — nor deem my spirit fled: In me behold the only skull From which, unlike a living head, Whatever flows is never dull. I lived, I loved, I quaff’d, like thee: I died: let earth my bones resign; Fill up — thou canst not injure me; The worm hath fouler lips than thine. Better to hold the sparkling grape, Than nurse the earth-worm’s slimy brood; And circle in the goblet’s shape The drink of Gods, than reptiles’ food. Where once my wit, perchance, hath shone, In aid of others’ let me shine; And when, alas! our brains are gone, What nobler substitute than wine? Quaff while thou canst — another race, When thou and thine like me are sped, May rescue thee from earth’s embrace, And rhyme and revel with the dead. Why not? since through life’s little day Our heads such sad effects produce; Redeem’d from worms and wasting clay, This chance is theirs, to be of use. ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 159 ::: Lábios mais repugnantes do que os teus. Antes do que nutrir a geração dos vermes, Melhor conter a uva espumejante; Melhor é como taça distribuir o néctar Dos deuses, que a ração da larva rastejante. Onde outrora brilhou, talvez, minha razão, Para ajudar os outros brilhe agora eu; Substituto haverá mais nobre que o vinho Se o nosso cérebro já se perdeu? Bebe enquanto puderes; quando tu e os teus Já tiverdes partido, uma outra gente Possa te redimir da terra que abraçar-te, E festeje com o morto e a própria rima tente. E por que não? Se as fontes geram tal tristeza Através da existência – curto dia –, Redimidas dos vermes e da argila Ao menos possam ter alguma serventia. Em todo caso, mesmo nesse poema, não se está diante da figura da morte que aparecia nas Dances Macabres do século XV. A ironia do poema, que dá voz a uma taça feita de um crânio, não coloca o leitor diante do vazio da morte, mas apenas perante sua inevitabilidade. A taça esquelética enche-se de vinho e incita a celebração enquanto a vida permitir, tendo na morte um termo que deve instigar, antes de sua concretização inexorável, certo comportamento bonviant – com um colorido mais macabro, é verdade, ou mesmo com certa inconsequência. A questão é que a morte aparece no século XIX como o delimitar da temporalidade, como signo da finitude humana. Não se trata do anunciar de um termino no vazio, mas de demarcar um período de existência do homem; período que é, ao mesmo tempo, a evidência de sua contingência e a condição de possibilidade de suas ações. A morte que corrói anonimamente a existência cotidiana do ser vivo é a mesma que aquela, fundamental, a partir da qual se dá a mim mesmo minha vida empírica11. Tomando novamente o poema com o qual este artigo se iniciou, pode-se reforçar ainda mais esta abordagem do tema da finitude. A morte, já anunciada, do poeta, delimita precisamente sua existência contingente. O nascimento e a morte são as fronteiras temporais 11 FOUCAULT, As palavras e as coisas, p.434. La mort qui ronge anonymement l’existence quotidienne du vivant, est la même que celle, fondamentale, à partir de quoi se donne à moi-même ma vie empirique» (FOUCAULT, Les Mots et les choses, p. 326). ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 162 ::: mundo de história muito mais antiga que a sua própria, e com um prognóstico de futuro muito mais extenso que o de seu ser. Isso não significa, entretanto, que o poeta pertença a um tempo futuro, mas apenas que o desacordo entre sua delimitação temporal e a vastidão da história do mundo pode imbuir seu discurso da pretensão de alcançar um tempo que ele, por si só, não pode. Normalmente esta pretensão se funda na evidente longevidade que o texto pode ter, sendo capaz de perdurar muito além da vida daquele que o redigiu. “Pois que é a poesia mais do que [...] querer uma vida exterior além de nosso fado?”16. Em outros casos, o fenômeno tem como implicação a disparidade entre a vida em seu sentido estrito, cronológico, e a vida espiritual do poeta, esta sim, verdadeira, e que parece se desdobrar em um plano bastante distinto. O tema é recorrente na poesia romântica, e é formulado com agudeza em outro poema de Byron, Carta a Augusta, onde até mesmo a glória é relativizada diante desta outra dimensão existencial: Carta a Augusta […] XIII Com a falsa ambição que tinha eu a fazer? Pouco com o amor, menos de tudo com o renome; Mas vieram sem procura, e entraram de crescer E me fizeram quanto podem – dar um nome. Mas tal não era a meta para eu escolher; De alvo mais nobre outrora eu tive a nobre fome. Mas tudo terminou: - sou um a mais, somente, Entre os milhões frustrados que partiram a frente. XIV Quanto ao futuro, o deste mundo poderia Demandar-me somente mínima atenção; A mim próprio sobrevivi por muito dia; Perduro, e tantas coisas, tantas, já não são; Meu tempo não foi sono, sob a tirania De incessantes vigílias: tive eu a porção De vida que podia a um séc’lo ter enchido Antes que a quarta parte houvesse me servido. […]17 16 “For what is Poesy but to (…) aim at an external life beyond our fate” (BYRON, Poemas, p.112-113.) 