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Guias e Dicas
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Conto de estudo culturais, Trabalhos de Literatura

Conto de Sophia de Mello Breyner, literatura portuguesa. Documento de estudos culturais em debate, riquíssimo.

Tipologia: Trabalhos

2022

Compartilhado em 31/08/2023

amanda-batista-77
amanda-batista-77 🇧🇷

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Baixe Conto de estudo culturais e outras Trabalhos em PDF para Literatura, somente na Docsity! A Viagem, de Sophia de Mello Breyner Andresen (in Contos Exemplares) A estrada ia entre campos e ao longe, às vezes, viam-se serras. Era o princípio de Setembro e a manhã estendia-se através da terra, vasta de luz e plenitude. Todas as coisas pareciam acesas. E, dentro do carro que os levava, a mulher disse a homem: - É o meio da vida. Através dos vidros, as coisas fugiam para trás. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as árvores e os rios fugiam e pareciam devorados sucessivamente. Era como se a própria estrada os engolisse. Surgiu uma encruzilhada. Aí viraram à direita. E seguiram. - Devemos estar a chegar - disse o homem. E continuaram. Árvores, campos, casas, pontes, serras, rios, fugiam para trás, escorregavam para longe. A mulher olhou inquieta em sua volta e disse: - Devemos estar enganados. Devemos ter vindo por um caminho errado. - Deve ter sido na encruzilhada - disse o homem, parando o carro. - Viramos para o Poente, devíamos ter virado para o Nascente. Agora temos de voltar até à encruzilhada. A mulher inclinou a cabeça para trás e viu quanto o Sol já subira no céu e como as coisas estavam a perder devagar a sua sombra. Viu também que o orvalho já secara nas ervas da beira da estrada. - Vamos ---:- disse ela. O homem virou o volante, o carro deu meia volta na estrada e voltaram para trás. A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, encostou a cabeça nas costas do banco e pôs-se a imaginar o lugar para onde iam. Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso. Ela pensou que a casa devia ser silenciosa, cheia de paz e branca, rodeada de roseiras; e pensou que o jardim devia ser grande e verde, percorrido de murmúrios. E alguém lhe tinha dito que no jardim passava um rio claro, brilhante, transparente. No fundo do rio via-se a areia e viam-se as pequenas pedras limpas e polidas. Nas margens crescia erva fina, misturada com trevo. E árvores de copa redonda, carregadas de frutos, cresciam nesse prado. - Logo que chegarmos - disse ela - , vamos tomar banho no rio. - Tomamos banho no rio e depois deitamo-nos a descansar na relva - disse o homem, sempre com os olhos fitos na estrada. E ela imaginou com sede a água clara e fria em roda dos seus ombros, e imaginou a relva onde se deitariam os dois, lado a lado, à sombra das folhagens e dos frutos. Ali parariam. Ali haveria tempo para pousar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali. Através dos vidros, campos, pinhais, montes e rios fugiam para trás. - Devemos estar a chegar à encruzilhada - disse o homem. E seguiram. Rios, campos, pinhais e montes. E meia hora passou. - Já devíamos ter chegado à encruzilhada - disse o homem. - Com certeza nos enganámos no caminho - disse a mulher. - Não nos podemos ter enganado - disse o homem -, não havia outro caminho. E seguiram. - A encruzilhada já devia ter aparecido - disse o homem. - O que é que vamos fazer? - perguntou a mulher. - Seguir em frente. - Mas estamos a perder-nos. - Não vejo outro caminho - disse o homem. E seguiram. Encontraram rios, campos, montes; atravessaram rios, campos, montes; perderam rios, campos, montes. As paisagens fugiam, puxadas para trás. - Estamos a perder-nos cada vez mais - disse a mulher. - Mas onde há outro caminho? - perguntou o homem. E parou o carro. À esquerda havia uma grande planície vazia; à direita uma colina coberta de árvores. - Vamos subir ao alto da colina - disse o homem. De lá devem avistar-se todos os caminhos em redor. Subiram ao alto da colina e não avistaram estradas; mas avistaram um cavador a cavar numa horta. Caminharam para ele e perguntaram-lhe se sabia o caminho para a encruzilhada. - Sei - disse o cavador -, é para além. - Podes guiar-nos até lá? - Posso, mas primeiro tenho de acabar este rego para a água passar. Demoro pouco. - Nós esperamos - disse o homem. - Tenho sede disse a mulher. - Além, atrás dos penedos - disse o cavador, apontando -, há uma fonte. Ide lá beber enquanto eu acabo o rego. Caminharam na direção que o cavador apontara e atrás dos penedos encontraram a fonte. A fonte caía do alto e espetava-se na terra, direita, limpa e brilhante como uma espada. Ali beberam e ficaram com a cara e os cabelos todos salpicados de gotas, riram de alegria na frescura da água, esqueceram o cansaço, o caminho perdido, a viagem. A mulher sentou-se numa pedra coberta de musgo, o homem sentou-se ao seu lado e os dois permaneceram alguns momentos de mãos dadas, imóveis e calados. Depois, um pássaro pousou perto da fonte e o homem disse: - Temos de ir. Levantaram-se e tomaram o caminho da horta, à procura do cavador. Mas quando chegaram à horta o cavador não estava lá. Viram a água a correr nos regos; viram a salsa e a hortelã crescendo lado a lado; mas não viram o cavador. . - Não quis esperar - disse o homem. - Porque é que nos mentiu? - Talvez não quisesse mentir. Talvez não pudesse esperar. Ou talvez se esquecesse de nós. - E agora? - perguntou a mulher. - Vamos voltar para o carro e vamos seguir na direção que ele há pouco apontou. . Subiram e desceram a colina em direção ao carro, mas quando chegaram à estrada o carro tinha desaparecido. - Devemos estar enganados; devemos ter vindo noutra direção. - Ou alguém nos roubou o carro. - Onde estará o cavador? - Talvez tenha ido à fonte à nossa procura. - Temos de encontrar alguém - disse a mulher. - Vamos outra vez à fonte; com certeza o cavador foi ter. E puseram-se de novo a caminho. Subiram e desceram a colina; atravessaram a horta. Cheirava a hortelã e a terra regada. Mas do outro lado dos penedos não encontraram a fonte. - Não era aqui - disse o homem. - Era aqui- disse a mulher. - Era aqui. Tenho medo. Vamos voltar depressa para a estrada. . E foram pela estrada à procura do carro. - Que vamos fazer? - perguntou a mulher. .:-. Alguém há-de passar - respondeu o homem. Seguiram pela estrada. O Sol continuava a subir no céu. - Estou cansada - disse a mulher. - Quando chegarmos à terra para onde vamos, descansarás, estendida na relva, à sombra das árvores e dos frutos. - Temos de encontrar depressa o caminho - disse a mulher. Ao longe, entre pinhais, surgiu uma casa. - Vamos até lá - disse o homem. - Talvez lá esteja alguém que nos saiba ensinar o caminho. Havia uma ligeira brisa e os pinheiros ondulavam. Bateram à porta da casa. Ninguém respondeu. Escutaram e pareceu-lhes ouvir vozes. Tornaram a bater. Ninguém respondeu. Esperaram. Bateram de novo, com força, espaçadamente, nitidamente, devagar. As pancadas ressoaram. Ninguém respondeu. Então o homem avançou o ombro direito e arrombou a porta. Mas a casa estava vazia. Era uma pequena casa de camponeses. Uma casa nua, onde só estavam escritos os gestos da vida. Havia uma cozinha e dois quartos. Num rebordo da parede de cal estava colocada uma imagem; em frente da imagem ardia uma lamparina de azeite; ao lado, alguém pois ara um ramo de flores bentas na Páscoa. Não havia ninguém na cozinha. Não havia ninguém nos quartos. Não havia ninguém nas traseiras, onde as roupas secavam, dependuradas no arame, gesticulando na brisa. No forno a cinza ainda estava quente e em cima de uma mesa havia vinho e pão. - Tenho fome - disse a mulher. Sentaram-se e comeram. - E agora? - perguntou a mulher. - Vamos voltar outra vez para a estrada e continuar- disse o homem. Saíram e atravessaram o pinhal. Mas a estrada tinha desaparecido. - Tenho medo - disse a mulher. Agora tenho sempre cada vez mais medo. Tudo desaparece. - Estamos juntos - disse o homem. - Mas o que é que vamos fazer sem estrada? - Vamos voltar para a casa - disse o homem - e lá esperaremos até que os donos cheguem e nos ensinem o caminho e nos ajudem. E de novo atravessaram os pinhais. Mas no lugar onde tinha sido a casa agora havia só uma pequena clareira e pedras espalhadas. Ambos ficaram mudos. Depois a - Por que é que colhes as flores com a raiz? - Porque as quero plantar na terra para onde vamos. Não sei se lá há flores iguais a estas - respondeu a mulher. E seguiram. Agora o dia começava a cair. - Tenho fome - disse a mulher. - Temos as amoras - disse o homem. Pousou o lenço no chão e desatou os nós. Mas o lenço estava vazio. Ficaram uns momentos calados. Depois o homem disse: - As pontas do lenço estavam com certeza mal atadas e as amoras foram-se perdendo uma por uma à medida que íamos andando. Uma por uma. Nem as senti cair. - Tenho fome - disse a mulher. - Vamos para a frente - disse o homem. Viram ao longe entre as árvores um clarão vermelho. - É o pôr do Sol! - exclamou a mulher. - Já é o pôr do Sol! - Vamos depressa - disse o homem. - Vem aí a noite e ainda não encontrámos o caminho. E foram quase correndo. Entre as sombras do crepúsculo ouviram de repente vozes. - Gente! - exclamou o homem. - Estamos salvos! - Salvos? - perguntou a mulher. E de novo se ouviram vozes: - Estão para aquele lado - disse a mulher, apontando para a esquerda. - Não, estão para além - disse o homem, apontando para a direita. O homem agarrou a mão da mulher e correram os dois para a direita. Mas à medida que iam correndo, as vozes iam-se tornando-se mais distantes. - Vão mais depressa do que nós! - queixou-se a mulher. - Mas - respondeu o homem - se conseguirmos ao menos seguir a direção