Baixe Conceitos fundantes em antropologia sobre cultura etnocentrismo e outras Notas de estudo em PDF para Cultura, somente na Docsity! (O) Clriíula
1º Tidição 2015
Preparação dos originais: Mauro Meirelles
Leitura final: Mauro Meirelles e Valdir Pedde
Projeto gráfico: Jadeditora Editoração Gráfica
Editoração: Rafael Marczal de Lima
Capa: Vitória Laís da Silveira
Impressão: Evangraf
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
S678 — Sociologia : trabalho — ciência — cultura - diversidade / organizadores, Mauro
Meirelles ... [et al]. — Porto Alegre : CirKula, 2013.
440 p. sil. — Olhares Contemporâncos
ISBN 978-85-67442-00-6
1. Sociologia. 2. Trabalho. 3. Ciência. 4, Cultura. 5, Diversidade, 1.
Meirelles, Mauro. IJ. Título. II. Série.
CDD 301
CDU 36
jotecária responsável: Elise Maria Di Domenico Coser — CRB-10/1577)
SOCIOLOGIA
PeCecCececeRecec e
Trabalho - Ciência - Cultura - Diversidade
Mauro Meirelles
Daniel Gustavo Mocelin
Leandro Raizer
Valdir Pedde
Graziele Ramos Schweig
(Organizadores)
CirKula
Conceitos fundantes na Antropologia: sobre cultura,
etnocentrismo e relativismo cultural
Mauro Meirelles
Valéria Aydos
Introdução
Para que possamos compreender o que é cultura, em sua diversidade,
dinâmica e riqueza de significados, devemos primeiramente “treinar o nosso
olhar”, “reinar o olhar significa aprender à olhar, mas não olhar como
se olha para qualquer coisa, e sim olhar como aquele que escrutina, que
investiga, que busca sinais de diferenciação e semelhança entre o Seu” c o
“outro”, entre a “minha cultura” e a “cultura dos outros”. Quando a questão
são as diferenças culturais, buscamos o que na antropologia se denomina
de sinais diacríticos (CUNHA, 1987). Quando nossa busca relaciona-se às
semelhanças, estamos operando no campo de nossa própria cultura ou algo
que se parece com cla. Contudo, buscar as diferenças, ou os sinais diacríticos,
no outro é sempre mais fácil que olharmos para nós mesmos e quando isso se
faz necessário é preciso que estranhemos nossa própria cultura. E é aí que as
noções de estranhamento e de relativismo, tão caras à antropologia, fazem-se
necessárias,
Assim, quando falamos de cultura, devemos, antes de mais nada, pensar
em para onde e para quem estamos olhando e, também, de onde estamos
olhando. Pois como diria Geertz (1989) estamos imersos numa teia de
significados com infinitas ligações e possibilidades, a qual se constitui a partir
de nossa experiência de vida, daquilo que experienciamos em cada ato nosso
(BAKHTIN, 2012), de nossas vivências quotidianas (DURKHEIM, 1914),
de nossa memória (HALBWACHS, 2006), do modo como pereeberaos as
coisas e imaginamos o mundo (CORTEN, 2006; DURKHEIM, 1970) a
partir de um determinado campo de contingência (ACLAU & MOUFEE,
1985; MENDONÇA, 2003) que nos é dado pela nossa própria cultura c,
também, por nossa trajetória de vida c/ou illsio (BOURDIEU, 1986; 1996).
Conceitos fundantes na Antropologia: sobre cu
a, emocentrismo e relativismo | 229
áreas do conhecimento, e obser ne
essa palavra com o significado de erudição ou educação, ou
significando formas de expressão da cultura (como arte, cinema dança); ou
como um conceito que engloba apenas tradição ou costumes poptlares; ou
o sinônimo de cultivo (a cultura do milho). Torna-se fácil entender
palavra cultura pelo que a pessoa
var que é frequente encontrarmos, no nosso
cotidiano,
até com:
estes diversos conceitos, se substituirmos a
que a utilizou quis dizer no contexto da fala ou da escrita, como fizemos logo
acima com a cultura do milho — o cultizo do milho.
Nas notícias de jornal sobre eventos “culturais”, por exemplo,
normalmente o conceito utilizado pelo jornalista limita-se a Sxpresat
o conjunto de formas de expressão da cultura ou apenas as tradições e
costumes locais. Quando lemos que a Semana Farroupilha é uma festa sa
cultura gaúcha, entendemos que Já estará representado E gaúcho a
— este, pilchado, à cavalo e tomando chimarrão — e não, necessariament e,
úchos dos dias de hoje. Lendo um livro, no teatro ou no cinema,
todos os ga
Essa frase quer dizer que adquirimos conhecimento,
adquirimos “cultura”. sa
dicção. Quando nossa avó diz que tal menino é muito culto, também não foi
caio à Como já ilustrou DaMatta
erui
o conceito antropológico de cultura que ela usou.