17 BYRON, Poemas, p. 138-139. Epistle to Augusta […] XIII With false Ambition what had I to do? Little with Love, and least of all with Fame; And yet they came unsought, and with me grew, ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 163 ::: Voltando ao poema em homenagem a Dante, ao colocar uma profecia já concretizada na voz do autor da Divina Comédia, o poeta reforça a pretensão da imortalidade da escrita. Ele indica que não só o gênio, mas até a validade do texto pode ser reconhecida além de seu tempo. Mesmo um discurso profético, talvez meramente especulativo quando fora proferido, pode ser alçado à posição de verdade e reconhecido como tal em outro tempo. Byron conclui, então, o último Canto de seu poema da seguinte forma: “E quando a verdade acertar-lhes nos olhos / E deles fizer o profeta em seu túmulo”18. Dito em outros termos, a poesia pode, por fim, vencer a adversidade de seu tempo, a finitude do poeta; pode perdurar, tendo seu valor reconhecido quando o futuro vislumbrar o brilho que o passado não foi capaz de enxergar. [...] o pensamento descobre que o homem não é contemporâneo do que o faz ser – ou daquilo a partir do qual ele é [...] é porque o homem não é contemporâneo de seu próprio ser que as coisas vêm se dar com um tempo que lhes é próprio.19 Nestes termos, tem-se aqui mais um ponto de identidade deste eu lírico romântico com o homem moderno dos escritos arqueológicos de Foucault. Trata-se da natureza fundamentalmente intempestiva do homem, que o faz compreender o mundo a partir de sua temporalidade finita e distinta das coisas que o rodeiam. Nestes termos, sua inadequação temporal projeta na intelecção deste mundo um tempo distinto daquele do eu. A poesia, assim como os demais discursos ordenados por este homem, é a expressão direta desta subjetividade de tempo sempre inadequado ao do mundo, que se expressa ou age na esperança de irradiar seu ato a um momento que o próprio agente não pode atingir. And made me all which they can make — a name, Yet this was not the end I did pursue; Surely I once beheld a nobler aim. But all is over — I am one the more To baffled millions which have gone before. XIV And for the future, this world's future may From me demand but little of my care; I have outliv'd myself by many a day, Having surviv'd so many things that were; My years have been no slumber, but the prey Of ceaseless vigils; for I had the share Of life which might have fill'd a century, Before its fourth in time had pass'd me by. […] 18 “When Truth shall strike their eyes through many a tear, / And make them own the Prophet in his tomb.” (BYRON, The complete whorks of Lord Byron: with a biographical sketch and notes. p.465. Tradução nossa.) 19 FOUCAULT, As palavras e as coisas, p. 462-463.« […] la pensée découvre que l’homme n’est pas contemporain de ce qui le fait être, - ou de ce à partir de quoi il est […] c’est parce que l’homme n’est pas contemporain de son être que les choses viennent se donner avec un temps qui leur est propre. » (FOUCAULT, Les Mots et les choses, p. 345-346). ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 164 ::: O EU LÍRICO INEXPRIMÍVEL Um último aspecto ainda digno de nota sobre o poema do Lorde Byron diz respeito ao ser próprio do poeta. Como já foi visto, Byron constitui esta figura como um duplo de empiricidade e transcendência, como uma existência finita que não habita o mesmo tempo do mundo, e que busca em sua contingência temporal as condições para produzir um discurso com pretensão imortal. Mas, para além disso, este poeta byroniano é também impensável. Ele é um exercício reflexivo sobre si mesmo, em um movimento no qual o próprio poema não consegue captá-lo para além desta natureza duplicada. Isso talvez pela dificuldade, em si, de o poeta, neste caso, ser tanto o objeto do texto quanto o seu redator. Em certa medida, Byron em sua obra flerta frequentemente com o nebuloso, com as brumas da Inglaterra, com os temas chamados de “obscuros”. Mas, neste caso, isso vai além, talvez, destas imagens. É importante perceber que, justamente no referido quarto Canto do poema, quando Byron aborda diretamente a figura do poeta, longe de fundar uma definição certa e definitiva de seu ser, o que se produz é, antes, o questionamento deste próprio ser. Este poeta byroniano é, então, ambiguamente aquele que fala e, simultaneamente, sobre o que não se pode plenamente falar. Trata-se de uma existência que, ao questionar-se sobre si própria, desloca o pensamento para esta região da penumbra, do impensado. É como se o poeta propriamente escapasse