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História e Consciência de Classe por Georg Lukács: Um Livro Revolucionário no Marxismo, Provas de História

Filosofia MarxistaTeoria da HistóriaHistória da Filosofia

História e consciência de classe, publicado em 1923 por georg lukács, é considerado um dos poucos verdadeiros eventos na história do marxismo. O livro teve impacto além de círculos marxistas, influenciando filósofos como heidegger. O texto é uma exceção no marxismo ocidental por sua natureza politicamente engajada e especulativa, contrastando com a filosofia da escola de frankfurt. História e consciência de classe é uma obra fundamental que confirma a ideia de schelling de que 'o início é a negação de aquilo que se inicia com ele'.

O que você vai aprender

  • Qual é a importância de História e Consciência de Classe no marxismo?
  • Como História e Consciência de Classe influenciou a filosofia soviética?
  • Como História e Consciência de Classe difere da filosofia da Escola de Frankfurt?
  • Como História e Consciência de Classe influenciou Heidegger?
  • Qual é a importância da noção do proletariado como sujeito e objeto da história em História e Consciência de Classe?

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Rafael86
Rafael86 🇧🇷

4.6

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Baixe História e Consciência de Classe por Georg Lukács: Um Livro Revolucionário no Marxismo e outras Provas em PDF para História, somente na Docsity! História e consciência de classe (1923), de Georg Lukács, é um dos poucos verdadeiros eventos na história do marxismo. Hoje, nossa experiência do livro é apenas como de uma estranha lembrança fornecida por uma época já distante – para nós, é até mesmo difícil imaginar o impacto verdadeiramente traumático que seu aparecimento teve nas poste- riores gerações de marxistas. O próprio Lukács, na sua fase termidoriana, i. e., do começo dos anos trinta em diante, tentou desesperadamente se afastar dele, tratando-o como um documento com mero interesse histórico. Aceitou que fosse reeditado apenas em 1967, fazendo-o acompanhar de um novo e longo Prefácio autocrítico. O livro teve, até que essa reedição “ofi- cial” aparecesse, uma espécie de existência fantasmagórica e subterrânea como uma entidade “não morta”, que circulava em edições piratas entre estudantes alemães da década de sessenta, estando também disponível em poucas e raras traduções (como a legendária edição francesa de 1959). No meu próprio país, a agora defunta Iugoslávia, referir-se a História e cons- ciência de classe servia como um signe de reconnaissance ritualístico para saber se se fazia parte do círculo marxista crítico reunido em torno da revista Praxis. Seu ataque à noção de Engels de “dialética da natureza” foi crucial para a rejeição crítica da crença que a proposição central do “mate- rialismo dialético” seria a teoria do conhecimento “reflexiva”. O impacto DE HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE A DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO, E VOLTA* SLAVOJ ZIZEK * “From History and Class Consciousness to The Dialectic of Enlightenment... and Back”. New German Critique 81: 107-123, 2000. Agradecemos aos editores da New German Critique e a Slavoj Zizek pela gentil permissão para publicar este artigo. Tradução de Bernardo Ricupero. do livro esteve longe de se restringir a círculos marxistas: mesmo Heidegger foi claramente afetado por História e consciência de classe, havendo alguns sinais inconfundíveis disso em O ser e o tempo. Até no último parágrafo, o autor, numa clara reação à crítica de Lukács à “reifi- cação”, pergunta: “há muito tempo sabemos que existe o perigo da ‘reifi- cação da consciência’. Mas o que significa reificação [verdinglichung]? Qual é sua origem?... A ‘diferença’ entre ‘consciência’ e ‘coisa’ é o bastante para haver um desenvolvimento pleno do problema ontológico?”1 Como, então, História e consciência de classe passou a ter um status de livro proibido quase-mítico, cujo impacto foi talvez comparável apenas ao de Pour Marx, escrito pelo posterior grande antípoda anti- hegeliano de Lukács, Louis Althusser?2 A resposta que primeiro vem à mente é evidentemente que estamos discutindo o texto fundador de todo o marxismo ocidental de inspiração hegeliana. Nessa linha, o livro combina uma postura revolucionária engajada com temas que foram mais tarde desenvolvidos pelas diferentes linhas da chamada Teoria Crítica chegando até os Estudos Culturais de nossos