(1986), esta forma de usar o conceito se refere à quantidade de livros que o
menino já leu ou ão grau de escolaridade que ele tem, ou ainda as suas boas
maneiras.
Estas formas usuais do conceito dividem espaço com outras, entre elas,
a forma como os antropólogos entendem o que é cultura. Isso quer dizer
que quando utilizamos esta palavra, não estamos nos referindo a ela nos
«entidos mencionados acima. Como já dizia DaMatta (1986), num país tão
hicrarquizado como o Brasil, não precisamos de mais um instrumento de
distinção entre os que “tem?” e os que “não tem?” alguma coisa, uma sEuldicao:
Neste sentido, como bem coloca DaMatta, para os antropólogos todos sem
cultura e, se entendermos cultura como algo a ser alcançado, nos sentidos
estamos hicrarquizando as sociedades, estamos dizendo que
Itura” que o outro, que um é melhor que
utilizados acima,
um povo ou um grupo tem mais “cu
i é o ra ja nã! uando se ocupa
outro. E isso é, exatamente, o que a antropologia não quer q| Pp:
da ideia de cultura.
A cultura para antropologia, a grosso modo, pode ser entendida como
j o 0 es e [formas de ser, pensar e estar no mundo
um conjunto de regras, costumes € formas de ser, p
rsidade
ia - Cultura - Di
234 | SOCIOLOGIA: Trabalho - Ci
que são compartilhadas por um dado grupo de pessoas, mim dado momento
do tempo. São como as regras do jogo de xadrez, que nos ensinam como
jogar, como mover as peças, como deslizar sobre o tabuleiro. A cultura pode,
portanto, scr conceitualizada minimamente como um dado conjunto de regras,
tradições e valores que servem como balizador do comportamento humano
no interior de uma dada sociedade e/ou grupo social, em um dado momento
histórico e em função das especificidades daqueles que a compartilham
Cabe mencionar que vários antropólogos hoje questionam o caráter fixo
e fechado deste conceito no sentido de entenderem que o próprio tabuleiro de
xadrez (ou a sociedade, o grupo) é construído e continuamente reformulado
pelos atores e, por isso, preferem falar em redes (LATOUR, 2000) ou
malhas (INGOLD, 2012) ao invés de uma “saciedade” onde se encontrariam
as “culturas”, No entanto, estas novas concepções antropológicas sobre o
conceito de cultura vão além da proposta deste texto, que é mais introdutória
Aqui, chegamos, então, a um conceito de cultura bastante simplificado e que
já foi reformulado e repensado por vários antores desde o início dos estudos
antropológicos.
Cabe ressaltar que não é por acaso que os conceitos são diferentes de
uma corrente teórica para outra c nem é em vão que eles mudam ao longo
do tempo. No caso do conceito de cultura, estas mudanças ocorreram,
principalmente, porque os estudiosos que estavam analisando as diferenças
entre os seres humanos buscaram na evolução da antropologia social, formas
de se referem ao seu objeto de estudo de um jeito que não rotulasse as
pessoas, que não refletisse as características de um grupo como melhores ou
piores que outros, ou ainda, como uns sendo mais ou menos «voluídos que
outros, ou seja, um conceito que não refletisse uma visão etnocêntrica sobre
as diferenças culturais.
A cultura é assim, genérica e particular, simples e complexa. Genérica
porque busca dar conta, de forma simples, do modo como as coisas devem
ser, de modo que pouco varia, por exemplo, a forma como as relações de
parentesco são construídas nas diferentes sociedades. Particular porque, em
cada sociedade, essa forma de “relacionar-se com os parentes” pode se dar
de uma forma diferente, em unção da tradição local e do modo como a
sociedade se organiza. Simples na medida em que pode ser facilmente expressa
e compreendida por aqueles que dela fazem parte na medida em que, pelo
Conceitos fu
Antropologia: sobre cultura, etnocentrismo e rela?
ismo | 235
reconhecimento do outro, estes acabam por reconhecerem-se a si mesmos
é a estabelecer com esse “outro” uma relação de diferenciação, que serve
como um instrumento de construção e demarcação daquilo que pertence a
“sua” cultura e, não, a “dele”. E. complexa na medida em que não pode ser
entendida fora do espaço-tempo de sua ocorrência, mesmo que este Gisa
seja composto por redes e fluxos de pessoas e ideias pelo mundo (COMARO
& COMAROBE 2003) e que este tempo seja múltiplo (BHABHA, 1998), uma
vez que fora do circuito de sua ocorrência e de suas formas de expressão, essa,
perde seu significado e se torna um significante vazio.
