Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Cortiço sociologicosfsfd, Redação de Sociologia

~098368764u958y8ty439yuy9wu94u48yyu3

Tipologia: Redação

2019

Compartilhado em 09/09/2019

marcos-oliveira-pubg
marcos-oliveira-pubg 🇧🇷

1 documento

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Cortiço sociologicosfsfd e outras Redação em PDF para Sociologia, somente na Docsity! O Cortiço, de Aluísio de Azevedo Fonte: AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 30. ed. São Paulo: Ática, 1997. (Bom Livro). Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>. Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quiser ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <parceiros@futuro.usp.br> ou <voluntario@futuro.usp.br> O CORTIÇO Aluísio de Azevedo I João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro. Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade. Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta. João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça, fez-se até participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras. Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades. “Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!” E segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”. E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher, que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com ela qualquer negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo direito a João Romão. Quando deram fé estavam amigados. Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua. João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos de terreno ao lado esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas, dividida ao meio paralelamente à rua, sendo a parte da frente destinada à quitanda e a do fundo para um dormitório que se arranjou com os cacarecos de Bertoleza. Havia, além da cama, uma cômoda de jacarandá muito velha com maçanetas de metal amarelo já mareadas, um oratório cheio de santos e forrado de papel de cor, um baú grande de couro cru tacheado, dois banquinhos de pau feitos de uma só peça e um formidável cabide de pregar na parede, com a sua competente coberta de retalhos de chita. O vendeiro nunca tivera tanta mobília. — Agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você vai ficar forra; eu entro com o que falta. Nesse dia ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma folha de papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira. — Você agora não tem mais senhor! declarou em seguida à leitura, que ela ouviu entre lágrimas agradecidas. Agora está livre. Doravante o que você fizer é só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar os vinte mil-réis à peste do cego! — Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele, como meu senhor, exigia o jornal, exigia o que era seu! — Seu ou não seu, acabou-se! E vida nova! Contra todo o costume, abriu-se nesse dia uma garrafa de vinho do Porto, e os dois beberam-na em honra ao grande acontecimento. Entretanto, a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar à burla maior formalidade, representava despesa porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; o que lhe constou, sim, foi que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do amigo. — O cego que venha buscá-la aqui, se for capaz... desafiou o vendeiro de si para si. Ele que caia nessa e verá se tem ou não pra pêras! Não obstante, só ficou tranqüilo de todo daí a três meses, quando lhe constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a qualquer dos filhos do morto; mas, por estes, nada havia que recear: dois pândegos de marca maior que, empolgada a legitima, cuidariam de tudo, menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de muitos anos àquela parte. “Ora! bastava já, e não era pouco, o que lhe tinham sugado durante tanto tempo!” Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de outros serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, não era tanta e nunca passava em todo o mês de alguns pares de calças de zuarte e outras tantas camisas de riscado. João Romão não saia nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos; tudo que rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa econômica e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da aquisição da crioula, indo em hasta pública algumas braças de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de construir três casinhas de porta e janela. Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção! Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraiam o material das casas em obra que havia por ali perto. Estes furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do melhor sucesso, graças à circunstância de que nesse tempo a polícia não se mostrava muito por aquelas alturas. João Romão observava durante o dia quais as obras em que ficava material para o dia seguinte, e à noite lá estava ele rente, mais a Bertoleza, a removerem tábuas, tijolos, telhas, sacos de cal, para o meio da rua, com tamanha habilidade que se não ouvia vislumbre de rumor. Depois, um tomava uma carga e partia para casa, enquanto o outro ficava de alcatéia ao lado do resto, pronto a dar sinal, em caso de perigo; e, quando o que tinha ido voltava, seguia então o companheiro, carregado por sua vez. Nada lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de pau, o banco ou a ferramenta dos marceneiros. E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão. Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de moradores. Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos — É que você é teimoso! Olhe, se me cedesse as dez braças do fundo, a sua parte ficaria cortada em linha reta até à pedreira, e escusava eu de ficar com uma aba de terreno alheio a meter-se pelo meu. Quer saber? não amuro o quintal sem você decidir-se! — Então ficará com o quintal para sempre sem muro, porque o que tinha a dizer já disse! — Mas, homem de Deus, que diabo! pense um pouco! Você ali não pode construir nada! Ou pensará que lhe deixarei abrir janelas sobre o meu quintal!... — Não preciso abrir janelas sobre o quintal de ninguém! — Nem tampouco lhe deixarei levantar parede, tapando-me as janelas da esquerda! — Não preciso levantar parede desse lado... — Então que diabo vai você fazer de todo este terreno?... — Ah! isso agora é cá comigo!... O que for soará! — Pois creia que se arrepende de não me ceder o terreno!... — Se me arrepender, paciência! Só lhe digo é que muito mal se sairá quem quiser meter-se cá com a minha vida! — Passe bem! — Adeus! Travou-se então uma lata renhida e surda entre o português negociante de fazendas por atacado e o português negociante de secos e molhados. Aquele não se resolvia a fazer o muro do quintal, sem ter alcançado o pedaço de terreno que o separava do morro; e o outro, por seu lado, não perdia a esperança de apanhar-lhe ainda, pelo menos, duas ou três braças aos fundos da casa; parte esta que, conforme os seus cálculos, valeria ouro, uma vez realizado o grande projeto que ultimamente o trazia preocupado — a criação de uma estalagem em ponto enorme, uma estalagem monstro, sem exemplo, destinada a matar toda aquela miuçalha de cortiços que alastravam por Botafogo. Era este o seu ideal. Havia muito que João Romão vivia exclusivamente para essa idéia; sonhava com ela todas as noites; comparecia a todos os leilões de materiais de construção; arrematava madeiramentos já servidos; comprava telha em segunda mão; fazia pechinchas de cal e tijolos; o que era tudo depositado no seu extenso chão vazio, cujo aspecto tomava em breve o caráter estranho de uma enorme barricada, tal era a variedade dos objetos que ali se apinhavam acumulados: tábuas e sarrafos, troncos de árvore, mastros de navio, caibros, restos de carroças, chaminés de barro e de ferro, fogões desmantelados, pilhas e pilhas de tijolos de todos os feitios, barricas de cimento, montes de areia e terra vermelha, aglomerações de telhas velhas, escadas partidas, depósitos de cal, o diabo enfim; ao que ele, que sabia perfeitamente como essas coisas se furtavam, resguardava, soltando à noite um formidável cão de fila. Este cão era pretexto de eternas resingas com a gente do Miranda, a cujo quintal ninguém de casa podia descer, depois das dez horas da noite, sem correr o risco de ser assaltado pela fera. — É fazer o muro! dizia o João Romão, sacudindo os ombros. — Não faço! replicava o outro. Se ele é questão de capricho eu também tenho capricho! Em compensação, não caia no quintal do Miranda galinha ou frango, fugidos do cercado do vendeiro, que não levasse imediato sumiço. João Romão protestava contra o roubo em termos violentos, jurando vinganças terríveis, falando em dar tiros. — Pois é fazer um muro no galinheiro! repontava o marido de Estela. Daí a alguns meses, João Romão, depois de tentar um derradeiro esforço para conseguir algumas braças do quintal do vizinho, resolveu principiar as obras da estalagem. — Deixa estar, conversava ele na cama com a Bertoleza; deixa estar que ainda lhe hei de entrar pelos fundos da casa, se é que não lhe entre pela frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe, não duas braças, mas seis, oito, todo o quintal e até o próprio sobrado talvez! E dizia isto com uma convicção de quem tudo pode e tudo espera da sua perseverança, do seu esforço inquebrantável e da fecundidade prodigiosa do seu dinheiro, dinheiro que só lhe saia das unhas para voltar multiplicado. Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que no entanto gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda, da venda às hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo de que ele não podia apoderar-se logo com as unhas. Entretanto, a rua lá fora povoava-se de um modo admirável. Construía-se mal, porém muito; surgiam chalés e casinhas da noite para o dia; subiam os aluguéis; as propriedades dobravam de valor. Montara-se uma fábrica de massas italianas e outra de velas, e os trabalhadores passavam de manhã e às Ave-Marias, e a maior parte deles ia comer à casa de pasto que João Romão arranjara aos fundos da sua varanda. Abriram-se novas tavernas; nenhuma, porém, conseguia ser tão afreguesada como a dele. Nunca o seu negocio fora tão bem, nunca o finório vendera tanto; vendia mais agora, muito mais, que nos anos anteriores. Teve até de admitir caixeiros. As mercadorias não lhe paravam nas prateleiras; o balcão estava cada vez mais lustroso, mais gasto. E o dinheiro a pingar, vintém por vintém, dentro da gaveta, e a escorrer da gaveta para a barra, aos cinqüenta e aos cem mil-réis, e da burra para o banco, aos contos e aos contos. Afinal, já lhe não bastava sortir o seu estabelecimento nos armazéns fornecedores; começou a receber alguns gêneros diretamente da Europa: o vinho, por exemplo, que ele dantes comprava aos quintos nas casas de atacado, vinha-lhe agora de Portugal às pipas, e de cada uma fazia três com água e cachaça; e despachava faturas de barris de manteiga, de caixas de conserva, caixões de fósforos, azeite, queijos, louça e muitas outras mercadorias. Criou armazéns para depósito, aboliu a quitanda e transferiu o dormitório, aproveitando o espaço para ampliar a venda, que dobrou de tamanho e ganhou mais duas portas. Já não era uma simples taverna, era um bazar em que se encontrava de tudo, objetos de armarinho, ferragens, porcelanas, utensílios de escritório, roupa de riscado para os trabalhadores, fazenda para roupa de mulher, chapéus de palha próprios para o serviço ao sol, perfumarias baratas, pentes de chifre, lenços com versos de amor, e anéis e brincos de metal ordinário. E toda a gentalha daquelas redondezas ia cair lá, ou então ali ao lado, na casa de pasto, onde os operários das fábricas e os trabalhadores da pedreira se reuniam depois do serviço, e ficavam bebendo e conversando até as dez horas da noite, entre o espesso fumo dos cachimbos, do peixe frito em azeite e dos lampiões de querosene. Era João Romão quem lhes fornecia tudo, tudo, até dinheiro adiantado, quando algum precisava. Por ali não se encontrava jornaleiro, cujo ordenado não fosse inteirinho parar às mãos do velhaco. E sobre este cobre, quase sempre emprestado aos tostões, cobrava juros de oito por cento ao mês, um pouco mais do que levava aos que garantiam a divida com penhores de ouro ou prata. Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação. O Miranda rebentava de raiva. — Um cortiço! exclamava ele, possesso. Um cortiço! Maldito seja aquele vendeiro de todos os diabos! Fazer-me um cortiço debaixo das janelas!... Estragou-me a casa, o malvado! E vomitava pragas, jurando que havia de vingar-se, e protestando aos berros contra o pó que lhe invadia em ondas as salas, e contra o infernal baralho dos pedreiros e carpinteiros que levavam a martelar de sol a sol. O que aliás não impediu que as casinhas continuassem a surgir, uma após outra, e fossem logo se enchendo, a estenderem-se unidas por ali a fora, desde a venda até quase ao morro, e depois dobrassem para o lado do Miranda e avançassem sobre o quintal deste, que parecia ameaçado por aquela serpente de pedra e cal. O Miranda mandou logo levantar o muro. Nada! aquele demônio era capaz de invadir-lhe a casa até a sala de visitas! E os quartos do cortiço pararam enfim de encontro ao muro do negociante, formando com a continuação da casa deste um grande quadrilongo, espécie de pátio de quartel, onde podia formar um batalhão. Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem. Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que separavam a venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta encarnada e sem ortografia: “Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras”. As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adiantado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar. Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los. E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco. E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. sombra do Mirada, com quem por muitos anos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patrão, e de quem se conservara amigo, a principio por acaso e mais tarde por necessidade. Devorava-o, noite e dia, uma implacável amargura, uma surda tristeza de vencido, um desespero impotente, contra tudo e contra todos, por não lhe ter sido possível empolgar o mundo com as suas mãos hoje inúteis e trêmulas. E, como o seu atual estado de miséria não lhe permitia abrir contra ninguém o bico, desabafava vituperando as idéias da época. Assim, eram às vezes muito quentes as sobremesas do Miranda, quando, entre outros assuntos palpitantes, vinha à discussão o movimento abolicionista que principiava a formar-se em torno da lei Rio Branco. Então o Botelho ficava possesso e vomitava frases terríveis, para a direita e para a esquerda, como quem dispara tiros sem fazer alvo, e vociferava imprecações, aproveitando aquela válvula para desafogar o velho ódio acumulado dentro dele. — Bandidos! berrava apoplético. Cáfila de salteadores! E o seu rancor irradiava-lhe dos olhos em setas envenenadas, procurando cravar-se em todas as brancuras e em todas as claridades. A virtude, a beleza, o talento, a mocidade, a força, a saúde, e principalmente a fortuna, eis o que ele não perdoava a ninguém, amaldiçoando todo aquele que conseguia o que ele não obtivera; que gozava o que ele não desfrutara; que sabia o que ele não aprendera. E, para individualizar o objeto do seu ódio, voltava-se contra o Brasil, essa terra que, na sua opinião, só tinha uma serventia: enriquecer os portugueses, e que, no entanto, o deixara, a ele, na penúria. Seus dias eram consumidos do seguinte modo: acordava às oito da manhã, lavava-se mesmo no quarto com uma toalha molhada em espírito de vinho; depois ia ler os jornais para a sala de jantar, à espera do almoço; almoçava e sala, tomava o bonde e ia direitinho para uma charutaria da Rua do Ouvidor, onde costumava ficar assentado até às horas do jantar, entretido a dizer mal das pessoas que passavam lá fora, defronte dele. Tinha a pretensão de conhecer todo o Rio de Janeiro e os podres de cada um em particular. Às vezes, poucas, Dona Estela encarregava-o de fazer pequenas compras de armarinho, o que o Botelho desempenhava melhor que ninguém? Mas a sua grande paixão, o seu fraco, era a farda, adorava tudo que dissesse respeito a militarismo, posto que tivera sempre invencível medo às armas de qualquer espécie, mormente às de fogo. Não podia ouvir disparar perto de si uma espingarda, entusiasmava-se porém com tudo que cheirasse a guerra; a presença de um oficial em grande uniforme tirava-lhe lágrimas de comoção; conhecia na ponta da língua o que se referia à vida de quartel; distinguia ao primeiro lance de olhos o posto e o corpo a que pertencia qualquer soldado e, apesar dos seus achaques, era ouvir tocar na rua a corneta ou o tambor conduzindo o batalhão, ficava logo no ar, e, muita vez, quando dava por si, fazia parte dos que acompanhavam a tropa. Então, não tornava para casa enquanto os militares neo se recolhessem. Quase sempre voltava dessa loucura às seis da tarde, moído a fazer dó, sem poder ter-se nas pernas, estrompado de marchar horas e horas ao som da música de pancadaria. E o mais interessante é que ele, ao vir-lhe a reação, revoltava-se furioso contra o maldito comandante que o obrigava àquela estopada, levando o batalhão por uma infinidade de ruas e fazendo de propósito o caminho mais longo. — Só parece, lamentava-se ele, que a intenção daquele malvado era dar-me cabo da pele! Ora vejam! Três horas de marche-marche por uma soalheira de todos os diabos! Uma das birras mais cômicas do Botelho era o seu ódio pelo Valentim. O moleque causava-lhe febre com as suas petulâncias de mimalho, e, velhaco, percebendo quanto elas o irritavam, ainda mais abusava, seguro na proteção de Dona Estela. O parasita de muito que o teria estrangulado, se não fora a necessidade de agradar à dona da casa. Botelho conhecia as faltas de Estela como as palmas da própria mão. O Miranda mesmo, que o via em conta de amigo fiel, muitas e muitas vezes lhas confiara em ocasiões desesperadas de desabafo, declarando francamente o quanto no intimo a desprezava e a razão por que não a punha na rua aos pontapés. E o Botelho dava-lhe toda a razão; entendia também que os sérios interesses comerciais estavam acima de tudo. — Uma mulher naquelas condições, dizia ele convicto, representa nada menos que o capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza! Agora, você o que devia era nunca chegar-se para ela... — Ora! explicava o marido. Eu me sirvo dela como quem se serve de uma escarradeira! O parasita, feliz por ver quanto o amigo aviltava a mulher, concordava em tudo plenamente, dando-lhe um carinhoso abraço de admiração. Mas por outro lado, quando ouvia Estela falar do marido, com infinito desdém e até com asco, ainda mais resplandecia de contente. — Você quer saber? afirmava ela, eu bem percebo quanto aquele traste do senhor meu marido me detesta, mas isso tanto se me dá como a primeira camisa que vesti! Desgraçadamente para nós, mulheres de sociedade, não podemos viver sem esposo, quando somos casadas; de forma que tenho de aturar o que me caiu em sorte, quer goste dele quer não goste! Juro-lhe, porém, que, se consinto que o Miranda se chegue às vezes para mim, é porque entendo que paga mais à pena ceder do que puxar discussão com uma besta daquela ordem! O Botelho, com a sua encanecida experiência do mundo, nunca transmitia a nenhum dos dois o que cada qual lhe dizia contra o outro; tanto assim que, certa ocasião, recolhendo-se à casa incomodado, em hora que não era do seu costume, ouviu, ao passar pelo quintal, sussurros de vozes abafadas que pareciam vir de um canto afogado de verdura, onde em geral não ia ninguém. Encaminhou-se para lá em bicos de pés e, sem ser percebido, descobriu Estela entalada entre o muro e o Henrique. Deixou-se ficar espiando, sem tugir nem mugir, e, só quando os dois se separaram, foi que ele se mostrou. A senhora soltou um pequeno grito, e o rapaz, de vermelho que estava, fez-se cor de cera; mas o Botelho procurou tranqüilizá-los, dizendo em voz amiga e misteriosa: — Isso é uma imprudência o que vocês estão fazendo!... Estas coisas não é deste modo que se arranjam! Assim como fui eu, podia ser outra pessoa... Pois numa casa em que há tantos quartos, é lá preciso vir meterem-se neste canto do quintal?... — Nós não estávamos fazendo nada! disse Estela, recuperando o sangue-frio. — Ah! tornou o velho, aparentando sumo respeito: então desculpe, pensei que estivessem... E olhe que, se assim fosse, para mim seria o mesmo, porque acho isso a coisa mais natural do mundo e entendo que desta vida a gente só leva o que come!... Se vi, creia, foi como se nada visse, porque nada tenho a cheirar com a vida de cada um!... A senhora está moça, está na força dos anos; seu marido não a satisfaz, é justo que o substitua por outro! Ah! isto é o mundo, e, se é torto, não fomos nós que o fizemos torto!... Até certa idade todos temos dentro um bichinho-carpinteiro, que é preciso matar, antes que ele nos mate! Não lhes doam as mãos!... apenas acho que, para outra vez, devem ter um pouquinho mais de cuidado e... — Está bom! basta! ordenou Estela. — Perdão! eu, se digo isto, é para deixá-los bem tranqüilos a meu respeito. Não quero, nem por sombra, que se persuadam de que... O Henrique atalhou, com a voz ainda comovida: — Mas, acredite, seu Botelho, que... O velho interrompeu-o também por sua vez, passando-lhe a mão no ombro e afastando-o consigo: — Não tenha receio, que não o comprometerei, menino! E, como já estivessem distantes de Estela, segredou-lhe em tom protetor: — Não torne a fazer isto assim, que você se estraga... Olhe como lhe tremem as pernas! Dona Estela acompanhou-os a distancia, vagarosamente, afetando preocupação em compor um ramalhete, cujas flores ela ia colhendo com muita graça, ora toda vergada sobre as plantas rasteiras, ora pondo-se na pontinha dos pés para alcançar os heliotrópios e os manacás. Henrique seguiu o Botelho até ao quarto deste, conversando sem mudar de assunto. — Você então não fala nisto, hein? Jura? perguntou-lhe. O velho tinha já declarado, a rir, que os pilhara em flagrante e que ficara bom tempo à espreita. — Falar o quê, seu tolo?... Pois então quem pensa você que eu sou?... Só abrirei o bico se você me der motivo para isso, mas estou convencido que não dará... Quer saber? eu até simpatizo muito com você, Henrique! Acho que você é um excelente menino, uma flor! E digo-lhe mais: hei de proteger os seus negócios com Dona Estela... Falando assim, tinha-lhe tomado as mãos e afagava-as. — Olhe, continuou, acariciando-o sempre; não se meta com donzelas, entende?... São o diabo! Por dá cá aquela palha fica um homem em apuros! agora quanto às outras, papo com elas! Não mande nenhuma ao vigário, nem lhe doa a cabeça, porque, no fim de contas, nas circunstâncias de Dona Estela, é até um grande serviço que você lhe faz! Meu rico amiguinho, quando uma mulher já passou dos trinta e pilha a jeito um rapazito da sua idade, é como se descobrisse ouro em pó! sabe-lhe a gaitas! Fique então sabendo de que não é só a ela que você faz o obséquio, mas também ao marido: quanto mais escovar-lhe você a mulher, melhor ela ficará de gênio, e por conseguinte melhor será para o pobre homem, coitado! que tem já bastante com que se aborrecer lá por baixo, com os seus negócios, e precisa de um pouco de descanso quando volta do serviço e mete-se em casa! Escove-a, escove-a! que a porá macia que nem veludo! O que é preciso é muito juizinho, percebe? Não faça outra criançada como a de hoje e continue para diante, não só com ela, mas com todas as que lhe caírem debaixo da asa! Vá passando! menos as de casa aberta, que isso é perigoso por causa das moléstias; nem tampouco donzelas! Não se meta com a Zulmira! E creia que lhe falo assim, porque sou seu amigo, porque o acho simpático, porque o acho bonito! E acarinhou-o tão vivamente dessa vez, que o estudante, fugindo-lhe das mãos, afastou-se com um gesto de repugnância e desprezo, enquanto o velho lhe dizia em voz comprimida: — Olha! Espera! Vem cá! Você é desconfiado!... orçando aliás pelos dezoito anos, não tinha ainda pago à natureza o cruento tributo da puberdade, apesar do zelo da velha e dos sacrifícios que esta fazia para cumprir à risca as prescrições do médico e não faltar à filha o menor desvelo. No entanto, coitadas! daquele casamento dependia a felicidade de ambas, porque o Costa, bem empregado como se achava em casa de um tio seu, de quem mais tarde havia de ser sócio, tencionava, logo que mudasse de estado, restituí-las ao seu primitivo circulo social. A pobre velha desesperava-se com o fato e pedia a Deus, todas as noites, antes de dormir, que as protegesse e conferisse à filha uma graça tão simples que ele fazia, sem distinção de merecimento, a quantas raparigas havia pelo mundo; mas, a despeito de tamanho empenho, por coisa nenhuma desta vida consentiria que a sua pequena casasse antes de “ser mulher”, como dizia ela. E “que deixassem lá falar o doutor, entendia que não era decente, nem tinha jeito, dar homem a uma moça que ainda não fora visitada pelas regras! Não! Antes vê-la solteira toda a vida e ficarem ambas curtindo para sempre aquele inferno da estalagem!” Lá no cortiço estavam todos a par desta história; não era segredo para ninguém. E não se passava um dia que não interrogassem duas e três vezes a velha com estas frases: — Então? Já veio? — Por que não tenta os banhos de mar? — Por que não chama outro médico? — Eu, se fosse a senhora, casava-os assim mesmo! A velha respondia dizendo que a felicidade não se fizera para ela. E suspirava resignada. Quando o Costa aparecia depois da sua obrigação para visitar a noiva, os moradores da estalagem cumprimentavam-no em silêncio com um respeitoso ar de lástima e piedade, empenhados tacitamente por aquele caiporismo, contra o qual não valiam nem mesmo as virtudes da Bruxa. Pombinha era muito querida por toda aquela gente. Era quem lhe escrevia as cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem lia o jornal para os que quisessem ouvir. Prezavam-na com muito respeito e davam-lhe presentes, o que lhe permitia certo luxo relativo. Andava sempre de botinhas ou sapatinhos com meias de cor, seu vestido de chita engomado; tinha as suas joiazinhas para sair à rua, e, aos domingos, quem a encontrasse à missa na igreja de São João Batista, não seria capaz de desconfiar que ela morava em cortiço. Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caia, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarizado que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo; em presença dele falavam de coisas que não exporiam em presença de outro homem; faziam-no até confidente dos seus amores e das suas infidelidades, com uma franqueza que o não revoltava, nem comovia. Quando um casal brigava ou duas amigas se disputavam, era sempre Albino quem tratava de reconciliá-los, exortando as mulheres à concórdia. Dantes encarregava-se de cobrar o rol das colegas, por amabilidade; mas uma vez, indo a uma república de estudantes, deram-lhe lá, ninguém sabia por quê, uma dúzia de bolos, e o pobre-diabo jurou então, entre lágrimas e soluços, que nunca mais se incumbiria de receber os róis. E daí em diante, com efeito, não arredava os pezinhos do cortiço, a não ser nos dias de carnaval, em que ia, vestido de dançarina, passear à tarde pelas ruas e à noite dançar nos bailes dos teatros. Tinha verdadeira paixão por esse divertimento; ajuntava dinheiro durante o ano para gastar todo com a mascarada. E ninguém o encontrava, domingo ou dia de semana, lavando ou descansando, que não estivesse com a sua calça branca engomada, a sua camisa limpa, um lenço ao pescoço, e, amarrado à cinta, um avental que lhe caia sobre as pernas como uma saia. Não fumava, não bebia espíritos e trazia sempre as mãos geladas e úmidas. Naquela manhã levantara-se ainda um pouco mais lânguido que do costume, porque passara mal a noite. A velha Isabel, que lhe ficava ao lado esquerdo, ouvindo-o suspirar com insistência, perguntou-lhe o que tinha. Ah! muita moleza de corpo e uma pontada do vazio que o não deixava! A velha receitou diversos remédios, e ficaram os dois, no meio de toda aquela vida, a falar tristemente sobre moléstias. E, enquanto, no resto da fileira, a Machona, a Augusta, a Leocádia, a Bruxa, a Marciana e sua filha conversavam de tina a tina, berrando e quase sem se ouvirem, a voz um tanto cansada já pelo serviço, defronte delas, separado pelos jiraus, formava-se um novo renque de lavadeiras, que acudiam de fora, carregadas de trouxas, e iam ruidosamente tomando lagar ao lado umas das outras, entre uma agitação sem tréguas, onde se não distinguia o que era galhofa e o que era briga. Uma a uma ocupavam-se todas as tinas. E de todos os casulos do cortiço saiam homens para as suas obrigações. Por uma porta que havia ao fundo da estalagem desapareciam os trabalhadores da pedreira, donde vinha agora o retinir dos alviões e das picaretas. O Miranda, de calças de brim, chapéu alto e sobrecasaca preta, passou lá fora, em caminho para o armazém, acompanhado pelo Henrique que ia para as aulas. O Alexandre, que estivera de serviço essa madrugada, entrou solene, atravessou o pátio, sem falar a ninguém, nem mesmo à mulher, e recolheu-se à casa, para dormir. Um grupo de mascates, o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa, armado cada qual com a sua grande caixa de bugigangas, saiu para a peregrinação de todos os dias, altercando e praguejando em italiano. Um rapazito de paletó entrou da rua e foi perguntar à Machona pela Nhá Rita. — A Rita Baiana? Sei cá! Faz amanhã oito dias que ela arribou! A Leocádia explicou logo que a mulata estava com certeza de pândega com o Firmo. — Que Firmo? interrogou Augusta. — Aquele cabravasco que se metia às vezes ai com ela. Diz que é torneiro. — Ela mudou-se? perguntou o pequeno. — Não, disse a Machona; o quarto está fechado, mas a mulata tem coisas lá. Você o que queria? — Vinha buscar uma roupa que está com ela. — Não sei, filho, pergunta na venda ao João Romão, que talvez te possa dizer alguma coisa. — Ali? — Sim, pequeno, naquela porta, onde a preta do tabuleiro está vendendo! Ó diabo! olha que pisas a boneca de anil! Já se viu que sorte? Parece que não vê onde pisa este raio de criança! E, notando que o filho, o Agostinho, se aproximava para tomar o lugar do outro que já se ia: — Sai daí, tu também, peste! Já principias na reinação de todos os dias? Vem para cá, que levas! Mas, é verdade, que fazes tu que não vais regar a horta do Comendador? — Ele disse ontem que eu agora fosse à tarde, que era melhor. — Ah! E amanhã, não te esqueças, recebe os dois mil-réis, que é fim do mês. Olha! Vai lá dentro e diz a Nenen que te entregue a roupa que veio ontem à noite. O pequeno afastou-se de carreira, e ela lhe gritou na pista: — E que não ponha o refogado no fogo sem eu ter lá ido! Uma conversa cerrada travara-se no resto da fila de lavadeiras a respeito da Rita Baiana. — É doida mesmo!... censurava Augusta. Meter-se na pândega sem dar conta da roupa que lhe entregaram... Assim há de ficar sem um freguês... — Aquela não endireita mais!... Cada vez fica até mais assanhada!... Parece que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode, vai tudo pro lado! Olha o que saiu o ano passado com a festa da Penha!... — Então agora, com este mulato, o Firmo, é uma pouca-vergonha! Est’ro dia, pois você não viu? levaram ai numa bebedeira, a dançar e cantar à viola, que nem sei o que parecia! Deus te livre! — Para tudo há horas e há dias!... — Para a Rita todos os dias são dias santos! A questão é aparecer quem puxe por ela! — Ainda assim não e má criatura... Tirante o defeito da vadiagem... — Bom coração tem ela, até demais, que não guarda um vintém pro dia de amanhã. Parece que o dinheiro lhe faz comichão no corpo! — Depois é que são elas!... O João Romão já lhe não fia! — Pois olhe que a Rita lhe tem enchido bem as mãos; quando ela tem dinheiro é porque o gasta mesmo! E as lavadeiras não se calavam, sempre a esfregar, e a bater, e a torcer camisas e ceroulas, esfogueadas já pelo exercício. Ao passo que, em torno da sua tagarelice, o cortiço se embandeirava todo de roupa molhada, de onde o sol tirava cintilações de prata. Estavam em dezembro e o dia era ardente. A grama dos coradouros tinha reflexos esmeraldinos; as paredes que davam frente ao Nascente, caiadinhas de novo, reverberavam iluminadas, ofuscando a vista. Em uma das janelas da sala de jantar do Miranda, Dona Estela e Zulmira, ambas vestidas de claro e ambas a limarem as unhas, conversavam em voz surda, indiferentes à agitação que ia lá embaixo, muito esquecidas na sua tranqüilidade de entes felizes. Entretanto, agora o maior movimento era na venda à entrada da estalagem. Davam nove horas e os operários das fábricas chegavam-se para o almoço. Ao balcão o Domingos e o Manuel não tinham mãos a medir com a criadagem da vizinhança; os embrulhos de papel amarelo sucediam-se, e o dinheiro pingava sem intermitência dentro da gaveta. — Meio quilo de arroz! — Um tostão de açúcar! — Uma garrafa de vinagre! — Dois martelos de vinho! — Dois vinténs de fumo! — Quatro de sabão! E os gritos confundiam-se numa mistura de vozes de todos os tons. Ouviam-se protestos entre os compradores: — Me avie, seu Domingos! Eu deixei a comida no fogo! — Ó peste! dá cá as batatas, que eu tenho mais o que fazer! — Seu Manuel, não me demore essa manteiga! Ao lado, na casinha de pasto, a Bertoleza, de saias arrepanhadas no quadril, o cachaço grosso e negro, reluzindo de suor, ia e vinha de uma panela à outra, fazendo pratos, que João Romão levava de carreira aos trabalhadores assentados num compartimento junto. Admitira-se um novo caixeiro, só para o frege, e o rapaz, a cada comensal que ia chegando, recitava, em tom cantado e estridente, a sua interminável lista das comidas que havia. Um cheiro forte de azeite frito predominava. O parati circulava por todas as mesas, e cada caneca de café, de louça espessa, erguia um vulcão de fumo tresandando a milho queimado. Uma algazarra medonha, em que ninguém se entendia! Cruzavam-se conversas em todas as direções, discutia-se a berros, com valentes punhadas sobre as mesas. E sempre a sair, e sempre a entrar gente, e os que saiam, depois daquela comezaina grossa, iam radiantes de contentamento, com a barriga bem cheia, a arrotar. Num banco de pau tosco, que existia do lado de fora, junto à parede e perto da venda, um homem, de calça e camisa de zuarte, chinelos de couro cru, esperava, havia já uma boa hora, para falar com o vendeiro. Era um português de seus trinta e cinco a quarenta anos, alto, espadaúdo, barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados caindo-lhe sobre a testa, por debaixo de um chapéu de feltro ordinário: pescoço de touro e cara de Hércules, na qual os olhos todavia, humildes como os olhos de um boi de canga, exprimiam tranqüila bondade. — Então ainda não se pode falar ao homem? perguntou ele, indo ao balcão entender-se com o Domingos. — O patrão está agora muito ocupado. Espere! — Mas são quase dez horas e estou com um gole de café no estômago! — Volte logo! — Moro na cidade nova. É um estirão daqui! O caixeiro gritou então para a cozinha, sem interromper o que fazia: — O homem que ai está, seu João, diz que se vai embora! — Ele que espere um pouco, que já lhe falo! respondeu o vendeiro no meio de uma carreira. Diga-lhe que não vá! — Mas é que ainda não almocei e estou aqui a tinir!... observou o Hércules com a sua voz grossa e sonora. — Ó filho, almoce ai mesmo! Aqui o que não falta é de comer. Já podia estar aviado! — Pois vá lá! resolveu o homenzarrão, saindo da venda para entrar na casa de pasto, onde os que lá se achavam o receberam com ar curioso, medindo-o da cabeça aos pés, como faziam sempre com todos os que ai se apresentavam pela primeira vez. E assentou-se a uma das mesinhas, vindo logo o caixeiro cantar-lhe a lista dos pratos. — Traga lá o pescado com batatas e veja um martelo de vinho. — Quer verde ou virgem? — Venha o verde; mas anda com isso, filho, que já não vem sem tempo! Os dois homens suspenderam por um instante o trabalho. — Já lá fui ver, respondeu o Bruno. Não vale a pena consertá-lo; está todo comido de ferragem! Faz-se-lhe um novo, que é melhor! — Pois veja lá isso, que a lanterna está a cair! E o vendeiro seguiu adiante com o outro, enquanto atrás recomeçava o martelar sobre a bigorna. Em seguida via-se uma miserável estrebaria, cheia de capim seco e excremento de bestas, com lugar para meia dúzia de animais. Estava deserta, mas, no vivo fartum exalado de lá, sentia-se que fora habitada ainda aquela noite. Havia depois um depósito de madeiras, servindo ao mesmo tempo de oficina de carpinteiro, tendo à porta troncos de arvore, alguns já serrados, muitas tábuas empilhadas, restos de cavernas e mastros de navio. Daí à pedreira restavam apenas uns cinqüenta passos e o chão era já todo coberto por uma farinha de pedra moída que sujava como a cal. Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. De um lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta; de outro afeiçoavam lajedos a ponta de picão; mais adiante faziam paralelepípedos a escopro e macete. E todo aquele retintim de ferramentas, e o martelar da forja, e o coro dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar-lhe fogo, e a surda zoada ao longe, que vinha do cortiço, como de uma aldeia alarmada; tudo dava a idéia de uma atividade feroz, de uma luta de vingança e de ódio. Aqueles homens gotejantes de suor, bêbados de calor, desvairados de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a pedra, pareciam um punhado de demônios revoltados na sua impotência contra o impassível gigante que os contemplava com desprezo, imperturbável a todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixando sem um gemido que lhe abrissem as entranhas de granito. O membrudo cavouqueiro havia chegado a fralda do orgulhoso monstro de pedra; tinha-o cara a cara, mediu-o de alto a baixo, arrogante, num desafio surdo. A pedreira mostrava nesse ponto de vista o seu lado mais imponente. Descomposta, com o escalavrado flanco exposto ao sol, erguia-se altaneira e desassombrada, afrontando o céu, muito íngreme, lisa, escaldante e cheia de cordas que mesquinhamente lhe escorriam pela ciclópica nudez com um efeito de teias de aranha. Em certos lugares, muito alto do chão, lhe haviam espetado alfinetes de ferro, amparando, sobre um precipício, miseráveis tábuas que, vistas cá de baixo, pareciam palitos, mas em cima das quais uns atrevidos pigmeus de forma humana equilibravam-se, desfechando golpes de picareta contra o gigante. O cavouqueiro meneou a cabeça com ar de lástima. O seu gesto desaprovava todo aquele serviço. — Veja lá! disse ele, apontando para certo ponto da rocha. Olhe para aquilo! Sua gente tem ido às cegas no trabalho desta pedreira. Deviam atacá-la justamente por aquele outro lado, para não contrariar os veios da pedra. Esta parte aqui é toda granito, é a melhor! Pois olhe só o que eles têm tirado de lá — umas lascas, uns calhaus que não servem para nada! É uma dor de coração ver estragar assim uma peça tão boa! Agora o que hão de fazer dessa cascalhada que ai está senão macacos? E brada aos céus, creia! ter pedra desta ordem para empregá-la em macacos! O vendeiro escutava-o em silêncio, apertando os beiços, aborrecido com a idéia daquele prejuízo. — Uma porcaria de serviço! continuou o outro. Ali onde está aquele homem é que deviam ter feito a broca, porque a explosão punha abaixo toda esta aba que é separada por um veio. Mas quem tem ai o senhor capaz de fazer isso? Ninguém; porque é preciso um empregado que saiba o que faz; que, se a pólvora não for muito bem medida, nem só não se abre o veio, como ainda sucede ao trabalhador o mesmo que sucedeu ao outro! É preciso conhecer muito bem o trabalho para se poder tirar partido vantajoso desta pedreira! Boa é ela, mas não nas mãos em que está! É muito perigosa nas explosões; é muito em pé! Quem lhe lascar fogo não pode fugir senão para cima pela corda, e se o sujeito não for fino leva-o o demo! Sou eu quem o diz! E depois de uma pausa, acrescentou, tomando na sua mão, grossa como o próprio cascalho, um paralelepípedo que estava no chão: — Que digo eu?! Cá está! Macacos de granito! Isto até é uma coisa que estes burros deviam esconder por vergonha! Acompanhando a pedreira pelo lado direito e seguindo-a na volta que ela dava depois, formando um ângulo obtuso, é que se via quanto era grande. Suava-se bem antes de chegar ao seu limite com a mata. — Que mina de dinheiro!... dizia o homenzarrão, parando entusiasmado defronte do novo pano de rocha viva que se desdobrava na presença dele. — Toda esta parte que se segue agora, declarou João Romão, ainda não é minha. E continuaram a andar para diante. Deste lado multiplicavam-se as barraquinhas; os macaqueiros trabalhavam à sombra delas, indiferentes àqueles dois. Viam-se panelas ao fogo, sobre quatro pedras, ao ar livre, e rapazitos tratando do jantar dos pais. De mulher nem sinal. De vez em quando, na penumbra de um ensombro de lona, dava-se com um grupo de homens, comendo de cócoras defronte uns dos outros, uma sardinha na mão esquerda, um pão na direita, ao lado de uma garrafa de água. — Sempre o mesmo serviço malfeito e mal dirigido!... resmungou o cavouqueiro. Entretanto, a mesma atividade parecia reinar por toda a parte. Mas, lá no fim, debaixo dos bambus que marcavam o limite da pedreira, alguns trabalhadores dormiam à sombra, de papo para o ar, a barba espetando para o alto, o pescoço intumescido de cordoveias grossas como enxárcias de navio, a boca aberta, a respiração forte e tranqüila de animal sadio, num feliz e pletórico resfolgar de besta cansada. — Que relaxamento! resmungou de novo o cavouqueiro. Tudo isto está a reclamar um homem teso que olhe a sério para o serviço! — Eu nada tenho que ver com este lado! observou Romão. — Mas lá da sua banda hão de fazer o mesmo! Olará! — Abusam, porque tenho de olhar pelo negócio lá fora... — Comigo aqui é que eles não fariam cera. isso juro eu! Entendo que o empregado deve ser bem pago, ter para a sua comida à farta, o seu gole de vinho, mas que deve fazer serviço que se veja, ou, então, rua! Rua, que não falta por ai quem queira ganhar dinheiro! Autorize-me a olhar por eles e verá! — O diabo é que você quer setenta mil-réis... suspirou João Romão. — Ah! nem menos um real!... Mas comigo aqui há de ver o que lhe faço entrar para algibeira! Temos cá muita gente que não precisa estar. Para que tanto macaqueiro, por exemplo? Aquilo é serviço para descanso; é serviço de criança! Em vez de todas aquelas lesmas, pagas talvez a trinta mil-réis... — É justamente quanto lhes dou. — ... melhor seria tomar dois bons trabalhadores de cinqüenta, que fazem o dobro do que fazem aqueles monos e que podem servir para outras coisas! Parece que nunca trabalharam! Olhe, é já a terceira vez que aquele que ali está deixa cair o escopro! Com efeito! João Romão ficou calado, a cismar, enquanto voltavam. Vinham ambos pensativos. — E você, se eu o tomar, disse depois o vendeiro, muda-se cá para a estalagem?... — Naturalmente! não hei de ficar lá na cidade nova, tendo o serviço aqui!... — E a comida, forneço-a eu?... — Isso é que a mulher é quem a faz; mas as compras saem-lhe da venda... — Pois está fechado o negócio! deliberou João Romão, convencido de que não podia, por economia, dispensar um homem daqueles. E pensou lá de si para si: “Os meus setenta mil-réis voltar-me-ão à gaveta. Tudo me fica em casa!” — Então estamos entendidos?... — Estamos entendidos! — Posso amanhã fazer a mudança? — Hoje mesmo, se quiser; tenho um cômodo que lhe há de calhar. É o número 35. Vou mostrar-lho. E aligeirando o passo, penetraram na estrada do capinzal com direção ao fundo do cortiço. — Ah! é verdade! como você se chama? — Jerônimo, para o servir. — Servir a Deus. Sua mulher lava? — É lavadeira, sim senhor. — Bem, precisamos ver-lhe uma tina. E o vendeiro empurrou a porta do fundo da estalagem, de onde escapou, como de uma panela fervendo que se destapa, uma baforada quente, vozeria tresandante à fermentação de suores e roupa ensaboada secando ao sol. um do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do descanso após um dia inteiro de canseiras ao sol. E, defronte do candeeiro de querosene, conversavam sobre a sua vida e sobre a sua Marianita, a filhinha que estava no colégio e que só os visitava aos domingos e dias santos. Depois, até às horas de dormir, que nunca passavam das nove, ele tomava a sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedilhar os fados da sua terra. Era nesses momentos que dava plena expansão às saudades da pátria, com aquelas cantigas melancólicas em que a sua alma de desterrado voava das zonas abrasadas da América para as aldeias tristes da sua infância. E o canto daquela guitarra estrangeira era um lamento choroso e dolorido, eram vozes magoadas, mais tristes do que uma oração em alto-mar, quando a tempestade agita as negras asas homicidas, e as gaivotas doidejam assanhadas, cortando a treva com os seus gemidos pressagos, tontas como se estivessem fechadas dentro de uma abóbada de chumbo. VI Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e pouco calor. As tinas estavam abandonadas; os coradouros despidos. Tabuleiros e tabuleiros de roupa engomada saiam das casinhas, carregados na maior parte pelos filhos das próprias lavadeiras que se mostravam agora quase todas de fato limpo; os casaquinhos brancos avultavam por cima das saias de chita de cor. Desprezavam-se os grandes chapéus de palha e os aventais de aniagem; agora as portuguesas tinham na cabeça um lenço novo de ramagens vistosas e as brasileiras haviam penteado o cabelo e pregado nos cachos negros um ramalhete de dois vinténs; aquelas trancavam no ombro xales de lã vermelha, e estas de crochê, de um amarelo desbotado. Viam-se homens de corpo nu, jogando a placa, com grande algazarra. Um grupo de italianos, assentado debaixo de uma árvore, conversava ruidosamente, fumando cachimbo. Mulheres ensaboavam os filhos pequenos debaixo da bica, muito zangadas, a darem-lhes murros, a praguejar, e as crianças berravam, de olhos fechados, esperneando. A casa da Machona estava num rebuliço, porque a família ia sair a passeio; a velha gritava, gritava Nenen, gritava o Agostinho. De muitas outras saiam cantos ou sons de instrumentos; ouviam-se harmônicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone. Os papagaios pareciam também mais alegres com o domingo e lançavam das gaiolas frases inteiras, entre gargalhadas e assobios. À porta de diversos cômodos, trabalhadores descansavam, de calça limpa e camisa de meia lavada, assentados em cadeira, lendo e soletrando jornais ou livros; um declamava em voz alta versos de “Os Lusíadas:, com um empenho feroz, que o punha rouco. Transparecia neles o prazer da roupa mudada depois de uma semana no corpo. As casinhas fumegavam um cheiro bom de refogados de carne fresca fervendo ao fogo. Do sobrado do Miranda só as duas últimas janelas já estavam abertas e, pela escada que descia para o quintal, passava uma criada carregando baldes de águas servidas. Sentia-se naquela quietação de dia inútil a falta do resfolegar aflito das máquinas da vizinhança, com que todos estavam habituados. Para além do solitário capinzal do fundo a pedreira parecia dormir em paz o seu sono de pedra; mas, em compensação, o movimento era agora extraordinário à frente da estalagem e à entrada da venda. Muitas lavadeiras tinham ido para o portão, olhar quem passava; ao lado delas o Albino, vestido de branco, com o seu lenço engomado ao pescoço, entretinha-se a chupar balas de açúcar, que comprara ali mesmo ao tabuleiro de um baleiro freguês do cortiço. Dentro da taverna, os martelos de vinho branco, os copos de cerveja nacional e os dois vinténs de parati ou laranjinha sucediam-se por cima do balcão, passando das mãos do Domingos e do Manuel para as mãos ávidas dos operários e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas exclamações de pândega. A Isaura, que fora num pulo tomar o seu primeiro capilé, via-se tonta com os apalpões que lhe davam. Leonor não tinha um instante de sossego, saltando de um lado para outro, com uma agilidade de mono, a fugir dos punhos calosos dos cavouqueiros que, entre risadas, tentavam agarrá-la; e insistia na sua ameaça do costume: “que se queixava ao juiz de orfe”, mas não se ia embora, porque defronte da venda viera estacionar um homem que tocava cinco instrumentos ao mesmo tempo, com um acompanhamento desafinado de bombo, pratos e guizos. Eram apenas oito horas e já muita gente comia e palavreava na casa de pasto ao lado da venda. João Romão, de roupa mudada como os outros, mas sempre em mangas de camisa, aparecia de espaço em espaço, servindo os comensais; e a Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, lá estava ao fogão, mexendo as panelas e enchendo os pratos. Um acontecimento, porém, veio revolucionar alegremente toda aquela confederação da estalagem. Foi a chegada da Rita Baiana, que voltava depois de uma ausência de meses, durante a qual só dera noticias suas nas ocasiões de pagar o aluguei do cômodo. Vinha acompanhada por um moleque, que trazia na cabeça um enorme samburá carregado de compras feitas no mercado; um grande peixe espiava por entre folhas de alface com o seu olhar embaciado e triste, contrastando com as risonhas cores dos rabanetes, das cenouras e das talhadas de abóbora vermelha. — Põe isso tudo ai nessa porta. Ai no número 9, pequeno! gritou ela ao moleque, indicando-lhe a sua casa, e depois pagou-lhe o carreto. — Podes ir embora, carapeta! Desde que do portão a bisparam na rua, levantou-se logo um coro de saudações. — Olha! quem ai vem! — Olé! Bravo! É a Rita Baiana! — Já te fazíamos morta e enterrada! — E não é que o demo da mulata está cada vez mais sacudida?... — Então, coisa-ruim! por onde andaste atirando esses quartos? — Desta vez a coisa foi de esticar, hein?! Rita havia parado em meio do pátio. Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novas dela. Não vinha em traje de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de diversas cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho. E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador. Acudiu quase todo o cortiço para recebê-la. Choveram abraços e as chufas do bom acolhimento. Por onde andara aquele diabo, que não aparecia para mais de três meses? — Ora, nem me fales, coração! Sabe? pagode de roga! Que hei de fazer? é a minha cachaça velha!... — Mas onde estiveste tu enterrada tanto tempo, criatura? — Em Jacarepaguá. — Com quem? — Com o Firmo... — Oh! Ainda dura isso? — Cala a boca! A coisa agora é séria! — Qual! Quem mesmo? Tu? Passa fora! — Paixões da Rita! exclamou o Bruno com uma risada. Uma por ano! Não contando as miúdas! — Não! isso é que não! Quando estou com um homem não olho pra outro! Leocádia, que era perdida pela mulata, saltara-lhe ao pescoço ao primeiro encontro, e agora, defronte dela, com as mãos nas cadeiras, os olhos úmidos de comoção, rindo, sem se fartar de vê-la, fazia-lhe perguntas sobre perguntas: — Mas por que não te metes tu logo por uma vez com o Firmo? por que não te casas com ele? — Casar? protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Para quê? para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu! E sacudiu todo o corpo num movimento de desdém que lhe era peculiar. — Olha só que peste! considerou Augusta, rindo, muito mole, na sua honestidade preguiçosa. Esta também achava infinita graça na Rita Baiana e seria capaz de levar um dia inteiro a vê-la dançar o chorado. Florinda ajudava a mãe a preparar o almoço, quando lhe cheirou que chegara a mulata, e veio logo correndo, a rir-se desde longe, cair-lhe nos braços. A própria Marciana, de seu natural sempre triste e metida consigo, apareceu à janela, para saudá-la. A das Dores, com as saias arrepanhadas no quadril e uma toalha por cima amarrada pela parte de trás e servindo de avental, o cabelo ainda por pentear, mas entrouxado no alto da cabeça, abandonou a limpeza que fazia em casa e veio ter com a Rita, para dar-lhe uma palmada e gritar-lhe no nariz: — Desta vez tomaste um fartão, hein, mulata assanhada?... E, ambas a caírem de riso, abraçaram-se em intimidade de amigas, que não têm segredos de amor uma para a outra. A Bruxa veio em silêncio apertar a mão de Rita e retirou-se logo. — Olha a feiticeira! bradou esta última, batendo no ombro da idiota. Que diabo você tanto reza, tia Paula? Eu quero que você me dê um feitiço para prender meu homem! E tinha uma frase para cada um que se aproximasse. Ao ver Dona Isabel, que apareceu toda cerimoniosa na sua saia da missa e com o seu velho xale de Macau, abraçou-a e pediu-lhe uma pitada, que a senhora recusou, resmungando: — Sai daí diabo! — Cadê Pombinha? perguntou a mulata. Mas, nessa ocasião, Pombinha acabava justamente de sair de casa, muito bonita e asseada com um vestido novo de cetineta. As mãos ocupadas com o livro de rezas, o lenço e a sombrinha. — Ah! Como está chique! exclamou a Rita, meneando a cabeça. É mesmo uma flor! — e logo que Pombinha se pôs ao seu alcance, abraçou-lhe a cintura e deu-lhe um beijo. — O João Costa se não te fizer feliz como os anjos sou capaz de abrir-lhe o casco com o salto do chinelo! Juro pelos cabelos do meu homem! — E depois, tornando-se séria, VII E assim ia correndo o domingo no cortiço até às três da tarde, horas em que chegou mestre Firmo, acompanhado pelo seu amigo Porfiro, trazendo aquele o violão e o outro o cavaquinho. Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era um mulato pachola, delgado de corpo e ágil como um cabrito; capadócio de marca, pernóstico, só de maçadas, e todo ele se quebrando nos seus movimentos de capoeira. Teria seus trinta e tantos anos, mas não parecia ter mais de vinte e poucos. Pernas e braços finos, pescoço estreito, porém forte; não tinha músculos, tinha nervos. A respeito de barba, nada mais que um bigodinho crespo, petulante, onde reluzia cheirosa a brilhantina do barbeiro; grande cabeleira encaracolada, negra, e bem negra, dividida ao meio da cabeça, escondendo parte da testa e estufando em grande gaforina por debaixo da aba do chapéu de palha, que ele punha de banda, derreado sobre a orelha esquerda. Vestia, como de costume, um paletó de lustrina preta já bastante usado, calças apertadas nos joelhos, mas tão largas na bainha que lhe engoliam os pezinhos secos e ligeiros. Não trazia gravata, nem colete, sim uma camisa de chita nova e ao pescoço, resguardando o colarinho, um lenço alvo e perfumado; à boca um enorme charuto de dois vinténs e na mão um grosso porrete de Petrópolis, que nunca sossegava, tantas voltas lhe dava ele a um tempo por entre os dedos magros e nervosos. Era oficial de torneiro, oficial perito e vadio; ganhava uma semana para gastar num dia; às vezes, porém, os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o dinheiro, e então ele fazia como naqueles últimos três meses: afogava-se numa boa pândega com a Rita Baiana. A Rita ou outra. “O que não faltava por aí eram saias para ajudar um homem a cuspir o cobre na boca do diabo!” Nascera no Rio de Janeiro, na Corte; militara dos doze aos vinte anos em diversas maltas de capoeiras; chegara a decidir eleições nos tempos do voto indireto. Deixou nome em várias freguesias e mereceu abraços, presentes e palavras de gratidão de alguns importantes chefes de partido. Chamava a isso a sua época de paixão política; mas depois desgostou-se com o sistema de governo e renunciou às lutas eleitorais, pois não conseguira nunca o lugar de continuo numa repartição pública — o seu ideal! —Setenta mil-réis mensais: trabalho das nove às três. Aquela amigação com a Rita Baiana era uma coisa muito complicada e vinha de longe; vinha do tempo em que ela ainda estava chegadinha de fresco da Bahia, em companhia da mãe, uma cafuza dura, capaz de arrancar as tripas ao Manduca da Praia. A cafuza morreu e o Firmo tomou conta da mulata; mas pouco depois se separaram por ciúmes, o que aliás não impediu que se tornassem a unir mais tarde, e que de novo brigassem e de novo se procurassem. Ele tinha “paixa” pela Rita, e ela, apesar de volúvel como toda a mestiça, não podia esquecê-lo por uma vez; metia-se com outros, é certo, de quando em quando, e o Firmo então pintava o caneco, dava por paus e por pedras, enchia-a de bofetadas, mas, afinal, ia procurá-la, ou ela a ele, e ferravam-se de novo, cada vez mais ardentes, como se aquelas turras constantes reforçassem o combustível dos seus amores. O amigo que Firmo trazia aquele domingo em sua companhia, o Porfiro, era mais velho do que ele e mais escuro. Tinha o cabelo encarapinhado. Tipógrafo. Afinavam-se muito os dois tipos com as suas calças de boca larga e com os seus chapéus ao lado; mas o Porfiro tinha outra linha: não dispensava a sua gravata de cor saltando em laço frouxo sobre o peito da camisa; fazia questão da sua bengalinha com cabeça de prata e da sua piteira de âmbar e espuma, em que ele equilibrava um cigarro de palha. Desde a entrada dos dois, a casa de Rita esquentou. Ambos tiraram os paletós e mandaram vir parati, “a abrideira para muqueca baiana”. E não tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão. Ao lado chegava também o homem da das Dores, com um companheiro do comércio; vinham vestidos de fraque e chapéu alto. A Machona, Nenen e o Agostinho, já de volta do seu passeio à cidade, lá estavam ajudando. Ficariam para o rega-bofe. Um rumor quente, de dia de festa, ia-se formando naquele ponto da estalagem. Tanto numa casa, como na outra, o jantar seria às cinco horas. Rita “botou” vestido branco, de cambraia, encanudado a ferro. Leocádia, Augusta, o Bruno, o Alexandre e o Albino jantariam com ela no número 9; e no número 8, com a das Dores, ficariam, além dos parentes desta, Dona Isabel, Pombinha, Marciana e Florinda. Jerônimo e sua mulher foram convidados para ambas as mesas, mas não aceitaram o convite para nenhuma, dispostos a passar a tarde ao lado um do outro, tranqüilamente como sempre, comendo em boa paz o seu cozido à moda da terra e bebendo o seu quartilho de verde pela mesma infusa. Entretanto, os dois jantares vizinhos principiaram ruidosos logo desde a sopa e assanharam-se progressivamente. Meia hora depois vinha das duas casas uma algazarra infernal. Falavam e riam todos ao mesmo tempo; tilintavam os talheres e os copos. Cá de fora sentia-se perfeitamente o prazer que aquela gente punha em comer e beber à farta, com a boca cheia, os beiços envernizados de molho gordo. Alguns cães rosnavam à porta, roendo os ossos que traziam lá de dentro. De vez em quando, da janela de uma das casas aparecia uma das moradoras, chamando a vizinha, para entregar um prato cheio, permutando as duas entre si os quitutes e as petisqueiras em que eram mais peritas. — Olha! gritava a das Dores para o número 9, diz à Rita que prove deste zorô, pra ver que tal o acha, e que o vatapá estava muito gostoso! Se ela tem pimentas, que me mande algumas! Do meio para o fim do jantar o baralho em ambas as casas era medonho. No número 8 berravam-se brindes e cantos desafinados. O português amigo da das Dores, já desengravatado e com os braços à mostra, vermelho, lustroso de suor, intumescido de vinho virgem e leitão de forno, repotreava-se na sua cadeira, a rir forte, sem calar a boca, com a camisa a espipar-lhe pela braguilha aberta. O sujeito que a acompanhara fazia fosquinhas a Nenen, protegido no seu namoro por toda a roda, desde a respeitável Machona até ao endemoninhado Agostinho, que não ficava quieto um instante, nem deixava sossegar a mãe, gritando um contra o outro como dois possessos. Florinda, sempre muito risonha e esperta, divertia-se a valer e, de vez em quando, levantava-se da mesa, para ir de carreira levar lá fora ao número 12 um prato de comida à sua velha que, à última hora, vindo-lhe o aborrecimento, resolvera não ir ao jantar. À sobremesa o esfogueado amigo da dona da casa exigiu que a amante se lhe assentasse nas coxas e dava-lhe beijos em presença de toda a companhia, o que fez com que Dona Isabel, impaciente por afastar a filha daquele inferno, declarasse que sentia muito calor e que ia lá para a porta esperar mais à fresca o café. Em casa de Rita Baiana a animação era inda maior. Firmo e Porfiro faziam o diabo, cantando, tocando bestialógicos, arremedando a fala dos pretos cassanges. Aquele não largava a cintura da mulata e só bebia no mesmo copo com ela; o outro divertia-se a perseguir o Albino, galanteando-o afetadamente, para fazer rir à sociedade. O lavadeiro indignava-se, dava o cavaco”. Leocádia, a quem o vinho produzira delírios hilaridade, torcia-se em gargalhadas, tão fortes e sacudidas que desconjuntavam a cadeira em que ela estava; e, muito lubrificada pela bebedeira, punha os pesados pés sobre os de Porfiro, roçando as pernas contra as dele e deixando-se apalpar pelo capadócio. O Bruno, defronte dela, rubro e suado como se estivesse a trabalhar na forja, falava e gesticulava sem se levantar, praguejando ninguém sabia contra quem. O Alexandre, à paisana, assentado ao lado da mulher, conservava quase toda a sua seriedade e pedia que não fizessem tanto barulho porque podiam ouvir da rua. E notou, em voz misteriosa, que o Miranda tinha vindo já espiar por várias vezes da janela do sobrado. — Que espie as vezes que quiser! bradou a Rita. Pois então a gente não é senhora de estar um domingo em casa a seu gosto e com os amigos que entender?!... Que vá pro diabo que o lixe! Eu não como nem bebo do que é dele! Os dois mulatos e o Bruno também eram da mesma opinião. “Pois então! Desde que se não ofendia, nem prejudicava a safardana nenhum com aquele divertimento, não havia de que falar!” — E que não entiquem muito, ameaçou o Firmo, que comigo é nove! E o trunfo é paus! O Porfiro exclamou: — Se se incomodam com a gente... os incomodados são os que se mudam! Ora pistolas! — O domingo fez-se pra gozar!... resmungou o Bruno, deixando cair a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa. Mas ergueu-se logo, cambaleando, e acrescentou, despindo o braço direito até o ombro: — Eles que se façam finos, que os racho! O Alexandre procurou acalmá-lo, dando-lhe um charuto. Em uma outra casinha do cortiço acabava de estalar uma nova sobremesa, engrossando o barulho geral: era o jantar de um grupo de italianos mascates, onde o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa representavam as principais figuras. Todos eles cantavam em coro, mais afinados que nas outras duas casas; quase, porém, que se lhes não podia ouvir as vozes, tantas e tão estrondosas eram as pragas que soltavam ao mesmo tempo. De quando em quando, de entre o grosso e macho vozear dos homens, esguichava um falsete feminino, tão estridente que provocava réplica aos papagaios e aos perus da vizinhança. E, daqui e dali, iam rebentando novas algazarras em grupos formados cá e lá pela estalagem. Havia nos operários e nos trabalhadores decidida disposição para pandegar, para aproveitar bem, até ao fim, aquele dia de folga. A casa de pasto fermentava revolucionada, como um estômago de bêbedo depois de grande bródio, e arrotava sobre o pátio uma baforada quente e ruidosa que entontecia. O Miranda apareceu furioso à janela, com o seu tipo de comendador, a barriga empinada para a frente, de paletó branco, um guardanapo ao pescoço e um trinchante empunhado na destra, como uma espada. — Vão gritar pra o inferno, com um milhão de raios! berrou ele, ameaçando para baixo. Isto também já é demais! Se não se calam, vou daqui direito chamar a policia! Súcia de brutos! Com os berros do Miranda muita gente chegou à porta de casa, e o coro de gargalhadas, que ninguém podia conter naquele momento de alegria, ainda mais o pôs fora de si. — Ah, canalhas! O que eu devia fazer era atirar-lhes daqui, como a cães danados! Uma vaia uníssona ecoou em todo o pátio da estalagem, enquanto em volta do negociante surgiam várias pessoas, puxando-o para dentro de casa. — Que é isso, Miranda! Então! Estás agora a dar palha?... — O que eles querem é que encordoes!... — Saia daí papai! — Olhe alguma pedrada, esta gente é capaz de tudo! E via-se de relance Dona Estela, com a sua palidez de flor meia fanada, e Zulmira, lívida, um ar de fastio a fazê-la feia, e o Henriquinho, cada vez mais bonito, e o velho Botelho, indiferente, a olhar para toda esta porcaria do mundo com o profundo desprezo dos que já não esperam nada dos outros, nem de si próprios. — Canalhas! repisava o Miranda. O Alexandre, que fora de carreira enfiar a sua farda, apresentou-se então e disse ao negociante que não era prudente atirar insultos cá pra baixo. Ninguém o tinha provocado! Se os moradores da estalagem jantavam em companhia de amigos, lá em cima o Miranda também estava comendo com os seus convidados! Era mau insultar, porque palavra puxa palavra, e, em caso de ter de depor na policia, ele, Alexandre, deporia a favor de quem tivesse razão!... — Fomente-se! respondeu o negociante, voltando-lhe as costas. — Já se viu chubregas mais atrevido?! exclamou Firmo, que até ai estivera calado, à porta da Rita, com as mãos nas cadeiras, a fitar provocadoramente o Miranda. E gritando mais alto, para ser bem ouvido: — Facilita muito, meu boi manso, que te escorvo os galhos na primeira ocasião! O Miranda foi arrancado com violência da janela, e esta fechada logo em seguida com estrondo. — Deixa lá esse labrego! resmungou Porfiro, tomando o amigo pelo braço e fazendo-o recolher-se à casa da mulata. Vamos ao café, é o que é, antes que esfrie! Defronte da porta de Rita tinham vindo postar-se diversos moradores do cortiço, jornaleiros de baixo salário, pobre gente miserável, que mal podia matar a fome com o que ganhava. Ainda assim não havia entre eles um só triste. A mulata convidou-os logo a comer um bocado e beber um trago. A proposta foi aceita alegremente. E a casa dela nunca se esvaziava. Anoitecia já. O velho Libório, que jamais ninguém sabia ao certo onde almoçava ou jantava, surgiu do seu buraco, que nem jabuti quando vê chuva. Um tipão, o velho Libório! Ocupava o pior canto do cortiço e andava sempre a fariscar os sobejos alheios, filando aqui, filando ali, pedindo a um e a outro, como um mendigo, chorando misérias eternamente, apanhando pontas de cigarro para fumar no cachimbo, cachimbo que o sumítico roubara de um pobre cego decrépito. Na estalagem diziam todavia que Libório tinha dinheiro aferrolhado, contra o que ele protestava ressentido, jurando a sua extrema penaria. E era tão feroz o demônio naquela fome de cão sem dono, que as mães recomendavam às suas crianças todo o cuidado com ele, porque o diabo do velho, quando via algum pequeno desacompanhado, punha-se logo a rondá-lo, a cercá-lo de festas e a fazer-lhe ratices para o engabelar, até conseguir furtar-lhe o doce ou o vintenzinho que o pobrezito trazia fechado na mão. Rita fê-lo entrar e deu-lhe de comer e de beber; mas sob condição de que o esfomeado não se socasse demais, para não rebentar ali mesmo. Se queria estourar, fosse estourar para longe! Ele pôs-se logo a devorar, sofregamente, olhando inquieto para os lados, como se temesse que alguém lhe roubasse a comida da boca. Engolia sem mastigar, empurrando os bocados com os dedos, agarrando-se ao prato e escondendo nas algibeiras o que não podia de uma só vez meter para dentro do corpo. Causava terror aquela sua implacável mandíbula, assanhada e devoradora; aquele enorme queixo, ávido, ossudo e sem um dente, que parecia ir engolir tudo, tudo, principiando pela própria cara, desde a imensa batata vermelha que ameaçava já entrar-lhe na boca, até as duas bochechinhas engelhadas, os olhos, as orelhas, a cabeça inteira, inclusive a sua grande calva, lisa como um queijo e guarnecida em redor por uns pêlos puídos e ralos como farripas de coco. Firmo propôs embebedá-lo, só para ver a sorte que ele daria. O Alexandre e a mulher opuseram-se, mas rindo muito; nem se podia deixar de rir, apesar do espanto, vendo aquele resto de gente, aquele esqueleto velho, coberto por uma pele seca, a devorar, a devorar sem tréguas, como se quisesse fazer provisão para uma outra vida. De repente, um pedaço de carne, grande demais para ser ingerido de uma vez, engasgou-o seriamente. Libório começou a tossir, aflito, com os olhos sumidos, a cara tingida de uma vermelhidão apoplética. A Leocádia, que era quem lhe ficava mais perto, soltou-lhe um murro nas costas. E aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente de plantas brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais e besouros venenosos, freneticamente, bêbedos do delicioso perfume que os mata de volúpia. E à viva crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas dos de além-mar. Assim à refulgente luz do trópicos amortece a fresca e doce claridade dos céus da Europa, como se o próprio sol americano, vermelho e esbraseado, viesse, na sua luxúria de sultão, beber a lágrima medrosa da decaída rainha dos mares velhos. Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa, e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça, que junto dele sacudiu as saias e os cabelos. — Que tens tu, Jeromo?... perguntou-lhe a companheira, estranhando-o. — Espera, respondeu ele, em voz baixa: deixa ouvir! Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de palmas. Jerônimo levantou-se, quase que maquinalmente, e seguido por Piedade, aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ai, de queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca de jardim, permaneceu, sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó flexível, carinhoso e traiçoeiro. E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher. Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, tirilando. Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares, os braços a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-lhe. E depois, surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e circunspecto Alexandre. O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante. E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados. Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca. Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber. De todas as impressões daquele resto de domingo só lhe ficou no espírito o entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de mel chuchurreado no cálice de flores americanas, dessas muito alvas, cheirosas e úmidas, que ele na fazenda via debruçadas confidencialmente sobre os limosos pântanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que entristece de saudade. E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas dançaram, mas o português só via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos braços do amigo. Piedade, a cabecear de sono, chamara-o várias vezes para se recolherem; ele respondeu com um resmungo e não deu pela retirada da mulher. Passaram-se horas, e ele também não deu pelas horas que fugiram. O circulo do pagode aumentou: vieram de lá defronte a Isaura e a Leonor, o João Romão e a Bertoleza, desembaraçados da sua faina, quiseram dar fé da patuscada um instante antes de caírem na cama; a família do Miranda pusera-se à janela, divertindo-se com a gentalha da estalagem; reunira povo lá fora na rua; mas Jerônimo nada vira de tudo isso; nada vira senão uma coisa, que lhe persistia no espírito: a mulata ofegante a resvalar voluptuosamente nos braços do Firmo. Só deu por si, quando, já pela madrugada, se calaram de todo os instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu à casa. E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela cintura. Jerônimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua, agora inteiramente livre das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em silêncio na sua viagem misteriosa. As janelas do Miranda fecharam-se. A pedreira, ao longe, por detrás da última parede do cortiço, erguia-se como um monstro iluminado na sua paz. Uma quietação densa pairava já sobre tudo; só se distinguiam o bruxulear dos pirilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os murmúrios das árvores que sonhavam. Mas Jerônimo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquela música embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos, da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o coração. E, erguendo a cabeça, notou no mesmo céu, que ele nunca vira senão depois de sete horas de sono, que era já quase ocasião de entrar para o seu serviço, e resolveu não dormir, porque valia a pena esperar de pé. VIII No dia seguinte, Jerônimo largou o trabalho à hora de almoçar e, em vez de comer lá mesmo na pedreira com os companheiros, foi para casa. Mal tocou no que a mulher lhe apresentou à mesa e meteu-se logo depois na cama, ordenando-lhe que fosse ter com João Romão e lhe dissesse que ele estava incomodado e ficava de descanso aquele dia. — Que tens tu, Jeromo?... — Morrinhento, filha... Vai, anda! — Mas sentes-te mal? — Ó mulher! vai fazer o que te disse e ao depois então darás à língua! — Valha-me a Virgem! Não sei se haverá chá preto na venda! E ela saiu, aflita. Qualquer novidade no marido, por menor que fosse, punha-a doida. “Pois um homem rijo, que nunca caia doente? Seria a febre amarela?... Jesus, Santo Filho de Maria, que nem pensar nisso era bom! Credo!” A notícia espalhou-se logo ali entre as lavadeiras. — Foi da friagem da noite, afirmou a Bruxa, e deu um pulo à casa do trabalhador para receitar. O doente repeliu-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que ele do que precisava era de dormir. Mas não o conseguiu: atrás da Bruxa correu a segunda mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito tempo em sua casa um entrar e sair de saias. Jerônimo perdeu a paciência e ia protestar brutalmente contra semelhante invasão, quando, pelo cheiro, sentiu que a Rita se aproximava também. — Ah! E desfranziu-se-lhe o rosto. — Bons dias! Então que é isso, vizinho? Você caiu doente com a minha chegada? Se tal soubera não vinha! Ele riu-se. E era a primeira vez que ria desde a véspera A mulata aproximou-se da cama. Como principiara a trabalhar esse dia, tinha as saias apanhadas na cintura e os braços completamente nus e frios da lavagem. O seu casaquinho branco abria-lhe no pescoço, mostrando parte do peito cor de canela. Jerônimo apertou-lhe a mão. — Gostei de vê-la ontem dançar, disse, muito mais animado. — Já tomou algum remédio?... — A mulher falou ai em chá preto... — Chá! Que asneira! Chá é água morna! Isso que você tem é uma resfriagem. Vou-lhe fazer uma xícara de café bem forte para você beber com um gole de parati, e me dirá se sua ou não, e fica depois fino e pronto para outra! Espera ai! E saiu logo, deixando todo quarto impregnado dela. Jerônimo, só com respirar aquele almíscar, parecia melhor. Quando Piedade tornou, pesada, triste, resmungando consigo mesma, ele sentiu que principiava a enfará-lo; e, quando a infeliz se aproximou do marido, este, fora do costume, notou-lhe o cheiro azedo do corpo. Voltou-lhe então o mal-estar e desapareceu o último vestígio do sorriso que ele tivera havia pouco. — Mas que sentes tu, Jeromo?... Fala, homem! Não me dizes nada! Assim m’assustas... Que tens, diz’-lo! — Não cozas o chá. Vou tomar outra coisa... — Não queres o chá? Mas é o remédio, filhinho de Deus! — Já te disse que tomo outra mezinha. Oh! Piedade não insistiu. — Queres tu um escalda-pés?... — Toma-lo tu! Ela calou-se. Ia a dizer que nunca o vira assim tão áspero e seco, mas receou importuná-lo. “Era naturalmente a moléstia que o punha rezinguento.” Ela meneou a cabeça afirmativamente, e ele fez-lhe sinal de que o esperasse por detrás do cortiço, no capinzal dos fundos. A família do Miranda havia saído. Henrique, mesmo com a roupa de andar em casa e sem chapéu, desceu à rua, ganhou um terreno que existia à esquerda do sobrado e, com o seu coelho debaixo do braço, atirou-se para o capinzal. Leocádia esperava por ele debaixo das mangueiras. — Aqui não! disse ela, logo que o viu chegar. Aqui agora podem dar com a gente!... — Então onde? — Vem cá! E tomou à sua direita, andando ligeira e meio vergada por entre as plantas. Henrique seguiu-a no mesmo passo, sempre com o coelho sobraçado. O calor fazia-o suar e esfogueava-lhe as faces. Ouvia-se o martelar dos ferreiros e dos trabalhadores da pedreira. Depois de alguns minutos, ela parou num lugar plantado de bambus e bananeiras, onde havia o resto de um telheiro em ruínas. — Aqui! E Leocádia olhou para os lados, assegurando-se de que estavam a sós. Henrique, sem largar o coelho, atirou-se sobre ela, que o conteve: — Espera! preciso tirar a saia; está encharcada! — Não faz mal! segredou ele, impaciente no seu desejo. — Pode-me vir um corrimento! E sacou fora a saia de lã grossa, deixando ver duas pernas, que a camisa a custo só cobria até o joelho, grossas, maciças, de uma brancura levemente rósea e toda marcada de mordeduras de pulgas e mosquitos. — Avia-te! Anda! apressou ela, lançando-se de costas ao chão e arregaçando a fralda até a cintura; as coxas abertas. O estudante atirou-se, sôfrego, sentindo-lhe a frescura da sua carne de lavadeira, mas sem largar as pernas do coelho. Passou-se um instante de silêncio entre os dois, em que as folhas secas do chão rangeram e farfalharam. — Olha! pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama-de-leite... Agora estão pagando muito bem as amas! A Augusta Carne-Mole, nesta última barriga, tomou conta de um pequeno ai na casa de uma família de tratamento, que lhe dava setenta mil-réis por mês!... E muito bom passadio!... Sua garrafa de vinho todos os dias!... Se me arranjares um filho dou-te outra vez o coelho! E o pobre brutinho, cujas pernas o estudante não largava, começou a queixar-se dos repelões que recebia cada vez mais acelerados. — Olha que matas o bichinho! reclamou a lavadeira. Não batas assim com ele! mas não o soltes, hein! Ia dizer ainda alguma coisa, mas acudiu-lhe o espasmo e ela fechou os olhos e pôs-se a dar com a cabeça de um lado para o outro, rilhando os dentes. Nisto, passos rápidos fizeram-se sentir galgando as plantas, na direção em que os dois estavam; e Henrique, antes de ser visto, lobrigou a certa distancia a insociável figura do Bruno. Não lhe deu tempo a que se aproximasse; de um salto galgou por detrás das bananeiras e desapareceu por entre o matagal de bambus, tão rápido como o coelho que, vendo-se livre, ganhara pela outra banda o caminho do capinzal. Quando o ferreiro, logo em seguida, chegou perto da mulher, esta ainda não tinha acabado de vestir a saia molhada. — Com quem te esfregavas tu, sua vaca?! bradou ele, a botar os bofes pela boca. E, antes que ela respondesse, já uma formidável punhada a fazia rolar por terra. Leocádia abriu num berreiro. E foi debaixo de uma chuva de bofetadas e pontapés que acabou de amarrar a roupa. — Agora eu vi! sabes! Nega se fores capaz! — Vá à pata que o pôs! exclamou ela, com a cara que era um tomate. Já lhe disse que não quero saber de você pra nada, seu bêbedo! E, vendo que ele ia recomeçar a dança, abaixou-se depressa, segurou com ambas as mãos um matacão de granito que encontrou a seus pés, e gritou, erguendo-o sobre a cabeça: — Chega-te pra cá e verás se te abro aqui mesmo ou não o casco! O ferreiro compreendeu que ela era capaz de fazer o que dizia e estacou lívido e ofegante. — Arme a trouxa e rua! sabe? — Olha a desgraça! Tinha de muito assentado de ir! Queria era uma ocasião! Nem preciso de você pra nada, fique sabendo! E, para meter-lhe mais raiva, acrescentou, empinando a barriga: — Já cá está dentro com que hei de ganhar a vida! Alugo-me de ama! Ou pensará que todos são como você, que nem para fazer um filho serve, diabo do sem-préstimo? — Mas não me hás de levar nada de casa! Isso te juro eu, biraia! — Ah, descanse! que não levarei nada do que é seu, nem preciso! — Põe essa pedra no chão! — Um corno! Eu arrumo-ta na cabeça se te chegas pra cá! — Sim, sim, sim, contanto que te musques por uma vez! — Pois então despache o beco! Ele virou-lhe as costas e tornou lentamente por onde viera, de cabeça pendida, as mãos nas algibeiras das calças, aparentando agora um soberano desprezo pelo que se passava. Só então foi que ela se lembrou do coelho. — Ora gaitas! disse, endireitando-se e tomando direção contrária à do marido. Este fora ai direito ao cortiço narrar, a quem quisesse ouvir, o que se acabava de dar. O escândalo assanhou a estalagem inteira, como um jato de água quente sobre um formigueiro. “Ora, aquilo tinha de acontecer mais hoje mais amanhã! — Um belo dia a casa vinha abaixo! — A Leocádia parecia não desejar senão isso mesmo!” Mas ninguém atinava com quem diabo pilhara o Bruno a mulher no capinzal. Fizeram-se mil hipóteses; lembrando-se nomes e nomes, sem se chegar a nenhum resultado satisfatório. O Albino tentou logo arranjar a reconciliação do casal, jurando que o Bruno estava enganado com certeza e que vira mal. “Leocádia era uma excelente rapariga, incapaz de tamanha safadagem!” O ferreiro tapou-lhe a boca com uma bolacha, e ninguém mais se meteu a congraçá-los. Entretanto, o Bruno entrara em casa e lançava pela janela cá para fora tudo o que ia encontrando pertencente à mulher. Uma cadeira fez-se pedaços contra as pedras, depois veio um candeeiro de querosene, uma