por entre as linhas do texto, e a referência a ele não consegue ir muito além de uma natureza duplicada e em constante inadequação com o mundo circundante. Em terras insulares ou continentais, ele parece insistir em escapar por entre as linhas dos versos – seus ou do próprio Byron, que se consagrou na formulação poética deste eu. É Lérmontov que, na Rússia tsarista, ecoava essa angústia ultrarromântica em seus versos de 1832. Não, não sou Byron, sou outro – aquele Ainda desconhecido eleito, Pelo mundo caçado, qual ele, De alma russa, porém, e de peito. Fui mais cedo, cedo hei de acabar, Minha mente fará quase nada; Em minha alma – um enorme mar –. Jaz um fardo de esp’ranças quebradas. Quem poderá, ó mar nevoento, Os teus segredos revelar? Quem Dirá à turba os meus pensamentos? Eu – serei Deus, ou então ninguém!20 20 LÉRMONTOV, Sobrániiesotchiniéniivtchetyriokhtomakh, p. 459. Tradução nossa. Texto original: Нет, я неБайрон, я другой, Ещёневедомыйизбранник, Какон, гонимыймиромстранник, Нотолькосрусскоюдушой. ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 167 ::: que na positividade das práticas discursivas, torna possível a existência das figuras epistemológicas e das ciências.24 De maneira sintética, a epistémê é, então, este solo de onde podem emergir os saberes, a referência na constatação das regularidades que marca os modos pelos quais os objetos são tomados. Ela é, por fim, percebida justamente no âmbito desta gramática dos discursos produzidos sobre os objetos em apreensão que emergem do solo delimitado de possibilidades. Nestes termos, firmar o homem como o ponto central da epistémê moderna, significa, então, ordenar o saber e os discursos deste momento entre os dois polos deste duplo empírico/transcendental. É assim que se pode colocar como delimitação fundamental do conhecimento aquilo que o sujeito transcendente pode tomar como objeto. No mesmo sentido, limitam-se os objetos do conhecimento como sendo tudo aquilo que o homem, em sua empiricidade, pode apreender. Neste sentido, este homem, com seu poder de dar representação, é necessário à ordem do saber moderno como a superfície de projeção e de reflexão dessas formas positivas que se oferecem como elemento de sua existência empírica.25 Tal qual a figura do poeta byroniano, condição de possibilidade fundante do verso, o homem emerge no final do século XVIII como a possibilidade do conhecimento, como o produtor do saber. É neste sentido que se pode ler o eu lírico byroniano em sua profunda identidade com a figura do homem da epistémê moderna, tal qual caracterizada por Foucault. Sua dualidade é, assim, a condição de produção do verso, a possibilidade de sua composição, ao mesmo tempo em que fornece os limites de compreensão tanto do verso quanto do próprio poeta. No mesmo sentido, a figura do homem é a condição de possibilidade dos saberes modernos e é o ponto de ordenação do solo de onde fecundam as ciências humanas. Ao mesmo tempo, é este homem que traça, a partir de seus próprios limites de sujeito e objeto, a delimitação da intelecção de todos os saberes de seu tempo. CONCLUSÃO O motivo para a escolha dos trechos do Canto IV do poema de Byron a Dante e dos demais excertos poéticos foi a possibilidade de se ler, nas entrelinhas da reflexão sobre o poeta byroniano, a emergência de uma figura mais abrangente e de fundamental importância 24 FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 231-232.« [...] l’épistémè, comme ensemble de rapports entre des sciences, des figures épistémologiques, des positivités et des pratiques discursives permet de saisir le jeu des contraintes et des limitations qui, à un moment donné, s’imposent au discours […] c’est ce qui dans la positivité des pratiques discursives, rend possible l’existence des figures épistémologique et des sciences. » (FOUCAULT, L’archéologie du savoir, p.205). 25 No original : « En ce sens, cet homme, avec son pouvoir de donner de représentation, est requis dans l’ordre du savoir moderne comme la surface de projection et de réflexion de ces formes positives qui s’offrent comme l’élément de son existence empirique » (SABOT, Lire Les mots et les choses de Michel Foucault, p. 126). ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 168 ::: para todo o século XIX, a figura moderna do homem. Nas palavras de Foucault: “antes do fim do século XVIII o homem não existia [...]