Os primeiros passos na construção de um conceito de cultura
É j ce to de estudo, ou seja
Antes mesmo de a “cultura” aparecer como objeto A ja,
antes de os teóricos pensarem sobre a existência de culturas diferentes, as
diferenças entre as sociedades e os homens já cram objeto de curiosidade,
Aliás, não apenas de curiosidade, mas de medo, de estranheza e de reações
das mais diversas. No livro “O que é etnocentrismo”, Everardo Rocha (1995)
i i s primeiros viajantes dos séculos XV, XVI
narra com riqueza o sentimento dos primeiros viajant :
e XVII e o modo como se deu esse encontro com o “outro”, sonia diferente,
iniciado com as expedições ultramarinas europeias de exploração de novas
terras e colonização do “novo mundo”. Neste tomtito, antes ue
do próprio surgimento da antropologia enquanto ciência, as e que
norteavam aqueles que em direção ao novo mundo rumavam cram: O que
é Será exi ida? Quem seriam estes outros
existe para além da Europa? Será que existe vida? Q
povos? É
i õ É í E tinha visto ninguém
Imaginem as reações de um povo que nunca gui
diferente de si mesmo — ou seja, brancos, de olhos claros e vestidos até o
índios. ígenes « africanos, de pele e
pescoço — ao se depararem com índios, aborígenes e Pp
olhos escuros e quase nus, nsando poucas vestes é vivendo em povoados
ldejas no meio das florestas. Mas, não só pensemos nos europeus e seu
bém naqueles que virar chegar “aqueles europeus,
ou al
estranhamento, mas tai g É
brancos, de olhos claros e vestidos até o pescoço” em suas aldeias e povoados.
Foi assim, segundo Rocha (1995), a partir deste “choque cultural” que
sugiram as primeiras reações etnocêntricas e, também, as primeiras tentativas
de explicar as diferenças entre as sociedades e povos.
236 | SOCIOLOGIA: Trabalho - Ciência - Cutura - Diversidade
Às primeiras reações dos viajantes frente à diferença os levaram a pensar
que aqueles povos não eram seres humanos. Sim! Eles chegaram a negar a
própria condição de humanidade àquelas pessoas, pois não conseguiram
aceitar que elas pudessem ser tum ser igual, um ser humano.
Este modelo explicativo da diferença, da lógica da negação, de negarmos o
“outro” como um Snós”, cinda persiste nos dias de hoje. Muttas vezes olhamos
para uma pessoa, para certa atitude de um grupo diferente — como aquelas
relativas ao canibalismo e à escarificação corporal, para pensar um exemplo
distante da nossa cultura — e dizemos (ou pensamos): Isso não é gente! Isso não
é um ser human
Esse exemplo, apesar de ser de certa forma radical, serve
aqui para colocarmos em evidência a dificuldade que temos, hoje, mesmo
depois de passados mais de cinco séculos da “era dos descobrimentos” e dos
primeiros contatos do “novo” com o “velho” mundo, de aceitar que somos
todos somos iguais, que nossa cultura não é melhor nem pior que outra,
que apesar das diferenças — sejam elas ligadas a diferentes tradições, valores,
normas é regras sociais de convivência — somos todos humanos. Pensar ou
agir deste modo caracteriza, antes de mais nada, a prevalência de uma atitude
etnocêntrica na medida em que se vlha para o outro a partir daquilo que é
normal para nós, desconsiderando-se as diferenças da “cultura desse outro”.
As diferenças existentes entre uma e outra cultura, também já foram
(e muitas vezes ainda são) explicadas a partir de outra forma etnocêntrica
de encará-la, qual seja, a “lógica da falta”, Olhamos para o antro e dizemos:
Eles não têm imoral. Eles não têm educação. Eles não têm religião! Estas
e outras constatações do tipo só são possíveis se estamos julgando o que é
moral, educação e religião a partir do nosso próprio conceito do que são estes
elementos, ou seja, a partir de nosso entendimento, de nossa cultura, daquilo
que entendemos ser uma boa educação, uma boa moral e uma boa religião.
Como menciona Fausto (2010, p. 10-11) os índias foram logo caracterizados
como gente sem religião, sem justiça e sem estado — uma ideia que, elaborada pela
Jilosofia política, serviu de base ao imaginário sobre o homem natura! e o estado de
natureza de modo que, isto, durante muito tempo serviu aos europeus como
forma de justificação de sua escravização « genocídio.