trouxa de roupas, saias e casaquinhos de chita, caixas de chapéus cheias de trapos, uma gaiola de pássaros, uma chaleira; e tudo era arremessado com fúria ao meio da área, entre o silêncio comovido dos que assistiam ao despejo. Um chim, que entrara para vender camarões e parara distraído perto da janela do ferreiro, levou na cabeça com uma bilha da Bahia e berrava como criança que acaba de ser esbordoada. A Machona, que não podia ouvir ninguém gritar mais alto do que ela, caiu-lhe em cima aos murros e o pôs fora do portão com tremenda descompostura. “Era o que faltava que viesse também aquele salamaleque do inferno para azoinar uma criatura mais do que já estava!” Dona Isabel, com as mãos cruzadas sobre o ventre, tinha para aquela destruição um profundo olhar de lástima. Augusta meneava a cabeça tristemente sem conceber como havia mulheres que procuravam homem, tendo um que lhes pertencia. A Bruxa, indiferente, não interrompera sequer o seu trabalho; ao passo que a das Dores, de mãos nas cadeiras, a sala pelo meio das canelas, um cigarro no canto da boca, encarava desdenhosa a sanha daquele marido, tão brutal como o dela o fora. — Sempre os mesmos pedaços de asno!... comentava franzindo o nariz. Se a tola da mulher só lhes procura agradar e fazer-lhes o gosto, ficam enjoados, e, se ela não toma a sério a borracheira do casamento, dão por paus e por pedras, como esta besta! Uma súcia, todos eles! Florinda ria, como de tudo, e a velha Marciana queixava-se de que lhe respingaram querosene na roupa estendida ao sol. Nessa ocasião justamente, um saco de café, cheio de borra, deu duas voltas no ar e espalhou o seu conteúdo, pintalgando de pontos negros os coradouros. Fez-se logo um alarido entre as lavadeiras. “Aquilo não tinha jeito, que diabo! Armavam lá as suas turras e os outros é que haviam de aturar?!... Sebo! que os mais não estavam dispostos a suportar as fúrias de cada um! Quem parira Mateus que o embalasse! Se agora, todas as vezes que a Leocádia se fosse espojar no capinzal, o bruto do marido tinha de sujar daquele modo o trabalho da gente, ninguém mais poderia ganhar ali a sua vida! Que espiga!” Pombinha chegara à porta do número 15, dando fé do barulho, com uma costura na mão, e Nenen, toda afogueada do ferro de engomar, perguntava, com um frouxo riso, se o Bruno ia reformar a mobília da casa. A Rita fingia não ligar importância ao fato e continuava a lavar à sua tina. “Não faziam tanta festa ao tal casamento? Pois que agüentassem! Ela estava bem livre de sofrer uma daquelas!” O velho Libório chegara-se para ver se, no meio da confusão, apanhava alguma coisa do despejo, e a Machona, notando que o Agostinho fazia o mesmo, berrou-lhe do lugar em que se achava: — Sai daí, safado! Toca lá no quer que seja, que te arranco a pele do rabo! Um irmão do santíssimo entrara na estalagem, com a sua capa encarnada, a sua vara de prata em uma das mãos, na outra a salva do dinheiro, e parara em meio do pátio, suplicando muito fanhoso: “Uma esmola para a cera do Sacramento!” As mulheres abandonaram por um instante as tinas e foram beijar devotamente a colombina imagem do Espírito Santo. Pingaram na salva moedinhas de vintém. Todavia, o Bruno acabava de despejar o que era da mulher e saia de novo de casa, dando uma volta feroz à fechadura. Atravessou por entre o murmurante grupo dos curiosos que permaneciam defronte de sua porta, mudo, com a cara fechada, jogando os braços, como quem, apesar de ter feito muito, não satisfizera ainda completamente a sua cólera. Leocádia apareceu pouco depois e, vendo por terra tudo que era seu, partido e inutilizado, apoderou-se de fúria e avançou sobre a porta, que o marido acabava de fechar, arremetendo com as nádegas contra as duas folhas, que cederam logo, indo ela cair lá dentro de barriga para cima. Mas ergueu-se, sem fazer caso das risadas que rebentaram cá fora e, escancarando a janela com arremesso, começou por sua vez a arrasar e a destruir tudo que ainda encontrara em casa. Então principiou a verdadeira devastação. E a cada objeto que ela varria para o pátio, gritava sempre: “Upa! Toma, diabo!” — Aí vai o relógio! Upa! Toma, diabo! E o relógio espatifou-se na calçada. — Aí vai o alguidar! — Aí vai o jarro! — Aí vão os copos! — O cabide! — O garrafão! — O bacio! Um riso geral, comunicativo, absoluto, abafava o baralho da louça quebrando-se contra as pedras. E Leocádia já não precisava acompanhar os objetos com a sua frase de imprecação, porque cada um deles era recebido cá fora com um coro que berrava: — Upa! Toma, diabo! E a limpeza prosseguia. João Romão acudiu de carreira, mas ninguém se incomodou com a presença dele. Já defronte da porta do Bruno havia uma montanha de cacos acumulados; e o destroço continuava ainda, quando o ferreiro reapareceu, vermelho como malagueta, e foi galgando a casa, com um raio de roda de carro na mão direita. Os circunstantes o seguiram, atropeladamente, num clamor. — Não dá! — Não pode! — Prende! — Não deixa bater! — Larga o pau! — Segura! — Agüenta! — Cerca! — Toma o porrete! E Leocádia escapou afinal das pauladas do marido, a quem o povaréu desarmara num fecha-fecha. — Ordem! Ordem! Vá de rumor! exclamava o vendeiro, a quem, aproveitando a confusão, haviam já ferrado um pontapé por detrás. — Não te queria falar, mas... sabes? deves tomar banho todos os dias e... mudar de roupa... Isto aqui não é como lá! Isto aqui sua-se muito! É preciso trazer o corpo sempre lavado, que, ao se não, cheira-se mel!... Tem paciência! Ela desatou a soluçar. Foi uma explosão de ressentimentos e desgostos que se tinham acumulado no seu coração. Todas as suas mágoas rebentaram naquele momento. — Agora estás tu a chorar! Ora, filha, deixa-te disso! Ela continuou a soluçar, sem fôlego, dando arfadas com todo o corpo. O cavouqueiro acrescentou no fim de um intervalo: — Então, que é isto, mulher? Pões-te agora a fazer tamanho escarcéu, nem que se cuidasse de coisa séria! Piedade desabafou: — É que já não me queres! Já não és o mesmo homem para mim! Dantes não me achavas que pôr, e agora até já te cheiro mal! E os soluços recrudesciam. — Não digas asnices, filha! — Ah! eu bem sei o que isto é!... — E bobagem tua, é o que é! — Maldita hora em que viemos dar ao raio desta estalagem! Antes me tivera caldo um calhau na cabeça! — Estás a queixar-te da sorte sem razão! Que Deus te não castigue. Esta rezinga chamou outras que, com o correr do tempo, se foram amiudando. Ah! já não havia dúvida que mestre Jerônimo andava meio caldo para o lado da Rita Baiana; não passava pelo número 9, sempre que vinha à estalagem durante o dia, que não parasse à porta um instante, para perguntar-lhe pela “saudinha”. O fato de haver a mulata lhe oferecido o remédio, quando ele esteve incomodado, foi pretexto para lhe fazer presentes amáveis; pôr os seus préstimos à disposição dela e obsequiá-la em extremo todas as vezes que a visitava. Tinha sempre qualquer coisa para saber da sua boca, a respeito da Leocádia, por exemplo; pois, desde que a Rita se arvorara em protetora da mulher do ferreiro, Jerônimo afetava grande interesse pela “pobrezinha de Cristo”. — Fez bem, Nhá Rita, fez bem!... A se’ora mostrou com isso que tem bom coração... — Ah, meu amigo, neste mundo hoje por mim, amanha por ti!... Rita havia aboletado a amiga, a principio em casa de umas engomadeiras do Catete, muito suas camaradas, depois passou-a para uma família, a quem Leocádia se alagou como ama-seca; e agora sabia que ela acabava de descobrir um bom arranjo num colégio de meninas. — Muito bem! muito bem! aplaudia Jerônimo. — Ora, o quê! O mundo é largo! sentenciou a baiana. Há lugar pro gordo e há lugar pro magro! Bem tolo é quem se mata! Em uma das vezes em que o cavouqueiro perguntou-lhe, como de costume, pela pobrezinha de Cristo, a mulata disse que Leocádia estava grávida. — Grávida? mas então não é do marido!... — Pode bem ser que sim. Barriga de quatro meses... — Ah! mas ela não foi há mais tempo do que isso?... — Não. Vai fazer agora pelo São João quatro meses justamente. Jerônimo já nunca pegava na guitarra senão para procurar acertar com as modinhas que a Rita cantava. Em noites de samba era o primeiro a chegar-se e o último a ir embora; e durante o pagode ficava de queixo bambo, a ver dançar a mulata, abstrato, pateta, esquecido de tudo; babão. E ela, consciente do feitiço, que lhe punha, ainda mais se requebrava e remexia, dando-lhe embigadas ou fingindo que lhe limpava a baba no queixo com a barra da saia. E riam-se. Não! definitivamente estava caído! Piedade agarrou-se com a Bruxa para lhe arranjar um remédio que lhe restituísse o seu homem. A cabocla velha fechou-se com ela no quarto, acendeu velas de cera, queimou ervas aromáticas e tirou sorte nas cartas. E depois de um jogo complicado de reis, valetes e damas, que ela dispunha sobre a mesa caprichosamente, a resmungar a cada figura que saia do baralho uma frase cabalística, declarou convicta, muito calma, sem tirar os olhos das suas cartas: — Ele tem a cabeça virada por uma mulher trigueira. — É o diacho da Rita Baiana! exclamou a outra. Bem cá me palpitava por dentro! Ai, o meu rico homem! E a chorar, limpando, aflita, as lágrimas no avental de cânhamo, suplicou à Bruxa, pelas alminhas do purgatório, que lhe remediasse tamanha desgraça. — Ai, se perco aquela criatura, S’ora Paula, lamuriou a infeliz entre soluços; nem sei que virá a ser de mim neste mundo de Cristo!... Ensine-me alguma coisa que me puxe o Jeromo! A cabocla disse-lhe que se banhasse todos os dias e desse a beber ao seu homem, no café pela manhã, algumas gotas das águas da lavagem; e, se no fim de algum tempo, este regime não produzisse o desejado efeito, então cortasse um pouco dos cabelos do corpo, torrasse-os até os reduzir a pó e lhos ministrasse depois na comida. Piedade ouviu a receita com um silêncio respeitoso e atento, o ar compungido de quem recebe do médico uma sentença dolorosa para um doente que estimamos. Em seguida, meteu na mão da feiticeira uma moeda de prata, prometendo dar-lhe coisa melhor se o remédio tivesse bons resultados. Mas não era só a portuguesa quem se mordia com o descaimento do Jerônimo para a mulata, era também o Firmo. Havia muito já que este andava com a pulga atrás da orelha e, quando passava perto do cavouqueiro, olhava-o atravessado. O capadócio ia dormir todas as noites com a Rita, mas não morava na estalagem; tinha o seu cômodo na oficina em que trabalhava. Só pelos domingos é que ficavam juntos durante o dia e então não relaxavam o seu jantar de pândega. Uma vez em que ele gazeara o serviço, o que não era raro, foi vê-la fora das horas do costume e encontrou-a a conversar junto à tina com o português. Passou sem dizer palavra e recolheu-se ao número 9, onde ela foi logo ter de carreira. Firmo não lhe disse nada a respeito das suas apreensões, mas também não escondeu o seu mau humor; esteve impertinente e rezingueiro toda a tarde. Jantou de cara amarrada e durante o parati, depois do café, só falou em rolos, em dar cabeçadas e navalhadas, pintando-se terrível, recordando façanhas de capoeiragem, nas quais sangrara tais e tais tipos de fama; “não contando dois galegos que mandara pras minhocas, porque isso para ele não era gente! — Com um par de cocadas boas ficavam de pés unidos para sempre!” Rita percebeu os ciúmes do amigo e fez que não dera por coisa alguma. No dia seguinte, às seis horas da manhã, quando ele saia da casa dela, encontrou-se com o português, que ia para o trabalho, e o olhar que os dois trocaram entre si era já um cartel de desafio. Entretanto, cada qual seguiu em silêncio para o seu lado. Rita deliberou prevenir Jerônimo de que se acautelasse. Conhecia bem o amante e sabia de quanto era ele capaz sob a influência dos ciúmes; mas, na ocasião em que o cavouqueiro desceu para almoçar, um novo escândalo acabava de explodir, agora no número 12, entre a velha Marciana e sua filha Florinda. Marciana andava já desconfiada com a pequena, porque o fluxo mensal desta se desregrara havia três meses, quando, nesse dia, não tendo as duas acabado ainda o almoço, Florinda se levantou da mesa e foi de carreira para o quarto. A velha seguiu-a. A rapariga fora vomitar ao bacio. — Que é isto?... perguntou-lhe a mãe, apalpando-a toda com um olhar inquiridor. — Não sei, mamãe... — Que sentes tu?... — Nada... — Nada, e estás lançando?... Hein?! — Não sinto nada, não senhora!... A mulata velha aproximou-se, desatou-lhe violentamente o vestido, levantou-lhe as saias e examinou-lhe todo o corpo, tateando-lhe o ventre, já zangada. Sem obter nenhum resultado das suas diligências, correu a chamar a Bruxa, que era mais que entendida no assunto. A cabocla, sem se alterar, largou o serviço, enxugou os braços no avental, e foi ao número 12; tenteou de novo a mulatinha, fez-lhe várias perguntas e mais à mãe, e depois disse friamente: — Está de barriga. E afastou-se, sem um gesto de surpresa, nem de censura. Marciana, trêmula de raiva, fechou a porta da casa, guardou a chave no seio e, furiosa, caiu aos murros em cima da filha. Esta, embalde tentando escapar-lhe, berrava como uma louca. Abandonaram-se logo todas as tinas do pátio e algumas das mesas do frege, e o populacho, curioso e alvoroçado, precipitou-se para o número 12, batendo na porta e ameaçando entrar pela janela. Lá dentro, a velha escarranchada sobre a rapariga que se debatia no chão, perguntava-lhe gritando e repetindo: — Quem foi?! Quem foi?! E de cada vez desfechava-lhe um sopapo pelas ventas. — Quem foi?! A pequena berrava, mas não respondia. — Ah! não queres dizer por bem? Ora espera! E a velha ergueu-se para apanhar a vassoura no canto da sala. Florinda, vendo iminente o cacete, levantou-se de um pulo, ganhou a janela e caiu de um salto lá fora, entre o povo amotinado. Coisa de uns nove palmos de altura. As lavadeiras a apanharam, cuidando em defendê-la da mãe, que surgiu logo à porta, ameaçando para o grupo, terrível e armada de pau. Todos procuraram chamá-la à razão: — Então que é isso, tia Marciana?! Então que é isso?! — Que é isto?! É que esta assanhada está de barriga! Está ai o que é! Para tanto não lhe faltou jeito, nem foi preciso que a gente andasse atrás dela se matando, como sucede sempre que há um pouco mais de serviço e é necessário puxar pelo corpo! Ora está ai o que é! — Bem, disse a Augusta, mas não lhe bata agora, coitada! Assim você lhe dá cabo da pele! — Não! Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ela há de dizer quem foi ou quebro-lhe os ossos! — Então, Florinda, diz logo quem foi... É melhor! aconselhou a das Dores. Fez-se em torno da rapariga um silêncio ávido, cheio de curiosidade. — Estão vendo?... exclamou a mãe. Não responde, este diabo! Mas esperem, que eu lhes mostro se ela fala, ou não! E as lavadeiras tiveram de agarrar-lhe os braços e tirar-lhe o cacete, porque a velha queria crescer de novo para a filha. Ao redor desta a curiosidade assanhava-se cada vez mais. Estalavam todos por saber quem a tinha emprenhado. “Quem foi?! Quem foi?!” esta frase apertava-a num torniquete. Afinal, não houve outro remédio: — Foi seu Domingos... disse ela, chorando e cobrindo o rosto com a fralda do vestido, rasgado na luta. — O Domingos!... — O caixeiro da venda!... — Ah! foi aquele cara de nabo? gritou Marciana. Vem cá! E, agarrando a filha pela mão, arrastou-a até à venda. Os circunstantes acompanharam-na ruidosamente e de carreira. A taverna, como a casa de pasto, fervia de concorrência. Ao balcão daquela, o Domingos e o Manuel aviavam os fregueses, numa roda-viva. Havia muitos negros e negras. O baralho era enorme. A Leonor lá estava, sempre aos pulos, mexendo com um, mexendo com outro, mostrando a dupla fila de dentes brancos e grandes, e levando apalpões rudes de mãos de couro nas suas magras e escorridas nádegas de negrinha virgem Três marujos ingleses bebiam gengibirra, cantando, ébrios, na sua língua e mascando tabaco. Marciana na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que a seguia como um animal puxado pela coleira, ao chegar à porta lateral da venda, berrou: — Ó seu João Romão! — Que temos lá? perguntou de dentro o vendeiro, atrapalhado de serviço. preciso prometer dinheiro e tenho de cair com ele, decerto! mas não é justo, nem eu admito, que saia da minha algibeira porque não estou disposto a pagar os caprichos de ninguém, e muito menos dos meus caixeiros! — Mas... — Basta! Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de ficar calado; ao contrário — rua! E afastou-se. Marciana resolveu não ir ao subdelegado, sem saber que providências tomaria o vendeiro. Esperaria até ao dia seguinte “para ver só!” O que nesse ela fez foi dar uma boa lavagem na casa e arrumá-la muitas vezes, como costumava, sempre que tinha lá as suas zangas. O escândalo não deixou de ser, durante o dia, discutido um só instante. Não se falava noutra coisa; tanto que, quando, já à noite, Augusta e Alexandre receberam uma visita da comadre, a Léonie, era ainda esse o principal assunto das conversas. Léonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à francesa, levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras. O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos à moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas lavas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas abas forradas de velado escarlate, com um pássaro inteiro grudado à copa; as suas jóias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus lábios pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro; tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras daquela pobre gente, que de todos os lados surgiam olhos curiosos a espreitá-la pela porta da casinha de Alexandre; Augusta, ao ver a sua pequena, a Juju, como vinha tão embonecada e catita, ficou com os dela arrasados de água. Léonie trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada, levando o capricho ao ponto de lhe mandar talhar a roupa da mesma fazenda com que fazia as suas e pela mesma costureira; arranjava-lhe chapéus escandalosos como os dela e dava-lhe jóias. Mas, naquele dia, a grande novidade que Juju apresentava era estar de cabelos louros, quando os tinha castanhos por natureza. Foi caso para uma revolução na estalagem; a noticia correu logo de número a número, e muitos moradores se abalaram do cômodo para ver a filhita da Augusta “com cabelos de francesa”. Tal sucesso pôs Léonie radiante de alegria. Aquela afilhada era o seu luxo, a sua originalidade, a coisa boa da sua vida de cansaços depravados; era o que aos seus próprios olhos a resgatava das abjeções do oficio. Prostituta de casa aberta, prezava todavia com admiração e respeito a honestidade vulgar da comadre; sentia-se honrada com a sua estima; cobria-a de obséquios de toda a espécie. Nos instantes que estava ali, entre aqueles seus amigos simplórios, que a matariam de ridículo em qualquer outro lagar, nem ela parecia a mesma, pois até os olhos lhe mudavam de expressão. E não queria preferências: assentava-se no primeiro banco, bebia água pela caneca de folha, tomava ao colo o pequenito da comadre e, às vezes, descalçava os sapatos para enfiar os chinelos velhos que encontrasse debaixo da cama. Não obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a mulher não tinha limites; pareciam capazes dos maiores sacrifícios por ela. Adoravam-na. Achavam-na boa de coração como um anjo, e muito linda nas suas roupas de espavento, com o seu rostinho redondo, malicioso e petulante, onde reluziam dentes mais alvos que um marfim. Juju, com um embrulho de balas em cada mão, era carregada de casa em casa, passando de braço a braço e levada de boca em boca, como um ídolo milagroso, que todos queriam beijar. E os elogios não cessavam: — Rica pequena!... — É um enlevo olhar a gente pro demoninho! — É mesmo uma lindeza de criança! — Uma criaturinha dos anjos! — Uma boneca francesa! — Uma menina Jesus! O pai acompanhava-a comovido, mas solene sempre, parando a todo momento, como em procissão, à espera que cada qual desafogasse por sua vez o entusiasmo pela criança. Silenciosamente risonho, com os olhos úmidos, patenteada em todo o seu carão mulato, de bigode que parecia postiço, um ar condolente e estúpido de um profundo reconhecimento por aquela fortuna, que Deus lhe dera à filha, enviando-lhe dos céus o ideal das madrinhas. E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Léonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. E aquelas mulheres, aliás tão alegres e vivazes, não se animavam, defronte dela, a rir nem levantar a voz, e conversavam a medo cochichando, a tapar a boca com a mão, tolhidas de respeito pela cocote, que as dominava na sua sobranceria de mulher loura vestida de seda e coberta de brilhantes. A das Dores sentiu-se orgulhosa, quando Léonie lhe pousou no ombro a mãozinha enluvada e recendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E não se fartavam de olhar para ela, de admirá-la; chegavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as salas, apalpar-lhe as meias, levantando-lhe o vestido, com exclamações de assombro à vista de tanto luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez comovida. Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a da Nossa Senhora da Penha. E Nenen, no seu entusiasmo, disse que a invejava do fundo do coração, ao que a mãe lhe observou que não fosse besta. O Albino contemplava-a em êxtase, de mão no queixo, o cotovelo no ar. A Rita Baiana levara-lhe um ramalhete de rosas. Esta não se iludia com a posição da loureira, mas dava-lhe apreço talvez por isso mesmo e, em parte, porque a achava deveras bonita. “Ora! era preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim da pele dos homens ricos aquela porção de jóias e todo aquele luxo de roupa por dentro e por fora!” — Não sei, filha! pregava depois a mulata, no pátio, a uma companheira; seja assim ou assado, a verdade é que ela passa muito bem de boca e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom carro para passear à tarde; teatro toda a noite; bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da cidade e dinheirama grossa para gastar à farta! Enfim, só o que afianço é que esta não está sujeita, como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É dona das suas ações! livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta! — E Pombinha?... perguntou a visita. Não me apareceu ainda!... — Ah! esclareceu Augusta. Não está ai, foi à sociedade de dança com a mãe. E, como a outra mostrasse na cara não ter compreendido, explicou que a filha de Dona Isabel ia todas as terças, quintas e sábados, mediante dois mil-réis por noite, servir de dama numa sociedade em que os caixeiros do comércio aprendiam a dançar. — Foi lá que ela conheceu o Costa... acrescentou. — Que Costa? — O noivo! Então a Pombinha já não foi pedida? — Ah! sei... E a cocote perguntou depois, abafando a voz: — E aquilo?... Já veio afinal?... — Qual! Não é por falta de boa vontade da parte delas, coitadas! Agora mesmo a velha fez uma nova promessa a Nossa Senhora da Anunciação... mas não há meio! Daí a pouco, Augusta apresentou-lhe uma xícara de café, que Léonie recusou por não poder beber. “Estava em uso de remédios...” Não disse, porém, quais eram estes, nem para que moléstia os tomava. — Prefiro um copo de cerveja, declarou ela. E, sem dar tempo a que se opusessem, tirou da carteira uma nota de dez mil-réis, que deu a Agostinho para ir buscar três garrafas de Carls Berg. A vista dos copos, liberalmente cheios, formou-se um silêncio enternecido. A cocote distribuiu-os por sua própria mão aos circunstantes, reservando um para si. Não chegavam. Quis mandar buscar mais; não lho permitiram, objetando que duas e três pessoas podiam beber juntas. — Para que gastar tanto?... Que alma grande! O troco ficou esquecido, de propósito, sobre a cômoda, entre uma infinita quinquilharia de coisas velhas e bem tratadas. — Quando você, comadre, agora me aparece por lá?... quis saber Léonie — Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre tem precisão de alguma... pode-se aprontar com mais pressa... — Então é bom mandar-me toalhas e lençóis... Camisas de dormir, é verdade! também tenho poucas. — Depois d’amanhã está tudo lá. E a noite ia-se passando. Deram dez horas. Léonie, impaciente já pelo rapaz que ficara de ir buscá-la, mandou ver se ele por acaso estaria no portão, à espera. — É aquele mesmo que veio da outra vez com a comadre?... — Não. É um mais alto. De cartola branca. Correu muita gente até à rua. O rapaz não tinha chegado ainda. Léonie ficou contrariada. — Imprestável!... resmungou. Faz-me ir sozinha por ai ou incomodar alguém que me acompanhe! — Por que a comadre não dorme aqui?... lembrou Augusta. Se quiser, arranja-se tudo! Não passará bem como em sua casa, mas uma noite corre depressa!... Não! não era possível Precisava estar em casa essa noite: no dia seguinte pela manhã iriam procurá-la muito cedo. Nisto chegou Pombinha com Dona Isabel. Disseram-lhes logo à entrada que Léonie estava em casa do Alexandre, e a menina deixou a mãe um instante no número 15 e seguiu sozinha para ali, radiante de alegria. Gostavam-se muito uma da outra. A cocote recebeu-a com exclamações de agrado e beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas vezes. — Então, minha flor, como está essa lindeza! perguntou-lhe, mirando-a toda. — Saudades suas... respondeu a moça, rindo bonito na sua boca ainda pura. E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se, isolando-as de todas as outras. Léonie entregou à Pombinha uma medalha de prata que lhe trouxera; uma tetéia que valia só pela esquisitice, representando uma fatia de queijo com um camundongo em cima. Correu logo de mão em mão, levantando espantos e gargalhadas. — Por um pouco que não me apanhas... continuou a cocote na sua conversa com a menina. Se a pessoa que me vem buscar tivesse chegado já, eu estaria longe. — E mudando de tom, a acarinhar-lhe os cabelos: — Por que não me apareces!... Não tens que recear: minha casa é muito sossegada... Já lá têm ido famílias!... — Nunca vou à cidade... É raro! suspirou Pombinha. — Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas comigo... — Se mamãe deixar... Olha! ela ai vem. Peça. Dona Isabel prometeu ir, não no dia seguinte, mas no outro imediato, que era domingo. E a palestra durou animada até que chegou, daí a um quarto de hora, o rapaz por quem esperava Léonie. Era um moço de vinte e poucos anos, sem emprego e sem fortuna, mas vestido com esmero e muito bem apessoado. A cocote, logo que o viu aproximar-se, disse baixinho à menina: — Não é preciso que ele saiba que vais lá domingo, ouviste? Juju dormia. Resolveram não acordá-la; iria no dia seguinte. Na ocasião em que Léonie partia pelo braço do amante, acompanhada até o portão por um séquito de lavadeiras, a Rita, no pátio, beliscou a coxa de Jerônimo e soprou-lhe à meia voz: — Não lhe caia o queixo!... O cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d’ombros. — Aquela pra cá nem pintada! E, para deixar bem patente as suas preferências, virou o pé do lado e bateu com o tamanco na canela da mulata. — Olha o bruto!... queixou-se esta, levando a mão ao lagar da pancada. Sempre há de mostrar