. É uma criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou há menos de 200 anos.”26 Este duplo empírico transcendental, delimitado por sua própria finitude, habitante de um mundo do qual ele não é contemporâneo, e, em certa medida, impensado, não é apenas o poeta de Byron, mas também o homem; a figura que desde o fim do século XVIII passou a ser o centro de todo um modo de pensar, de todo um solo de possibilidades para o saber, da epistémê moderna.27 Se o poeta de Byron é uma figura repartida entre um corpo temporal e a alma imortal, o homem é por sua vez um duplo capaz de apreender o mundo por sua dimensão empírica e ordenar este mundo para compreendê-lo no âmbito de seu espírito transcendente. Se o poeta é aquele que faz da fragilidade de sua delimitação temporal a condição mesma para a invenção do verso, o homem tem, em sua finitude, a demarcação e o móvel de toda ação possível. Se o poeta é este ser conflitante e inadequado com seu próprio tempo, o homem é por sua vez incapaz de ser plenamente contemporâneo do mundo que habita, presenciando sempre uma história de origem muito anterior à sua e prognóstico infinitamente mais longo que o seu próprio. Por fim, se a poesia não parece ser capaz de versar plenamente sobre a figura do poeta, limitando-se a descrever sua natureza híbrida, o pensamento, por sua vez, ao se redobrar sobre o homem, também não consegue ir muito além da sua duplicidade de empírico/transcendental, fazendo com que ele não possa ser tomado na transparência absoluta de um cogito, nem na objetividade pura de uma coisa. Nestes termos, o poeta só poderia ser homem, e o homem, em certo sentido, poeta. BYRON AND BYRONISME AT THE CENTER OF THE MODERN EPISTÉMÊ Abstract: This paper aimed to present the identity of the so-called Byronian lyric self (whether in the work of the English poet himself or in the work of authors directly and knowingly influenced by him) with the figure of man, epicenter of the modern episteme, as presented by Foucault in his writings of the 1960s. The construction of an I whose characteristics coincide with Foucault's description of man, as notoriously presented in The Order of Things, was thus shown in The Prophecy of Dante, which served as our main analytical axis, as well as in other works in verse. Keywords: Byron – Romanticism – Foucault – modern episteme – subjectivity. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, A. A lira dos vinte anos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2001. BYRON, George Gordon. The complete works of Lord Byron: with a biographical sketch and notes. New York: Thomas Y. Crowell Company Publishers, 1927. 26 FOUCAULT, As palavras e as coisas, p. 425. « Avant la fin du XVIIIe siècle, l’homme n’existait pas. […] C’est une toute récente créature que la démiurgie historique du savoir a fabriquée de ses mains, il y a moins de deux cents ans » (FOUCAULT, Les Mots et les choses, p.319). 27FOUCAULT, As palavras e as coisas, p. 430-432. Cf. FOUCAULT, Les Mots et les choses, p. 323-324. ::: Cadernos de ética e filosofia política | Número 35 | Página 169 ::: ______. Poemas. Tradução e organização por Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Hedra, 2008. CAMPOS, H. Metalinguagem e outras metas. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. CANDIDO, A. Estudo analítico do poema. 4ª ed. São Paulo: Humanitas, 2004. CASTRO, Eduardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. 1ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. CHAUCIAY, R. Teoria do verso. São Paulo: Ed. McGraw-Hill, 1974. EIKHENBAUM, B. “LiteratúrnaiaPozítsiiaLiérmontova”. In: O prózie, o poézii: sbórnik statiéi,p. 94- 185. Leningrado:KhudójestvennaiaLiteratura, 1986. FOUCAULT, Michel. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Gallimard, 2011a. ______. História da loucura na idade clássica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2010. ______. « La naissance d’un monde ». In: Dits et Ecrits I 1954 – 1975, p. 814-817. Paris: Gallimard, 2011a. ______. « L’archéologie du savoir ». In :Œuvres (tome II), Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015. ______. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense, 2011b. ______. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 2011c. ______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ______. « L’homme est-il mort ? » In: Dits et Ecrits I 1954 –1975. Paris: Gallimard, 2001. ______. L’ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971. ______. Sur le façon d’écrite l’histoire. In: Dits et Écrits I, 1954-1975, p. 613-628. Paris: Gallimard, 2001. GURIÉVITCH, A. “ProbliémanrávstvennogoideálavlírikeLiérmontova”.In: TvórtchestvoM. Iu. Liérmontova: 150 lietsodniá rojdiéniia, 1814—1964. Мoscou: Naúka, 1964. LÉRMONTOV, M. Sobrániiesotchiniéniivtchetyriokhtomakh. v. I. Moscou: KhudójestvennaiaLiteratura, 1964. MURRAY, John. “Marino Filiero, Doge of Venice. An Historical Tragedy, in Five Acts. With Notes – The Prophecy of Dante, a Poem. By Lord Byron”. In: The British Review and London Critical Journal (Vol. XVIII). Printed for Baldwin, Cradock, and Joy. Paternoster-kow; and J. Hatchard and Son, Piccadilly. London, 1821.
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