Neste tipo de visão etnocêntrica, se religião para nós éter um único Deus,
facilmente reconhoceremos « aceitaremos outras religiões, também tidas
como monoteístas, ou seja, que cultuam e veneram um só Deus. Contudo, se
Conceitos fundentes na Antrcpologia: sobre cultura, etnocentrismo e relativismo | 237
a partir desta concepção de religião, da nossa TE igião monoteísta, olharmos
d ipi o monoteísta,
Pp es! epç ujão, ds h
ciais que possuam re!
Y os sociais que possua
ç dades, povos e/ou grup: :
ana : alguns elementos da natureza
iões que
i eneram
cultuam mais de um Deus — ou ainda, venerar F Ge es
tais como o sol, o vento, o mar, Os animais etc. — sendo, po 5 P
ais sol, E
il :s nã suem religi
tenderemos a considerar que eles não po na o pa
ã imitive tuam elementos Ga
o primitivos (pois cu!
de um Deus) e/ou que são pi
animais). ae
i êntrico, da lógica da
Deste modo, a partir deste ponto de vista etnocêntrico, d: gica d
É i os ver e/ou considerar que eles tenham religião, pois
mo uma religião válida a partir do
ão (pois possuem mais
falta, não conseguirem
não conseguimos entender a sua religião co Anda So ei Lad
so de vista. Til compreensão emocêntrica do religioso e daq)
vista. S
sso ponto de 7 E E E
nosso p ão ser possível hoje, uma vez que na
que era visto como religião parece n a
i á lidade de religiões qu
srnidade há uma plural ]
se i E slomentos da natureza, personalidades,
deuses e/ou deidades, que cultuam elem j ae
ficas É o caso, por exemplo, do Islamismo, do Hinduísmo,
espíritos etc., como É O ; O
As do Batuque no Rio Grande do Sul, do Candomblé na
:
idos, do Espiritismo e da Umbanda
lvis Presley nos Estados Unidos, d aa
ei fd tal modelo explicativo, pautado pela lógica da falta,
no Brasil etc.. Today Ra
m — assim como aquele euro-centrado a que nos rel
eu margem — ass
e — a que muitos missionários católicos v e
»s Índios latino-americanos nos quase três séculos
je cultuam um ou vários
sem para o “novo
anteriormentt
mundo” para catequizar O
escobrimento;
se seguiram ao seu desc do à
do século 2% os evangélicos adentrassem a Amazônia e grande
pa ie lizar os índios e as populações que
te do norte do Brasil com vistas a evangelizar os
parte e
i eles não ti eligião!
lá viviam. Afinal, eles não tinham relig ;
observado em um trecho de uma carta
ou ainda que, mais tarde, já no início
sionáris
ode ser muito bem ' :
TM Rodrigues, Provincial da Companhia de Jesus em
“Chronica da Companhia de Jesus do estado do
a vez em 1870 em Lisboa, por Simão Rodrigues
enviada ao E M. Simão
Portugal, esta, presente na
Brasil” publicada pela primeir: E
através da casa editorial A. ]. Fernandes Lopes, onde se 6:
à ensina s orações e
maneira à lhes-hei ensinando as oraçõe
serem habeis para o bautismo,
D'es
i lo-os na fé at
doutrinando-os E :
atam conosco, dizem que querem ser
am como
Todos estes que 1%
como nós, senão que não tem com que se cu
io em tanger á missa
nós. E este só inconveniente tem. Se ouvem tange
ade
230 | SOCIOLOGIA: Traballio - Ciência - Cultura - Divers
já acodeum, e quanto nos veem fazer, tudo fazem, assentam-se
de giolhos, batém nos peitos, levantam as mãos ao Ceo. T! já
tum dos principaes cPelles aprende a ler, e tem a lição cada dia
com grande cuidado, e em dons dias soube o à, b, « todo, e
O ensinámos a benzer, tomando tudo com grandes desejos.
Diz que quer ser Chr
o, e não comer
rue humana, nem
ter mais de uma mulher, é outras cousas, sómente que há de
ie á guerra, e os que capriar, vende-los e servir-se d'elles,
(RODRIGUES, 1870, Pp. 290)
Mas o tempo passou e o estudo sistemático das diferenças c a tentativa
de buscar romper com esta visão deturpada sobre as sociedades humanas, vai
tomar corpo nos séculos XVIII e XIX, quando a “lógica da negação” (cu não
sou isso!) c a “lógica da falta” (eles não tem religião, moral etc.) passaram a dar
espaço à outra forma de explicação da diferença: a da evolução das sociedades.