que é galego! deslumbramento! quando o vendeiro leu no “Jornal do Comércio” que o vizinho estava barão — Barão! — sentiu tamanho calafrio em todo o corpo, que a vista por um instante se lhe apagou dos olhos. — Barão! E durante todo o santo dia não pensou noutra coisa. “Barão!... Com esta é que ele não contava!...” E, defronte da sua preocupação, tudo se convertia em comendas e crachás; até os modestos dois vinténs de manteiga, que media sobre um pedaço de papel de embrulho para dar ao freguês, transformava-se, de simples mancha amarela, em opulenta insígnia de ouro cravejada de brilhantes. À noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, para dormir, não pôde conciliar o sono. Por toda a miséria daquele quarto sórdido; pelas paredes imundas, pelo chão enlameado de poeira e sebo, nos tetos funebremente velados pelas teias de aranha, estrelavam pontos luminosos que se iam transformando em grã-cruzes, em hábitos e veneras de toda a ordem e espécie. E em volta do seu espírito, pela primeira vez alucinado, um turbilhão de grandezas que ele mal conhecia e mal podia imaginar, perpassou vertiginosamente, em ondas de seda e rendas, velado e pérolas, colos e braços de mulheres seminuas, num fremir de risos e espumar aljofrado de vinhos cor-de-ouro. E nuvens de caudas de vestidos e abas de casaca lá iam, rodando deliciosamente, ao som de langorosas valsas e à luz de candelabros de mil velas de todas as cores. E carruagens desfilavam reluzentes, com uma coroa à portinhola, o cocheiro teso, de libré, sopeando parelhas de cavalos grandes. E intermináveis mesas estendiam-se, serpenteando a perder de vista, acumuladas de iguarias, numa encantadora confusão de flores, luzes, baixelas e cristais, cercadas de um e de outro lado por luxuoso renque de convivas, de taça em punho, brindando o anfitrião. E, porque nada disso o vendeiro conhecia de perto, mas apenas pelo ruído namorador e fátuo, ficava deslumbrado com o seu próprio sonho. Tudo aquilo, que agora lhe deparava o delírio, até ai só lhe passara pelos olhos ou lhe chegara aos ouvidos como o eco e reflexo de um mundo inatingível e longínquo; um mundo habitado por seres superiores; um paraíso de gozos excelentes e delicados, que os seus grosseiros sentidos repeliam; um conjunto harmonioso e discreto de sons e cores mal definidas e vaporosas; um quadro de manchas pálidas, sussurrantes, sem firmezas de tintas, nem contornos, em que se não determinava o que era pétala de rosa ou asa de borboleta, murmúrio de brisa ou ciciar de beijos. Não obstante, ao lado dele a crioula roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre. Mas João Romão nem dava por ela; só o que ele via e sentia era todo aquele voluptuoso mundo inacessível vir descendo para a terra, chegando-se para o seu alcance, lentamente, acentuando-se. E as dúbias sombras tomavam forma, e as vozes duvidosas e confusas transformavam-se em falas distintas, e as linhas desenhavam-se nítidas, e tudo se ia esclarecendo e tudo se aclarava, num reviver de natureza ao raiar do sol. Os tênues murmúrios suspirosos desdobravam-se em orquestra de baile, onde se distinguiam instrumentos, e os surdos rumores indefinidos eram já animadas conversas, em que damas e cavalheiros discutiam política, artes, literatura e ciência. E uma vida inteira, completa, real, descortinou-se amplamente defronte dos seus olhos fascinados; uma vida fidalga, de muito luxo, de muito dinheiro; uma vida de palácio, entre mobílias preciosas e objetos esplêndidos, onde ele se via cercado de titulares milionários, e homens de farda bordada, a quem tratava por tu, de igual para igual, pondo-lhes a mão no ombro. E ali ele não era, nunca fora, o dono de um cortiço, de tamancos e em mangas de camisa; ali era o Sr. Barão! O Barão do ouro! o Barão das grandezas! o Barão dos milhões! Vendeiro! Qual! era o famoso, o enorme capitalista! o proprietário sem igual! o incomparável banqueiro, em cujos capitais se equilibrava a terra, como imenso globo em cima de colunas feitas de moedas de ouro. E viu-se logo montado a cavaleiras sobre o mundo, pretendendo abarcá-lo com as suas pernas curtas; na cabeça uma coroa de rei e na mão um cetro. E logo, de todos os cantos do quarto, começaram a jorrar cascatas de libras esterlinas, e a seus pés principiou a formar-se um formigueiro de pigmeus em grande movimento comercial; e navios descarregavam pilhas e pilhas de fardos e caixões marcados com as iniciais do seu nome; e telegramas faiscavam eletricamente em volta da sua cabeça; e paquetes de todas as nacionalidades giravam vertiginosamente em torno do seu corpo de colosso, arfando e apitando sem trégua; e rápidos comboios a vapor atravessam-no todo, de um lado a outro, como se o cosessem com uma cadeia de vagões. Mas, de repente, tudo desapareceu com a seguinte frase: — Acorda, seu João, para ir à praia. São horas! Bertoleza chamava-o aquele domingo, como todas as manhãs, para ir buscar o peixe, que ela tinha de preparar para os seus fregueses. João Romão, com medo de ser iludido, não confiava nunca aos empregados a menor compra a dinheiro; nesse dia, porém, não se achou com animo de deixar a cama e disse à amiga que mandasse o Manuel. Seriam quatro da madrugada. Ele conseguiu então passar pelo sono. Às seis estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já. Içaram-se bandeiras nas janelas da frente; mudaram-se as cortinas, armaram-se florões de murta à entrada e recamaram-se de folhas de mangueira o corredor e a calçada. Dona Estela mandou soltar foguetes e queimar bombas ao romper da alvorada. Uma banda de música, em frente à porta do sobrado, tocava desde essa hora. O Barão madrugara com a família; todo de branco, com uma gravata de rendas, brilhantes no peito da camisa, chegava de vez em quando a uma das janelas, ao lado da mulher ou da filha, agradecendo para a rua; e limpava a testa com o lenço; acendia charutos, risonho, feliz, resplandecente. João Romão via tudo isto com o coração moído. Certas dúvidas aborrecidas entravam-lhe agora a roer por dentro: qual seria o melhor e o mais acertado: — ter vivido como ele vivera até ali, curtindo privações, em tamancos e mangas de camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gozando à farta?... Estaria ele, João Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual ao do vizinho?... Dinheiro não lhe faltava para isso... Sim, de acordo! mas teria animo de gastá-lo assim, sem mais nem menos?... sacrificar uma boa porção de contos de réis, tão penosamente acumulados, em troca de uma tetéia para o peito?... Teria animo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo família; e cercando-se de amigos?... Teria animo de encher de finas iguarias e vinhos preciosos a barriga dos outros, quando até ali fora tão pouco condescendente para com a própria?... E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se a uma senhora bem-educada e distinta de maneiras, montar um sobrado como o do Miranda e volver-se titular, estaria apto para o fazer?... Poderia dar conta do recado?... Dependeria tudo isso somente da sua vontade?... “Sem nunca ter vestido um paletó, como vestiria uma casaca?... Com aqueles pés, deformados pelo diabo dos tamancos, criados à solta, sem meias, como calçaria sapatos de baile?... E suas mãos, calosas e maltratadas, duras como as de um cavouqueiro, como se ajeitariam com a luva?... E isso ainda não era tudo! O mais difícil seria o que tivesse de dizer aos seus convidados!... Como deveria tratar as damas e cavalheiros, em meio de um grande salão cheio de espelhos e cadeiras douradas?... Como se arranjaria para conversar, sem dizer barbaridades?...” E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo forte de querer saltar e um medo invencível de cair e quebrar as pernas. Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção da sua impotência para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu ouro. “Fora uma besta!... pensou de si próprio, amargurado: Uma grande besta!... Pois não! por que em tempo não tratara de habituar-se logo a certo modo de viver, como faziam tantos outros seus patrícios e colegas de profissão?... Por que, como eles, não aprendera a dançar? e não freqüentar sociedades carnavalescas? e não fora de vez em quando à Rua do Ouvidor e aos teatros e bailes, e corridas e a passeios?... Por que se não habituara com as roupas finas, e com o calçado justo, e com a bengala, e com o lenço, e com o charuto, e com o chapéu, e com a cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem precisar de privilégio para isso?... Maldita economia!” — Teria gasto mais, é verdade!... Não estaria tão bem!... mas, ora adeus! estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quisesse!... Seria um homem civilizado!... — Você deu hoje para conversar com as almas, seu João?... perguntou-lhe Bertoleza, notando que ele falava sozinho, distraído do serviço. — Deixe! Não me amole você também. Não estou bom hoje! — Ó gentes! não falei por mal!... Credo! — ’Stá bem! Basta! E o seu mau humor agravou-se pelo correr do dia. Começou a implicar com tudo. Arranjou logo uma pega, à entrada da venda, com o fiscal da rua: “Pois ele era lá algum parvo, que tivesse medo de ameaças de multas?... Se o bolas do fiscal esperava comê-lo por uma perna, como costumava fazer com os outros, que experimentasse, para ver só quanto lhe custaria a festa!... E que lhe não rosnasse muito, que ele não gostava de cães à porta!... Era andar!” Pegou-se depois com a Machona, por causa de um gato desta, que, a semana passada, lhe fora ao tabuleiro do peixe frito. Parava defronte das tinas vazias, encolerizado, procurando pretextos para ralhar. Mandava, com um berro, saírem as crianças de seu caminho: “Que praga de piolhos! Arre, demônio! Nunca vira gente tão danada para parir! Pareciam ratas!” Deu um encontrão no velho Libório. — Sai tu também do caminho, fona de uma figa! Não sei que diabo fica fazendo cá no mundo um caco velho como este, que já não presta pra nada! Protestou contra os galos de um alfaiate, que se divertia a fazê-los brigar, no meio de grande roda entusiasmada e barulhenta. Vituperou os italianos, porque estes, na alegre independência do domingo, tinham à porta da casa uma esterqueira de cascas de melancia e laranja, que eles comiam tagarelando, assentados sobre a janela e a calçada. — Quero isto limpo! bramava furioso. Está pior que um chiqueiro de porcos! Apre! Tomara que a febre amarela os lamba a todos! maldita raça de carcamanos! Hão de trazer-me isto asseado ou vai tudo para o olho da rua! Aqui mando eu! Com a pobre velha Marciana, que não tratara de despejar o número 12, conforme a intimação da véspera, a sua fúria tocou ao delírio. A infeliz, desde que Florinda lhe fugira, levava a choramingar e maldizer-se, monologando com persistência maníaca. Não pregou olho durante toda a noite; saíra e entrara na estalagem mais de vinte vezes, irrequieta, ululando, como uma cadela a quem roubaram o cachorrinho. Estava apatetada; não respondia às perguntas que lhe dirigiam. João Romão falou-lhe; ela nem sequer se voltou para ouvir. E o vendeiro, cada vez mais excitado, foi buscar dois homens e ordenou que esvaziassem o numero 12. — Os tarecos fora! e já! Aqui mando eu! Aqui sou eu o monarca! E tinha gestos inflexíveis de déspota. Principiou o despejo. — Não! aqui dentro não! Tudo lá fora! na rua! gritou ele, quando os carregadores quiseram depor no pátio os trens de Marciana. Lá fora do portão! Lá fora do portão! E a mísera, sem opor uma palavra, assistia ao despejo acocorada na rua, com os joelhos juntos, as mãos cruzadas sobre as canelas, resmungando. Transeuntes paravam a olhá-la. Formava-se já um grupo de curiosos. Mas ninguém entendia o que ela rosnava; era um rabujar confuso, interminável, acompanhado de um único gesto de cabeça, triste e automático. Ali perto, o colchão velho, já roto e destripado, os móveis desconjuntados e sem verniz, as trouxas de molambos úteis, as louças ordinárias e sujas do uso, tinham, tudo amontoado e sem ordem, um ar indecoroso de interior de quarto de dormir, devassado em flagrante intimidade. E veio o homem dos cinco instrumentos, que, aos domingos, aparecia sempre; e fez-se o entra-e-sai dos mercadores; e lavadeiras ganharam a rua em trajos de passeio, e os tabuleiros de roupa engomada, que saiam, cruzaram-se com os sacos de roupa suja, que entravam; e Marciana não se movia do seu lugar, monologando. João Romão percorreu o número 12, escancarando as portas, a dar arres e empurrando para fora, com o pé, algum trapo ou algum frasco vazio que lá ficara abandonado; e a enxotada, indiferente a tudo, continuava a sussurrar funebremente. Já não chorava, mas os olhos tinha-os ainda relentados na sua muda fixidez. Algumas mulheres da estalagem iam ter com ela de vez em quando, agora de novo compungidas, e faziam-lhe oferecimentos, Marciana não respondia. Quiseram obrigá-la a comer; não houve meio. A desgraçada não prestava atenção a coisa alguma, parecia não dar pela presença de ninguém. Chamaram-na pelo nome repetidas vezes; ela persistia no seu ininteligível monólogo, sem tirar a vista de um ponto. — Cruzes! parece que lhe deu alguma! — A Augusta chegara-se também. — Teria ensandecido?... perguntou à Rita, que, a seu lado, olhava para a infeliz, com um prato de comida na mão. Coitada! — Tia Marciana! dizia a mulata. Não fique assim!! Levante-se! Meta os seus trens pra dentro! Vá lá pra casa até encontrar arrumação!... Nada! O monólogo continuava. — Olhe que vai chover! Não tarda a cair água! Já senti dois pingos na cara. Qual! A Bruxa, a certa distancia, fitava-a com estranheza, igualmente imóvel, como um efeito de sugestão. Rita afastou-se, porque acabava de chegar o Firmo, acompanhado pelo Porfiro, trazendo ambos embrulhos para o jantar. O amigo da das Dores também veio. Deram três horas da tarde. A casa do Miranda continuava em festa animada cada vez mais cheia de visitas; lá dentro a música quase que não tomava fôlego, enfiando quadrilhas e valsas; moças e meninas dançavam na sala da frente, com muito riso; desarrolhavam-se garrafas a todo instante; os criados iam e vinham, de carreira, da sala de jantar à despensa e à cozinha, carregados de copos em salvas; Henrique, suado e vermelho, aparecia de quando em quando à janela, impaciente por não ver Pombinha, que estava esse dia de passeio com a mãe em casa de Léonie. João Romão, depois de serrazinar na venda com os caixeiros e com a Bertoleza, tornou ao pátio da estalagem queixando-se de que tudo ali ia muito mal. Censurou os trabalhadores da pedreira, nomeando o próprio Jerônimo, cuja força física aliás o intimidara sempre. “Era um relaxamento aquela porcaria de serviço! Havia três semanas que estava com uma broca à-toa, sem atar, nem desatar; afinal ai chegara o domingo e não se havia ainda lascado fogo! Uma verdadeira calaçaria! O tal seu Jerônimo, dantes tão apurado, era agora o primeiro a dar o mau exemplo! perdia noites no samba! não largava os rastros da Rita Baiana e parecia embeiçado por ela! Não tinha jeito!” Piedade, ouvindo o vendeiro dizer mal do seu homem, saltou em defesa deste com duas pedras na mão, e uma contenda travou-se, assanhando todos os ânimos. Felizmente, a chuva, caindo em cheio, veio dispersar o ajuntamento que se tornava sério. Cada um correu para o seu buraco, num alvoroço exagerado; as crianças despiram-se e vieram cá fora tomar banho debaixo das goteiras, por pagode, gritando, rindo, saltando e atirando-se ao chão, a espernearem; fingindo que nadavam. E lá defronte, no sobrado, ferviam brindes, enquanto a água jorrava copiosamente, alagando o pátio. Quando João Romão entrou na venda, recolhendo-se da chuva, um caixeiro entregou-lhe um cartão de Miranda. Era um convite para lá ir à noite tomar uma chávena de chá. O vendeiro, a principio, ficou lisonjeado com o obséquio, primeiro desse gênero que em sua vida recebia; mas logo depois voltou-lhe a cólera com mais ímpeto ainda. Aquele convite irritava-o como um ultraje, uma provocação. “Por que o pulha o convidara, devendo saber que ele decerto lá não ia?... Para que, se não para o enfrenesiar ainda mais do que já estava?!... Seu Miranda que fosse à tábua com a sua festa e com os seus títulos!” — Pega! Pega! — Ai, o meu rico homem! ululou Piedade, atirando-se de joelhos sobre o corpo ensangüentado do marido. Rita viera também de carreira lançar-se ao chão junto dele, para lhe afagar as barbas e os cabelos. — É preciso o doutor! suplicou aquela, olhando para os lados à procura de uma alma caridosa que lhe valesse. Mas nisto um estardalhaço de formidáveis pranchadas estrugiu no portão da estalagem. O portão abalou com estrondo e gemeu. — Abre! Abre! reclamavam de fora. João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo, gritando a todos: — Não entra a polícia! Não deixa entrar! Agüenta! Agüenta! — Não entra! Não entra! repercutiu a multidão em coro. E todo o cortiço ferveu que nem uma panela ao fogo. — Agüenta! Agüenta! Jerônimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos braços da mulher e da mulata. — Agüenta! Agüenta! De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela primeira vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava direito! “Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher!” mas agora tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar por alguém ou alguma coisa querida. — Não entra! Não entra! E berros atroadores respondiam às pranchadas, que lá fora se repetiam ferozes. A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho. E, enquanto os homens guardavam a entrada do capinzal e sustentavam de costas o portão da frente, as mulheres, em desordem, rolavam as tinas, arrancavam jiraus, arrastavam carroças, restos de colchões e sacos de cal, formando às pressas uma barricada. As pranchadas multiplicavam-se. O portão rangia, estalava, começava a abrir-se; ia ceder. Mas a barricada estava feita e todos entrincheirados atrás dela. Os que entravam de fora por curiosidade não puderam sair e viam-se metidos no surumbamba. As cercas das hortas voaram A Machona terrível fungara as saias e empunhava na mão o seu ferro de engomar. A das Dores, que ninguém dava nada por ela, era uma das mais duras e que parecia mais empenhada na defesa. Afinal o portão lascou; um grande rombo abriu-se logo; caíram tábuas; e os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se outros. Havia uns vinte. Um saco de cal, despejado sobre eles, desnorteou-os. Principiou então o salseiro grosso. Os sabres não podiam alcançar ninguém por entre a trincheira; ao passo que os projetis, arremessados lá de dentro, desbaratavam o inimigo. Já o sargento tinha a cabeça partida e duas praças abandonavam o campo, à falta de ar. Era impossível invadir aquele baluarte com tão poucos elementos, mas a polícia teimava, não mais por obrigação que por necessidade pessoal de desforço. Semelhante resistência os humilhava. Se tivessem espingardas fariam fogo. O único deles que conseguiu trepar à barricada rolou de lá abaixo sob uma carga de pau que teve de ser carregado para a rua pelos companheiros. O Bruno, todo sujo de sangue, estava agora armado de um refle e o Porfiro, mestre na capoeiragem, tinha na cabeça uma barretina de urbano. — Fora os morcegos! — Fora! Fora! E, a cada exclamação, tome pedra! tome lenha! tome cal! tome fundo de garrafa! Os apitos estridulavam mais e mais fortes. Nessa ocasião, porém, Nenen gritou, correndo na direção da barricada. — Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está saindo fumaça! — Fogo! A esse grito um pânico geral apoderou-se dos moradores do cortiço. Um incêndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho! Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policiais, aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto, levando na frente o que encontravam e penetrando enfim no infernal reduto, a dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como quem destroça uma boiada. A multidão atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam à prisão; outros cuidavam em defender a casa. Mas as praças, loucas de cólera, metiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de vingança. Nisto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um grande pé-d’água desabou cerrado. XI A Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo e tentou incendiar o cortiço. Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ela, com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o número 12 e preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as conseqüências foram do mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como aquela ao fogo, não escaparam à devastação da polícia. Algumas ficaram completamente assoladas. E a coisa seria ainda mais feia, se não viera o providencial aguaceiro apagar também o outro incêndio ainda pior, que, de parte a parte, lavrava nos ânimos. A polícia retirou-se sem levar nenhum preso. “A ir um iriam todos à estação! Deus te livre! Demais, para quê? o que ela queria fazer, fez! Estava satisfeita!” Apesar do empenho do João Romão, ninguém conseguiu descobrir o autor da sinistra tentativa, e só muito tarde cada qual cuidou de pregar olho, depois de reacomodar, entre plangentes lamentações, o que se salvou do destroço. O tempo levantou de novo à meia-noite. Ao romper da aurora já muita gente estava de pé e o vendeiro passava uma revista minuciosa no pátio, avaliando e carpindo, inconsolável e furioso, o seu prejuízo. De vez em quando soltava uma praga. Além do que escangalharam os urbanos dentro das casas, havia muita tina partida, muito jirau quebrado, lampiões em fanicos, hortas e cercas arrasadas; o portão da frente e a tabuleta foram reduzidos a lenha. João Romão meditava, para cobrir o dano, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem, aumentando-lhes o aluguel dos cômodos e o preço dos gêneros. Viu-se numa dobadoura durante o dia inteiro; desde pela manhã dera logo as providências para que tudo voltasse aos seus eixos o mais depressa possível: mandou buscar novas tinas; fabricar novos jiraus e consertar os quebrados; pôs gente a remendar o portão e a tabuleta. Ao meio-dia teve de comparecer à presença do subdelegado na secretaria da polícia. Foi mesmo em mangas de camisa e sem meias; muitos do cortiço o acompanharam, quer por espírito de camaradagem, quer por simples curiosidade. Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! Parecia uma romaria; algumas mulheres levaram os seus pequenitos ao colo; um magote de italianos ia à frente, macarroneando, a fumar cachimbo; alguns cantavam. Ninguém tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farândola. A sala da polícia encheu-se. O interrogatório, exclusivamente dirigido a João Romão, era respondido por todos a um só tempo, a despeito dos protestos e das ameaças da autoridade, que se viu tonta. Nenhum deles nada esclarecia e todos se queixavam da polícia, exagerando as perdas recebidas na véspera. A respeito de como se travara o conflito e quem o provocara, o taverneiro declarou que nada podia saber ao certo, porque na ocasião se achava ausente da estalagem. De que tinha certeza era de que as praças lhe invadiram a propriedade e puseram em cacos tudo o que encontraram, como se aquilo lá fosse roupa de francês! — Bem feito! bradou o subdelegado. Não resistissem! Um coro de respostas assanhadas levantou-se para justificar a resistência. “Ah! Estavam mais que fartos de ver o que pintavam os morcegos, quando lhes não saia alguém pela frente! Esbodegavam até à última, só pelo gostinho de fazer mal! Pois então uma criatura, porque estava a divertir-se um bocado com os amigos, havia de ser aperreada que nem boi ladrão?... Tinha lá jeito? Os rolos era sempre a polícia quem os levantava com as suas fúrias! Não se metesse ela na vida de quem vivia sossegado no seu canto, e não seria tanto barulho!...” Como de costume, o espírito de coletividade, que unia aquela gente em circulo de ferro, impediu que transpirasse o menor vislumbre de denúncia. O subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a um por um, despachou o bando, que fez logo a sua retirada, no meio de uma alacridade mais quente ainda que a da ida. Lá no cortiço, de portas adentro, podiam esfaquear-se à vontade, que nenhum deles, e muito menos a vitima, seria capaz de apontar o criminoso; tanto que o médico, que, logo depois da invasão da polícia, desceu da casa do Miranda à estalagem, para socorrer Jerônimo, não conseguiu arrancar deste o menor esclarecimento sobre o motivo da navalhada. “Não fora nada!... Não fora de propósito!... Estavam a brincar e sucedera aquilo!... Ninguém tivera a menor intenção de fazer-lhe mossa!...” Rita mostrou-se de uma incansável solicitude para com o ferido. Foi ela quem correu a buscar os remédios, quem serviu de ajudante ao medico e quem serviu de enfermeira ao doente. Muitos lá iam, demorando-se um instante, para dar fé; ela, porém, desde que Jerônimo se achou operado, não lhe abandonou a cabeceira; ao passo que Piedade, aflita e atarantada, não fazia senão chorar e arreliar-se. A mulata, essa não chorava; mas a sua fisionomia tinha uma profunda expressão de mágoa enternecida. Agora toda ela se sentia apegar-se àquele homem bom e forte; àquele gigante inofensivo, àquele Hércules tranqüilo que mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na sua boa-fé, se deixara navalhar pelo facínora. “E tudo por causa dela! só por ela!” Seu coração de mulher rendia-se cativo a semelhante dedicação ensangüentada e dolorosa. E ele, o mísero, interrompia as contrações do rosto para sorrir defronte dos olhos enamorados da baiana, feliz naquela desgraça que lhe permitia gozar dos seus carinhos. E tomava-lhe as mãos, e cingia-lhe a cintura, resignado e comovido, sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente. Rita afagava-o, já sem a menor sombra de escrúpulo, tratando-o por tu, ameigando-lhe os cabelos sujos de sangue com a polpa macia da sua mão feminil. E ali mesmo em presença da mulher, dele, só faltava beijá-lo com a boca, que com os olhos o devorava de beijos ardentes e sequiosos. Depois da meia-noite dada, ela e Piedade ficaram sozinhas velando o enfermo. Deliberou-se que este iria pela manhã para a Ordem de Santo Antônio, de que era irmão. E, com efeito, no dia imediato, enquanto o vendeiro e seu bando andavam lá às voltas com a polícia, e o resto do cortiço formigava, tagarelando em volta do conserto das tinas e jiraus, Jerônimo, ao lado da mulher e da Rita, seguia dentro de um carro para o hospital. As duas só voltaram de lá à noite, caindo de fadiga. De resto, toda a estalagem estava igualmente prostrada e morrendo pela cama, se bem que nesse dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho; as que tinham roupa com mais pressa foram lavar fora ou arrastaram bacias de banho para debaixo das bicas, à falta de melhor vasilha para o serviço. Discutiu-se a campanha da véspera sem variar o assunto. Aqui era um que lembrava as suas proezas com os urbanos, descrevendo entusiasmado os pormenores da luta; ali, outro repetia, cheio de empáfia, os desaforos que dissera depois nas bochechas da autoridade; mais adiante trocavam-se queixas e recriminações; cada