dias (por exemplo, a noção de que seri- am componentes estruturais de toda a vida social o “fetichismo da mer- cadoria”, a “reificação” e a “razão instrumental” etc). No entanto, olhando mais de perto, as coisas aparecem numa luz ligeiramente diferente: há uma quebra radical entre História e consciência de classe (mais precisamente, entre os trabalhos de Lukács escritos em torno de 1915 a 1930, inclusive seu Lenin de 1925, e uma série de outros textos curtos desse período publicados nos anos sessenta sob a rubrica Ética e política), e a posterior tradição do marxismo ocidental. O paradoxo (ao menos, para nossa sensibilidade “pós- política” ocidental) é que História e consciência de classe é um livro LUA NOVA Nº 59— 2003160 1 Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tuuebingen: Max Niemeyer, 1963, p. 437. 2 Paradoxalmente, da perspectiva de cada um desses dois marxistas, Althusser e Lukács, o outro aparece como o exemplo mais acabado do stalinista: para Althusser e os pós-althusseri- anos, a noção de Lukács de que o Partido Comunista equivale praticamente ao sujeito hegeliano legitima o stalinismo; para os discípulos de Lukács, o “antihumanismo teórico” do estruturalista Althusser e sua total rejeição da problemática da alienação e da reificação, com- binam-se à desconsideração stalinista pela liberdade humana. Ao mesmo tempo que este não é o lugar para tratar detalhadamente desse confronto, ele enfatiza como cada um dos dois marxistas articula uma problemática fundamental, que não faz parte do horizonte do opo- nente: em Althusser, a noção dos aparelhos ideológicos do Estado como a tradução material da ideologia, e em Lukács, a noção do ato histórico. Além do mais, evidentemente não é fácil realizar uma “síntese” entre essas duas posições mutuamente opostas – é possível, assim, que a melhor maneira de proceder seja usando como referência alternativa o outro grande fun- dador do marxismo ocidental, Antonio Gramsci. HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 163 Evert Van der Zweerde3 descreveu em detalhes a utilização ide- ológica pelo regime soviético da filosofia do materialismo dialético, pre- tensamente a “visão de mundo científica da classe trabalhadora”. Apesar do materialismo dialético reconhecer ser uma ideologia, não é a ideologia que proclama ser. Não motivou, mas legitimou atos políticos; não se de- veria, assim, acreditar nela, mas ritualmente encená-la. Sua reivindicação de que era uma “ideologia científica” e, consequentemente, a “reflexão correta” das circunstâncias sociais excluía a possibilidade que existisse uma ideologia “normal” na sociedade soviética, já que ela “refletiria” a realidade social de uma maneira “errada” etc. Perde-se, por conseqüência, inteiramente o fio da meada ao se tratar o infame diamat como um sistema filosófico genuíno. Ele funcionava, na verdade, como o instrumento de legitimação do poder que deveria ser ritualmente encenado e, como tal, é melhor colocá-lo na densa teia de relações de poder. Emblemático disso são os diferentes destinos de I. Iljenkov e P. Losev, quase protótipos de filósofos russos durante o socialismo. Losev foi o autor do último livro publicado na URSS (em 1929) a rejeitar abertamente o marxismo, que descartava como “óbvia perda de tempo”. No entanto, depois de uma pequena temporada na prisão, lhe foi permitido retomar sua carreira acadêmica e, durante a Segunda Guerra, voltar a dar aulas. A “fórmula” que encontrou para sobreviver foi refugiar-se na história da filosofia (estética) especializando-se numa disciplina acadêmica, onde dedicava-se ao estudo de autores gregos e romanos. Aparentemente narrando e inter- pretando o pensamento de autores antigos, especialmente Plotino e outros neoplatônicos, pôde contrabandear suas próprias teses místicas, ao mesmo tempo que, nas introduções a seus livros, macaqueava a ideologia oficial com uma citação ou duas de Khruschev ou Brezhnev. Dessa forma, foi capaz de sobreviver a todas as vicissitudes do socialismo e viveu para ver o fim do comunismo, consagrado como o decano da autêntica herança espiritual russa! Em contraste, Iljenkov, um soberbo dialético e especia- lista em Hegel, tornou-se, como marxista-leninista convicto, uma figura descolada. Por essa razão (i.e. porque escrevia de uma maneira que re- velava seu envolvimento pessoal com o que escrevia, procurando fazer do marxismo uma filosofia séria e não o equivalente a uma série de fórmulas 3 Ver: Evert van der Zweerde, Soviet historiography of