É aqui, portanto, que começamos a ter o que poderíamos chamar de um
primeiro conceito de cultura. É a vez dos evolucionistas entrarem em cena,
Antes de nos acuparmos dos principais expoentes do evolucionismo e
do modo como cles concebiam o desenvolvimento das sociedades humanas,
é preciso que tenhamos claro que o evolucionismo nada mais foi que uma
tentativa dos primeiros antropólogos, que se ocuparam da questão da cultura,
de formalizar em linhas científicas, no interior do pensamento social da época,
um modelo de desenvolvimento das sociedades em diálogo com a teoria
biológica da evolução de Charles Darwin. Nesta corrente de pensamento, os
evolucionistas passam a postular que, se um organismo ou ser vivo pode evoluir
com o passar do tempo, parece razoável, também, que as sociedades o façam
da mesma forma, de modo que explicações teológicas pautadas na religião são
deixadas de lado. Assumia-se, então, que as sociedades começavam primitivas,
em estado de natureza, e naturalmente iam progredindo até chegarem a algo
parecido com a Europa, a qual estaria situada no ápice desta linha evolutiva
Para os evolucionistas, dentre os quais se destacaram Morgan (1980),
Tor (1871) e Frazer (1982), a explicação seguia a seguinte lógica: 1) Eu
aceito que eles são seres humanos como eu; 2) Contudo, eu
á evoluí mais
do que eles; e, 3) Portanto, eles são um estágio
anterior da minha sociedade.
Dentro dessa lógica linear haveria vários estágios da cultura,
entre os quais os
europeus representariam aqueles que estariam nos estágios mais evoluídos
para os quais todas as sociedades — que estavara
estágios anteriores a
Conceitos fundantes na Antropologia: sobre cultura, etnacontrismo e refativi
o | 239
1985), autor que deu o passo definitivo no processo de separação entre
E A to de cultura e o conceito de história. Neste sentido, Lévi-Strauss,
onceit tó! )
ei o S!
preocupado em descobrir c analisar as estruturas inconscientes que regiam
a a m edade. ou claro em muitos de seus escritos sobre cultura
vida em socied: :ixoU e os de os sobre c!
ra ele, : acabava sendo um “entrave”, um táculo” a ser
obstá:
s en 5
que, para a história acab: de b:
pudesse alcançar o verdadeiro ponto a ser estudado,
superado para que se ger a
A seia, as estruturas sociais latentes e manifestas apenas no plan
qual seja, as
inconsciente. E
ra itivo na
Em seu esforço objetivante, Lévi-Strauss dá um salto defini E
; istóri a i «mente dos
relativização das diferenças ao colocar a história de lado. RE E
ú j isar: ulturas a partir da história a
óri istoricistas — que, ao analisarem as o
teóricos historicistas — que, pias é bd
icati tória da própria cultura
i explicativo (mesmo sendo a his
tinham como fator exp) E a
estudada, como vimos nos boasianos) — Lévi-Strauss considera que,
Ê ão é a históri vo ou grupo
realidade, o que precisamos saber não é a história de um po E p
: a i atural deixa
tender a sua cultura, mas sim, o momento em que O natur
o matizando o comportamento
de prevalecer e à cultura ganha espaço, norr a o e
ibiçã incesto (LEVI-
humano, como no caso, por exemplo, da proibição do
STRAUSS, 1982). E
Como mostra Lévi-Strauss (1982), a proibição do incesto mada mais é do
É ntre natureza e cultura, na medida em que tal interdição
uma conjunção ei ! j
id a na biologia — fato que cle mesmo
está fundada na troca e na aliança e não a
coloca em evidência ao rejeitar, e statisticamente, a tese de is ca E :
oloca
ência biológica. Neste sentido, o tabu do
s leva à degenerescência biológica.
ntre consanguíneos leva à deg:
5 nt amento entre a parentela, o fundamento da troca
a partir da troca de mulheres que
incesto é a interdição do «: É
ou da aliança entre clãs, famílias etc. E, é P
se passará a privilegiar a comunicação entre diferentes gruy
onstrução de uma aliança entre eles.