que levam estaremos salvos. Assim foram, escutando e correndo, enquanto as sombras do crepúsculo cresciam. Até que as vozes deixaram de se ouvir e a noite caiu espessa e cerrada. A Lua ainda não tinha nascido. Por todos os lados os rodeavam sombras, ruídos, murmúrios que eles confundiam com vultos, passos, vozes. Mas eram apenas trevas, troncos de árvores, galhos secos que estalavam, sussurrar de folhagens. - Estamos perdidos? - perguntou a mulher. - Não sabemos - disse o homem. Seguiram devagar, de mão dada, em silêncio, encostados um ao outro. Até que de repente viram que tinham chegado ao fim da floresta. Cheios de esperança, avançaram para o espaço descoberto, mas, saindo do arvoredo, encontraram à sua frente um abismo. Debruçados espreitaram. Porém, à luz das estrelas nada viam diante de si senão um poço de escuridão, enquanto um frio de mármore lhes tocava a cara. - É um precipício - disse o homem. - A terra está separada em nossa frente. Não podemos dar nem sequer mais um passo. - Olha! - respondeu a mulher. E apontou um estreito carreiro que seguia rente ao abismo. Tinha à esquerda uma alta arriba de pedra e à direita o vazio. - Vamos - disse o homem. - Tenho medo - disse a mulher. - Estamos juntos - respondeu o homem -, não tenhas medo. E seguiram pelo carreiro. O homem ia à frente e a mulher atrás segurava- se com a mão esquerda aos penedos e com a mão direita ao ombro do homem. Iam em silêncio sob o brilho escuro das estrelas, medindo cada gesto e cada passo. Mas de repente o corpo do homem oscilou, rolaram pequenas pedras. Ele gritou à mulher: - Segura-me! Mas já o ombro dele escorregava das mãos dela. E a mulher gritou: - Agarra-te à terra! Mas nenhuma voz lhe respondeu, pois no grande silêncio nítido e sonoro só se ouvia o rolar das pedras. Ela estava sozinha, vestida de terror, agarrada ao chão em frente do vazio. - Responde! - gritou debruçada sobre o abismo. Longe, o eco da sua voz repetiu: - Responde. Estava estendida na terra, com as mãos enterradas na terra, e começou a gritar como quem está perdido no meio dum sonho. Depois parou de gritar e murmurou: - Tenho de o ir procurar. Seguiu de rasto pelo carreiro, tacteando o chão com as mãos à busca duma passagem por onde pudesse descer para procurar o homem. Mas não havia passagem. Então tentou descer pela própria vertente do abismo. Agarrando-se a ervas e raízes deixou-se escorregar ao longo do precipício. Mas os seus pés não encontravam nenhum apoio onde pudessem firmar-se. Pois a vertente descia a pique, era uma parede lisa de pedra nua. - Tenho de voltar para o carreiro - pensou a mulher - e tenho de procurar mais adiante uma passagem. E, agarrada a ervas e raízes, içou-se para o carreiro. Mas o carreiro tinha desaparecido. Agora havia apenas um estreito rebordo onde ela não cabia, onde nem os seus pés cabiam. Um rebordo sem saída. Aí ficou, de lado, com os pés um em frente do outro, com o lado direito do seu corpo colado à pedra da arriba e o lado esquerdo já banhado pela respiração fria e rouca do abismo. Sentia que as erva se as raízes a que se segurava cediam lentamente com o peso do seu corpo. Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo. Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder. Compreendeu que lhe restavam somente alguns momentos. Então virou a cara para o outro lado do abismo. Tentou ver através da escuridão. Mas só se via escuridão. Ela, porém, pensou: - Do outro lado do abismo está com certeza alguém. E começou a chamar. O conto narra a trajetória de um casal pela busca de um lugar maravilhoso, mas esse lugar nunca é encontrado. O título “A viagem” pode ser interpretado como metáfora da vida, tendo em vista que esta é passageira e, portanto, não passa de uma viagem. Considerando essa metáfora, podemos dizer que a temática principal do conto é o elo (a ponte) entre a vida e a morte; a trajetória do casal “é o meio da vida”, ou seja, é o limiar entre a passagem pela vida terrena e a busca por um lugar desconhecido, pelo Paraíso, pela eternidade. O tempo da vida, que é breve, se entrecruza com o tempo da morte, que representa toda a eternidade:No caminho que perfazem, eles, o homem e sua mulher, se deparam com lugares muito bonitos, onde encontram rios, fontes, árvores, etc. Contudo, a pressa de chegar ao lugar desejado não permite que eles desfrutem das maravilhas encontradas no percurso. Ou seja: eles acabam não dando o valor merecido às minúcias que a vida oferece. Fazendo um paralelo entre ficção e a nossa realidade, estamos sempre buscando algo mais, o distante, o instante que estar por vir; Nunca estamos satisfeitos com o agora, com o instante vivido e, consequentemente, nunca sabemos aproveitar verdadeiramente o momento no qual estamos inseridos. A vida é o agora, o amanhã é distante – “tomorrow is a long time”.
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