philosophy, Dordrecht, Kluwer, 1997. ritualísticas de legitimação4), foi excomungado e levado ao suicídio. Será que é possível encontrar melhor demonstração de como uma ideologia efetivamente funciona? Num gesto que corresponde a um termidor pessoal, Lukács, no início dos anos trinta, refugiou-se nas águas mais especializadas da estéti- ca e da teoria literária marxista, justificando seu apoio público às políticas stalinistas com base na crítica hegeliana à bela alma. A União Soviética, inclusive todas suas dificuldades não previstas, foi o resultado da Re- volução de Outubro, portanto, ao invés de condená-la a partir da posição confortável da bela alma e, assim, manter as mãos limpas, se deveria reco- nhecer corajosamente “o cerne da encruzilhada do presente” (a fórmula de Hegel para a reconciliação pós-revolucionária). Adorno estava inteiramente justificado ao designar sarcasticamente esse Lukács como alguém que con- fundiu o barulho de suas correntes com a marcha triunfante do Espírito Universal, e, consequentemente, apoiou a “reconciliação à força” do indi- víduo e da sociedade nos países comunistas do leste europeu.5 Apesar de tudo, o destino de Lukács nos leva a confrontar o difí- cil problema da emergência do stalinismo. É até excessivamente fácil con- trastar o espírito autenticamente revolucionário do “Evento de 1917” com seu posterior termidor stalinista – o verdadeiro problema é saber “como a partir de lá chegamos aonde chegamos”. A grande tarefa, como foi enfati- zado por Alain Badiou, é de pensar a necessidade da evolução no interior do leninismo em direção ao stalinismo sem negar o tremendo potencial eman- cipador do Evento de outubro, e também sem cair no velho papo furado li- beral sobre o potencial “totalitário” da política emancipadora radical, que sugere que toda revolução leva a uma repressão pior do que a antiga. Ao mesmo tempo que se deve reconhecer que o stalinismo é inerente à lógica revolucionária leninista e não o fruto de alguma influência corruptora exter- na, como o “atraso russo” ou a postura ideológica “asiática” das massas, é necessário continuar a fazer uma análise concreta da lógica do processo político e, a todo custo, evitar usar conceitos imediatos quase-antropológi- LUA NOVA Nº 59— 2003164 4 Paradigmática é a lendária história da fracassada participação de Iljenkov num congresso mundial de filosofia realizado nos EUA em meados dos anos sessenta. Iljenkov já tinha o visto e estava pronto para pegar o avião, quando sua viagem foi cancelada porque seu texto para o congresso, “Do ponto de vista leninista”, que tinha antes apresentado aos ideólogos do Partido, não os agradou. Isso não se deu graças a seu conteúdo (inteiramente aceitável), mas simplesmente por causa de seu estilo, da maneira engajada em que foi escrito. Já a frase de abertura (“É minha avaliação pessoal que...”) era proferida num tom pouco aceitável. 5 Ver: Theodor W. Adorno, “Erpresste Versohnung,” Noten zur literatur, Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1971, p. 278. HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 165 cos ou genericamente filosóficos, como “razão instrumental”. A partir do momento que aceitamos tal postura, o stalinismo perde sua especificidade, sua dinâmica política particular, e transforma-se apenas num outro exemplo da noção geral. Exemplo disso é o famoso comentário de Heidegger, na sua Introdução à metafísica, de que o comunismo russo e o americanismo são, do ponto de vista histórico, “metafisicamente iguais”. É evidente que, no interior do marxismo ocidental, a Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, e os diversos ensaios posteriores de Horkheimer sobre a “razão instrumental” levaram à mudança fatal, de análises sociopolíticas concretas às generalizações antropofilosóficas. A transformação exige que, ao reificar a “razão instrumental”, ela mesma deixe de se basear em relações capitalistas concretas, para tornar-se, de maneira praticamente imperceptível, o “princípio” ou “fundação” quase-transcenden- tal. Junto com essa mudança, a tradição da Escola de Frankfurt evita quase inteiramente a confrontação teórica direta com o stalinismo, o que contrasta claramente com sua obsessão com o anti-semitismo fascista. As exceções a essa regra são reveladoras. O Behemoth, de Fraz Neumann, um estudo do nacional-socialismo que, da maneira bastante comum no final dos anos trin- ta e quarenta, sugere que os três grandes sistemas mundiais da época – o emergente capitalismo do New Deal, o fascismo e o stalinismo – tenderiam a levar à mesma sociedade “administrada”, burocrática e inteiramente orga- nizada. Da mesma forma, O marxismo soviético, de Herbert Marcurse, seu menos apaixonado e, talvez, pior livro, estranhamente traz uma análise neu- tra, sem nenhum engajamento claro, sobre a ideologia soviética. Finalmente, há tentativas de alguns discípulos de Habermas que, ao refletirem sobre o então fenômeno nascente da dissidência, tentaram elaborar um conceito de sociedade civil como o espaço onde apareceria a resistência ao regime comu- nista. Politicamente essas análises são interessantes, mas não oferecem uma teoria global satisfatória da especificidade do “totalitarismo” stalinista.6 A desculpa padrão, segundo a qual os autores clássicos da Escola Frankfurt não queriam se opor abertamente ao comunismo já que, ao fazerem isso, domes- ticamente estariam fazendo o jogo daqueles que eram favoráveis ao capita- lismo e à Guerra Fria, é evidentemente insuficiente. Na verdade, o ponto cen- tral não é que seu medo de servirem ao anticomunismo oficial provaria como eram secretamente pró-comunistas, mas, o oposto. Se fossem realmente colocados contra a parede para definirem sua posição na Guerra Fria, os 6 Ver, como exemplo representativo, Andrew Arato e Jean L. Cohen, Civil society and politi- cal theory, Cambridge: MIT, 1994. infinito”, em que o mais alto coincide com o mais baixo, não deixa de ser significativo que os trabalhadores soviéticos eram acordados de manhã cedo pela música tocada por amplificadores que reproduziam os primeiros acordes da Internacional. Suas palavras, “De pé, ó vítimas da fome!” passa a ter um significado irônico mais profundo: a “verdade” última do signifi- cado patético original (“Bem unidos façamos, nesta luta final, uma terra sem amos, a Internacional!”) passa a ser seu significado literal, o apelo dirigido aos trabalhadores cansados “De pé, ó vítimas da fome, comecem a trabalhar para nós, a nomenklatura do Partido!”. Se, nessa tríplice mediação silológica da História, do proletaria- do e do Partido, cada forma de mediação é a “verdade” da precedente, então o Partido, que instrumentaliza a classe trabalhadora para realizar seu fim, justificado que está na compreensão correta que teria da lógica interna do processo histórico, é a “verdade” da noção de que o Partido possibilitaria ao proletariado tomar consciência da sua missão histórica, descobrindo seu “verdadeiro” interesse. A exploração brutal da classe trabalhadora pelo Partido seria, dessa forma, a “verdade” da idéia de que por meio dela o Partido realiza sua compreensão da História. Será que isso significa que esse movimento é inexorável, que estamos lidando com uma lógica de ferro com base na qual, a partir do momento que aceitamos o ponto de partida – a pre- missa que o proletariado, devido à sua posição social, é a “classe universal” – ficamos presos, numa espécie de compulsão diabólica, a sermos conduzi- dos, no final do caminho, ao Gulag? Se isso fosse verdade, História e con- sciência de classe, apesar de (ou devido a) seu brilho intelectual, seria o texto fundador do stalinismo, e a crítica pós-moderna do livro, segundo a qual ele seria a manifestação última do essencialismo hegeliano, assim como a identificação, por parte de Althusser, do hegelianismo com o stali- nismo (a necessidade teleológica de toda a História progredir em direção à revolução proletária, momento decisivo, em que o proletariado como sujeito e objeto da História, a “classe universal” tornada consciente pelo Partido da missão inscrita em sua posição social objetiva, realiza o ato revelador de sua própria libertação) estariam inteiramente justificados. A reação violenta dos partidários do “materialismo dialético” à História e consciência de classe seria apenas uma confirmação da regra de Lucien Goldman a respeito de como uma ideologia dominante precisa necessariamente negar suas premis- sas fundamentais. Dessa perspectiva, a noção megalomaníaca, que Lukács toma emprestado de Hegel, do Partido leninista como correspondendo ao espírito da história, já que ele seria o “intelectual coletivo” do proletariado, sujeito e objeto da História, seria a “verdade” escondida por trás da LUA NOVA Nº 59— 2003168 HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 169 aparentemente mais modesta versão “objetivista” do stalinismo sobre como a atividade revolucionária estaria baseada num processo ontológico global dominado por leis dialéticas universais. E, claro, seria fácil desconstruir o conceito hegeliano da identidade do Sujeito e Objeto com base na premissa básica do desconstrutivismo de que o sujeito emerge precisamente de/como ausência de Substância (Ordem das Coisas objetiva), que há subjetividade apenas quando existe uma “rachadura no edifício do Ser”, na medida em que o universal está, de alguma maneira, “fora dos trilhos”, “é descontínuo”. Em poucas palavras, a realização completa do sujeito não só falha sempre, mas aquilo a que Lukács não prestou atenção já seria um modo de subje- tividade “imperfeita”, sujeito frustrado e, efetivamente, o próprio sujeito. A versão “objetivista” stalinista seria, portanto, por razões estritamente filosó- ficas, a “verdade” de História e consciência de classe. Como, por definição, o sujeito sempre falharia, sua completa realização como Sujeito e Objeto da História necessariamente levaria ao seu próprio cancelamento, sua auto- objetivação como instrumento da História. Indo mais além, seria fácil de defender, contra esse impasse hegelo-stalinista, a posição pós-moderna de Laclau, de que a contingência radical seria o próprio terreno da subjetivi- dade (política). Universais políticos deveriam ser entendidos como con- ceitos “vazios”, a ligação entre eles e o conteúdo particular que os hegemo- niza devendo ser buscada naquilo que envolve a disputa ideológica, por sua vez, inteiramente contingente. O que equivale a dizer que o sujeito político tem sua missão universal inscrita na sua condição social “objetiva”. Mas é isso que História e consciência de classe realmente su- gere? Será que se pode deixar de prestar atenção a Lukács em razão dele ser um defensor do argumento pseudo-hegeliano de que o proletariado seria o Sujeito e Objeto da História? Voltemos ao contexto político concre- to de História e consciência de classe, no qual Lukács agia como um rev- olucionário engajado. Colocando as coisas em termos crus e simplistas, a escolha, para as forças revolucionárias na Rússia de 1917, em que a bur- guesia era incapaz de levar a cabo a revolução democrática, colocava-se nos seguintes termos. Por um lado, havia a postura menchevique de obe- decer à lógica “do desenvolvimento das etapas objetivas”: realizando primeiro a revolução democrática, depois a revolução proletária. Assim, no remoinho de 1917, os partidos radicais, ao invés de capitalizar a desinte- gração progressiva do aparato de Estado e construir, com base no descon- tentamento popular generalizado, uma alternativa revolucionária, deveriam resistir à tentação de empurrar o movimento longe demais, sendo presu- mivelmente melhor aliar-se com elementos democráticos burgueses a fim de “amadurecer” a situação revolucionária. Desse ponto de vista, a tomada de poder por parte de socialistas em 1917, quando a situação ainda não estava “madura”, levaria à volta ao terror primitivo... (Apesar de hoje o temor das consequências catastróficas de um levante “prematuro” poder parecer antecipar o Stalinismo, a ideologia do stalinismo leva, de fato, a um retorno a essa lógica “objetivista” dos estágios necessários de desenvolvi- mento.) Por outro lado, a estratégia leninista era de antecipar-se, lançando- se por inteiro no paradoxo da situação, aproveitando as oportunidades e intervindo mesmo quando as condições eram “prematuras”, com a aposta que a própria intervenção “prematura” mudaria a relação de forças “objetivas”, dentro da qual a situação inicialmente parecia ser “prematu- ra”. Isto é, ela minaria o próprio padrão de referência, que nos informa que a situação era “prematura”. Nessa linha, é preciso tomar cuidado para não perder o fio da meada: não é que Lenin, diferentemente dos mencheviques e dos céticos no interior do Partido Bolchevique, acreditasse que a complexa situação de 1917, i.e., a crescente insatisfação das massas com as políticas irresolutas do governo provisório, oferecesse uma chance única de “pular” uma fase (a revolução democrática burguesa), ou de “condensar” os dois estágios con- secutivos necessários (a revolução democrático burguesa e a revolução pro- letária) num só. Tal raciocínio mantém a mesma lógica objetiva “reificada” dos “estágios necessários de desenvolvimento”, mas aceita que existiria um ritmo diferente de evolução em variadas circunstâncias concretas (i.e., em alguns países, o segundo estágio poderia suceder imediatamente ao primeiro). O argumento de Lênin é muito mais forte. Em última instância, não há nenhuma lógica objetiva dos “estágios de desenvolvimento necessários”, já que “complicações” aparecem na intricada textura das situ- ações concretas e/ou os resultados não antecipados de intervenções “subje- tivas” sempre bagunçam sua evolução normal. Como Lenin gostava de observar, o colonialismo e a superexploração das massas na Ásia, África e América Latina afeta e “desloca” radicalmente a luta de classes “normal” nos países capitalistas avançados. Falar de “luta de classes” sem levar em conta o colonialismo é uma abstração vazia, que, quando se traduz em política concreta, pode apenas resultar na aceitação do papel “civilizador” do colonialismo. Portanto, ao subordinar a luta anticolonialista das massas asiáticas à “verdadeira” luta de classes nos Estados capitalistas avançados, a burguesia passaria a definir de facto os termos da luta de classes... (Mais uma vez, aqui se pode notar uma proximidade não esperada com a idéia althusseriana da “sobredeterminação”. Não há nenhuma regra última que LUA NOVA Nº 59— 2003170 HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 173 da classe média gerados pela crise econômica e as mudanças sociais. O problema com essa explicação é que ela não percebe como está implícita nela uma auto-referência circular. Sim, os nazistas certamente manipu- laram medos e ansiedades, todavia, esses medos e ansiedades refletiam, de antemão, uma certa perspectiva ideológica e não correspondiam a fatos pré-ideológicos. Em outras palavras, a ideologia nazista ela mesmo tam- bém gerou “ansiedades e medos”, para a qual propôs soluções. Podemos agora voltar para nosso “silogismo” triplo e procurar descobrir onde encontra-se seu erro: na própria oposição entre as suas duas primeiras formas. Claro que Lukács opõe-se ao “espontaneísmo”, que defende a organização autônoma das massas trabalhadoras em movimentos de base contra a ditadura imposta por burocratas do Partido. Mas ele tam- bém opõe-se ao conceito pseudoleninista (na verdade, de Kaustky) de que a classe trabalhadora “empírica” pode, deixada a ela mesma, apenas atin- gir o nível sindicalista de consciência, e que a única maneira dela passar a ser o sujeito revolucionário é importando sua consciência por meio de int- electuais que, depois de compreenderem “cientificamente” as necessidades “objetivas” da passagem do capitalismo para o socialismo, “esclarecem a classe trabalhadora da missão implícita em sua posição social objetiva”. No entanto, é aqui que encontramos a abusiva “identidade dos opostos” dialética na sua forma mais pura. O problema com essa oposição não é que os dois pólos estão muito cruamente opostos e que a verdade se encontraria em algum lugar presente entre eles, na “mediação dialética” (a consciência de classe que surgiria da “interação” entre a consciência espontânea da classe trabalhadora e o trabalho educativo do Partido). Na verdade, o prob- lema está na idéia de que a classe trabalhadora tem potencialmente a capacidade de atingir a consciência de classe adequada (e, conseqüente- mente, que o Partido apenas desempenha um papel menor, “maiêutico”, de possibilitar aos trabalhadores empíricos realizarem seu potencial), já que, assim, se legitima o exercício da ditadura do Partido sobre os “trabal- hadores, baseada na sua compreensão correta de quais são seus verdadeiros potenciais e/ou seus interesses a longo prazo”. Em poucas palavras, Lukács está apenas aplicando à oposição falsa entre “espontaneísmo” e dominação externa do Partido a identificação especulativa de Hegel dos “potenciais internos” de um indivíduo na sua relação com seus educadores. Dizer que o indivíduo precisa possuir “potencial próprio” para se tornar um grande músico equivale a dizer que esses potenciais devem estar, de antemão, pre- sentes no educador que, por meio de influência externa, estimulará o indi- víduo a realizar seu potencial. O paradoxo, então, é que quanto mais insistimos em como uma postura revolucionária traduz a verdadeira “natureza” da classe traba- lhadora, mais somos levados a exercer pressão externa sobre a classe tra- balhadora “empírica”, a fim de que ela realize seu potencial. Em outras palavras, a “verdade” sobre a identidade imediata dos dois primeiros opos- tos é, como vimos, a terceira forma, a mediação stalinista. Por quê? Porque essa identidade imediata exclui qualquer espaço para o ato propriamente dito. Se a consciência de classe aparece “espontaneamente”, como a rea- lização do potencial interno presente na própria situação objetiva da classe trabalhadora, nenhum ato ocorreria, a não ser a conversão puramente for- mal do em-si para o para-si. O que corresponde ao gesto de descortinar o que sempre esteve lá. Se a consciência de classe propriamente revolu- cionária deve ser “importada” pelo Partido, então nos restaria a presença de intelectuais “neutros”, que compreenderiam a necessidade histórica “obje- tiva” (sem intervir diretamente nela). Conseqüentemente, a utilização da classe trabalhadora, manipulada de maneira instrumental, como ferramen- ta para realizar a necessidade já presente na sua situação, não deixaria ne- nhum espaço para o ato propriamente dito. Hoje em dia, época do triunfo mundial da democracia, quando ninguém de esquerda (com exceções notáveis, como a de Alain Badiou) ousa questionar as premissas da democracia política, é mais importante do que nunca ter em mente o comentário de Lukács, proferido na sua polêmi- ca contra a crítica de Rosa Luxemburgo a Lenin, de como a atitude ver- dadeiramente revolucionária de aceitar a contingência radical da Au- genblick não deveria levar também à aceitação da oposição padrão entre a “democracia”, a “ditadura” ou o “terror”. Se deixarmos de lado a oposição entre o universalismo liberal-democrático e o fundamentalismo étnico/reli- gioso, para o qual a mídia insiste em chamar a atenção, o primeiro passo é reconhecer a existência do que se pode chamar de “fundamentalismo democrático”: a ontologização da Democracia numa referência universal despolitizada que não deve ser (re)negociada com base em disputas políti- co-ideológicas pela hegemonia. A democracia como forma de política estatal é mesmo inerente- mente “popperiana”. O critério último da democracia está na “falseabili- dade” do regime, i.e. que um procedimento público claramente definido (o voto popular) pode determinar se ele perdeu legitimidade e deve ser subs- tituído por uma nova força política. O ponto não é tanto a “justiça” do pro- cedimento, mas o fato de que todos os envolvidos aceitam antecipada- mente, e sem dar margem a dúvidas, como ele funcionará, independente- LUA NOVA Nº 59— 2003174 HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 175 mente da sua “justiça”. No procedimento padrão de chantagem ideológica, os defensores da democracia alegam que, a partir do momento que aban- donamos essa característica, entramos numa esfera “totalitária”, em que o regime “não é falsificável”, i.e., ele evita a situação de “falsificação” unívo- ca. Independentemente do que acontecer, mesmo que milhares se mani- festem contra o regime, ele continuará a insistir que é legítimo, que repre- senta os verdadeiros interesses do povo e que o “verdadeiro” povo o apóia... Deveríamos, aqui, rejeitar essa chantagem (como Lukács faz em relação a Rosa Luxemburgo). Não há nenhuma “regra (procedimento) democrático” que estamos, de antemão, proibidos de violar. A política re- volucionária não diz respeito a “opiniões”, mas à verdade que faz com que freqüentemente tenha-se que não levar em conta a “opinião da maioria” e impor a vontade revolucionária sobre ela. Se, então, a principal tarefa da esquerda atual for, afinal de con- tas, fazer a passagem de História e consciência de classe a Dialética do esclarecimento, mas na direção oposta do que é normalmente imaginado? A questão não é de “aprofundar” Lukács de acordo com as “exigências dos novos tempos” (o grande slogan de todo o revisionismo oportunista, incluindo o atual Novo Trabalhismo), mas de repetir o Evento em novas condições. Somos ainda capazes de nos imaginar num momento histórico onde termos como “traidor revisionista” ainda não faziam parte do mantra stalinista, mas expressavam uma postura verdadeiramente engajada? Em outras palavras, a questão a ser levantada hoje sobre o Evento único do Lukács marxista dos primeiros tempos não é: “Como esse trabalho fica em relação à constelação atual? Ele ainda está vivo?”, mas, ao contrário, o de parafrasear a conhecida inversão de Adorno da insolente pergunta his- toricista de Croce sobre “o que está vivo e o que está morto na dialética de Hegel” (o título de seu principal trabalho)7: como é que nós nos encon- tramos diante de Lukács? Ainda somos capazes de realizar o ato descrito por Lukács? Qual ator social pode, com base em seu radical deslocamen- to, realizá-lo hoje em dia? SLAVOJ ZIZEK é pesquisador da Universidade de Liubliana (Eslovênia), e autor de vários livros de filosofia, política e psicanálise. 7 Ver: Adorno, Drei Studien zu Hegel, Frankfurt: Suhrkamp, 1963, p. 13.
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