grupos sociais que irão
operar em termos da c SR
Senda assim, tem-se então que o que mona, tal Pr ig É
lidade de ocorrer degencrescência biológica — e sim,
es modelos e
ição não é a
natureza — ou a possibil j :
o estabelecimento de alianças a partir de diferent
cultura é as
E es, os quais informam aqueles que vivem em
sistemas de parentesco existent
i j upo social, quem são s
a determinada sociedade ou grup migo
ale e ter filhos. Tm algumas sociedades
e de mãe, mas é possível o
eus amigos e inimigos
ão, casar
ou com quem podemos, ou n
é tabu o casamento com primos-irmãos por part
i A cultura,
casamento com primos-irmãos por parte de pai, por exemplo
244 | SOCIOLOGIA: Trabalho - Ciência - Cultura - Diversidade
assim, a partir do argumento desenvolvido pelo antropólogo francês, passa
a ser entendida, a partir de então, como detentora de certa universalidade
e particularidade. Dito de outra forma, a cultura é universal na medida em
que existem categorias universais de pensamento que se fazem presentes em
todas as sociedades — as oposições binárias, os gêmeos, por exemplo — c é
particular, na medida em que cada grupo constrói e constitui suas regras a
partir da sua cultura. Como já bem dizia Lévi-Strauss (1982, p. 70-71),
a natureza atribui a cada indivíduo determinantes veiculados
por scus pais efetivos, mas não decide em nada quais
serão esses pais. À hereditariedade, portanto, considerada
do ponto de vista da natureza, é duplamente necessária,
Primeiramente como lei — não há geração espontânea — em
seguida como especificação da ci, porque à natureza não
diz somente que é preciso ter pais, mas também que tu
serás semelhante a eles. Ao contrário, naquilo que se refere
à aliança, a natureza, contenta-se em afirmar à lei, sendo
indiferente ao conteúdo dela. Se a relação entre pais e filhos
é rigorosamente determinada pela natureza dos primeiros, a
relação entre macho e fêmea só é determinada pelo acaso e
pela probabilidade, Há portanto na natureza — deixando de
lado as mutações — um princípio de indeterminação, e um só,
sendo no caráter arbitrário da aliança que se manifesta. Or
se admi
mos, «de acordo com a evidência, a ant
histórica
natureza em relação à cultura, somente graças às
poss
idades deixadas abertas pela primeira é que a segunda
pode, sem descontimuidade, inserir sua marca é introduzir
suas exigência próprias.
Sendo assim, quem decide quem serão seus pais e como eles sc
relacionarão é a cultura, através da troca e da constituição de alianças. A
aliança — através do estabelecimento do tabu do incesto - é, para a escola
estruturalista, a passagem da natureza para a cultura, Além disso, Lévi-Strauss
traz para a análise da cultura o seu caráter simbólico, Com influências de
Saussure e sua teoria da linguagem, e tendo a comunicação como foco de seu
trabalho, o simbolismo da cultura torna-se seu foco de análise.
Outra figura importante, já citada neste texto no que se referc à
interpretação simbólica da cultura, é Clifford Geertz (1989). Ícone da visão
interpretativa, esse autor, diferentemente de Lévi-Strauss, não acredita que
Conceitos fundantes na Antropologia: sobre cultura, elnecentrismo e retativismo | 245
i e regeria nem que
temos acesso às estruturas inconscientes que regertam esta cultura e q
r ico é dução
é este seu objeto de estudo, mas sim que o fazer antropológico é uma traduç
ã i ão o nativo tem
da cultura do nativo, uma interpretação da interpretação que o
seu mundo ctc. Neste sentido, para claborar um
si, de sua cultura, de ]
a se de metáforas como: “a cultura é como um texto a
conceito de cultura, vale- pro
ser interpretado” ou “a cultura é como um jogo”, etc.
ida é ã como uma
Sua metálora mais conhecida é a concepção de cultura
ei s50:€ 1
uma teia na qual o sujeito está preso e a partir da qual
vive em sociedade, constantemente
teia de significados,
j a vida, se comunica,
ele joga o jogo da vida, à ! E
interpretando-a e através dela sendo interpretado. Segundo pd (1986)
À rt A aptar os
é esta teia que deve ser interpretada pelo antropólogo, buscando cap!
signi s presentes na linguagem,
textos, os significados present a e
E se deve ser expressa de forma a dar conta de vários planos
É Geertz quem traz para a antropologia a ideia de
r sua descrição sobre a briga de galos na
nos gestos, etc. Além
disso, esta anális;
de significados e sentidos.
“escrita densa” — da qual é basila
uma “escrita densa” — da q ! Ef pd cet
sociedade balinesa — a noção de que o pesquisador o po
: i ú SCI el e as
o ge RTV ve compreent er o scu pap:
isa, que este deve ser reflexivo e dev
na pesquisa, que es
á e 2] campo.
implicações do fato dele estar lá, de estar em camp
S, ão de ão só
Esta postura traz para O estudo das culturas, a noção de que não
4 i õ di e os nalivos
o pesquisador (etnógralo) está interpretando a sociedade, mas Es
FE são também sujeitos deste processo. Tles, os nativos,
(pessoas estudadas) ; i aê
e S e ciando na
E estão produzindo teorias sobre a sua sociedade e influens
i i bre eles. E,
strução das teorias dos pesquisadores sol t
E de do antropólogo passará a ter
rão discutidos e aprofundados
então, a partir de
Geertz que a questão da autoria é da autorida
i 8 is mais tarde sei
outros delincamentos, os quais mais i j jo
por ele mesmo (GEERTZ, 1989b) e por outros (CLIFFORD & MARCUS,
1986; CLIFFORD, 1998).