qual, mulheres e homens, sofrera o seu prejuízo. ou a sua arranhadura, e mostravam entre si, numa febre de indignação, os objetos partidos ou a parte do corpo escoriada. Mas às nove da noite já não havia viva alma no pátio da estalagem. A venda fechou-se um pouco mais cedo que de costume. Bertoleza atirou-se ao colchão, estrompada; João Romão recolheu-se junto dela, porem não conseguiu dormir; sentia calafrios e pontadas na cabeça. Chamou pela amiga, a gemer, e pediu-lhe que lhe desse alguma coisa para suar. Supunha estar com febre. A crioula só descansou quando, muitas horas adiante, depois de mudar-lhe a roupa, o viu pegar no sono; e daí a pouco, às quatro da madrugada, erguia-se ela, com estalos de juntas, a bocejar, fungando no seu estremunhamento pesadão, e pigarreando forte. Acordou o caixeiro para ir ao mercado; gargarejou um pouco d’água à torneira da cozinha e foi fazer fogo para o café dos trabalhadores, riscando fósforos e acendendo cavacos num fogareiro, donde começaram a borbotar grossos novelos de fumo espesso. Lá fora clareava já, e a vida renascia no cortiço. A luta de todos os dias continuava, como se não houvera interrupção. Principiava o burburinho. Aquela noite bem dormida punha-os a todos de bom humor. Pombinha, entretanto, nessa manhã acordara abatida e nervosa, sem animo de sair dos lençóis. Pediu café à mãe, bebeu, e tornou a abraçar-se nos travesseiros, escondendo o rosto. — Não te sentes melhor hoje, minha filha?... perguntou-lhe Dona Isabel, apalpando-lhe a testa. Febre não tens. — Ainda sinto o corpo mole... mas não é nada... isto passa!... — Foi de tanto gelo, que tomaste em casa de madama!... Não te dizia?... Agora, o melhor é dar-te um escalda-pés!... — Não, não, por amor de Deus! Daqui a pouco estou em pé! Às oito horas, com efeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o alinho da cabeça, defronte do seu modesto lavatório de ferro. Dir-se-ia sem forças para a menor coisa; toda ela transpirava uma contemplativa melancolia de convalescente; havia uma doce expressão dolorosa na limpidez cristalina de seus olhos de moça enferma; um pobre — Mas eu faço questão do beijo! — Pois bem! Está ai! E beijou-a. — Não quero assim! Foi dado de má vontade!... Pombinha deu-lhe outro. — Ah! Agora bem! Espera um nada! Deixa arranjar-me! É um instante! Em três tempos, lavou-se ligeiramente no bidê, endireitou o penteado defronte do espelho, num movimento rápido de dedos, e empoou-se, perfumou-se, e enfiou camisa, anágua e penteador, tudo com uma expedição de quem está habituada a vestir-se muitas vezes por dia. E, pronta, correu uma vista de olhos pela menina, desenrugou-lhe a saia, consertou-lhe melhor os cabelos e, readquirindo o seu ar tranqüilo de mulher ajuizada, tomou-a pela cintura e levou-a vagarosamente até à sala de jantar, para tomarem vermute com gasosa. O jantar foi às seis e meia. Correu frio, não tanto por parte de Pombinha, que aliás se mostrava bem incomodada, como porque Dona Isabel, dormindo até o momento de a chamarem para mesa, sentia-se aziada com o foie-gras. A dona da casa, todavia, não se forrou a desvelos e fez por alegrá-las rindo e contando anedotas burlescas. Ao café apareceu Juju, que a criada levara a passear desde logo depois do almoço, e uma afetação de agrados levantou-se em torno da pequerrucha. Léonie pôs-se a conversar com ela, falando como criança, dizendo-lhe que mostrasse a Dona Isabel “o seu papatinho novo!” Mais tarde, no terraço, enquanto fumava um cigarro, tomou a mão de Pombinha e meteu-lhe no dedo um anel com um diamante cercado de pérolas. A menina recusou o mimo, formalmente. Foi preciso a intervenção da velha para que ela consentisse em aceitá-lo. Às oito horas retiraram-se as visitas, seguindo direitinho para a estalagem. Durante toda a viagem Pombinha parecia preocupada e triste. — Que tens tu?... perguntou-lhe a mãe duas vezes. E de ambas a filha respondeu: — Nada! Aborrecimento... No pouco que dormiu essa noite, que foi a do baralho com a polícia, teve sonhos agitados e passou mal todo o dia seguinte, com molezas de febre e dores no útero. Não arredou pé de casa, nem para ver os destroços do conflito. A noticia do defloramento e da fuga de Florinda, como a da loucura da velha Marciana, produziu-lhe grande abalo nos nervos. Na manhã imediata, a despeito de fazer-se forte, torceu o nariz ao pobre almoço que Dona Isabel lhe apresentou carinhosa. Persistiam-lhe as dores uterinas, não vivas, mas constantes. Não teve animo de pegar na costura, e um livro que ela tentou ler, foi por várias vezes repelido. As onze para o meio-dia era tal o seu constrangimento e era tal o seu desassossego entre as apertadas paredes do número 15, que, malgrado os protestos da velha, saiu a dar uma volta por detrás do cortiço, à sombra dos bambus e das mangueiras. Uma irresistível necessidade de estar só, completamente só, uma aflição de conversar consigo mesma, a apartava no seu estreito quarto sufocante, tão tristonho e tão pouco amigo. Pungia-lhe na brancura da alma virgem um arrependimento incisivo e negro das torpezas da antevéspera; mas, lubrificada por essa recordação, toda a sua carne ria e rejubilava-se, pressentindo delicias que lhe pareciam reservadas para mais tarde, junto de um homem amado, dentro dela balbuciavam desejos, até ai mudos e adormecidos; e mistérios desvendavam-se no segredo do seu corpo, enchendo-a de surpresa e mergulhando-a em fundas concentrações de êxtase. Um inefável quebranto afrouxava-lhe a energia e distendia-lhe os músculos com uma embriaguez de flores traiçoeiras. Não pôde resistir: assentou-se debaixo das árvores, um cotovelo em terra, a cabeça reclinada contra a palma da mão. Na doce tranqüilidade daquela sombra morna, ouvia-se retinir distante a picareta dos homens da pedreira e o martelo dos ferreiros na forja. E o canto dos trabalhadores ora mais claro, ora mais duvidoso, acompanhando o marulhar dos ventos, ondeava no espaço, melancólico e sentido, como um coro religioso de penitentes. O calor tirava do capim um cheiro sensual. A moça fechou as pálpebras, vencida pelo seu delicioso entorpecimento, e estendeu-se de todo no chão, de barriga para o ar, braços e pernas abertas. Adormeceu. Começou logo a sonhar que em redor ia tudo se fazendo de um cor-de-rosa, a princípio muito leve e transparente, depois mais carregado, e mais, e mais, até formar-se em torno dela uma floresta vermelha, cor de sangue, onde largos tinhorões rubros se agitavam lentamente. E viu-se nua, toda nua, exposta ao céu, sob a tépida luz de um sol embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios. Mas, pouco a pouco, seus olhos, posto que bem abertos, nada mais enxergavam do que uma grande claridade palpitante, onde o sol, feito de uma só mancha reluzente, oscilava como um pêndulo fantástico. Entretanto, notava que, em volta da sua nudez alourada pela luz, iam-se formando ondulantes camadas sangüíneas, que se agitavam, desprendendo aromas de flor. E, rodando o olhar, percebeu, cheia de encantos, que se achava deitada entre pétalas gigantescas, no regaço de uma rosa interminável, em que seu corpo se atufava como em ninho de veludo carmesim, bordado de ouro, fofo, macio, trescalante e morno. E suspirando, espreguiçou-se toda num enleio de volúpia ascética. Lá do alto o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas mimosas formas de menina. Ela sorriu para ele, requebrando os olhos, e então o fogoso astro tremeu e agitou-se, e, desdobrando-se, abriu-se de par em par em duas asas e principiou a fremir, atraído e perplexo. Mas de repente, nem que se de improviso lhe inflamassem os desejos, precipitou-se lá de cima agitando as asas, e veio, enorme borboleta de fogo, adejar luxuriosamente em torno da imensa rosa, em cujo regaço a virgem permanecia com os peitos franqueados. E a donzela, sempre que a borboleta se aproximava da rosa, sentia-se penetrar de um calor estranho, que lhe acendia, gota a gota, todo o seu sangue de moça. E a borboleta, sem parar nunca, doidejava em todas as direções ora fugindo rápida, ora se chegando lentamente, medrosa de tocar com as suas antenas de brasa a pele delicada e pura da menina. Esta, delirante de desejos, ardia por ser alcançada e empinava o colo. Mas a borboleta fugia. Uma sofreguidão lúbrica, desensofrida, apoderou-se da moça; queria a todo custo que a borboleta pousasse nela, ao menos um instante, um só instante, e a fechasse num rápido abraço dentro das suas asas ardentes. Mas a borboleta, sempre doida, não conseguia deter-se; mal se adiantava, fugia logo, irrequieta, desvairada de volúpia. — Vem! Vem! suplicava a donzela, apresentando o corpo. Pousa um instante em mim! Queima-me a carne no calor das tuas asas! E a rosa, que tinha ao colo, é que parecia falar e não ela. De cada vez que a borboleta se avizinhava com as suas negaças, a flor arregaçava-se toda, dilatando as pétalas, abrindo o seu pistilo vermelho e ávido daquele contato com a luz. — Não fujas! Não fujas! Pousa um instante! A borboleta não pousou; mas, num delírio, convulsa de amor, sacudiu as asas com mais ímpeto e uma nuvem de poeira dourada desprendeu-se sobre a rosa, fazendo a donzela soltar gemidos e suspiros, tonta de gosto sob aquele eflúvio luminoso e fecundante. Nisto, Pombinha soltou um ai formidável e despertou sobressaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e quente. A natureza sorriu-se comovida. Um sino, ao longe, batia alegre as doze badaladas do meio-dia. O sol, vitorioso, estava a pino e, por entre a copagem negra da mangueira, um dos seus raios descia em fio de ouro sobre o ventre da rapariga, abençoando a nova mulher que se formava para o mundo. XII Pombinha ergueu-se de um pulo e abriu de carreira para casa. No lugar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de pontos vermelhos. A mãe lavava à tina, ela chamou-a com instância, enfiando cheia de alvoroço pelo número 15. E ai, sem uma palavra, ergueu as saias do vestido e expôs a Dona Isabel as suas fraldas ensangüentadas. — Veio?! perguntou a velha com um grito arrancado do fundo d’alma. A rapariga meneou a cabeça afirmativamente, sorrindo feliz e enrubescida. As lágrimas saltaram dos olhos da lavadeira. — Bendito e louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! exclamou ela, caindo de joelhos defronte da menina e erguendo para Deus o rosto e as mãos trêmulas. Depois abraçou-se às pernas da filha e, no arrebatamento de sua comoção, beijou-lhe repetidas vezes a barriga e parecia querer beijar também aquele sangue abençoado, que lhes abria os horizontes da vida, que lhes garantia o futuro; aquele sangue bom, que descia do céu, como a chuva benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada pela seca. Não se pôde conter: enquanto Pombinha mudava de roupa, saiu ela ao pátio, apregoando aos quatro ventos a linda noticia. E, se não fora a formal oposição da menina, teria passeado em triunfo a camisa ensangüentada, para que todos a vissem bem e para que todos a adorassem, entre hinos de amor, que nem a uma verônica sagrada de um Cristo. — Minha filha é mulher! Minha filha é mulher! O fato abalou o coração do cortiço, as duas receberam parabéns e felicitações. Dona Isabel acendeu velas de cera à frente do seu oratório, e nesse dia não pegou mais no trabalho, ficou estonteada, sem saber o que fazia, a entrar e a sair de casa, radiante de ventura. De cada vez que passava junto da filha dava-lhe um beijo na cabeça e em segredo recomendava-lhe todo o cuidado. “Que não apanhasse umidade! que não bebesse coisas frias! que se agasalhasse o melhor possível: e, no caso de sentir o corpo mole, que se metesse logo na cama! Qualquer imprudência poderia ser fatal!...” O seu empenho era pôr o João da Costa, no mesmo instante, ao corrente da grande novidade e pedir-lhe que marcasse logo o dia do casamento; a menina entendia que não, que era feio, mas a mãe arranjou um portador e mandou chamar o rapaz com urgência. Ele apareceu à tarde. A velha convidara gente para jantar; matou duas galinhas, comprou garrafas de vinho, e, à noite, serviu, às nove horas, um chá com biscoitos. Nenen e a das Dores apresentaram-se em trajos de festa; fez-se muita cerimônia; conversou-se em voz baixa, formando todos em volta de Pombinha uma solicita cadeia de agrados, uma respeitosa preocupação de bons desejos, a que ela respondia sorrindo comovida, como que exalando da frescura da sua virgindade um vitorioso aroma de flor que desabrocha. E a partir desse dia Dona Isabel mudou completamente. As suas rugas alegraram-se; ouviam-na cantarolar pela manhã, enquanto varria a casa e espanava os móveis. Não obstante, depois do tremendo conflito que acabou em navalhada, uma tristeza ia minando uma grande parte da estalagem. Já se não faziam as quentes noitadas de violão e dança ao relento. A Rita andava aborrecida e concentrada, desde que Jerônimo partiu para a Ordem; Firmo fora intimado pelo vendeiro a que lhe não pusesse, nunca mais, os pés em casa, sob pena de ser entregue à polícia; Piedade, que vivia a dar ais, carpindo a ausência do. marido, ainda ficou mais consumida com a primeira visita que lhe fez ao hospital; encontrou-o frio e sem uma palavra de ternura para ela, deixando até perceber a sua impaciência para ouvir falar da outra, daquela maldita mulata dos diabos, que, no fim de contas, era a única culpada de tudo aquilo e havia de ser a sua perdição e mais do seu homem! Quando voltou de lá atirou-se à cama, a soluçar sem alívio, e nessa noite não pôde pregar olho, senão já pela madrugada. Um negro desgosto comia-a por dentro, como tubérculos de tísica, e tirava-lhe a vontade para tudo que não fosse chorar. Outro que também, coitado! arrastava a vida muito triste, era o Bruno. A mulher, que a principio não lhe fizera grande falta, agora o torturava com a sua distancia; um mês depois da separação, o desgraçado já não podia esconder o seu sofrimento e ralava-se de saudades. A Bruxa, a pedido dele, tirou a sorte nas cartas e disse-lhe misteriosamente que Leocádia ainda o amava. Só Dona Isabel e a filha andavam deveras satisfeitas. Essas sim! nunca tinham tido uma época tão boa e tão esperançosa. Pombinha abandonara o curso de dança; o noivo ia agora visitá-la, invariavelmente, todas as noites; chegava sempre às sete horas e demorava-se até às dez; davam-lhe café numa xícara especial, de porcelana; às vezes jogavam a bisca, e ele mandava buscar, de sua algibeira, uma garrafa de cerveja alemã, e ficavam a conversar os três, cada qual defronte do seu copo, a respeito dos projetos de felicidade comum; outras vezes o Costa, sempre muito respeitador, muito bom rapaz, acendia o seu charuto da Bahia e deixava-se cair numa pasmaceira, a olhar para a moça, todo embebido nela. Pombinha punha alegrias naqueles serões com as suas garrulices de pomba que prepara o ninho. Depois do seu idílio com o sol fazia-se muito amiga da existência, sorvendo a vida em haustos largos, como quem acaba de sair de uma prisão e saboreia o ar livre. Volvia-se carnuda e cheia, sazonava que nem uma fruta que nos porque a sua escrivaninha era um pequeno confessionário, onde toda a salsugem e todas as fezes daquela praia de despejo foram arremessadas espumantes de dor e aljofradas de lágrimas. E na sua alma enfermiça e aleijada, no seu espírito rebelde de flor mimosa e peregrina criada num monturo, violeta infeliz, que um estrume forte demais para ela atrofiara, a moça pressentiu bem claro que nunca daria de si ao marido que ia ter uma companheira amiga, leal e dedicada; pressentiu que nunca o respeitaria sinceramente como a um ser superior por quem damos a vida; que nunca lhe votaria entusiasmo, e por conseguinte nunca lhe teria amor; desse de que ela se sentia capaz de amar alguém, se na terra houvera homens dignos disso. Ah! não o amaria decerto, porque o Costa era como os outros, passivo e resignado, aceitando a existência que lhe impunham as circunstâncias, sem ideais próprios, sem temeridades de revolta, sem atrevimentos de ambição, sem vícios trágicos, sem capacidade para grandes crimes; era mais um animal que viera ao mundo para propagar a espécie; um pobre-diabo enfim que já a adorava cegamente e que mais tarde, com ou sem razão, derramaria aquelas mesmas lágrimas, ridículas e vergonhosas, que ela vira decorrendo em quentes camarinhas pelas ásperas e maltratadas barbas do marido de Leocádia. E não obstante, até então, aquele matrimônio era o seu sonho dourado. Pois agora, nas vésperas de obtê-lo, sentia repugnância em dar-se ao noivo, e, se não fora a mãe, seria muito capaz de dissolver o ajuste. Mas, daí a uma semana, a estalagem era toda em rebuliço desde logo pela manhã. Só se falava em casamento; havia em cada olhar um sangüíneo reflexo de noites nupciais. Desfolharam-se rosas à porta da Pombinha. Às onze horas parou um carro à entrada do cortiço com uma senhora gorda, vestida de seda cor de pérola. Era a madrinha que vinha buscar a noiva para a igreja de São João Batista. A cerimônia estava marcada para o meio-dia. Toda esta formalidade embatucava os circunstantes, que se alinhavam imóveis defronte do número 15, com as mãos cruzadas atrás, o rosto paralisado por uma comoção respeitosa; alguns sorriam enternecidos; quase todos tinham os olhos ressumbrados d’água. Pombinha surgiu à porta de casa, já pronta para desferir o grande vôo; de véu e grinalda, toda de branco, vaporosa, linda. Parecia comovida; despedia-se dos companheiros atirando-lhes beijos com o seu ramalhete de flores artificiais. Dona Isabel chorava como criança, abraçando as amigas, uma por uma. — Deus lhe ponha virtude! exclamou a Machona. E que lhe dê um bom parto, quando vier a primeira barriga. A noiva sorria, de olhos baixas. Uma fímbria de desdém toldava-lhe a rosada candura de seus lábios. Encaminhou-se para o portão, cercada pela bênção de toda aquela gente, cujas lágrimas rebentaram afinal, feliz cada um por vê-la feliz e em caminho da posição que lhe competia na sociedade. — Não! aquela não nascera para isto!... sentenciou o Alexandre, retorcendo o reluzente bigode. Seria lástima se a deixassem ficar aqui! O velho Libório, cascalhando uma risada decrépita, queixou-se de que o maganão do Costa lhe passara a perna roubando-lhe a namorada. Ingrata! Ele que estava disposto a fazer uma asneira! Nenen deu uma corrida até à noiva, na ocasião em que esta chegava à carruagem e, estalando-lhe um beijo na boca, pediu-lhe com empenho que se não esquecesse de mandar-lhe um botão da sua grinalda de flores de laranjeira. — Diz que é muito bom para quem deseja casar!... e eu tenho tanto medo de ficar solteira!... É todo o meu susto! XIII À proporção que alguns locatários abandonavam a estalagem, muitos pretendentes surgiam disputando os cômodos desalugados. Delporto e Pompeo foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de vida. O número dos hóspedes crescia; os casulos subdividiam-se em cubículos do tamanho de sepulturas; e as mulheres iam despejando crianças com uma regularidade de gado procriador. Uma família; composta de mãe viúva e cinco filhas solteiras, das quais destas a mais velha tinha trinta anos e a mais moça quinze, veio ocupar a casa que Dona Isabel esvaziou poucos dias depois do casamento de Pombinha. Agora, na mesma rua, germinava outro cortiço ali perto, o “Cabeça-de-Gato”. Figurava como seu dono um português que também tinha venda, mas o legitimo proprietário era um abastado conselheiro, homem de gravata lavada, a quem não convinha, por decoro social, aparecer em semelhante gênero de especulações. E João Romão, estalando de raiva, viu que aquela nova república da miséria prometia ir adiante e ameaçava fazer-lhe à sua, perigosa concorrência. Pôs-se logo em campo, disposto à luta, e começou a perseguir o rival por todos os modos, peitando fiscais e guardas municipais, para que o não deixassem respirar um instante com multas e exigências vexatórias; enquanto pela sorrelfa plantava no espírito dos seus inquilinos um verdadeiro ódio de partido, que os incompatibilizava com a gente do “Cabeça-de-Gato”. Aquele que não estivesse disposto a isso ia direitinho para a rua, “que ali se não admitiam meias medidas a tal respeito! Ali: ou bem peixe ou bem carne! Nada de embrulho!” É inútil dizer que a parte contrária lançou mão igualmente de todos os meios para guerrear o inimigo, não tardando que entre os moradores da duas estalagens rebentasse uma tremenda rivalidade, dia a dia agravada por pequenas brigas e rezingas, em que as lavadeiras se destacavam sempre com questões de freguesia de roupa. No fim de pouco tempo os dois partidos estavam já perfeitamente determinados; os habitantes do “Cabeça-de-Gato” tomaram por alcunha o titulo do seu cortiço, e os de “São Romão”, tirando o nome do peixe que a Bertoleza mais vendia à porta da taverna, foram batizados por “Carapicus”. Quem se desse com um carapicu não podia entreter a mais ligeira amizade com um cabeça-de-gato; mudar-se alguém de uma estalagem para outra era renegar idéias e princípios e ficava apontado a dedo; denunciar a um contrário o que se passava, fosse o que fosse, dentro do circulo oposto, era cometer traição tamanha, que os companheiros a puniam a pau. Um vendedor de peixe, que caiu na asneira de falar a um cabeça-de-gato a respeito de uma briga entre a Machona e sua filha, a das Dores, foi encontrado quase morto perto do cemitério de São João Batista. Alexandre, esse então não cochilava com os adversários: nas suas partes policiais figurava sempre o nome de um deles pelo menos, mas entre os próprios polícias havia adeptos de um e de outro partido; o urbano que entrava na venda do João Romão tinha escrúpulo de tomar qualquer coisa ao balcão da outra venda. Em meio do pátio do “Cabeça-de-Gato” arvorara-se uma bandeira amarela; os carapicus responderam logo levantando um pavilhão vermelho. E as duas cores olhavam-se no ar como um desafio de guerra. A batalha era inevitável. Questão de tempo. Firmo, assim que se instaurara a nova estalagem, abandonou o quarto na oficina e meteu-se lá de súcia com o Porfiro, apesar da oposição de Rita, que mais depressa o deixaria a ele do que aos seus velhos camaradas de cortiço. Daí nasceu certa ponta de discórdia entre os dois amantes; as suas entrevistas tornavam-se agora mais raras e mais difíceis. A baiana, por coisa alguma desta vida, poria os pés no “Cabeça-de-Gato” e o Firmo achava-se, como nunca, incompatibilizado com os carapicus. Para estarem juntos tinham encontros misteriosos num caloji de uma velha miserável da Rua de São João Batista, que lhe cedia a cama mediante esmolas. O capoeira fazia questão de ficar no “Cabeça-de-Gato”, porque ai se sentia resguardado contra qualquer perseguição que o seu delito motivasse; de resto, Jerônimo não estava morto e, uma vez bem curado, podia vir sobre ele com gana. No “Cabeça-de-Gato”, o Firmo conquistara rápidas simpatias e constituíra-se chefe de malta. Era querido e venerado; os companheiros tinham entusiasmo pela sua destreza e pela sua coragem; sabiam-lhe de cor a legenda rica de façanhas e vitórias. O Porfiro secundava-o sem lhe disputar a primazia, e estes dois, só por si, impunham respeito aos carapicus, entre os quais, não obstante, havia muito boa gente para o que desse e viesse. Mas ao cabo de três meses, João Romão, notando que os seus interesses nada sofriam com a existência da nova estalagem e, até pelo contrário, lucravam com o progressivo movimento de povo que se ia fazendo no bairro, retornou à sua primitiva preocupação com o Miranda, única rivalidade que verdadeiramente o estimulava. Desde que o vizinho surgiu com o baronato, o vendeiro transformava-se por dentro e por fora a causar pasmo. Mandou fazer boas roupas e aos domingos refestelava-se de casaco branco e de meias, assentado defronte da venda, a ler jornais. Depois deu para sair a passeio, vestido de casimira, calçado e de gravata. Deixou de tosquiar o cabelo à escovinha; pôs a barba abaixo, conservando apenas o bigode, que ele agora tratava com brilhantina todas as vezes que ia ao barbeiro. Já não era o mesmo lambuzão! E não parou aí: fez-se sócio de um clube de dança e, duas noites por semana, ia aprender a dançar; começou a usar relógio e cadeia de ouro; correu uma limpeza no seu quarto de dormir, mandou soalhá-lo, forrou-o e pintou-o; comprou alguns móveis em segunda mão; arranjou um chuveiro ao lado da retrete; principiou a comer com guardanapo e a ter toalha e copos sobre a mesa; entrou a tomar vinho, não do ordinário que vendia aos trabalhadores, mas de um especial que guardava para seu gasto. Nos dias de folga atirava-se para o Passeio Público depois do jantar ou ia ao teatro São Pedro de Alcântara assistir aos espetáculos da tarde; do “Jornal do Comércio”, que era o único que ele assinava havia já três anos e tanto, passou a receber mais dois outros e a tomar fascículos de romances franceses traduzidos, que o ambicioso lia de cabo a rabo, com uma paciência de santo, na doce convicção de que se instruía. Admitiu mais três caixeiros; já não se prestava muito a servir pessoalmente à negralhada da vizinhança, agora até mal chegava ao balcão. E em breve o seu tipo começou a ser visto com freqüência na Rua Direita, na praça do comércio e nos bancos, o chapéu alto derreado para a nuca e o guarda-chuva debaixo do braço. Principiava a meter-se em altas especulações, aceitava ações de companhias de títulos ingleses e só emprestava dinheiro com garantias de boas hipotecas. O Miranda tratava-o já de outro modo, tirava-lhe o chapéu, parava risonho para lhe falar quando se encontravam na rua, e às vezes trocava com ele dois dedos de palestra à porta da venda. Acabou por oferecer-lhe a casa e convidá-lo para o dia de anos da mulher, que era daí a pouco tempo. João Romão agradeceu o obséquio, desfazendo-se em demonstrações de reconhecimento, mas não foi lá. Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo; essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo; pelo contrário, à medida que ele galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira. João Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a viagem. Começou a cair em tristeza. O velho Botelho chegava-se também para o vendeiro, e ainda mais do que o próprio Miranda. O parasita não saia agora depois do almoço para a sua prosa na charutaria, nem voltava à tarde para o jantar, sem deter-se um instante à porta do vizinho ou, pelo menos, sem lhe gritar lá de dentro: “Então, seu João, isso vai ou não vai?...” E tinha sempre uma frase amigável para lhe atirar cá de fora. Em geral o taverneiro acudia a apertar-lhe a mão, de cara alegre, e propunha-lhe que bebesse alguma coisa. Sim, João Romão já convidava para beber alguma coisa. Mas não era à loa que o fazia, que aquele mesmo não metia prego sem estopa! Tanto assim que uma vez, em que os dois saíram à tardinha para dar um giro até à praia, Botelho, depois de falar com o costumado entusiasmo do seu belo amigo Barão e da virtuosíssima família deste, acrescentou com o olhar fito: — Aquela pequena é que lhe estava a calhar, seu João!... — Como? Que pequena? — Ora morda aqui! Pensa que já não dei pelo namoro?... Maganão! O vendeiro quis negar, mas o outro atalhou: — É um bom partido, é! Excelente menina... tem um gênio de pomba... uma educação de princesa: até o francês sabe! Toca piano como você tem ouvido... canta o seu bocado... aprendeu desenho... muito boa mão de agulha!... e... Abaixou a voz e segredou grosso no ouvido do interlocutor: — Ali, tudo aquilo é sólido!... Prédios e ações do banco!... — Você tem certeza disso? Já viu? — Já! Palavra d’honra! Calaram-se um instante. Botelho continuou depois: — O Miranda é bom homem, coitado! tem lá as suas fumaças de grandeza, mas não o podemos criminar... são coisas pegadas da mulher; no entanto acho-o com boas disposições a seu respeito... e, se você souber levá-lo, apanha-lhe a filha... — Ela talvez não queira... — Qual o quê! Pois uma menina daquelas, criada a obedecer aos pais, sabe lá o que é não querer? Tenha você uma pessoa, de intimidade com a família; que de dentro empurre o negócio e verá se consegue ou não! Eu, por exemplo! — Ah! se você se metesse nisso, que dúvida! Dizem que o Miranda só faz o que você quer... — Dizem com razão. — E você está resolvido a... ? — A protegê-lo?... Sim, decerto: neste mundo estamos nós para servir uns aos outros!... apenas, como não sou rico... — Ah! Isso é dos livros! Arranje-me você o negócio e não se arrependerá... E malucou no caso até às duas da madrugada, sem achar furo. Só no dia seguinte, a contemplá-la de cócoras à porta da venda, abrindo e destripando peixe, foi que, por associação de idéias, lhe acudiu esta hipótese: — E se ela morresse?... XIV Iam-se assim os dias, e assim mais de três meses se passaram depois da noite da navalhada. Firmo continuava a encontrar-se com a baiana na Rua de São João Batista, mas a mulata já não era a mesma para ele: apresentava-se fria, distraída, às vezes impertinente, puxando questão por dá cá aquela palha. — Hum! hum! temos mouro na costa! rosnava o capadócio com ciúmes. Ora queira Deus que eu me engane! Nas entrevistas apresentava-se ela agora sempre um pouco depois da hora marcada, e sua primeira frase era para dizer que tinha pressa e não podia demorar-se. — Estou muito apertada de serviço! acrescentava à réplica do amante. Uma roupa de uma família que embarca amanhã para o Norte! Tem de ficar pronta esta noite! Já ontem fiz serão! — Agora estás sempre apertada de serviço!... resmungava o Firmo. — E que é preciso puxar por ele, filho! Ponha-me eu a dormir e quero ver do que como e com que pago a casa! Não há de ser com o que levo daqui! — Or’essa! Tens coragem de dizer que não te dou nada? E quem foi que te deu esse vestido que tens no corpo?! — Não disse que nunca me desse nada, mas com o que você me dá não pago a casa e não ponho a panela no fogo! Também não lhe estou pedindo coisa alguma! Oh! Azedavam-se deste modo as suas entrevistas, esfriando as poucas horas que os dois tinham para o amor. Um domingo, Firmo esperou bastante tempo e Rita não apareceu. O quarto era acanhado e sombrio, sem janelas, com um cheiro mau de bafio e umidade. Ele havia levado um embrulho de peixe frito, pão e vinho, para almoçarem juntos. Deu meio-dia e Firmo esperou ainda, passeando na estreiteza da miserável alcova, como um onça enjaulada, rosnando pragas obscenas; o sobrolho intumescido, os dentes cerrados. “Se aquela safada lhe aparecesse naquele momento, ele seria capaz de torcê-la nas mãos!” À vista do embrulho da comida estourou-lhe a raiva. Deu um pontapé numa bacia de louça que havia no chão, perto da cama, e soltou um marro na cabeça. — Diabo! Depois assentou-se no leito, esperou ainda algum tempo, fungando forte, sacudindo as pernas cruzadas, e afinal saiu, atirando para dentro do quarto uma palavra porca. Pela rua, durante o caminho, jurava que “aquela caro pagaria a mulata!” Um sôfrego desejo de castigá-la, no mesmo instante, o atraía ao cortiço de São Romão, mas não se sentiu com animo de lá ir, e contentou-se em rondar a estalagem. Não conseguiu vê-la; resolveu esperar até à noite para lhe mandar um recado. E vagou aborrecido pelo bairro, arrastando o seu desgosto por aquele domingo sem pagode. Às duas horas da tarde entrou no botequim do Garnisé, uma espelunca, perto da praia, onde ele costumava beber de súcia com o Porfiro. O amigo não estava lá. Firmo atirou-se numa cadeira, pediu um martelo de parati e acendeu um charuto, a pensar. Um mulatinho, morador no “Cabeça-de-Gato”, veio assentar-se na mesma mesa e, sem rodeios, deu-lhe a noticia de que na véspera o Jerônimo, tivera alta do hospital. Firmo acordou com um sobressalto. — O Jerônimo?! — Apresentou-se hoje pela manhã na estalagem. — Como soubeste? — Disse-me o Pataca. — Ora ai está o que é! exclamou o capoeira, soltando um murro na mesa. — Que é o quê? interrogou o outro. — Nada! É cá comigo. Toma alguma coisa? Veio novo copo, e Firmo resmungou no fim de uma pausa: — É! não há dúvida! Por isto é que a perua ultimamente me anda de vento mudado!... E um ciúme doido, um desespero feroz rebentou-lhe por dentro e cresceu logo como a sede de um ferido. “Oh! precisava vingar-se dela! dela e dele! O amaldiçoado resistiu à primeira, mas não lhe escaparia da segunda!” — Veja mais um martelo de parati! gritou para o portuguesinho da espelunca. E acrescentou, batendo com toda a força o seu petrópolis no chão: — E não passa de hoje mesmo! Com o chapéu à ré, a gaforina mais assanhada que de costume, os olhos vermelhos, a boca espumando pelos cantos, todo ele respirava uma febre de vingança e de ódio. — Olha! disse ao companheiro de mesa. Disto, nem pio lá com os carapicus! Se abrires o bico dou-te cabo da pele! Já me conheces! — Tenho nada que falar! Pra quê? — Bom! E ficaram ainda a beber. Jerônimo, com efeito, tivera alta e tornara aquele domingo ao cortiço, pela primeira vez depois da doença. Vinha magro, pálido, desfigurado, apoiando-se a um pedaço de bambu. Crescera-lhe a barba e o cabelo, que ele não queria cortar sem ter cumprido certo juramento feito aos seus brios. A mulher fora buscá-lo ao hospital e caminhava ao seu lado, igualmente abatida com a moléstia do marido e com as causas que a determinaram. Os companheiros receberam-no compungidos, tomados de uma tristeza respeitosa; um silêncio fez-se em torno do convalescente; ninguém falava senão a meia voz; a Rita Baiana tinha os olhos arrasados d’água. Piedade levou o seu homem para o quarto. — Queres tomar um caldinho? perguntou-lhe. Creio que ainda não estás de todo pronto... — Estou! contrapôs ele. Diz o doutor que preciso é de andar, para ir chamando força às pernas. Também estive tanto tempo preso à cama! Só de uma semana pra cá é que encostei os pés no chão! Deu alguns passos na sua pequena sala e disse depois, tornando junto da mulher: — O que me saberia bem agora era uma xicrinha de café, mas queria-o bom como o faz a Rita... Olha! pede-lhe que o arranje. Piedade soltou um suspiro e saiu vagarosamente, para ir pedir o obséquio à mulata. Aquela preferência pelo café da outra doía-lhe duro que nem uma infidelidade. — Lá o meu homem quer do seu café e torceu nariz ao de casa... Manda pedir-lhe que lhe faça uma xícara. Pode ser? perguntou a portuguesa à baiana. — Não custa nada! respondeu esta. Com poucas está lá! Mas não foi preciso que o levasse, porque daí a um instante, Jerônimo, com o seu ar tranqüilo e passivo de quem ainda se não refez de todo depois de uma longa moléstia, surgiu-lhe à porta. — Não vale a pena estorvar-se em lá ir... Se me dá licença, bebo o cafezinho aqui mesmo... — Entra, seu Jerônimo. — Aqui ele sabe melhor... — Você pega já com partes! Olha, sua mulher anda de pé atrás comigo! E eu não quero histórias!... Jerônimo sacudiu os ombros com desdém. — Coitada!... resmungou depois. Muito boa criatura, mas... — Cala a boca, diabo! Toma o café e deixa de maldizência! É mesmo vicio de Portugal: comendo e dizendo mal! O português sorveu com delícia um gole de café. — Não digo mal, mas confesso que não encontro nela umas tantas coisas que desejava... E chupou os bigodes. — Vocês são tudo a mesma súcia! Bem tola é quem vai atrás de lábia de homem! Eu cá não quero mais saber disso... Ao outro despachei já! O cavouqueiro teve um tremor de todo o corpo. — Outro quem?! O Firmo? Rita arrependeu-se do que dissera, e gaguejou: — É um coisa-ruim! Não quero saber mais dele!... Um traste! — Ele ainda vem cá? perguntou o cavouqueiro. mostrando a uberdade das tetas cheias. Havia muito riso, muito parolar de papagaios; pequenos travessavam, tão depressa rindo como chorando; os italianos faziam a ruidosa digestão dos seus jantares de festa; ouviam-se cantigas e pragas entre gargalhadas. A Augusta, que estava grávida de sete meses, passeava solenemente o seu bandulho, levando um outro filho ao colo. O Albino, instalado defronte de uma mesinha em frente à sua porta, fazia, à força de paciência, um quadro, composto de figurinhas de caixa de fósforos, recortadas a tesoura e grudadas em papelão com goma-arábica. E lá em cima, numa das janelas do Miranda, João Romão, vestido de casimira clara, uma gravata à moda, já familiarizado com a roupa e com a gente fina, conversava com Zulmira que, ao lado dele, sorrindo de olhos baixos, atirava migalhas de pão para as galinhas do cortiço; ao passo que o vendeiro lançava para baixo olhares de desprezo sobre aquela gentalha sensual, que o enriquecera, e que continuava a mourejar estupidamente, de sol a sol, sem outro ideal senão comer, dormir e procriar. Ao cair da noite, Jerônimo foi, como ficara combinado, à venda do Pepé. Os outros dois já lá estavam. Infelizmente, havia mais alguém na tasca. Tomaram juntos, pelo mesmo copo, um martelo de parati e conversaram em voz surda numa conspiração sombria em que as suas barbas roçavam umas com as outras. — Os paus onde estão?... perguntou o cavouqueiro. — Ali, junto às pipas... segredou o Pataca, apontando com disfarce para uma esteira velha enrolada. Preparei-os ainda há pouco... Não os quis muito grandes... Deste tamanho. E abriu a mão contra a terra no lugar do peito. — Estiveram de molho até agora... acrescentou, piscando o olho. — Bom! aprovou Jerônimo, esgotando o copo com um último gole. Agora onde vamos nós! Parece-me ainda cedo para o Garnisé. — Ainda! confirmou o Pataca. Deixemo-nos ficar por aqui mais um pouco e ao depois então seguiremos. Eu entro no botequim e vocês me esperam fora no lugar que marcamos... Se o cabra não estiver lá, volto logo a dizer-lhes, e, caso esteja, fico... chego-me para ele, procuro entrar em conversa, puxo discussão e afinal desafio-o pra rua; ele cai na esparrela, e então vocês dois surgem e metem-se na dança, como quem não quer a coisa! Que acham? — Perfeito! aplaudiu Jerônimo, e gritou para dentro: — Olha mais um martelo de parati! Em seguida enterrou a mão no bolso da calça e sacou um rolo grosso de notas. — Podem enxugar à vontade! disse. Aqui ainda há muito com quê! E, ordenando as notas, separou oitenta mil-réis, em cédulas de vinte. — Isto é o do ajuste! Este é sagrado! acrescentou, guardando-as na algibeira do lado esquerdo. Depois separou ainda vinte mil-réis, que atirou sobre a mesa. — Esse aí é para festejarmos a nossa vitória! E fazendo do resto do seu dinheiro um bolo, que ele, um pouco ébrio, apertava nos dedos, agora, claros e quase descalejados, socou-o na algibeira do lado direito explicando entre dentes que ali ficava ainda bastante para o que desse e viesse, no caso de algum contratempo. — Bravo! exclamou Zé Carlos. Isto é o que se chama fazer as coisas à fidalga! Haja contar comigo pra vida e pra morte! O Pataca entendia que podiam tomar agora um pouco de cerveja. — Cá por mim não quero, mas bebam-na vocês, acudiu Jerônimo. — Preferia um trago de vinho branco, contraveio o terceiro. — Tudo o que quiserem! franqueou aquele. Eu tomo também um pouco de vinho. Não! que o que estamos a beber não é dinheiro de navalhista, foi ganho ao sol e à chuva com o suor do meu rosto! É entornar pra baixo sem caretas, que este não pesa na consciência de ninguém! — Então, à sua! brindou Zé Carlos, logo que veio o novo reforço. Pra que não torne você a dar que fazer à má casta dos boticários! — À sua, mestre Jerônimo! concorreu o outro. Jerônimo agradeceu e disse, depois de mandar encher os copos: — Aos amigos e patrícios com quem me achei para o meu desforço! E bebeu. — À da S’ora Piedade de Jesus! reclamou o Pataca. — Obrigado! respondeu o cavouqueiro, erguendo-se. Bem! Não nos deixemos agora ficar aqui toda a noite; mãos a obra! São quase oito horas. Os outros dois esvaziaram de um trago o que ainda havia no fundo dos copos e levantaram-se também. — É muito cedo ainda... obtemperou Zé Carlos, cuspindo de esguelha e limpando o bigode nas costas da mão. — Mas talvez tenhamos alguma demora pelo caminho, advertiu o companheiro, indo buscar junto às pipas o embrulho dos cacetes. — Em todo o caso vamos seguindo, resolveu Jerônimo, impaciente, nem se temesse que a noite lhe fugisse de súbito. Pagou a despesa, e os três saíram, não cambaleando, mas como que empurrados por um vento forte, que os fazia de vez em quando dar para a frente alguns passos mais rápidos. Seguiram pela Rua de Sorocaba e tomaram depois a direção da praia, conversando em voz baixa, muito excitados. Só pararam perto do Garnisé. — Vais tu então, não é? perguntou o cavouqueiro ao Pataca. Este respondeu entregando-lhe o embrulho dos paus e afastando-se de mãos nas algibeiras, a olhar para os pés, fingindo-se mais bêbedo do que realmente estava. XV O Garnisé tinha bastante gente essa noite. Em volta de umas doze mesinhas toscas, de pau, com uma coberta de folha-de-flandres pintada de branco fingindo mármore, viam-se grupos de três e quatro homens, quase todos em mangas de camisa, fumando e bebendo no meio de grande algazarra. Fazia-se largo consumo de cerveja nacional, vinho virgem, parati e laranjinha. No chão coberto de areia havia cascas de queijo-de-minas, restos de iscas de fígado, espinhas de peixe, dando idéia de que ali não só se enxugava como também se comia. Com efeito, mais para dentro, num engordurado bufete, junto ao balcão e entre as prateleiras de garrafas cheias e arrolhadas, estava um travessão de assado com batatas, um osso de presunto e vários pratos de sardinhas fritas. Dois candeeiros de querosene lumiavam, encarvoando o teto. E de uma porta ao fundo, que escondia o interior da casa com uma cortina de chita vermelha, vinha de vez em quando uma baforada de vozes roucas, que parecia morrer em caminho, vencida por aquela densa atmosfera cor de opala. O Pataca estacou a entrada, afetando grande bebedeira e procurando, com disfarce, em todos os grupos, ver se descobria o Firmo. Não o conseguiu; mas alguém, em certa mesa, lhe chamara a atenção, porque ele se dirigiu para lá. Era uma mulatinha magra, mal vestida, acompanhada por uma velha quase cega e mais um homem, inteiramente calvo, que sofria de asma e, de quando em quando, abalava a mesa com um frouxo de tosse, fazendo dançar os copos. O Pataca bateu no ombro da rapariga. — Como vais tu, Florinda? Ela olhou para ele, rindo; disse que ia bem, e perguntou-lhe como passava. — Rola-se, filha. Tu que fim levaste? Há um par de quinze dias que te não vejo! — E mesmo. Desde que estou com seu Bento não tenho saído quase. — Ah! disse o Pataca, estás amigada? Bom!... — Sempre estive! E ela então, muito expansiva com a sua folga daquele domingo e com o seu bocado de cerveja, contou que, no dia em que fugiu da estalagem, ficou na rua e dormiu numas obras de uma casa em construção na Travessa da Passagem, e que no seguinte oferecendo-se de porta em porta, para alugar-se de criada ou de ama-seca, encontrou um velho solteiro e agimbado que a tomou ao seu serviço e meteu-se com ela. — Bom! muito bom! anuiu Pataca. Mas o diabo do velho era um safado; dava-lhe muita coisa, dinheiro até, trazia-a sempre limpa e de barriga cheia, sim senhor! mas queria que ela se prestasse a tudo! Brigaram. E, como o vendeiro da esquina estava sempre a chamá-la para casa, um belo dia arribou, levando o que apanhara ao velho. — Estás então agora com o da venda? Não! O tratante, a pretexto de que desconfiava dela com o Bento marceneiro, pô-la na rua, chamando a si o que a pobre de Cristo trouxera da casa do outro e deixando-a só com a roupa do corpo e ainda por cima doente por causa de um aborto que tivera logo que se metera com semelhante peste. O Bento tomara-a então à sua conta, e ela, graças a Deus, por enquanto não tinha razões de queixa. O Pataca olhou em torno de si com o ar de quem procura alguém, e Florinda, supondo que se tratava do seu homem, acrescentou: — Não está cá, está lá dentro. Ele, quando joga, não gosta que eu fique perto; diz que encabula. — E tua mãe? — Coitada! foi pro hospício... E passou logo a falar a respeito da velha Marciana; o Pataca, porém, já lhe não prestava atenção, porque nesse momento acabava de abrir-se a cortina vermelha, e Firmo surgia muito ébrio, a dar bordos, contando, sem conseguir, uma massagada de dinheiro, em notas pequenas, que ele afinal entrouxou num bolo e recolheu na algibeira das calças. — Ó Porfiro! não vens? gritou lá para dentro, arrastando a voz. E, depois de esperar inutilmente pela resposta, fez alguns passos na sala. O Pataca deu à Florinda um “até logo” rápido e, fingindo-se de novo muito bêbedo, encaminhou-se na direção em que vinha o mulato. Esbarraram-se. — Oh! Oh! exclamou o Pataca. Desculpe! Rita, essa noite, recolhera-se aflita e assustada. Deixara de ir ter com o amante e mais tarde admirava-se como fizera semelhante imprudência; como tivera coragem de pôr em prática, justamente no momento mais perigoso, uma coisa que ela, até ai, não se sentira com animo de praticar. No intimo respeitava o capoeira; tinha-lhe medo. Amara-o a principio por afinidade de temperamento, pela irresistível conexão do instinto luxurioso e canalha que predominava em ambos, depois continuou a estar com ele por hábito, por uma espécie de vicio que amaldiçoamos sem poder largá-lo; mas desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua tranqüila seriedade de animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferiu no europeu o macho de raça superior. O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo às imposições mesológicas, enfarava a esposa, sua congênere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a volúpia, era o fruto dourado e acre destes sertões americanos, onde a alma de Jerônimo aprendeu lascívias de macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes. Amavam-se brutalmente, e ambos sabiam disso. Esse amor irracional e empírico carregara-se muito mais, de parte a parte, com o trágico incidente da luta, em que o português fora vitima Jerônimo aureolou-se aos olhos dela com uma simpatia de mártir sacrificado à mulher que ama; cresceu com aquela navalhada; iluminou-se com o seu próprio sangue derramado, e, depois, a ausência no hospital veio a completar a cristalização do seu prestigio, como se o cavouqueiro houvera baixado a uma sepultura, arrastando atrás de si a saudade dos que o choravam. Entretanto, o mesmo fenômeno se operava no espírito de Jerônimo com relação à Rita: arriscar espontaneamente a vida por alguém é aceitar um compromisso de ternura, em que empenhamos alma e coração; a mulher por quem fazemos tamanho sacrifício, sela ela quem for assume de um só vôo em nossa fantasia as proporções de um ideal. O desterrado, à primeira troca de olhares com a baiana, amou-a logo, porque sentiu nela o resumo de todos os quentes mistérios que os enlearam voluptuosamente nestas terras da luxúria; amou-a muito mais quando teve ocasião de jogar a existência por esse amor, e amou-a loucamente durante a triste e dolorosa solidão da enfermaria, em que os seus gemidos e suspiros eram todos para ela. A mulata bem que o compreendeu, mas não teve animo de confessar-lhe que também morria de amores por ele; receou prejudicá-lo. Agora, com aquela loucura de faltar à entrevista justamente no dia em que Jerônimo voltava à estalagem, a situação parecia-lhe muito melindrosa. Firmo, desesperado com a ausência dela, embebedava-se naturalmente e vinha ao cortiço provocar o cavouqueiro; a briga rebentaria de novo, fatal para um dos dois, se é que não seria para ambos. Do que ela sentira pelo navalhista persistia agora apenas o medo, não como ele era dantes, indeterminado e frouxo, mas ao contrário, sobressaltado, nervoso, cheio de apreensões que a punham aflita. Firmo já não lhe aparecia no espírito como um amante ciumento e perigoso, mas como um simples facínora, armado de uma velha navalha desleal e homicida. O seu medo transformava-se em uma mistura de asco e terror. E sem achar sossego na cama, deixava-se atordoar pelos seus pressentimentos, quando ouviu bater na porta. — É ele! disse, com o coração a saltar. E via já defronte de si o Firmo, bêbado, a reclamar o Jerônimo aos berros, para esfaqueá-lo ali mesmo. Não respondeu ao primeiro chamado; ficou escutando. Depois de uma pausa bateram de novo. Ela estranhou o modo pelo qual batiam. Não era natural que o facínora procedesse com tanta prudência. Ergueu-se, foi a janela, abriu uma das folhas e espreitou pelas rótulas. — Quem está ai?... perguntou a meia voz. — Sou eu... disse Jerônimo, chegando-se. Reconheceu-o logo e correu a abrir. — Como?! É você, Jeromo? — Chit! fez ele, pondo o dedo na boca. Fala baixo. Rita começou a tremer: no olhar do português, nas suas mãos encardidas de sangue, no seu todo de homem ébrio, encharcado e sujo, havia uma terrível expressão de crime. — Donde vens tu?... segredou ela. — De cuidar da nossa vida... Ai tens a navalha com que fui ferido! E atirou-lhe sobre a mesa a navalha de Firmo, que a mulata conhecia como as palmas da mão. — E ele? — Está morto. — Quem o matou? — Eu. Calaram-se ambos. — Agora... acrescentou o cavouqueiro, no fim de um silêncio arquejado por ambos; estou disposto a tudo para ficar contigo. Sairemos os dois daqui para onde melhor for... Que dizes tu? — E tua mulher?... — Deixo-lhe as minhas economias de muito tempo e continuarei a pagar o colégio à pequena. Sei que não devia abandoná-la, mas podes ter como certo que, ainda que não queiras vir comigo, não ficarei com ela! Não sei! já não a posso suportar! Um homem enfara-se! Felizmente minha caixa de roupa está ainda na Ordem e posso ir buscá-la pela manhã. — E para onde iremos? — O que não falta é p’r’onde ir! Em qualquer parte estaremos bem. Tenho aqui sobre mim uns quinhentos mil-réis, para as primeiras despesas. Posso ficar cá até às cinco horas; são duas e meia; saio sem ser visto por Piedade; mando-te ao depois dizer o que arranjei, e tu irás ter comigo... Está dito? Queres? Rita, em resposta, atirou-se ao pescoço dele e pendurou-se-lhe nos lábios, devorando-o de beijos. Aquele novo sacrifício do português; aquela dedicação extrema que o levava a arremessar para o lado família, dignidade, futuro, tudo, tudo por ela, entusiasmou-a loucamente. Depois dos sobressaltos desse dia e dessa noite, seus nervos estavam afiados e toda ela elétrica. Ah! não se tinha enganado! Aquele homenzarrão hercúleo, de músculos de touro, era capaz de todas as meiguices do carinho. — Então? insistiu ele. — Sim, sim, meu cativeiro! respondeu a baiana, falando-lhe na boca; eu quero ir contigo; quero ser a tua mulata, o bem do teu coração! Tu és os meus feitiços! — E apalpando-lhe o corpo:— Mas como estas ensopado! Espera! espera! o que não falta aqui e roupa de homem pra mudar!... Podias ter uma recaída, cruzes! Tira tudo isso que está alagado! Eu vou acender o fogareiro e estende-se em cima o que é casimira, para te poderes vestir às cinco horas. Tira as botas! Olha o chapéu como está! Tudo isto seca! Tudo isto seca! Mira, toma já um gole de parati p’r’atalhar a friagem! Depois passa em todo o corpo! Eu vou fazer café! Jerônimo bebeu um bom trago de parati, mudou de roupa e deitou-se na cama de Rita. — Vem pra cá... disse, um pouco rouco. — Espera! espera! O café está quase pronto! E ela só foi ter com ele, levando-lhe a chávena fumegante da perfumosa bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores; assentou-se ao rebordo da cama e, segurando com uma das mãos o pires, e com a outra a xícara, ajudava-o a beber, gole por gole, enquanto seus olhos o acarinhavam, cintilantes de impaciência no antegozo daquele primeiro enlace. Depois, atirou fora a saia e, só de camisa, lançou-se contra o seu amado, num frenesi de desejo doido. Jerônimo, ao senti-la inteira nos seus braços; ao sentir na sua pele a carne quente daquela brasileira; ao sentir inundar-lhe o rosto e as espáduas, num eflúvio de baunilha e cumaru, a onda negra e fria da cabeleira da mulata; ao sentir esmagarem-se no seu largo e pelado colo de cavouqueiro os dois globos túmidos e macios, e nas suas coxas as coxas dela; sua alma derreteu-se, fervendo e borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe pela boca, pelos olhos, por todos os poros do corpo, escandescente, em brasa, queimando-lhe as próprias carnes e arrancando-lhe gemidos surdos, soluços irreprimíveis, que lhe sacudiam os membros, fibra por fibra, numa agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de anjos violentados por diabos, entre a vermelhidão cruenta das labaredas do inferno. E com um arranco de besta-fera caíram ambos prostrados, arquejando. Ela tinha a boca aberta, a língua fora, os braços duros, os dedos inteiriçados, e o corpo todo a tremer-lhe da cabeça aos pés, continuamente, como se estivesse morrendo; ao passo que ele, de súbito arremessado longe da vida por aquela explosão inesperada dos seus sentidos, deixava-se mergulhar numa embriaguez deliciosa, através da qual o mundo inteiro e todo o seu passado fugiam como sombras fátuas. E, sem consciência de nada que o cercava, nem memória de si próprio, sem olhos, sem tino, sem ouvidos, apenas conservava em todo o seu ser uma impressão bem clara, viva, inextinguível: o atrito daquela carne quente e palpitante, que ele em delírio apertou contra o corpo, e que ele ainda sentia latejar-lhe debaixo das mãos, e que ele continuava a comprimir maquinalmente, como a criança que, já dormindo, afaga ainda as tetas em que matou ao mesmo tempo a fome e a sede com que veio ao mundo. XVI A essas horas Piedade de Jesus ainda esperava pelo marido. Ouvira, assentada impaciente à porta de sua casa, darem oito horas, oito e meia; nove, nove e meia. "Que teria acontecido, Mãe Santíssima?... Pois o homem ainda não estava pronto de todo e punha-se ao fresco, mal engolira o jantar, para demorar-se daquele modo?... Ele que nunca fora capaz de semelhantes tonteiras!..." — Dez horas! Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo! Foi até o portão da estalagem, perguntou a conhecidos que passavam se tinham visto Jerônimo; ninguém dava noticias dele. Saiu, correu à esquina da rua; um silêncio de cansaço bocejava naquele resto de domingo; às dez e meia recolheu-se sobressaltada, com o coração a sair-lhe pela garganta, o ouvido alerta, para que ela acudisse ao primeiro toque na porta; deitou-se sem tirar a saia, nem apagar de todo o candeeiro. A ceia frugal de leite fervido e queijo assado com açúcar e manteiga ficou intacta sobre a mesa. Não conseguiu dormir: trabalhava-lhe a cabeça, afastando para longe o sono. Começou a imaginar perigos, rolos, em que o seu homem recebia novas navalhadas; Firmo figurava em todas as cenas do delírio; em todas elas havia sangue. Afinal, quando, depois de muito virar de um para outro lado do colchão, a infeliz ia caindo em modorra, o mais leve rumor lá fora a fazia erguer-se de pulo e correr à rótula da janela. Mas não era o cavouqueiro, da primeira, nem da segunda, nem de nenhuma das vezes. Quando principiou a chover, Piedade ficou ainda mais aflita; na sua sobreexcitação afigurava-se-lhe agora que o marido estava sobre as águas do mar, embarcado, entregue unicamente à proteção da Virgem, em meio de um temporal medonho. Ajoelhou-se defronte do oratório e rezou com a voz emaranhada por uma agonia sufocadora. A cada trovão redobrava o seu sobressalto. E ela, de joelhos, os olhos fitos na imagem de Nossa Senhora, sem consciência do tempo que corria, arfava soluçando. De repente, ergueu-se, muito admirada de se ver sozinha, como se só naquele instante dera pela falta do marido a seu lado. Olhou em torno de si, espavorida, com vontade de chorar, de pedir socorro; as sombras espichadas em volta do candeeiro, tracejando trêmulas pelas paredes e pelo teto, pareciam querer dizer-lhe alguma coisa misteriosa. Um par de calças, dependurado à porta do quarto, com um paletó e um chapéu por cima, representou-lhe de relance o vulto de um enforcado, a mexer com as pernas. Benzeu-se. Quis saber que horas eram e não pôde; afigurava-se-lhe terem decorrido já três dias pelo menos durante aquela aflição. Calculou que não tardaria a amanhecer, se é que ainda amanheceria: se é que aquela noite infernal não se fosse prolongando infinitamente, sem nunca mais aparecer o sol! Bebeu um copo d’água, bem cheio, apesar de haver pouco antes tomado outro, e ficou imóvel, de ouvido atento, na expectativa de escutar as horas de algum relógio da vizinhança. A chuva diminuíra e os ventos principiavam a soprar com desespero. Lá de fora a noite dizia-lhe segredos pelo buraco da fechadura e pelas frinchas do telhado e das portas; a cada assobio a mísera julgava ver surgir um espectro que vinha contar-lhe a morte de Jerônimo. O desejo impaciente de saber que horas eram punha-a doida: foi à janela, abriu-a; uma rajada úmida entrou na sala, esfuziando, e apagou a luz. Piedade soltou um grito e começou a procurar a caixa de fósforos, aos esbarrões, sem conseguir reconhecer os objetos que tateava. Esteve a perder os sentidos; afinal achou os fósforos, acendeu de novo o candeeiro e fechou a janela. Entrara-lhe um pouco de chuva em casa; sentiu a roupa molhada no corpo; tomou um novo copo d’água; um calafrio de febre percorreu-lhe a espinha, e ela atirou-se para a cama, batendo o queixo, e meteu-se debaixo dos lençóis, a tiritar de febre. Veio de novo a modorra, fechou os olhos; mas ergueu-se logo, assentando-se no colchão; parecia-lhe ter ouvido alguém falar lá fora, na rua; o calafrio voltou; ela, trêmula, procurava escutar. Se se não enganava, distinguira vozes abafadas, conversando, e as vozes eram de homem; deixou-se ficar à escuta, concheando a mão atrás da orelha; depois ouviu baterem, não na sua porta, mas lá muito mais para diante, na casa da das Dores, da Rita, ou da Augusta. "Devia ser o Alexandre que voltava do serviço..." Quis ir ter com ele e pedir-lhe notícias de Jerôrimo, o calafrio, porém, obrigou-a a ficar debaixo das cobertas. Às cinco horas levantou-se de novo com um salto. "Já havia gente lá fora com certeza!..." Ouvira ranger a primeira porta; abriu a janela, mas ainda estava tão escuro que se não distinguia patavina. Era uma preguiçosa madrugada de agosto, nebulosa, úmida; parecia disposta a resistir ao dia. "O senhores! aquela noite dos diachos não acabaria nunca mais?..." Entretanto, adivinhava-se que ia amanhecer. Piedade ouviu dentro do pátio, do lado contrário à sua casa, um zunzum de duas vozes cochichando com interesse. "Virgem do céu! dir-se-ia a voz do seu homem! e a outra era voz de mulher, credo! Ilusão sua com certeza! ela essa noite estava para ouvir o que não se dava..." Mas aqueles cochichos dialogados na escuridão causavam-lhe extremo alvoroço. "Não! Como poderia ser ele?... Que loucura! se o homem estivesse ali teria sem dúvida procurado a casa!..." E os cochichos persistiam, enquanto Piedade, toda ouvidos, estalava de agonia. — Jeromo! gritou ela. As vozes calaram-se logo, fazendo o silêncio completo: depois nada mais se ouviu. Piedade ficou à janela. As trevas dissolveram-se afinal; uma claridade triste formou-se no nascente e foi, a pouco e pouco, se derramando pelo espaço. O céu era uma argamassa cinzenta e gorda. O cortiço acordava com o remancho uma carta maior que o resto do baralho: "Se ele matou o Firmo, dormiu na estalagem e não veio ter comigo, é porque então deixou-me de feita pela Rita!" Tentou fugir a semelhante hipótese; repeliu-a indignada. Não! não era possível que o Jerônimo, seu marido de tanto tempo, o pai de sua filha, um homem a quem ela nunca dera razão de queixa e a quem sempre respeitara e quisera com o mesmo carinho e com a mesma dedicação, a abandonasse de um momento para outro; e por quem?! por uma não-sei-que-diga! um diabo de uma mulata assanhada, que tão depressa era de Pedro como de Paulo! uma sirigaita, que vivia mais para a folia do que para o trabalho! uma peste, que... Não! Qual! Era lá possível?! Mas então por que ele não viera?... por que não vinha?... por que não dava noticias suas?... por que fora pela manhã à Ordem buscar a caixa da roupa?... O Roberto Papa-Defuntos dissera-lhe que o encontrara às duas da tarde ali perto, ao dobrar da Rua Bambina, e que até pararam um instante para conversar. Com mais alguns passos chegado à casa! Seria possível, santos do céu! que o seu homem estivesse disposto a nunca mais tornar para junto dela? Nisto entrou a outra, acompanhada por um pequeno descalço. Vinha satisfeita; estivera com Jerônimo, jantaram juntos, numa casa de pasto; ficara tudo combinado; arranjara-se o ninho. Não se mudaria logo para não dar que falar na estalagem, mas levaria alguma roupa e os objetos mais indispensáveis e que não dessem na vista por ocasião do transporte. Voltaria no dia seguinte ao cortiço, onde continuaria a trabalhar; à noite iria ter com o novo amante, e, no fim de uma semana — zás! fazia-se a mudança completa, e adeus coração! — Por aqui é o caminho! O cavouqueiro, pelo seu lado, mandaria uma carta a João Romão, despedindo-se do seu serviço, e outra à mulher, dizendo com boas palavras que, por uma dessas fatalidades de que nenhuma criatura está livre, deixava de viver em companhia dela, mas que lhe conservaria a mesma estima e continuaria a pagar o colégio da filha; e, feito isto, pronto! entraria em vida nova, senhor da sua mulata, livres e sozinhos, independentes, vivendo um para o outro, numa eterna embriaguez de gozos. Mas, na ocasião em que a baiana, seguida pelo pequeno, passava defronte da porta de Piedade, esta deu um salto da cadeira e gritou-lhe: — Faz favor? — Que é? resmungou Rita, parando sem voltar senão o rosto, e já a dizer no seu todo de impaciência que não estava disposta a muita conversa. — Diga-me uma coisa, inquiriu aquela; você muda-se? A mulata não contava com semelhante pergunta, assim à queima-roupa; ficou calada sem achar o que responder. — Muda-se, não é verdade? insistiu a outra, fazendo-se vermelha. — E o que tem você com isso? Mude-me ou não, não lhe tenho de dar satisfações! Meta-se com a sua vida! Ora esta! — Com a minha vida é que te meteste tu, cigana! exclamou a portuguesa, sem se conter e avançando para a porta com ímpeto. — Hein?! Repete, cutruca ordinária! berrou a mulata, dando um passo em frente. — Pensas que já não sei de tudo? Maleficiaste-me o homem e agora carregas-me com ele! Que a má coisa te saiba, cabra do inferno! Mas deixa estar que hás de amargar o que o diabo não quis! quem to jura sou eu! — Pula cá pra fora, perua choca, se és capaz! Em torno de Rita já o povaréu se reunia alvoroçado; as lavadeiras deixaram logo as tinas e vinham, com os braços nus, cheios de espuma de sabão, estacionar ali ao pé, formando roda, silenciosas, sem nenhuma delas querer meter-se no barulho. Os homens riam e atiravam chufas às duas contendoras, como sucedia sempre quando no cortiço qualquer mulher se disputava com outra. — Isca! Isca! gritavam eles. Ao desafio da mulata, Piedade saltara ao pátio, armada com um dos seus tamancos. Uma pedrada recebeu-a em caminho, rachando-lhe a pele do queixo, ao que ela respondeu desfechando contra a adversária uma formidável pancada na cabeça. E pegaram-se logo a unhas e dentes. Por algum tempo lutaram de pé, engalfinhadas, no meio de grande algazarra dos circunstantes. João Romão acudiu e quis separá-las; todos protestaram. A família do Miranda assomou à janela, tomando ainda o café de depois do jantar, indiferente, já habituada àquelas cenas. Dois partidos todavia se formavam em torno das lutadoras; quase todos os brasileiros eram pela Rita e quase todos os portugueses pela outra. Discutia-se com febre a superioridade de cada qual delas; rebentavam gritos de entusiasmo a cada mossa que qualquer das duas recebia; e estas, sem se desunharem, tinham já arranhões e mordeduras por todo o busto. Quando menos se esperava, ouviu-se um baque pesado e viu-se Piedade de bruços no chão e a Rita por cima, escarranchada sobre as suas largas ancas, a socar-lhe o cachaço de murros contínuos, desgrenhada, rota, ofegante, os cabelos caldos sobre a cara, gritando vitoriosa, com a boca correndo sangue: — Toma pro teu tabaco! Toma, galinha podre! Toma, pra não te meteres comigo! Toma! Toma, baiacu da praia! Os portugueses precipitaram-se para tirar Piedade de debaixo da mulata. Os brasileiros opuseram-se ferozmente. — Não pode! — Enche! — Não deixa! — Não tira! — Entra! Entra! E as palavras "galego" e "cabra" cruzaram-se de todos os pontos, como bofetadas. Houve um vavau rápido e surdo, e logo em seguida um formidável rolo, um rolo a valer, não mais de duas mulheres, mas de uns quarenta e tantos homens de pulso, rebentou como um terremoto. As cercas e os jiraus desapareceram do chão e estilhaçaram-se no ar, estalando em descarga; ao passo que numa berraria infernal, num fecha-fecha de formigueiro em guerra, aquela onda viva ia arrastando o que topava no caminho; barracas e tinas, baldes, regadores e caixões de planta, tudo rolava entre aquela centena de pernas confundidas e doidas. Das janelas do Miranda apitava-se com fúria; da rua, em todo o quarteirão, novos apitos respondiam; dos fundos do cortiço e pela frente surgia povo e mais povo. O pátio estava quase cheio; ninguém mais se entendia; todos davam e todos apanhavam; mulheres e crianças berravam. João Romão, clamando furioso, sentia-se impotente para conter semelhantes demônios. "Fazer rolo aquela hora, que imprudência!" Não conseguiu fechar as portas da venda, nem o portão da estalagem; guardou às pressas na barra o que havia em dinheiro na gaveta, e, armando-se com uma tranca de ferro, pôs-se de sentinela às prateleiras, disposto a abrir o casco ao primeiro que se animasse a saltar-lhe o balcão. Bertoleza, lá dentro na cozinha, aprontava uma grande chaleira de água quente, para defender com ela a propriedade do seu homem. E o rolo a ferver lá fora, cada vez mais inflamado com um terrível sopro de rivalidade nacional. Ouviam-se, num clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil. De vez em quando, o povaréu, que continuava a crescer, afastava-se em massa, rugindo de medo, mas tornava logo, como a onda no refluxo dos mares. A polícia apareceu e não se achou com animo de entrar, antes de vir um reforço de praças, que um permanente fora buscar a galope. E o rolo fervia. Mas, no melhor da lata, ouvia-se na rua um coro de vozes que se aproximavam das bandas do "Cabeça-de-Gato". Era o canto de guerra dos capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, pra vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta. XVII Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a desordem cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impelia a todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda há pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas das mãos o sangue das feridas. Agostinho, encostado ao lampião do meio do cortiço, cantava em altos berros uma coisa que lhe parecia responder à música bárbara que entoavam lá fora os inimigos; a mãe dera-lhe licença, a pedido dele, para pôr um cinto de Nenen, em que o pequeno enfiou a faca da cozinha. Um mulatinho franzino, que até ai não fora notado por ninguém no São Romão, postou-se defronte da entrada, de mãos limpas, à espera dos invasores; e todos tiveram confiança nele porque o ladrão, além de tudo, estava rindo. Os cabeças-de-gato assomaram afinal ao portão. Uns cem homens, em que se não via a arma que traziam. Porfiro vinha na frente, a dançar, de braços abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras para que ninguém lhe estorvasse a entrada. Trazia o chapéu à ré, com um laço de fita amarela flutuando na copa. — Agüenta! Agüenta! Faz frente! clamavam de dentro os carapicus. E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram e aproximaram-se lentamente, a dançar como selvagens. As navalhas traziam-nas abertas e escondidas na palma da mão. Os carapicus enchiam a metade do cortiço. Um silêncio arquejado sucedia à estrepitosa vozeria do rolo que findara. Sentia-se o hausto impaciente da ferocidade que atirava aqueles dois bandos de capoeiras um contra o outro. E, no entanto, o sol, único causador de tudo aquilo, desaparecia de todo nos limbos do horizonte, indiferente, deixando atrás de si as melancolias do crepúsculo, que é a saudade da terra quando ele se ausenta, levando consigo a alegria da luz e do calor. Lá na janela do Barão, o Botelho, entusiasmado como sempre por tudo que lhe cheirava a guerra, soltava gritos de aplauso e dava brados de comando militar. E os cabeças-de-gato aproximavam-se cantando, a dançar, rastejando alguns de costas para o chão, firmados nos pulsos e nos calcanhares. Dez carapicus saíram em frente; dez cabeças-de-gato se alinharam defronte deles. E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém com método, sob o comando de Porfiro que, sempre a cantar ou assoviar, saltava em todas as direções, sem nunca ser alcançado por ninguém. Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os voa-pés. Par a par, todos os capoeiras tinham pela frente um adversário de igual destreza que respondia a cada investida com um salto de gato ou uma queda repentina que anulava o golpe. De parte a parte esperavam que o cansaço desequilibrasse as forças, abrindo furo à vitória; mas um fato veio neutralizar inda uma vez a campanha: imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das casas do fundo, o número 88. E agora o incêndio era a valer. Houve nas duas maltas um súbito espasmo de terror. Abaixaram-se os ferros e calou-se o hino de morte. Um clarão tremendo ensangüentou o ar, que se fechou logo de fumaça fulva. A Bruxa conseguira afinal realizar o seu sonho de louca: o cortiço ia arder; não haveria meio de reprimir aquele cruento devorar de labaredas. Os cabeças-de-gato, leais nas suas justas de partido, abandonaram o campo, sem voltar o rosto, desdenhosos de aceitar o auxilio de um sinistro e dispostos até a socorrer o inimigo, se assim fosse preciso. E nenhum dos carapicus os feriu pelas costas. A luta ficava para outra ocasião. E a cena transformou-se num relance; os mesmos que barateavam tão facilmente a vida, apressavam-se agora a salvar os miseráveis bens que possuíam sobre a terra. Fechou-se um entra-e-sai de maribondos defronte daquelas cem casinhas ameaçadas pelo fogo. Homens e mulheres corriam de cá para lá com os tarecos ao ombro, numa balbúrdia de doidos. O pátio e a rua enchiam-se agora de camas velhas e colchões espocados. Ninguém se conhecia naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas arrancadas pela dor e pelo desespero. Da casa do Barão saiam clamores apopléticos; ouviam-se os guinchos de Zulmira que se espolinhava com um ataque. E começou a aparecer água. Quem a trouxe? Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e baldes que se despejavam sobre as chamas. Os sinos da vizinhança começaram a badalar. E tudo era um clamor. A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível; nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhada, escorrida e abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe um caráter fantástico de fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria de — Ah, ah, meu caro! Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a doente!... segredou o dono do cortiço, a rir. Olhe, aqueles é que com certeza não gostaram da brincadeira! acrescentou, apontando para o lado em que maior era o grupo dos infelizes que tomavam conta dos restos de seus tarecos atirados em montão. — Ah, mas esses, que diabo! nada têm que perder!... considerou o outro. E os dois vizinhos foram até o fim do pátio, conversando em voz baixa. — Vou reedificar tudo isto! declarou João Romão, com um gesto enérgico que abrangia toda aquela Babilônia desmantelada. E expôs o seu projeto: tencionava alargar a estalagem, entrando um pouco pelo capinzal. Levantaria do lado esquerdo, encostado ao muro do Miranda, um novo correr de casinhas, aproveitando assim parte do pátio, que não precisava ser tão grande; sobre as outras levantaria um segundo andar, com uma longa varanda na frente toda gradeada. Negociozinho para ter ali, a dar dinheiro, em vez de um centena de cômodos, nada menos de quatrocentos a quinhentos, de doze a vinte e cinco mil-réis cada um! Ah! ele havia de mostrar como se fazem as coisas bem feitas. O Miranda escutava-o calado, fitando-o com respeito. — Você é um homem dos diabos! disse afinal, batendo-lhe no ombro. E, ao sair de lá, no seu coração vulgar de homem que nunca produziu e levou a vida, como todo o mercador, a explorar a boa-fé de uns e o trabalho intelectual de outros, trazia uma grande admiração pelo vizinho. O que ainda lhe restava da primitiva inveja transformou-se nesse instante num entusiasmo ilimitado e cego. — É um filho da mãe! resmungava ele pela rua, em caminho do seu armazém. É de muita força! Pena é estar metido com a peste daquela crioula! Nem sei como um homem tão esperto caiu em semelhante asneira! Só lá pelas dez e tanto da noite foi que João Romão, depois de certificar-se de que Bertoleza ferrara num sono de pedra, resolveu dar balanço às garrafas de Libório. O diabo é que ele também quase que não se agüentava nas pernas e sentia os olhos a fecharem-se-lhe de cansaço. Mas não podia sossegar sem saber quanto ao certo apanhara do avarento. Acendeu uma vela, foi buscar a imunda e preciosa trouxa, e carregou com esta para a casa de pasto ao lado da cozinha. Depôs tudo sobre uma das mesas, assentou-se, e principiou a tarefa. Tomou a primeira garrafa, tentou despejá-la, batendo-lhe no fundo; foi-lhe, porém, necessário extrair as notas, uma por uma, porque estavam muito socadas e peganhentas de bolor. À proporção que as fisgava, ia logo as desenrolando e estendendo cuidadosamente em maço, depois de secar-lhes a umidade no calor das mãos e da vela. E o prazer que ele desfrutava neste serviço punha-lhe em jogo todos os sentidos e afugentava-lhe o sono e as fadigas. Mas, ao passar à segunda garrafa, sofreu uma dolorosa decepção: quase todas as cédulas estavam já prescritas pelo Tesouro; veio-lhe então o receio de que a melhor parte do bolo se achasse inutilizada: restava-lhe todavia a esperança de que fosse aquela garrafa a mais antiga de todas e a pior por conseguinte. E continuou com mais ardor o seu delicioso trabalho. Tinha já esvaziado seis, quando notou que a vela, consumida até o fim, bruxuleava a extinguir-se; foi buscar outra nova e viu ao mesmo tempo que horas eram. "Oh! como a noite correra depressa!..." Três e meia da madrugada. "Parecia impossível!" " Ao terminar a contagem, as primeiras carroças passavam lá fora na rua. — Quinze contos, quatrocentos e tantos mil-réis!... disse João Romão entre dentes, sem se fartar de olhar para as pilhas de cédulas que tinha defronte dos olhos. Mais oito contos e seiscentos eram em notas já prescritas. E o vendeiro, à vista de tão bela soma, assim tão estupidamente comprometida, sentiu a indignação de um roubado. Amaldiçoou aquele maldito velho Libório por tamanho relaxamento; amaldiçoou o governo porque limitava, com intenções velhacas, o prazo da circulação dos seus títulos; chegou até a sentir remorsos por não se ter apoderado do tesouro do avarento, logo que este, um dos primeiros moradores do cortiço, lhe apareceu com o colchão às costas, a pedir chorando que lhe dessem de esmola um cantinho onde ele se metesse com sua miséria. João Romão tivera sempre uma vidente cobiça sobre aquele dinheiro engarrafado; fariscara-o desde que fitou de perto os olhinhos vivos e redondos do abutre decrépito, e convenceu-se de todo, notando que o miserável dava pronto sumiço a qualquer moedinha que lhe caia nas garras. — Seria um ato de justiça! concluiu João Romão; pelo menos seria impedir que todo este pobre dinheiro apodrecesse tão barbaramente! Ora adeus! mas sete ricos continhos quase inteiros ficavam-lhe nas unhas. "E depois, que diabo! os outros assim mesmo haviam de ir com jeito... Hoje impingiam-se dois mil-réis, amanhã cinco. Não nas compras, mas nos trocos... Por que não? Alguém reclamaria, mas muitos engoliriam a bucha... Para isso não faltavam estrangeiros e caipiras!... E demais, não era crime!... Sim! se havia nisso ladroeira, queixassem-se do governo! o governo é que era o ladrão!" — Em todo caso, rematou ele, guardando o dinheiro bom e mau e dispondo-se a descansar; isto já serve para principiar as obras! Deixem estar, que daqui a dias eu lhes mostrarei para quanto presto! XIX Daí a dias, com efeito, a estalagem metia-se em obras. À desordem do desentulho do incêndio sucedia a do trabalho dos pedreiros; martelava-se ali de pela manhã até à noite, o que aliás não impedia que as lavadeiras continuassem a bater roupa e as engomadeiras reunissem ao barulho das ferramentas o choroso falsete das suas eternas cantigas. Os que ficaram sem casa foram aboletados a trouxe e mouxe por todos os cantos, à espera dos novos cômodos. Ninguém se mudou para o "Cabeça-de-Gato". As obras principiaram pelo lado esquerdo do cortiço, o lado do Miranda; os antigos moradores tinham preferência e vantagens nos preços. Um dos italianos feridos morreu na Misericórdia e o outro, também lá, continuava ainda em risco de vida. Bruno recolhera-se à Ordem de que era irmão, e Leocádia, que não quis atender àquela carta escrita por Pombinha, resolveu-se a ir visitar o seu homem no hospital. Que alegrão para o infeliz a volta da mulher, aquela mulher levada dos diabos, mas de carne dura, a quem ele, apesar de tudo, queria muito. Com a visita reconciliaram-se, chorando ambos, e Leocádia decidiu tornar para o São Romão e viver de novo com o marido. Agora fazia-se muito séria e ameaçava com pancada a quem lhe propunha brejeirices. Piedade, essa e que se levantou das febres completamente transformada. Não parecia a mesma depois do abandono de Jerônimo; emagrecera em extremo, perdera as cores do rosto, ficara feia, triste e resmungona; mas não se queixava, e ninguém lhe ouvia falar no nome do esposo. Esses meses, durante as obras, foram uma época especial para a estalagem. O cortiço não dava idéia do seu antigo caráter, tão acentuado e, no entanto, tão misto: aquilo agora parecia uma grande oficina improvisada, um arsenal, em cujo fragor a gente só se entende por sinais. As lavadeiras fugiram para o capinzal dos fundos, porque o pó da terra e da madeira sujava-lhes a roupa lavada. Mas, dentro de pouco tempo, estava tudo pronto; e, com imenso pasmo, viram que a venda, a sebosa bodega, onde João Romão se fez gente, ia também entrar em obras. O vendeiro resolvera aproveitar dela somente algumas das paredes, que eram de um metro de largura, talhadas à portuguesa; abriria as portas em arco, suspenderia o teto e levantaria um sobrado, mais alto que o do Miranda e, com toda a certeza, mais vistoso. Prédio para meter o do outro no chinelo; quatro janelas de frente, oito de lado, com um terraço ao fundo. O lugar em que ele dormia com Bertoleza, a cozinha e a casa de pasto seriam abobadadas, formando, com a parte de taverna, um grande armazém, em que o seu comércio iria fortalecer-se e alargar-se. O Barão e o Botelho apareciam por lá quase todos os dias, ambos muito interessados pela prosperidade do vizinho; examinavam os materiais escolhidos para a construção, batiam com a biqueira do chapéu de sol no pinho-de-riga destinado ao assoalho, e afetando-se bons entendedores, tomavam na palma da mão e esfarelavam entre os dedos um punhado da terra e da cal com que os operários faziam barro. Às vezes chegavam a ralhar com os trabalhadores, quando lhes parecia que não iam bem no serviço! João Romão, agora sempre de paletó, engravatado, calças brancas, colete e corrente de relógio, já não parava na venda, e só acompanhava as obras na folga das ocupações da rua. Principiava a tomar tino no jogo da Bolsa; comia em hotéis caros e bebia cerveja em larga camaradagem com capitalistas nos cafés do comércio. E a crioula? Como havia de ser? Era isto justamente o que, tanto o Barão como o Botelho, morriam por que lhe dissessem. Sim, porque aquela boa casa que se estava fazendo, e os ricos móveis encomendados, e mais as pratas e as porcelanas que haviam de vir, não seriam decerto para os beiços da negra velha! Conservá-la-ia como criada? Impossível! Todo Botafogo sabia que eles até ai fizeram vida comum! Todavia, tanto o Miranda, como o outro, não se animavam a abrir o bico a esse respeito com o vizinho e contentavam-se em boquejar entre si misteriosamente, palpitando ambos por ver a saída que o vendeiro acharia para semelhante situação. Maldita preta dos diabos! Era ela o único defeito, o senão de um homem tão importante e tão digno. Agora, não se passava um domingo sem que o amigo de Bertoleza fosse jantar à casa do Miranda. Iam juntos ao teatro. João Romão dava o braço à Zulmira, e, procurando galanteá-la e mais ao resto da família, desfazia-se em obséquios brutais e dispendiosos, com uma franqueza exagerada que não olhava gastos. Se tinham de tomar alguma coisa, ele fazia vir logo três, quatro garrafas ao mesmo tempo, pedindo sempre o triplo do necessário e acumulando compras inúteis de doces, flores e tudo o que aparecia. Nos leilões das festas de arraial era tão feroz a sua febre de obsequiar a gente do Miranda, que nunca voltava para casa sem um homem atrás, carregado com os mimos que o vendeiro arrematava. E Bertoleza bem que compreendia tudo isso e bem que estranhava a transformação do amigo. Ele ultimamente mal se chegava para ela e, quando o fazia, era com tal repugnância, que antes não o fizesse. A desgraçada muita vez sentia-lhe cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes estrangeiras e chorava em segredo, sem animo de reclamar os seus direitos. Na sua obscura condição de animal de trabalho, já não era amor o que a mísera desejava, era somente
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved