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Guias e Dicas
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Cotidianos culturais e outras histórias, Manuais, Projetos, Pesquisas de História

Livro-reportagem sobre cultura e memória de Uberaba (MG)

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

Antes de 2010

Compartilhado em 31/10/2009

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Baixe Cotidianos culturais e outras histórias e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para História, somente na Docsity! André Azevedo da Fonseca Cotidianos culturais e outras histórias A cidade sob novos olhares 6 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Agradecimentos A todos os amigos, professores e colegas que, direta ou indiretamente, através de sugestões, revisões, orientações, críticas, palpites, incentivos e apoio técnico contribuíram para esti- mular, encorajar, inspirar e melhorar esse e outros trabalhos para jornal, rádio e TV, agra- deço pela generosidade, pela paciência e pela confiança. Vamos lá: Ana Vera Palmério, Adrián Padilla, Alzira Borges Silva, Cássia Cristina, Celi Camargo, Cíntia Cunha, Décio Bragança Silva, Edvaldo Pereira Lima, Eliane Marquez Mendonça, Érika Galvão Hinkle, Fernando Queiroz, Francisco Marcos Reis, Gildo Firmino, Guido Bilharinho, Gustavo Vitor Pena, Irene de Lima Freitas, Janete Tranqüila Graciole, Juquita Machado, Karla Borges, Luiz Flávio Assis Moura, Marcos Vinícius Zani, Lungas Ferreira Neto, Manoel Fernandes Neto, Marcelo Palmério, Maria Beatriz Russo, Maria Helena Krüger, Mariana Costa, Marlei Mateus, Neuza das Graças, Norah Shallyamar Gamboa Vella, Olga Frange, Patrícia de Oliveira Portela, Renê Vieira, Raul Osório Vargas, Ricardo Aidar, Sérgio Vilas Boas, Sonia Fontoura, Tatiane Oliveira Alves, Ulisses Custódio, Valquíria Pires, Vera Palmério, Vicente de Paulo Silva, Wilson Oliveira. Agradeço também aos colegas de facul- dade, sobretudo os companheiros sala e de reportagens no jornal da faculdade: Ana Marcia Dorça, Antônio Marcos Ferreira, César Henrique Fonseca, Davi Marques, Élida Rodrigues, Denise Nakamura, Felipe Augusto Santos, Gelza Lima, Gisele Aparecida, Karine Rogé- rio, Luís Felipe Silva, Luana Neri, Mariana Marajó, Micheli Bernardeli, Raika Julie Moisés, Rogério Simões e Soraya Higino. Se por uma infeliz distração, coisa comum de acontecer comigo, esqueci de alguém, prometo que incluo da segunda edição (sonhar não custa nada...) Este livro é dedicado aos meus pais, Leny e Roberto, e especialmente à Cristiane Ferreira, meu amor, que me suporta, me corrige, me orienta, e por quem sou profundamente apaixonado. 7 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Introdução ............................................................................................ 8 Escombros da memória coletiva Arquitetura do desprezo ................................................................... 12 O enigma da conservação ................................................................ 34 Casa da esquina assombrou imaginário popular ........................ 40 Cotidianos culturais Uma cidade sobrenatural .................................................................. 68 As aventuras de Eloy Padilla .......................................................... 84 Saudades de seu Nestor, o orador .................................................. 90 A delícia do chorinho e a vergonha de ser brasileiro ................... 94 Folia no assentamento ....................................................................... 98 Beethoven contra a barbárie ............................................................ 106 Arte intestinal ...................................................................................... 112 Feira da Abadia: a rua é do povo! ................................................. 119 Shopping center: the book is on the table .................................... 126 Adeus amigos, hoje eu vou para a Irlanda .................................. 132 Salada lingüística ................................................................................ 144 “Serviço de preto” .............................................................................. 149 Está certo porque sou doutor .......................................................... 152 O respeitável chefe de setor ............................................................. 156 As garras da fêmea ............................................................................ 160 O taxímetro do prazer ....................................................................... 164 Elogio ao homicídio ........................................................................... 169 A última valsa de Roberto Furacão ................................................ 174 Entrevista com Roberto Drummond .............................................. 180 Sumário 8 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias 11 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias valorizar e vender seus próprios símbolos culturais. Essas operações sistemáticas de deterioração de nossa auto-estima nos levam a crer que somos uns idiotas e que a produção histórica e cultural de nossa comunidade é mesmo insignificante e vergonhosa – como se fosse possível que 260 mil pessoas convivendo juntas, como é o caso de Uberaba e dezenas de outras cidades do interior do Brasil, não produzissem história e cultura. Percebe-se portanto o importante trabalho que o jornalismo cultural deve assumir. E um dos mais essenciais é justamente contribuir na interpretação dos símbolos, na produção de sentido e na incessante reinvenção da identidade nas cidades. Mas para isso precisamos de novas leituras do cotidiano. Precisamos, como ensinava Paulo Freire, aprender a ler o mundo, o país, as ruas, as pessoas. E não apenas através de uma perspectiva analítica e racional, mas por meio de olhares afetivos, carinhosos e amorosos, capazes de, entre piscadelas cúmplices, tecer um texto vivo e caloroso que não tem medo de se emaranhar nas teias dos contatos humanos. Espero que você, leitor, se delicie na leitura do livro com o mesmo prazer que eu tive ao escrevê-lo. Afetuosos abraços, André Azevedo da Fonseca 24/05/2004 Prelúdio 12 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Escombros da memória coletiva 13 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias A série “Escombros da memória coletiva” reúne três reportagens publicadas no Revelação, jornal-laboratório do curso de Comunicação Social da Uniube, em 2002: “Arquitetura do desprezo”, “O enigma da conservação” e “Casa da esquina assombrou o imaginário popular”. As reportagens são um passeio a pé no centro de Uberaba, minha cidade de 184 anos, localizada no Triângulo Mineiro. Mas não é um passeio comum. As casas históricas abandonadas que apodrecem no caminho evocam reminiscências, despertam lembranças adormecidas e libertam fantasmas condenados ao esquecimento. Na primeira parte, o passeio se dá na Praça Rui Barbosa e nas ruas de seu entorno. Descobrem-se, soterradas nos escombros da memória coletiva, histórias deliciosas do cotidiano da cidade – muitas até então perdidas. A segunda parte é uma parada para a reflexão sobre o sentido da preservação do patrimônio cultural de uma cidade. Na terceira parte, através da investigação sobre um intrigante caso de uma casa demolida no início do século XX, os fantasmas de três moças são “libertados do armário” e uma história que reflete um dos maiores pesadelos do imaginário popular de seu tempo emerge da escuridão. Na verdade, denunciar a arquitetura do desprezo e vivenciar a simbologia do patrimônio histórico e cultural é só um pretexto para falar de gente, de vida e de morte. Em 2002, “Escombros da memória coletiva” conquistou Menção Especial no Prêmio Estímulo à Cidadania, categoria Jornalismo, na 9ª Exposição da Pesquisa Experimental em Comunicação (Expocom), promovido pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), em Salvador (BA). A reportagem “Casa da esquina assombrou imaginário popular” foi selecionada em 2003 para participar na seção da Relatos de Experiência do Seminário Internacional Memória, Rede e Mudança Social, promovido pelo Museu da Pessoa e SESC São-Paulo. 16 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Escombros da memória coletiva - Arquitetura do desprezo A mansão cuja beleza de estilo eclético é de encher a alma foi palco e testemunha de movimentos importantes na história da cidade. Chegou a sofrer diversas reformas – algumas criticadas por historiadores e arquitetos da cidade. Entretanto, hoje está la- mentavelmente abandonada. Um dos mais encantadores patri- mônios históricos e culturais de Uberaba está encoberto por car- tazes sujos e rasgados, esconde-se envergonhado atrás de placas publicitárias e pontos de ônibus. Suas fachadas enegrecidas, sua pintura descascada e o cheiro de mofo que exala das janelas são uma verdadeira ofensa aos freqüentadores da região central. Conhecer a casa por dentro é uma experiência que inspira pro- funda perplexidade pelo inexplicável desamparo. Ao andar pela casa, o pensamento que vêm à cabeça é: não é possível que isso acon- tece! Uma casa enorme, no centro de Uberaba, completamente abando- nada! As portas dos fundos estão arrombadas. Quartos, salas e corredores, imundos. As tábuas do piso exalam vapores de urina misturado à poeira. Há vidros quebrados e fios de instalação elé- trica por toda a parte. Uma escada em espiral de madeira, toda suja de terra, dá para o segundo piso do sobrado. As janelas, em sua maioria, estão permanentemente destrancadas e ficam baten- do dia e noite com o vento. As madeiras dos batentes estão po- dres e infestadas de cupim. Um adesivo de uma empresa afixado na janela informa que a casa foi dedetizada em setembro de 1993. Em um dos quartos, lâmpadas de luz fria estão espatifadas no chão. O tapete rasgado deixa à mostra o piso de tacos infestado de musgo. A desolação dos cômodos e corredores é total, chega a ser agressiva. Nem fantasmas habitam essa casa. Há alguns anos a prefeitura chegou a alugar a mansão e instalou alguns serviços públicos — entre eles a Fundação Cultural. Mas desde meados da década de noventa está deserta. Ninguém sabe direito há quan- to tempo está abandonada. Os comerciantes ao lado divergem, uns falam em três ou quatro anos, outros em sete ou oito. A casa está literalmente largada às traças e, como se tratasse de um cál- culo matemático ou econômico, deteriora-se com uma velocida- de que inspira demolição. A antiga casa de Tobias Rosa é de propriedade privada. Atual- mente, a área dos fundos é aproveitada como estacionamento. 17 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Escombros da memória coletiva - Arquitetura do desprezo Em fevereiro de 2002, Fanney Humberto Fatureto, um rapaz de 18 anos, cuidava do negócio. “As portas dos fundos ficam aber- tas. Às vezes um mendigo ou outro entra e passa a noite aí. A dona quer vender, mas como é tombado, não pode demolir e nem reformar, então ninguém quer comprar”, diz. Quando pergunta- do se pretende alugar a casa, responde: alugar pra quê? Teatro das memórias coletivas O risco que a comunidade corre ao ignorar seu patrimônio histórico é a perda do que os cientistas sociais chamam de “me- mória coletiva”. Cada casa carrega consigo uma história que diz muito sobre as relações sociais que permanecem na cidade. Em Memória do Social, o estudioso Henri-Pierre Jeudy argumenta que a ligação entre uma demolição e um estado de “amnésia coleti- va”, não é apenas uma metáfora. A maioria das histórias dessas casas não estão escritas: sobre- vivem graças à tradição oral de moradores mais antigos, que re- produzem relatos de seus pais e avós. Quando símbolos culturais importantes são demolidos, a cidade perde referências fundamen- tais, o que prejudica definitivamente a compreensão de seu pas- sado e, conseqüentemente, a consciência histórica do presente. No caso da mansão de Tobias Rosa, é uma parte da história da vida dos habitantes de Uberaba que apodrece. O uberabense Sebastião Aidar fez 75 anos no dia 2 de março de 2002, aniversário da cidade. Em 1940 trabalhava em um bar que ficava embaixo do antigo Jóquei Club, depois transformado em casa de jogos. O sobrado é o mesmo onde hoje funciona um restaurante, na esquina da praça Rui Barbosa com o calçadão da Arthur Machado. “Meu pai jogou muito pif-paf lá. O dono era um tal de Custódio. Ele mesmo nunca jogava. Ganhou um di- nheirão”, lembra. Um dos freqüentadores mais assíduos da casa do Custódio era um famoso matador profissional da região: Aníbal Vieira. “Todo mundo morria de medo dele, inclusive o delegado da época. Ele sempre se safava dos entreveros com a polícia. Cos- tumava se esconder na fazenda de um coronel lá em Campo Flo- rido e atuava como matador em toda a região”, conta Aloysio Ferreira Junqueira, de 59 anos. 18 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Aidar também se recorda da época áurea do Hotel Regina, loca- lizado na Rua Manoel Borges, de estilo art déco e hoje abandonado e caindo aos pedaços. “O Regina era o hotel dos viajantes de passa- gem pela cidade, mascates e representantes comerciais que vinham na estrada de ferro”, recorda. Naquela época, Uberaba era um im- portante entreposto comercial entre São Paulo e Goiás. A professo- ra de História da Universidade de Uberaba, Eliane Marquez, relata que o hotel era um dos mais chiques da cidade. Foi construído na década de 20, período áureo do Zebu. Só perdia para o Hotel do Comércio – hoje demolido – que ficava na Rua Vigário Silva, mais ou menos na área onde hoje está instalado o Magazine Luíza. Newton Luís Mamede, professor da Universidade de Uberaba (Uniube) guarda uma história saborosa ocorrida já na década de 70 e encenada em frente ao Hotel Regina. “Eu estava com o carro parado e vi um sujeito saindo do hotel, provavelmente um ven- dedor da região. Ele parou à soleira da porta e acendeu tranqüila- mente o cigarro. Subitamente, a Dora Doida — figura popular na cidade, que na época estava no auge de sua ‘atividade’ — aparece pela Rua Manoel Borges, vê o sujeito e começa a gritar: Olha que homem bonito. Está com cara que acabou de tomar banho. A cueca dele deve estar limpiiiiiiiinha e cheirosa. O sujeito deu só mais uma traga- da e, assustado, entrou rapidinho de volta ao hotel. Deve ter pen- sado: essa cidade só tem doido!” Outro hotel muito famoso na cidade é o Hotel Modelo, levan- tado em 1923 pelo construtor italiano Eugênio Borelli, localizado na esquina das ruas Arthur Machado e Getúlio Vargas. Apesar de relativamente conservado, encontra-se com a fachada parcialmen- te desfigurada. O respeito ao arranjo arquitetônico original é fundamental para que a memória seja preservada. A arquiteta Elaine Silva Furtado, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie e professora na Uniube, estudou as relações da arquitetura local com o desenvolvimento econômico da cidade na primeira metade do século 20. Em sua dissertação de mestrado, explica que, no iní- cio do século, Uberaba deu um salto de crescimento com a introdu- ção do gado Zebu, e teve que se modificar rapidamente para rece- ber os imigrantes acostumados com conforto. Até então, o estilo Escombros da memória coletiva - Arquitetura do desprezo 21 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Escombros da memória coletiva Hoje . . . está condenada a passar despercebida 22 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias projetada e edificada sem nenhuma consideração quanto à rele- vância cultural do palacete. O desprezo é explícito, a obstrução é manifesta, o patrimônio histórico foi simplesmente ignorado. Não é mais possível admirar a beleza da mansão. Sua exuberância está condenada a passar despercebida. Para sempre. No andar de baixo moram, há 12 anos, o casal Vera Lúcia de Oliveira e Geraldino Diogo de Oliveira com os filhos Diogo e Graziela. Segundo Vera Lúcia, há uns dois anos a casa foi visitada por uma equipe do Arquivo Público para que fossem levantados os custos da reforma. A estrutura foi considerada muito boa, sem rachaduras ou falhas graves. Apenas as pinturas interna e exter- na encontram-se em mau estado. Na casa já funcionaram os escritórios de diversos ministérios, a biblioteca municipal e uma associação de municípios. Hoje, o an- dar de cima está abandonado. No porão da casa — porões altos em rua de declive eram exigência do código de posturas, que regulava as normas urbanísticas da época — está instalado o mais tradicio- nal consultório de radiologia de Uberaba, do Dr. Noraldino Alves de Melo. O consultório, que pertence a Noraldino há 38 anos, foi o primeiro na região a utilizar o aparelho de raio X panorâmico. Im- portada do Japão em 1975, a boa e velha Panoramax funciona até hoje, junto a outra máquina mais moderna. O consultório é um bom exemplo de ocupação de imóvel histórico. As paredes e o piso estão limpos, bem conservados. “Isso aqui era um porão horrível. Fui arrumando, arrumando, e hoje está isso aí”, diz Noraldino. Na cidade há casos flagrantes de aberrações arquitetônicas que chegam a chocar. Um exemplo gritante é o palacete do coronel Antônio Pedro Naves, localizado na esquina das ruas Manoel Borges e Major Eustáquio. Segundo o escritor e professor na Uni- versidade de Uberaba, Hugo Prata, o palacete foi projetado pelo engenheiro Francisco Palmério, pai de Mário Palmério – escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e fundador da Uniube. Em 2002, na parte de baixo do palacete, funcionavam uma lan- chonete e uma casa de jogos pintada de azul berrante e letreiros amarelos. A parte de cima está abandonada e imunda. Uma placa * Aquela esperança manifestada em fevereiro de 2002 foi frustrada. O palacete começou a ser destelhado no dia 13 de dezembro, e foi demolido dois dias depois. Escombros da memória coletiva - Arquitetura do desprezo 23 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias de tecido toda rasgada e embolorada de um self-service que já dei- xou de funcionar há vários anos despenca de forma ofensiva. É difícil desvendar a beleza do palacete por trás de tanto entulho. Semáforos, placas publicitárias e postes repleto de cartazes dis- putam em feiura para o desgosto do entorno. É talvez a fachada mais horrenda, mais monstruosa do centro da cidade. Não é ca- paz de inspirar nenhuma história. O processo de tombamento do palacete já está em andamento no Arquivo Público Municipal. Ainda resta, portanto, pelo menos a esperança. * Abandono e destruição Existe um dito popular entre estudiosos de patrimônio que mostra bastante bom senso: “A recusa de preservar assemelha-se a uma ordem de demolição”. Para garantir a manutenção do imóvel, é essencial a sua ocu- pação. A quantidade de casas antigas abandonadas no centro da cidade não é assustadora, mas há diversos prédios de indiscutí- vel relevância cultural que encontram-se em estado preocupante. Um exemplo é o sobrado localizado no calçadão da Rua Arthur Machado onde funcionava a joalheria mais famosa da cidade, de propriedade de Raul Terra. Hoje a parte de cima está abando- nada. Parece que alguém planejou reformá-la algum dia, mas de- sistiu no meio do caminho, deixando os tijolos enfeiarem o sobra- do. A parte de baixo é alugada para uma loja que desfigurou es- candalosamente o arranjo arquitetônico com placas de cores ber- rantes de sua marca. Além disso, o sobrado está espremido entre dois prédios. Sua visibilidade é quase nula. É um solitário indi- gente esperando a destruição. Uma casa misteriosa De todas essas casas abandonadas no centro da cidade, existe uma, entretanto, que preocupa de modo especial porque, como poucas, costuma exercer um grande fascínio por causa de suas características muito peculiares. Aquele átrio cilíndrico, aquela cobertura de entablamento ondulado sustentada por pilares re- tangulares, aquela escadinha helicoidal protegida por um guar- da-corpo de ferro batido e aquele pináculo sobre a cobertura fran- Escombros da memória coletiva - Arquitetura do desprezo 26 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Casa provoca admiração pelo seu arranjo arquitetônico singular. Espremida entre uma galeria de butiques e um estacionamento, está ameaçada sobretudo devido o abandono 27 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias 28 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Sobrado onde funcionou a joalheria de Raul Terra, no calçadão da rua Arthur Machado. Hoje o andar de cima está abandonado, e o térreo desfigurado. Hotel Regina, hoje abandonado e caindo aos pedaços, acolhia viajantes, mascates e representantes comerciais Escombros da memória coletiva 31 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias DEMOLIDA Prédio construído para abrigar o cine Polyteana, na ruaManoel Borges. Posteriormente desativado, foi ocupado porlojinhas e bares ordinários, onde “moças de boa família” eramproibidas de frequentar. Foi demolido depois que um incêndiodeixou sua estrutura comprometida. Localizava-se mais oumenos no terreno onde funcionava a filial das LojasBrasileiras, e hoje está desocupado 32 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Esse prédio, localizado na praça Rui Barbosa, foi construído para o Major Eustáquio, o fundador de Uberaba. Posteriormente, foi residência de Borges Sampaio, personagem fundamental da história da cidade. Adquirida pela família Ricciopo, no prédio funcionou durante vários anos a Notre Dame de Paris, famosa loja na região central. A edificação foi demolida em meados da década de 80. Situava-se no terreno onde hoje funciona o Chaves Palace Hotel, inaugurado em 1988. DEMOLIDA 33 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias DEMOLIDA Casa do Coronel Geraldino Ro drigues da Cunha, demolida na década de 80. Ficava na praça R ui Barbosa, no terreno onde hoje funciona o Elvira Shoppin g 36 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias cesso de tombamento de um bem cultural, seja em âmbito muni- cipal, estadual ou federal. A relevância do patrimônio histórico é então examinada por uma comissão competente e, se for verificada a importância da proteção legal, o proprietário é notificado e o processo será aberto. Em março de 2002, o Arquivo Público de Uberaba era o órgão que cuidava do levantamento dos bens his- tóricos e culturais da cidade (depois disso, o Conselho Municipal de Patrimônio Histórico e Artístico de Uberaba – Comdephau - foi reativado e voltou a ser a instância competente nessa matéria). Marta Zednik Casanova, pesquisadora e coordenadora do Arqui- vo, informou que, até aquele momento, existiam quinze bens tom- bados em nível municipal, entre eles a locomotiva “Maria Fuma- ça”. Naquela época, três imóveis estavam com os processos em andamento. A coordenadora afirma que desde 1990 o poder pú- blico vem aplicando uma política municipal de tombamento. “O Arquivo tem uma equipe de pesquisadores que se preocupam com o levantamento histórico desses bens. É um trabalho compli- cado porque em muitos casos os próprios donos dos imóveis co- locam empecilhos”, diz. O único bem tombado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é a Igreja Santa Rita, atual Museu de Arte Sacra. Aflaton Castanheira informa que o tombamento constitui-se em um regime jurídico especial de propriedade, levando-se em conta sua função social. “Esse recurso não altera os direitos fun- damentais do proprietário; permite que o imóvel seja vendido, alugado ou reformado. Mas as transações devem ser previamen- te autorizadas pelo órgão competente que deve garantir a conti- nuidade da memória”, diz. Contudo, mais uma vez, é essencial a participação e vigilância ativa da comunidade, à qual compete decidir sobre o futuro de seus bens culturais. Até porque, como escreveu o historiador Nel- son Werneck Sodré, “na selvageria de que é capaz o capitalismo num país subdesenvolvido como o nosso, a eficácia de tais insti- tuições e a aplicação de tais leis são muito precárias”. Política de incentivos Nas Diretrizes para Proteção do Patrimônio Cultural elabora- Escombros da memória coletiva - O enigma da conservação 37 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias do pelo Iepha/MG, são enumeradas várias medidas de estímulo às ações de preservação, tais como o incentivo à instalação de ór- gãos públicos em prédios históricos, isenção de IPTU para facili- tar aos proprietários de imóveis tombados o cuidado com sua manutenção, além das leis estaduais e federais de incentivo que prevêem percentuais de renúncias fiscais para empresas que in- vestem em cultura. Uma das medidas empreendidas pelo Estado é o bônus construtivo, que incentiva o proprietário com ações que beneficiem objetivos urbanísticos”. Em sua página na Internet (www.iepha.mg.gov.br) o instituto encarregado da proteção do patrimônio cultural do Estado dá informações sobre seus progra- mas e orienta acerca dos diversos mecanismos de proteção e le- gislação. Ruínas e qualidade de vida “Um espírito malicioso definiu a América como uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização”. Assim o antropólogo Claude Levi-Strauss começa o capítulo que descreve o desenvolvimento de São Paulo em seu clássico livro, Tristes Trópicos. “A passagem dos séculos representa uma pro- moção para as cidades européias; para as americanas, a simples passagem dos anos é uma degradação”, observa. O escritor Inácio de Loyola Brandão compartilha dessa análise. “Produzimos ruí- nas mais rapidamente que eles [os europeus]. Nossos prédios se decompõem em vinte anos. Os deles levaram quinhentos, mil para se corroer”, escreve em “O verde violentou o muro”. Para Pedro Álvares Fernandes, professor do curso de Serviço Social da Uniube, a presença de prédios deteriorados no espaço urbano reflete negativamente na qualidade de vida das pessoas. “Quando falam sobre preservação ambiental, normalmente as pessoas pensam na proteção de rios e matas, mas se esquecem que a rua em que moram, os bairros e o centro da cidade são o meio ambiente em que vivem de fato”, afirma. Pedro Fernandes lembra ainda que existem estudos relacionando a degradação do patrimônio com a violência urbana. “Quando o cidadão sente que o poder público é omisso ou está desrespeitando a cidade, sente- se no direito de desrespeitá-la também. Pesquisas feitas em peri- Escombros da memória coletiva - O enigma da conservação 38 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias ferias demonstraram que os índices de vandalismo e violência diminuem naturalmente quando a administração pública man- tém os bairros limpos e bem cuidados”, diz o professor. Para ele, o desprezo pelos prédios históricos é uma agressão à toda comu- nidade. Mas afinal, preservar para quê, mesmo? Se o patrimônio histórico representa a memória coletiva, o ob- jetivo último a ser alcançado nas iniciativas de preservação é, portanto, a própria memória, e não sua representação através do patrimônio que, isolado de seu contexto, de fato, não passa mes- mo do que chamam de “uma casa velha qualquer”. A conserva- ção pela conservação perde o sentido quando desvinculada dos aspectos dinâmicos do que o cientista social Henri-Pierre Jeudy chama de “construção do edifício da memória coletiva”. Portan- to, o que parece ser cada vez mais o objeto de conservação é “a própria vida social e afetiva da comunidade”. Jeudy escreve que o patrimônio histórico não deve ser enten- dido como um objeto portador de uma memória estática, pois, se por um lado serve como símbolo de uma época, por outro está inserido em um processo histórico que — perdoem a obviedade — está em andamento, ainda não acabou: assim como a socieda- de, os símbolos culturais também sofreriam mutações de signifi- cados no decorrer dos anos. Jeudy vai além. Argumenta que o patrimônio não configura- se como um depósito da memória, mas como um elemento detonador de investigações culturais ou, em suas palavras, “fun- dador de uma interrogação sobre o sentido das mutações da soci- edade”. O patrimônio cultural seria válido na medida em que inspirasse, através de sua existência material, momentos de refle- xão histórica no dia-a-dia da cidade. Em outras palavras, o espíri- to da preservação torna-se importante não só por causa de suas características de testemunha da memória coletiva, mas, sobretu- do, enquanto consciência crítica do presente e como promessa de um modelo de desenvolvimento que respeite o cotidiano cultu- ral, os movimentos sociais e a história da vida dos habitantes de uma comunidade. Escombros da memória coletiva - O enigma da conservação 41 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Tragédia das filhas de Wencesláu Pereira de Oliveira foi abafada pela alta sociedade Maria Castorina, a Cotinha, e seu marido Carlos Baptista Machado. Filha legítima de Wencesláu, seu nome foi suprimido em livro da história 47 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias História estava condenada ao esquecimento Apagada dos registros históricos, caso desaparecia aos poucos na tradição oral Em meados do século 19, Capitão Manoel Prata – amigo de Ma- jor Eustáquio, o fundador de Uberaba – mandou construir a casa na esquina da Praça Rui Barbosa com a Rua Santo Antônio. Lá fo- ram morar sua filha Anthonia Mathilde Prata, a Antoninha, junta- mente com o marido Wencesláu Pereira de Oliveira, o Vença, agen- te executivo de Uberaba (cargo que hoje corresponde ao de prefei- to) por dois mandatos. Vença e Antoninha tiveram nove filhos. A filha Anna Mathilde, a Quituca, casou-se com Arthur Machado. O filho João Eusébio Prata, o Bem Prata, chegou a ser agente executi- vo na década de 30. Joaquim e Wencesláu, o Lauzinho, eram os nomes de mais dois filhos. Mas todos eles estão fora dessa história. A filha Anthonia Mathilde, a Tonica, casou-se com Zacarias Borges de Araújo e tiveram dois filhos: Lauro Borges e Zacarias, o Borgico. Foram morar na casa vizinha, na Rua Santo Antônio. Voltaremos a falar deles. Maria Castorina, a Cotinha, casou-se com Carlos Baptista Machado mas morreu antes dos pais. Não se sabe a causa. Três Publicado no Revelação nº 207, em 13 de maio de 2002. Menção Especial na categoria Jornalis- mo do Prêmio Estímulo a Cidadania, na Expocom/Intercom, em Salvador, 2002. Selecionada no Relato de Experiência do Seminário Internacional Memória, Rede e Mudança Social, promovido pelo Museu da Pessoa, em São Paulo (SP), 2003. 48 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias filhas, listadas na árvore genealógica da família apenas pelos pre- nomes ou por apelido – Olivia, Bembem e Julia –, não se casaram, não geraram descendentes, continuaram a morar na casa e, como será mostrado, terão fim trágico. A casa do lado direito, na Rua Santo Antônio, pertenceu a Zacarias e Tonica que moravam com os filhos Lauro e Borgico. Na casa do lado esquerdo, na Praça Rui Barbosa, o porão era dividido em dois, abrigando, de um lado, o açougue de Don’Anna Felicce, mãe de Genário Felicce, que gostava de tocar violino; e do outro, a bicicletaria de Vitorio Varoto. Don’Anna também sofrerá pelo ou- tro filho, o irmão de Genário. José Carlos Machado Borges, de 91 anos, conhecido como Juquita Machado, lembra-se do sucesso da bicicletaria de Vitorio Varoto. “Ele ganhou muito dinheiro consertando bicicleta. Não sei de onde saía tanta bicicleta”, diz. O prédio imediatamente posterior era o antigo Teatro São Luiz. Juquita Machado conta que nunca se esqueceu desse prédio porque sempre que subia o morro e passava à porta via o buraco de bala na parede. “Gabriel Anconi, um amigo da família, jornalista, vizinho de minha avó, deu um tiro num jardineiro uma vez. Os Anconi eram muito vio- lentos”, lembra. A casa mais abaixo foi de Joaquim Rodrigues de Barcelos, o Major Quincota, mas ele também está fora de nossa triste história. Da casa da esquina, Juquita Machado lembra-se vagamente, pois era criança ainda quando passava à porta para ir à Igreja. Ele imagina que foi demolida em meados da década de 10, depois das desgraças que atingiram as famílias. Desde então, nada foi construído lá. O século 20 mal alvorecia e as nuvens da peste já haviam rondado a esquina da Praça Rui Barbosa. Escarrar e cuspir A tuberculose foi uma moléstia que apavorou o imaginário popular a partir do final do século 18. Poetas românticos como Álvares de Azevedo, Cruz e Souza, Castro Alves, Cesário Verde, entre outros, a idealizavam como doença de intelectuais: morrer desse mal era tido como um charme mórbido. Entretanto, no fi- nal do século 19 a moléstia transmitida pelo bacilo de Koch foi qualificada como “mal social”, ou “peste branca”, pois a epide- Escombros da memória coletiva - Casa da esquina assombrou imaginário popular 49 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias mia devorava a população em proporções assustadoras. A vio- lência e rapidez dos sintomas fez com que ganhasse o apelido de “galopante”. Segundo o estudo Memória da tuberculose, coordena- do pela pesquisadora Tania Maria Dias Fernandes e disponibilizado no site da fundação Oswaldo Cruz, (www.fiocruz.br/coc/ catalo- go-tuberculose) a Liga Brasileira contra a Tuberculose, fundada em 1900, chegou a realizar intenso trabalho de propaganda para tentar minimizá-la, mas somente com a reforma sanitária de Carlos Cha- gas, em 1920, é que foi criada a Inspetoria de Profilaxia da Tubercu- lose. Era muito tarde para Olivia, Bembem e Julia. Em pesquisa desenvolvida no programa de pós-doutorado em História Social do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, Tania Andrade Lima explica que o hábito de escarrar e cuspir em público era considerado um comportamento refinado na alta soci- edade do século 19. As escarradeiras ou cuspideiras, de porcelana fina, vidro ou metais nobres, foram muito utilizadas. Nas casas, eram deixadas à disposição das visitas no chão da sala e no gabine- te de fumantes. Aquela raspada ruidosa na garganta, seguida de pressão nas bochechas, prenunciando o lançamento do jato triun- fal na escarradeira da sala, durante um agradável bate-papo entre senhoras, era não apenas socialmente tolerado, mas sobretudo uma demonstração de elegância e presença de espírito. “Associando o hábito de escarrar a um dos problemas de saú- de mais freqüentes na época — a tuberculose —, é bastante provável que esta prática tenha contribuído fortemente para a rápida disse- minação do bacilo de Koch no século passado” escreve a pesquisa- dora no artigo Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século 19. Em ambientes fechados, sem ventilação, gotículas dos escarros ficam em suspensão e favorecem a contaminação. De fato, em 1934, anos depois do início das reformas de Cha- gas, foi publicado um edital no Rio de Janeiro onde se proibia terminantemente o ato de cuspir e escarrar: “Tornando-se necessá- rio conjurar esforços subsidiários no sentido de diminuir as probabilida- des e contaminação pelo terrível flagelo que a Tuberculose constitui (...) Faz-se público a seguinte determinação: É proibido escarrar no chão, quer na via pública, quer nos edifícios municipais (...) ou em qualquer veículo que transite nessa cidade, bem como em hotéis, casas de pensão Escombros da memória coletiva - Casa da esquina assombrou imaginário popular 52 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Borges e Borgico. Os registros conferem com os relatos de memória de Juquita Machado, assim como a hipótese relatada por Eliane Marquez, de que Tonica pode ter tido problemas para retornar: Lauro Borges faleceu de fato em 31 de janeiro de 1913; Borgico em 22 de agosto de 1914. Tonica, que viu as irmãs e os filhos consumi- dos pela tuberculose, só veio a falecer em 30 de abril de 1941. Vamos voltar alguns anos e observar a casa da esquina. Desolada com a morte das filhas, desconsolada com a morte do marido em 1910, Antoninha decidiu vender a casa. Há relatos sugerindo que o poder público dedetizou os cômodos, mas mesmo assim ninguém quis comprá-la. Juquita Machado diz que é o “medo do micróbio”. Em outra versão, diz-se que uma família chegou a comprar a casa. Alguns relatos genéricos contam que essa família não viveu muito tempo para desfrutá-la, pois os membros teriam morrido todos de tuberculose. Entretanto, não foi encontrado nenhum documento, indício ou relato de memória sobre essa suposta família. Juquita Machado lembra-se que um filho de Don’Anna, irmão de Genário, o que gostava de tocar violino, também morreu de tuberculose. A casa da esquina foi finalmente demolida, provavelmente na primeira dé- cada do século. E aí está, então, o primeiro fenômeno que torna esse nosso mistério definitivamente intrigante: nunca mais, desde a dé- cada de 10, foi construída qualquer edificação neste terreno. Terreno baldio no centrão da cidade Hoje, no terreno da esquina da Praça Rui Barbosa com a Rua Santo Antônio, entre o edifício Éden e um laboratório médico, funciona um estacionamento. Desde a década de 10, nunca foi erguida qualquer tipo de construção nessa esquina. A historiado- ra Eliane Marquez lembra que, em sua infância, o terreno chegou a abrigar por uns tempos uma espécie de parquinho com brin- quedos e carrossel; mas nenhuma construção. Um uberabense de 77 anos lembra-se de histórias que viveu no terreno baldio quan- do era criança. Desconfiado, preferiu entretanto não se identifi- car. “Não quero falar meu nome. Uma vez dei uma entrevista na TV – aquelas enquetes de opinião – e meti o pau! Aí a turma me viu e ficou ligando lá em casa enchendo o saco!”, brinca. Ele diz que, desde que se entende por gente, aquele terreno Escombros da memória coletiva - Casa da esquina assombrou imaginário popular 53 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Escombros da memória coletiva Em uma das raras fotos da praça Rui Barbosa onde o ângulo engloba a esquina das ruas Santo Antônio com Olegário Maciel, nota-se a falha do terreno baldio no meio dos outros prédios foto atual Terreno utilizado hoje como estacionamento, em foto de março de 2004 54 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias permanece vazio. “De 70 anos pra cá nunca foi construído nada. Por muito tempo foi terreno baldio, cheio de capim, não tinha nem fechamento”. Nas primeiras décadas do século passado o jar- dim da Praça Rui Barbosa era repleto de palmeiras. “Eu era meni- no e guardava folhas de palmeira no terreno baldio pra brincar depois na porta da catedral. Um montava na folha e o outro pu- xava. Brincadeira sadia. Quem acabou com as palmeiras foi aquele Wadir Nassif, prefeito na época da ditadura do Getúlio”, disse. O uberabense Afrânio Luiz de Azevedo orgulha-se da boa memória e da saúde exibida aos 83 anos. “Sou de 5 de abril de 1919. Nunca fiz extravagância. Só bebi pinga uma vez na vida e fiquei tonto”, disse. Seu Afrânio já prestou muitos serviços na Rua Santo Antônio. “Eu que forneci as pedras de tapiocanga para casa de Mariquinha Machado Borges e do Coronel Geraldino, [presi- dente da câmara dos vereadores e agente executivo em 1924, subs- tituindo Leopoldino de Oliveira]”, diz. Nos seus 83 anos, afirma que nunca viu qualquer construção naquele terreno da esquina. Atualmente, nessa obsessão tarada por estacionamentos, com- preende-se, a contragosto, que um terreno baldio surrealista, loca- lizado no ponto central da cidade, seja explorado economicamente num negócio de guardar carros. A sanha por vagas é tão doentia que, vez ou outra, ouvem-se rumores de proprietários pretenden- do destruir o patrimônio histórico para instalar estacionamentos. Se a sociedade e o poder público não ficarem de olho, a memória de Uberaba pode ir ao chão a qualquer momento. Mas essa fúria ma- níaca por vagas para carro, pretexto utilizado há quinze ou vinte anos, não explica o terreno baldio que atravessou o século. Alguns dos entrevistados imaginam que a especulação imobi- liária por si só congelou o terreno em todo o século 20. Alguns taxistas no centro da cidade – é impressionante como esses sujei- tos sabem de tudo – afirmam que o lote foi comprado pelo fazen- deiro Osório Adriano e deixado como herança à família. No en- tanto, outras pessoas lembram que, nessa história, pousa o espec- tro da superstição e do imaginário popular. E há também um ou- tro mistério que deixa o caso ainda mais charmoso: apesar das dezenas de fotografias retratando a Praça Rui Barbosa da época, não há fotos dessa casa. Mas isso será explicado mais adiante. Escombros da memória coletiva - Casa da esquina assombrou imaginário popular 57 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias conceituadissima familia desta terra. Decorrem-se os anos, vemol-o rodeiado de seus herdeiros para os quaes o seu bello coração de mineiro nato é um precioso vaso, a transbordar incessantemente os mais sublimes exemplos de honestidade e bondade. Mas a sorte amara entendeu escolhel-o para seu divertimento, roubando-lhe a curtos intervalos maior parte desses fragmentos de sua alma e leval-os para muito longe... além. Esses golpes bruscos, tão naturaes, mas inconformaveis, dei- xaram nas suas vene-radas faces profundos sulcos visiveis mesmo através do eterno sorriso errante dos seus lábios” (grifo nosso). Coitado de Wencesláu e Antoninha. Devem ter sofrido demais. Na primeira edição do Almanaque Uberabense, em 1895, estão listados os nomes e endereços de todos os estabelecimentos co- merciais da cidade na época. Na Praça Rui Barbosa, que então chamava-se largo da Matriz, constam nessa listagem, entre ou- tros escritórios, o consultório médico do Dr. José Joaquim O. Teixeira e a “pharmacia” Sampaio & Zeferino. Na edição de 1911 do Almanaque foi publicado um anúncio de um remédio contra a tuberculose, o PHOSPHO-THIOCOL granulado de Gioffoni. “Restaurador pulmonar de grande valor, o PHOSPHO-THIOCOL de Gioffoni tonifica o organismo de modo a resistir á invasão do bacilo de Koch e extermina este quando já há contaminação. Adorável ao paladar, pode ser usado puro ou no leite, cujo sabor não altera (...)”. Portanto, em um exercício livre de reconstituição do cotidiano histórico, permitiríamos imaginar dona Antoninha caminhando aflita até o consultório do Dr. Teixeira, que receitava o PHOSPHO-THIOCOL granulado de Gioffoni, que era então comprado na pharmacia Sampaio & Zeferino, tudo no largo da Matriz. Mas outro fenômeno concorre para que a história permaneça no esquecimento: não há, nos principais arquivos de Uberaba ou nos guardados pessoais de descendentes, nenhuma foto da casa. Além disso, em toda a história da cidade, há pouquíssimas fotos daquela esquina, como será demonstrado a seguir. Não existem fotos da casa Eliane Marquez possui um grande arquivo de fotografias his- tóricas da cidade. A pedido da reportagem, selecionou dezenas Escombros da memória coletiva - Casa da esquina assombrou imaginário popular 58 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias de reproduções da praça do final do século 19 e primeira metade do século 20, certa de que encontraria a casa em questão. Nada feito. Admitiu que não tinha a foto. Uma fotografia retratando uma parada de alunos maristas em 1916 parece ter, ao fundo, o espectro da casa. Porém, não dá para ter certeza, porque está muito embaçada e embaralhada. Flávio Arduino Canassa, historiador e pesquisador do Arquivo Público Municipal, procurou no respei- tável acervo da instituição, mas não encontrou. A única foto dis- ponível em que talvez a casa esteja presente, bem lá no fundo e de forma muito difusa, é uma reprodução da mesma foto da profes- sora Eliane Marquez. Na sala de pesquisa coletiva do Arquivo encontra-se, afixado na parede, uma fotografia do largo da Ma- triz, tirada em 1894, onde a casa parece estar ao fundo, mas de forma bastante difusa e espectral. O escritor e professor na Universidade de Uberaba, Hugo Prata, tem em suas mãos uma coleção da revista Lavoura & Comércio com exemplares a partir de 1918. Há dezenas de fotografias da praça, tiradas em épocas diferentes. Mas nada da casa. Juquita Machado tem a alma de arquivista e guarda consigo fotografias reunidas nos seus 91 anos de vida. Também não tem foto da casa. Na coleção do Almanaque Uberabense, disponível no Arquivo Público, há muitas fotos da praça: a casa não aparece em nenhuma. A Biblioteca Central da Universidade de Uberaba tem livros, teses e monografias sobre a cidade. Algumas obras apresentam diversas reproduções do final do século 19 e começo de 20. Nada da casa. As estudantes de Arquitetura da Universidade de Uberaba, Lilia Lucena e Fernanda Castro, estão concluindo um projeto de iniciação científica cujo tema é a revitalização do centro histórico de Uberaba. Centradas na praça Rui Barbosa, pesquisaram em diversos arquivos. Encontraram farto material, mas nada da casa. O fotógrafo Ricardo Prieto é proprietário de um dos arquivos mais representativos da cidade. Possui originais e reproduções de diversos períodos dos 182 anos de Uberaba. Todas as mansões e prédios já demolidos da praça estão lá retratados. O antigo prédio da Câmara Municipal, a casa do Major Quincota, o antigo teatro São Luís, a bicicletaria de Varoto e o açougue de Don’Anna... mas nada da mansão dos tuberculosos. Escombros da memória coletiva - Casa da esquina assombrou imaginário popular 59 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias es qu in a es qu in a Esquina foi evitada nos enquadramentos de fotos que retrataram a praça em todos os períodos cronológicos da cidade 62 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Escombros da memória coletiva Foto do largo da Matriz em 1916 é um dos três registros que indicariam a existência da casa 63 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Analisando com mais atenção os cortes nas fotografias, Prieto notou um fenômeno que o deixou intrigado. No seu arquivo – assim como em todos os arquivos consultados pela reportagem – três cantos da Praça Rui Barbosa foram exaustivamente fotografados em todas as épocas. Há dezenas de fotos retratando a esquina do cruzamento com as ruas São Sebastião e Tristão de Castro – prédio do antigo conservatório e a Vila Real; a esquina da Rua Manoel Borges – Câmara Municipal e Hotel Chaves (antigo prédio do Notre Dame de Paris); e o cruzamento com a Vigário Silva, a alguns metros do Lavoura e Comércio. Mas a quarta esquina, o cruzamento com a Rua Santo Antônio, quase nunca aparece no panorama de qualquer foto. A esquina está sempre a alguns metros além ou aquém do corte das fotos. As mais assombrosas são as dezenas de fotos da igreja Matriz que quase sempre englobam a esquina da Rua São Sebastião, à direita, mas em raríssimas poses incluem a esquina da Rua Santo Antônio, à esquerda. Os cortes estão sempre a alguns metros dessa esquina. Ricardo Prieto admitiu que nunca havia percebido esse fenômeno e declarou-se surpreso com a constatação. “De fato, aquele ângulo foi totalmente esquecido pelos fotógrafos da cidade”, afirmou. A única foto em seu arquivo que pode ser um registro parcial da casa é aquela reproduzida ao final dessa reportagem. A foto provavelmente foi tirada na década de 10. Pelo estado de conservação da parede, podemos imaginar que já estava abandonada. O pequeno prédio cinza escuro, no centro da imagem, é o Teatro São Luís, atual Cine-teatro São Luiz. A casa mais acima é a bicicletaria de Vitorio Varoto e açougue de Don’Anna Felicce. Comparando a partir do ponto de vista do fotógrafo, que certamente posicionou-se no alto da igreja Matriz, parece provável que essa construção de parede descascada e janelas escuras no canto direito da foto trata-se mesmo da casa em questão. Ao pegar pela primeira vez em sua vida essa foto, Juquita Machado voltou no tempo e subiu novamente pela calçada do largo da Matriz, cumprimentou Major Quincota à porta de casa, olhou para o buraco de bala na parede do teatro São Luiz, ouviu Genário Felicce tocando seu violino, reconheceu a lateral da casa da esquina, sentiu seu coração batendo e afirmou: “esta é a casa”. Escombros da memória coletiva - Casa da esquina assombrou imaginário popular Foto do início do século XX que fez Juquita Machado voltar no tempo... 68 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Uma cidade sobrenatural Histórias fabulosas registram cotidiano mágico da cultura popular de Uberaba Publicada no Revelação nº 235, em 17 de fevereiro de 2003 Dr. Humberto Ferreira, famoso médico de Uberaba, falecido em 2002, foi um importante pesquisador da doença de Chagas e um pediatra muito querido pelas famílias da cidade. Era notório seu espírito caridoso. Dr. Humberto sempre atendia de graça as pessoas que não podiam pagar. Não se sabe se era promessa, superstição, ou simplesmente um hábito de bom samaritano, mas o fato é que o médico também não costumava cobrar consultas realizadas depois da 18hs — nem mesmo em emergências domiciliares. A história a seguir foi relatada pelo professor da Universidade de Uberaba (Uniube), Newton Mamede, que a ouviu do próprio Dr. Humberto, em uma entrevista de TV. 69 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Era noite. Em uma casa localizada num determinado bairro da cidade, uma família sofria e chorava por causa da menina doente. Ela estava muito mal, a coisa parecia ser grave, e os pais, pessoas simples, não sabiam o que fazer, nem tinham condições para levá-la a um hospital. De repente, toc toc toc, batem na porta: era o Dr. Humberto, que dizia ter sido chamado para atender a criança. A família ficou surpreendida com a visita inesperada. O médico logo se aproximou, examinou a garota, fez o diagnóstico, recomendou alguns procedimentos e encaminhou para o tratamento. A nuvem da desgraça pareceu ter se dissipado daquela casa. A menina estava salva. Todos ficaram mais tranqüilos, graças à confiança que depositavam nos cuidados do pediatra. Mas ficaram também curiosos, pois ninguém da casa havia ligado para ele. Quem havia chamado o Dr. Humberto? Depois de alguma conversa, tomaram coragem e perguntaram. O médico olhou para uma das velhas fotografias emolduradas na parede, apontou para uma delas e disse: “Foi aquela mulher ali”. Foi como uma facada no coração. Houve gritos, sustos, olhos arregalados, suores frios, parece que alguém desmaiou. Dr. Humberto assustou-se também com a reação. Uma das mulheres na casa, pálida e meio sem voz, explicou a ele, gaguejando e tremendo as mãos, que a mulher da fotografia, a tal que, segundo o médico, o chamara para salvar a menina, ai cruz credo, havia morrido há anos! Histórias de fantasmas, criaturas mágicas e fenômenos sobrenaturais são freqüentes em uma cidade mineira de forte cultura religiosa como Uberaba. Mesmo os moradores urbanos, mais céticos e racionalistas, ainda guardam um ou outro caso fantástico para contar — e juram de pés juntos que é tudo verdade. Além disso, um dos fatores que enriquece esses relatos populares — característica fundamental na tradição oral — é a diversidade das versões; ou seja, cada um que ouve um caso acrescenta elementos de seu universo cultural ao contá-lo. De boca a boca, temperadas pelas sutilezas do cotidiano, as histórias adquirem novos sabores e acabam por reunir os ingredientes mais significativos do imaginário coletivo de uma época. Uma cidade sobrenatural 70 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Uma cidade sobrenatural Mulheres misteriosas aparecem, revelam segredos e combinam encontros... até que acabam descobrindo que a defunta estava morta há mais de 20 anos 73 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Uma cidade sobrenatural basicamente, de uma defunta toda de branco, com algodão enfiado nos olhos, nariz e ouvidos, que surge em banheiros de colégio para assustar os pirralhos. Há pelo menos duas versões para a origem da lenda. Dizem que a moça era uma aluna apaixonada por um professor que não dava bola pra ela. Desiludida, cometeu suicídio no banheiro do colégio. Desde então, vem aparecendo para perguntar pelo professor amado. Outros relatos afirmam que a estudante foi esquartejada por um psicopata que, num ritual macabro, jogou seus restos na privada. Não se sabe direito o que a Mulher do Algodão faz com as crianças no banheiro (se é que uma defunta que aparece assim de repente precisa fazer mais alguma coisa para assustar alguém…), mas alguns relatos dizem que ela fura os olhos dos meninos, caso eles não levem algodão para ela. O publicitário Lungas Neto afirma que, segundo a lenda, para que a defunta apareça é necessário certo ritual. Algumas versões falam em permanecer no banheiro e invocá-la três vezes. “— Mulher do algodão, mulher do algodão, mulher do algodão.” Outros dizem que deve-se dar três descargas na privada. Mas os modos de invocá-la também se alternam bastante. Lungas afirmou que, quando cursou o primário no colégio Corina de Oliveira, ninguém conhecia a lenda. “Eu que levei a história lá. Meu primo havia me contado. Espalhei no colégio todo.” Segundo ele, a lenda pegou entre os colegas e todos passaram a morrer de medo de demorar muito no banheiro: vai que a assombração aparece! Ironicamente, o que dava mais veracidade à lenda da Mulher do Algodão era que ninguém jamais a havia visto, pois moleque nenhum tinha coragem de dizer seu nome três vezes e ficar lá pra conferir. A jornalista Celi Camargo afirmou que, em sua época de colégio Tiradentes, em 1980, a lenda dizia que nem era preciso invocá-la: a defunta aparecia, sem mais nem menos. Ela contou que, certa vez, um colega que estava de braço quebrado arrancou o algodão de baixo do gesso e espalhou tudo no banheiro. Aí, foi aquele tumulto na escola. “O pânico existia mesmo! As meninas choravam. Havia uma confusão entre verdade e ficção. A diretora e os professores 74 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Mulher do Algodão aparece em banheiros de colégio para aterrorizar os pirralhos 75 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias foram lá ver. Foi um alvoroço”. Celi tem uma hipótese para a popularidade da lenda da Mulher do Algodão: “Talvez essa história tenha surgido para limitar a permanência das crianças no banheiro. É lá que os meninos se escondem para fumar pela primeira vez, para ensaiar as primeiras experiências sexuais”. Para ela, uma assombração que aparece no banheiro seria a “pessoa” mais conveniente para “vigiar” os pirralhos mais atrevidos. Magrelo, da banda Os Kretinos, confirma as história da Mulher “de” Algodão — como fez questão de frisar. Ele conta que, nos seus tempos de grupo Brasil, nos anos 80, a defunta metia tanto medo nas crianças que uma garota, certa vez, chegou a fazer xixi nas calças por não ter tido coragem de ir ao banheiro. “Meu amigo e eu gostávamos de percorrer a sala engatinhando, para ver as calcinhas das meninas. Aí, percebemos que, em uma das carteiras, estava pingando uma água, ou sei lá o quê. Então, vimos a menina curvada, tentando limpar uma poça de xixi com um lencinho – o melhor era o lencinho!” Quando a garotinha percebeu que era observada pelos voyeurs mirins, ela tapou o rosto e levantou-se, primeiro choramingando, depois chorando convulsivamente. E os dois capetas, evidentemente, passaram a cantar para a sala, às gargalhadas: “Ela mijou na sala! Ela mijou na sala!” Desgraça pelada Persiste em muitas famílias a história de que, se a criança disser qualquer palavrão no período da Quaresma, aparece para ela a “Desgraça Pelada”. Algumas versões mais pudicas dizem que ela surge atrás da porta, com a mão protegendo as partes. “Eu nunca soube o que era a Desgraça Pelada. Devia ser uma coisa muito ruim”, disse Celi Camargo. Anjos e demônios são personagens bastante presentes no imaginário infantil. Apesar de um representar o bem e o outro o mal, ambos assustavam igualmente os meninos. “Em casa éramos muito religiosos. Na hora do almoço, diziam que ficava cheio de anjos na mesa. E eu morrendo de medo de esbarrar num. Vai que eu cutuco ele, e ele cai!”. Para Celi, esse temor, de certa forma, era benéfico, pois impunha disciplina nas crianças. “Tudo de errado Uma cidade sobrenatural 78 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Uma cidade sobrenatural facetas do espírito humano, pois agrupam informações históricas, etnográficas, sociológicas, jurídicas e sociais, constituindo-se em um documento vivo dos costumes, idéias, mentalidades, decisões e julgamentos de um grupo cultural. “Ao lado da literatura, do pensamento intelectual letrado, correm as águas paralelas, solitárias e poderosas da memória e da imaginação popular”, escreveu. No entanto, essas crenças, lendas e personagens fabulosos que habitam a cultura popular muitas vezes são desprezadas, ou vistas como manifestações de ingenuidade ou mesmo ignorância dos crentes. Por isso, é importante fazer uma breve reflexão sobre a questão da crendice popular. Em seu Dicionário filosófico, Voltaire escreve que não é fácil demarcar as fronteiras da superstição: “Um francês que viaje para a Itália acha que quase tudo lá é superstição, e dificilmente estará enganado. O arcebispo de Canterbury afirma que o arcebispo de Paris é supersticioso; os presbiterianos lançam a mesma acusação contra sua reverendíssima de Canterbury e são por sua vez chamados de supersticiosos pelos quaker, que são vistos pelos cristãos como os mais supersticiosos dos homens”. Com esse texto, o filósofo francês ironiza a tendência humana de difamar a posição intelectual daqueles que discordam de nós. Em Psicologia da superstição, o estudioso Gustav Jahoda observa que cada religião costuma envolver suas crenças com roupagem verbal incontestável, denominando-as “doutrina secular”, “sabedoria do oriente” ou “ciência oculta”, e tentam caracterizar outras crenças ou opiniões como falsas. Muitos dos chamados “místicos” freqüentemente se consideram uma “minoria esclarecida, superiores a nós em inteligência e compreensão e rejeitam indignadamente a classificação de supersticiosas”, ainda que cultuem talismãs, unicórnios, duendes e outras criaturas tão fabulosas quando as da cultura popular. Mas qual o critério para considerar uma crença “correta” e outra “falsa”, se ambas partem do mesmo princípio de relacionamento existencial com o mundo? Na verdade, o que caracteriza uma crença não é sua racionalidade objetiva, mas a fé em um mistério inexplicável. Acreditar e conviver com anjos, 79 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Uma cidade sobrenatural demônios, sacis, espíritos, pombagiras, botos mágicos, santos ou assombrações é uma questão de fé e de contexto cultural. O escritor e professor da Uniube, Hugo Prata, brinca que é mais fácil acreditar em lobisomem do que em Deus, “porque ninguém nunca viu Deus, mas lobisomem, muita gente já viu”. Por outro lado, Jahoda argumenta que crenças não são apenas fenômenos fantasiosos circunscritos na imaginação dos indivíduos, pois realmente afetam o comportamento das pessoas. Se uma grande quantidade de indivíduos acreditam no mau presságio da sexta-feira 13, ficam apreensivos e mais suscetíveis a acidentes. Quando investidores estrangeiros acreditam que o valor do Real está para cair, eles venderão seus títulos na bolsa, o que causará, de fato, a queda da moeda. Esse fenômeno é conhecido como “profecia da auto-realização”. O autor cita um caso verdadeiro de uma mulher saudável que, submetida a uma cirurgia simples, acabou falecendo. Mais tarde, os familiares admitiram que uma cartomante havia previsto sua morte na mesa de operação há vários anos. “Supomos que as ativas tensões emocionais acrescentadas à tensão fisiológica da cirurgia tiveram alguma relação com sua morte”, declarou o médico na ocasião. Tal reação fisiológica é notada nos placebos, simulações de medicamentos, desprovidos do princípio ativo, que acabam curando as doenças por causa da crença do paciente de que está sendo curado. Benzedeiras, berrugas, cobras e lagartas A professora de Jornalismo na Uniube, Alzira Borges, conta que já foi curada, por uma benzedeira, de 66 berrugas em todo corpo, em 1983. Ela era toda berruga. “Quando eu caía de skate ficava aquele monte de berruga pendurada. Doíííía. Não podia nem pôr esparadrapo, porque aí ela ia querer sair junto”. Alzira experimentava tudo que receitavam para eliminá-las, inclusive um ácido que um dentista uma vez sugeriu. “Nos primeiros dias adiantava, porque ficava queimadinha, murchinha, mas depois ela voltava em uma versão piorada.” Um dia, Alzira topou procurar uma benzedeira, no Bairro Fabrício. A coisa funciona assim: primeiro, uma pessoa deveria ir 80 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Uma cidade sobrenatural junto com ela, porque a dona das berrugas não poderia contá-las. Regras da benzição. Aí, enquanto essa pessoa contava berruga por berruga — uma berruga, duas berrugas, três berrugas — a benzedeira invocava suas rezas e fazia um pequeno corte numa folha de assa-peixe, até chegar nas 66. “Eu fui três quartas-feiras seguidas. Na segunda sessão, já tinha baixado para 50. Na terceira, só tinha a metade. Um tempo depois, sumiram de vez. Eu nunca mais tive nenhuma berruga”. A professora Alzira, que se declara católica, sempre acreditou em benzição. Como mostrou o cineasta Eduardo Coutinho, no documentário Santo Forte, o sincretismo religioso no Brasil torna as pessoas mais tolerantes às diversas crenças. O engenheiro Fernando Peres, de 38 anos, nunca se esqueceu da benzedeira que salvou uma lavoura de milho das lagartas-de- cartucho. O caso ocorreu na roça de seu pai, na cidade mineira de Planura (localizada a 110km de Uberaba) no final dos anos 70. “A praga estava acabando com a plantação. Já estava praticamente perdida. Aí um dia trouxeram, de carro, a benzedeira de Planura. Ela chegou e benzeu os quatro cantos da lavoura. Era inacreditável o poder dela. Enquanto ela benzia, as lagartas começaram a cair mortas, foi uma chuva de lagarta. E isso eu vi. A lavoura prosperou depois disso.” Depois dessa façanha, para brincar com o garoto, a benzedeira ainda agarrou com a própria mão uma caixa de marimbondos zumbindo de cheia e, sem que levasse uma picada sequer, deu para ele segurar. Célio Peres, de 84 anos (o pai de Fernando) mora em um sítio próximo ao bairro Volta Grande. Na sua juventude, tocava caravanas de porcos, a pé, de Minas Gerais a Mato Grosso. Levava um mês. Saía de Pirajuba (MG) com uns cem animais e chegava em Paranaíba (MT) com uns cinquenta. Vinha devagar, trocando e vendendo porcos pelo caminho. Seu Célio conhece muitas histórias fantásticas. Ele sempre se recorda de um episódio que assombrou os moradores de Planura. Em uma certa tarde no começo da década de 40, a família fazia uma faustosa festa no campo quando, de repente, apareceu uma criatura muito estranha, gigantesca, do tamanho de vários bois, aterrorizante feito um pesadelo, emitindo um rugido indescritível, 83 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Uma cidade sobrenatural telhado e mamava até a última gota de leite, de forma que não sobrava nada para a criança. Aí, uma noite, o pai esperou a cobra descer e meteu o porrete. Seu Célio, que sempre viveu em roça, conta que se lembra de histórias de cobras que bebiam leite de vaca, “e a vaca gostava, ficava quietinha”. A região Norte de Minas Gerais também é rica dessas histórias. São comuns os relatos do homem que benzia uma porção de terra no chão e, chovesse o que chovesse, nesse pedaço não caía uma gota. Ou a do sujeito que castrava estuprador no rastro, riscando com a faca as pegadas do deflorador, de forma que este nunca mais conseguia “ser macho”. Ou a do matador profissional que virava um toco de madeira em brasa quando queria se esconder da polícia. Na verdade, observamos que essas histórias são muito populares também em outros países da América Latina, como, por exemplo, na Venezuela dos relatos de Eloy Padilla. Venezuela? Eloy Padilla? Se a sua curiosidade coçou, é só virar a página. 84 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Eloy Padilla é músico e toca o “quatro”, instrumento de cordas, de grande riqueza rítmica e melódica, fundamental na música popular venezuelana. (É mais ou menos uma mistura do cavaquinho com viola). Ele veio ao Brasil para visitar o filho Adrián, em Uberaba 85 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias O camponês venezuelano Eloy Padilla, de 80 anos, é desses que não perde a oportunidade de disparar um galanteio à qualquer moça de batom que se aproxima cheia de sorrisos. Nasceu em Guayurebo, no Estado de Yaracuy, área tradicionalmente rural da Venezuela. Uma das características tradicionais dos moradores dessa região é a habilidade na arte da boa conversa. A literatura oral é uma expressão muito fértil nessa terra repleta de bons contadores de história. Com sagacidade natural, os yaracuyanos dominam aqueles jogos de revelar e esconder e, dizendo e não dizendo, deliciam o ouvinte com os casos mais extraordinários da Venezuela. E o velho Eloy Padilla não poderia deixar de ser um dos melhores deles. É comum ouvir do velho camponês relatos fabulosos de fantasmas, criaturas mágicas e animais encantados. “Essas narrativas estão muito ligadas ao imaginário e à cultura camponesa local. Pela própria paisagem, pela realidade cultural, eles estão muito ligados aos fenômenos da natureza”, explica o jornalista e professor da Uniube, Adrián Padilla, um dos doze As aventuras de Eloy Padilla Contador de histórias traz relatos fantásticos do cotidiano camponês venezuelano Publicado no Revelação nº 229, em 19 de novembro de 2002 As aventuras de Eloy Padilla 88 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Pela cara de espanto do companheiro, Eloy começou a imaginar mil coisas que poderiam ter acontecido e ficou tão assustado quanto o amigo, que não dizia nada. No momento em que começou a mexer na embrenhagem, percebeu que suas pernas não conseguiam se movimentar direito. Sentiu que alguma coisa roçava em seus pés e, traiçoeiramente, o agarrava com força. Mas Eloy não tinha coragem de olhar para baixo e ver o que o prendia: e se fosse a defunta com suas mãos podres, esqueléticas segurando minhas pernas e querendo me levar para o inferno? Mas chegou um momento que tinha que olhar. E olhou! Na época, as estradas normalmente eram de terra batida. Era comum usar máscaras para se proteger da poeira. Em dias em que não havia muito vento, caminhoneiros costumavam dependurar as máscaras no painel. O que estava puxando seus pés, na verdade, eram os elásticos da máscara que haviam caído e se enroscado na embrenhagem. Sobre a horrível moça da estrada, o ajudante jamais contou os detalhes. Dizia ter visto uma coisa horrível, saindo fogo, mas nunca explicou direito. Outra dessas histórias ocorreu no nascimento de um dos filhos. Todos os meninos — exceto um, o único que nasceu em hospital, entre os doze irmãos — vieram ao mundo pelas mãos de uma parteira. “Que berçário que nada, nasciam nos quartos mesmo. Certa vez, meu pai chegou em casa às 2 da manhã, e minha mãe já estava em trabalho de parto. Ele foi correndo buscar a madrinha Maria, a parteria da família”, conta Adrián. Eloy ficou apreensivo porque Maria morava exatamente ao lado do cemitéro do bairro, na primeira casa depois do muro. “Ele ficou com medo, mas foi”. Chegando próximo ao muro, o medo bateu mais forte. Eloy ficou um tempo parado, pensando e tomando coragem: tenho que atravessar, minha mulher vai dar à luz”. Então viu algumas sombras que subitamente passaram a deslizar pelos tijolos. Elas começaram a crescer e formaram uma mão gigante que o chamava com o dedo: venha… venha... venha... Seu coração gelou! Eram as falangetas da morte querendo arrastá-lo ao abismo! Ao olhar para trás, percebeu que essa sombra era, na verdade, de uma folha de bananeira que, com a lua cheia ao fundo, estava se mexendo com o vento. As aventuras de Eloy Padilla 89 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Nesse exato momento, apareceu um sujeito que caminhava por aquelas bandas. Eloy ficou mais corajoso, já que agora tinha companhia, e voltou a caminhar pelo muro em direção ao novo “amigo”. Apresentou-se ao homem, puxou conversa, contou o caso do parto da mulher, da folha de bananeira, e o acompanhou na lenta caminhada pelo muro do cemitério. Quase no ponto de chegada, para mostrar certa confiança e intimidade, Eloy colocou a mão no ombro do sujeito e perguntou: puxa, você não fica com medo de caminhar no cemitério, nesse horário? E o homem, sem virar o rosto, respondeu: eu ficava antigamente… quando era vivo! As aventuras de Eloy Padilla 90 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Nestor, em pose de galã: “A minha prezada sogra, ofereço-te esta fotografia em prova de minha amizade . Seu genro. Nestor Ribeiro” Publicado no Revelação nº 237 em 3 de março de 2003 Saudades de Seu Nestor, o orador 93 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias de ter direito à passagem gratuita, por causa da idade, ele fazia questão de pagar. Dizia que a autoridade máxima do país tinha obrigação de bancar o próprio transporte. Em casa, dizia “hoje trabalhei muito”, e explicava para a família os temas políticos que tinha abordado no discurso do dia. Seu Nestor sofreu um derrame no dia 23 de fevereiro de 2001 e foi atendido no Hospital Escola. Todos os médicos o reconheceram: “–É o Sr. Nestor, aquele que fica discursando no centro da cidade!”. Ele nunca admitia estar doente, pois não gostava de ir ao médico: dizia que, no hospital, poderiam tentar matá-lo. Evidentemente, ele temia um assassinato político. Seu Nestor também não aceitava comida, salgadinhos, biscoitos e nem mesmo água de ninguém que o oferecesse no centro da cidade: homem importante que era, poderia ser envenenado. Só depois de muito tempo, passou a confiar em algumas funcionárias da prefeitura e aceitava um copo d’água. Dezoito dias depois do derrame, Seu Nestor, o orador, não resistiu. Morreu aos 78 anos, no dia 10 de março de 2001. Ele deixou uma filha. Segundo a família, até o prefeito de Uberaba, Marcos Montes, compareceu ao velório e deixou um buquê de flores. Seu Nestor foi enterrado com alguns de seus crachás, que gostava tanto. Uberaba perdeu o personagem mais ilustre da Praça Rui Barbosa do final do século 20. Mas os alucinados discursos de Seu Nestor, o orador, ainda ecoam na memória afetiva da cidade. Saudades de Seu Nestor, o orador Seu Nestor na porta do prédio histórico da Prefeitura e da Câmara Municipal 94 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Saudades de Seu Nestor, o orador O incansável Nestor, em frente ao prédio histórico da Prefeitura e Câmara Municipal Grupo Chorocultura apresentou-se na Universidade de Uberaba em fevereiro de 2002, durante as atividades da Calourada 95 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias A apresentação que o grupo Chorocultura realizou, durante os eventos da calourada na Universidade de Uberaba de 2002, foi tão assustadoramente autêntica que nos fez lamentar a vergonha que temos de nós mesmos. Não é que não gostamos de ser brasileiros — lá no fundo, existe até um certo orgulho, assim meio constrangido — mas somos acanhados, vacilantes; dificilmente temos coragem de confessar que o chorinho é a coisa mais certa e mais gostosa para acender alguma coisa indefinível dentro da gente. A cadência maliciosa de vai-não-vai em que o chorinho se esbalda é uma delícia porque representa todas as características de nossa alma brasileira. Está tudo lá. O bandolim tropeça feito bêbado em uma escala e, através de malabarismos impossíveis, A delícia do chorinho e a vergonha de ser brasileiro O choro diz tudo sobre nossa alma. Por isso mesmo, morremos de medo de gostar dele Publicado no Revelação nº 229, em 19 de novembro de 2002. Crônica premiada no 15º Set Universitário, realizado pela Famecos/PUC-RS, em Porto Alegre (RS), 2002 A delícia do chorinho e a vergonha de ser brasileiro 98 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias Pandeiro e zabumba entram em transe: era Maria Preta, a Rainha, que dançava entre os foliões Publicado no Revelação n. 209, em 27 de maio de 2002 99 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias “Aqui, graças a Deus, a turma está comendo desde cedo. Chega um e come, chega outro e come...”, disse Antônio Munhoz, onze filhos, mais de trinta netos e alguns bisnetos. Em sua casa, o grupo de Folia de Reis “Os Filhos da Benção” ensaiava para a procissão da noite de 18 de maio de 2002. O dia todo era de festa. Os moradores da comunidade Nova Santo Inácio Ranchinho, localizada no município de Campo Florido (MG), comemoravam, na véspera, os nove anos de assentamento com um grande churrasco. Munhoz acompanhou o lento processo de desapropriação, assim como a acomodação das 115 famílias a partir de 1993. Folia no assentamento Nova Santo Inácio e Ranchinho comemora nove anos com Festa de Reis Foliões do grupo Filhos da Bênção ensaiam na casa de Antônio Munhoz Folia no assentamento 100 André Azevedo da Fonseca - Cotidianos culturais e outras histórias “Ficamos todos, com as mulheres e os meninos, três anos e meio debaixo de lona”, lembra. Hoje, quase todas as casas têm energia elétrica e boa parte delas é abastecida com rede de água. O assentamento conta também com uma escola ligada ao projeto Escola Família Agrícola (EFA). Segundo dados do projeto Lumiar, lá eles produzem frango, ovos, mandioca, melancia, moranga e comercializam leite com cooperativas. De acordo com alguns moradores, há casos de assentados que alugam suas glebas para produtores de soja e açúcar. José Ferreira dos Santos, conhecido como José Messias, é violeiro e mestre da folia. “A procissão no aniversário era uma intenção que a gente tinha desde a beira da rodovia”, conta. Por causa de diversos problemas enfrentados nos primeiros anos de assentamento, somente em 1996 conseguiram reorganizar o grupo para a comemoração. “A folia é tradição na família. Meu avô passou para o meu pai e ele passou para mim. Meu filho — o Israel, de doze anos — já está aprendendo.” José Francisco Ribeiro, o Zé Melé, é uma figura muito popular na comunidade. Bem humorado, está pronto a qualquer momento para uma zombaria rasgada. Há trinta anos é companheiro de folia de José Messias. Já participou como palhaço e hoje, aos 68 anos, toca pandeiro. “Quero ver essa cara pretinha no jornal”, disse, ao posar para a foto. Folia no assentamento José Messias e o filho Israel: “A folia é uma tradição da família. Meu avô passou para o meu pai e ele passou para mim. Meu filho já está aprendendo”
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