Mais recentemente,
da própria antropologia como ciência, ns
Raio umas das outras, como nem melhores nem piores; nem atrasadas
difere s
nem evoluídas, firmou-se na antropologia.
r que ultura do outro através
Este olhar que busca captar a d É Fu SRS
também uma visão estática, acabada e
tende que as culturas estão sempre sm
s costumes também são
ós vári ri ercícios construção
e após vários outros exercícios de Ç
a compreensão das culturas como
Não ser cinocêntrico é o básico!
do método etnográfico
desconstruiu, há muito,
cultura, de modo que hoje se en
movimento e os significados que atribuímos ao:
mutantes e variáveis.
246 | SOCIOLOGIA: Trabalho - Ciência - Cuilura - Diversidade
SE
db cam ca
Além disso, a “cultura” (agora com as aspas) não mais é tida como
passível de apreensão somente pelo antropólogo e é construída na relação
que este estabelece com os nativos e o meio ambiente e no modo como tanto
º nativo como o antropólogo a percebem.
A caixa de ferramentas e o como fazer:
etnocentrismo e relativismo
Como já comentamos, uma das posturas mais comuns que presenciamos
em nosso dia a dia, frente às diferenças culturais e sociais, é a chamada atitude
etnocêntrica. Estaremos sendo etnocêntricos todas as vezes que julgarmos,
ierarquizarmos ou simplesmente buscarmos entender a cultura do outro à
partir dos nossos próprios padrões culturais, sem rolativizarmos e tentarmos
entender essa outra cultura a partir de outras perspectivas que não a nossa.
Neste sentido, relativizar significa deixar de lado o etnocentrismo, o qual,
por definição, congrega uma visão do mando onde o nosso próprio grupo é tomado
como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores,
nossos modelos, nossas definições do que é a existência. (ROCHA, 1995, p.7) À
postura etnocêntrica, segundo Everardo Rocha (1995) é manifesta, no plano
intelectual, como a dificuldade de pensarmos a diferença e, no plano afetivo,
através do surgimento de sentimentos de estranheza, medo, hostilidade etc.
Evitar essa postura ctnocêntrica exige assim que nos coloquemos no lugar do
outro, que exercitemos a alteridade.
Deste modo, para que possamos nos ocupar da temática da cultura, seja
eu um antropólogo ou um professor de sociologia, que em sala de aula irá
tratar dessa temática, é necessário que procuremos nos afastar, mesmo que de
todo este exercício seja impossível, de juízos de valor ou julgamento a priori e
que olhemos o outro, sua cultura, suas atitudes, suas formas de ser e estar no
mundo, à partir de seus próprios olhos, ou scja, da teia de significados na qual
este está imerso e da qual é parte constituinte e cor
ituidora,
O ctnocentrismo não causa apenas uma dificuldade de conseguirmos
compreender as diferenças, de não sermos capazes de entender atitudes e
formas de pensar ou sentir de pessoas diferentes de nés, Em termos políticos,
9 etnocentrismo torna-se um argumento de legitimação cia violência e da
Conceitos fundantes na Antropologia: sobre cultura, sinocertrismo e relativismo | 247
es de uma pessoa, de um grupo, de uma classe
inação, quando as convicçõ
o s, são consideradas
social, de uma região ou país, acerca de seus próprios valore er
Re ri econômica.
superiores às convieções de outras com menos força política ou eco!
Além disso, também não podemos nos esquecer dy E a
cultar nessa tarefa, uma vez que, da mesma forma que
e de Té calidad
acaba por impor como chave de leitura da realidade,
o sociocentrismo, postura
que pode nos difi
tnocêntrica,
im i é ti itas vezes, como
as crenças e valores de nossa classe social, a qual é tida, muitas vezes,
parâmetro para julgar grupos sociais distintos dos nossos.
Isto posto, tem-se que desde os primeiros estudos de Lévi-Strauss, as
jências Sociais e os pesquisadores e estudiosos da cultura
des, a tarefa de acabar com o eocentrismo em
têm tido como uma
rincipais preocupaç
o Rio Lo a tem ajudado, em muito, a nã a aa
Neste sentido, Franz Boas, a seu tempo, nos mostrou ne a ui
cada bildung, cada cultura só poderia ser entendida a partir E E a o
valores, hábitos e modos de vida e que esta deveria ser compreendida a pa
de sua própria história. a Ee
Dito de outra forma, até onde esta revisão do conceito E pe ir
perspectiva da antropologia nos levou neste texto, a cnhtura E A
compreendida relativamente. Surge daí o termo Esteio F E e
assim, quando buscamos explicar, compreender e E o
em suas práticas, costumes e maneiras de pensar, a partir des P R
ando. Um exemplo de relativização bem
de aula por professores de
lógica cultural, estamos relati
interessante, que poderia ser utilizado em salas
iologia, seria de pensar como in retar de forma relativista o fenômeno
i de sa r ivista o É
sociologia, ser pensar como interp: de f
de uma pessoa ver outra que já morreu
ste fenômeno pode ser explica e diversas maneiras e as pessoas
Este f d ado de diversas as |
ste fel
ime E : quem
atribuem significados diferentes a este acontecimento dependendo de q
foram e ã igiosas
elas são, de onde cresceram, de como foram educadas, se são religi
dr RR q
éticas etc. Se, por e mplo, formos céticos, se não acreditarm:
ou e Se,
i críamos acreditar que esta pessoa é
em fenômenos sobrenaturais, poderíamos a q Pp
es ênic alada cionalmente. Se acreditarmos que espíritos
izofrôni a nente. S H que espí
quizotrênica ou abalada emocional
i s e cla é édium
podem vira terra c aparecer para as pessoas, acreditaremos que cla é mé:
é que este espírito está se comunicando com ela Vas os deslocamentos não
fi lo Mas os de
que sp' “om d
espaços, contextos ou momentos de
param af. A mesma pessoa em diferente sat
sua vida, pode ter interpretações diversas sobre o mesmo fenômeno.
ra - Diversidade
248 | SOCIOLOGIA: Trabalho - Ciên:
ui
me
Para um relativista, o que importa é compreender os significados deste
fenômeno para as pessoas. Ele buscará entende-lo a partir dos diversos pontos
de vista existentes — dos céticos, dos religiosos, dos médicos etc. — de modo
que nenhum modo de conceber esse fenômeno será tido como superior ou
melhor que outro, Na verdade, o que importa é saber como esse fenômeno
é compreendido e percebido por diferentes grupos humanos e de que modo
as diferenças existentes em relação à percepção do fenômeno em questão
servem como uma forma de pensar — e perceber — a vida ea morte, o natural
e o sobrenatural, aquilo que está no campo do sagrado e aquilo que está no
campo da mundano, para aqueles que dele se ocupam em seu cotidiano.
Assim sendo, julgar a pessoa, dizer que a pessoa está mentindo ou que
é desequilibrada porque diz ver o espírito de sua avó, não vai colaborar com
a compreensão deste fenômeno presente em tantas culturas e, mais que isso,
pode hierarquizar os grupos religiosos e excluir as pessoas socialmente. Para
um etnocêntrico, as suas crenças são religião, as dos outros são “crendices”
ou “fanatismos” a serem desconsiderados e desr: speitados.
O estudo das culturas na antropologia, então, está intimamente
ligado aos conceitos de etnocentrismo e relativismo. Alguns autores como
Laplantine (1994), Rocha (1995) e Laraia (2002) buscam demonstrar que
o desenvolvimento da antropologia enquanto ciência foi exatamente uma
busca em desmascarar e desconstruir ctnocentrismos existentes dentro da
própria disciplina. Desta maneira, demonstram, através das análises das teses
sobre a diversidade cultural, elaboradas pelos primeiros viajantes nos séculos
XV e XVI até os dias de hoje, como esse olhar foi sendo desconstr uído e
relativizado, fazendo com que, hoje, percebamos os fenômenos culturais a
partir das diversas perspectivas dos grupos neles envolvidos.
E necessário, portanto, que não apenas compreendamos a cultura do
outro como diferente da nossa, mas que também sejamos capazes de ver e
ouvir essas outras pessoas, essas outras vozes, não apenas a partir de nosso
olhar e daquilo que queremos ver é ouvir, mas daquilo que esse outro nos diz
e mostra, Eis aqui o que os relativistas chamam de antropologia e entendem
como sendo seu método e objeto.
Mas se até agora nos ocupamos do “gutro”, daqueles que estão longe,
daqueles que são diferentes de nós, é hora de olharmos para nós mesmos,
é hora de olharmos para perto e estranharmos aquilo que nos é familiar.
Conceitos fundantes na Antropologia: sobre cultura, etnccentrismo e r
ismo | 249