Baixe Dialética da dependência e outras Resumos em PDF para Sociologia, somente na Docsity! MIA> Biblioteca> Marini > Novidades Dialética da Dependência Ruy Mauro Marini 1973 Primeira edição: Ensaio datado de 1973. No mesmo ano o autor escreveu um texto complementar, à guisa de postscriptum, segundo ele "para esclarecer algumas questões e desfazer certos equívocos que o texto tem suscitado." Tradução: Marcelo Carcanholo, Universidade Federal de Uberlândia — MG. Postscriptum traduzido por Carlos Eduardo Martins, Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, RJ. Fonte: Editora Era, México, 1990, 10a edição (Ia edição, 1973). O postscriptum conforme: Revista Latinoamericana de Ciências Sociales, Flacso, (Santiago de Chile), n° 5, junho 1973. Versão digitalizada conforme publicado em "Ruy Mauro Marini: Vida e Obra", Editora Expressão Popular, 2005. Orgs. Roberta Traspadini e João Pedro Stedile. Este documento encontrase em www.centrovictormeyer.org.br Transcrição: Diego Grossi HTML: Fernando A. S. Araújo Sumário 1. A integração ao mercado mundial 2. O segredo da troca desigual 3. A superexploração do trabalho 4. O ciclo do capital na economia dependente 5. O processo de industrialização 6. O novo anel da espiral 7. Postscriptum [...] o comércio exterior, quando se limita a repor os elementos (também enquanto a seu valor), não faz mais do que deslocar as contradições para uma esfera mais extensa, abrindo para elas um campo maior de atuação. Marx, O Capital Acelerar a acumulação mediante um desenvolvimento superior da capacidade produtiva do trabalho e acelerála por meio de uma maior exploração do trabalhador, são dois procedimentos totalmente distintos. Marx, O Capital Em sua análise da dependência latinoamericana, os pesquisadores marxistas incorreram, geralmente, em dois tipos de desvios: a substituição do fato concreto pelo conceito abstrato, ou a adulteração do conceito em nome de uma realidade rebelde para aceitálo em sua formulação pura. No primeiro caso, o resultado tem sido os estudos marxistas chamados de ortodoxos, nos quais a dinâmica dos processos estudados se volta para uma formalização que é incapaz de reconstruíla no âmbito da exposição, e nos que a relação entre o concreto e o abstrato se rompe, para dar lugar a descrições empíricas que correm paralelamente ao discurso teórico, sem fundirse com ele; isso tem ocorrido, sobretudo, no campo da história Econômica. O segundo tipo de desvio tem sido mais frequente no campo da sociologia, no qual, frente à dificuldade de adequar a uma realidade categorias que não foram desenhadas especificamente para ela, os estudiosos de formação marxista recorrem simultaneamente a outros enfoques metodológicos e teóricos; a consequência necessária desse procedimento é o ecletismo, a falta de rigor conceituai e metodológico e um pretenso enriquecimento do marxismo, que é na realidade sua negação. Esses desvios nascem de uma dificuldade real: frente ao parâmetro do modo de produção capitalista puro, a economia latinoamericana apresenta peculiaridades, que às vezes se apresentam como insuficiências e outras — nem sempre distinguíveis facilmente das primeiras — como deformações. Não é acidental portanto a recorrência nos estudos sobre a América Latina a noção de "précapitalismo". O que deveria ser dito é que, ainda quando se trate realmente de um desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas, essa noção se refere a aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e seu funcionamento, não poderá desenvolverse jamais da mesma forma como se desenvolvem as economias capitalistas chamadas de avançadas. É por isso que, mais do que um précapitalismo, o que se tem é um capitalismo sui generis, que só adquire sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e principalmente, em nível internacional. Isso é verdade, sobretudo, quando nos referimos ao moderno capitalismo industrial latinoamericano, tal como se tem constituído nas duas últimas décadas. Mas, em seu aspecto mais geral, a proposição é válida também para o período imediatamente precedente e ainda para a etapa da economia exportadora. É óbvio que, no último caso, a insuficiência prevalece ainda sobre a distorção, mas se desejamos entender como uma se converteu na outra é à luz desta que devemos estudar aquela. Em outros termos, é o conhecimento da forma particular que acabou por adotar o capitalismo dependente latinoamericano o que ilumina o estudo de sua gestação e permite conhecer analiticamente as tendências que industrial supõe uma grande disponibilidade de produtos agrícolas, que permita a especialização de parte da sociedade na atividade especificamente industrial.(9) No caso da industrialização europeia, o recurso à simples produção agrícola interna teria bloqueado a elevada especialização produtiva que a grande indústria tornava possível. O forte incremento da classe operária industrial e, em geral, da população urbana ocupada na indústria e nos serviços, que se verifica nos países industriais no século passado, não poderia ter acontecido se estes não contassem com os meios de subsistência de origem agropecuária, proporcionados de forma considerável pelos países latinoamericanos. Isso foi o que permitiu aprofundar a divisão do trabalho e especializar os países industriais como produtores mundiais de manufaturas. Mas não se reduziu a isso a função cumprida pela América Latina no desenvolvimento do capitalismo: à sua capacidade para criar uma oferta mundial de alimentos, que aparece como condição necessária de sua inserção na economia internacional capitalista, prontamente será agregada a contribuição para a formação de um mercado de matérias primas industriais, cuja importância cresce em função do mesmo desenvolvimento industrial.(10) O crescimento da classe trabalhadora nos países centrais e a elevação ainda mais notável de sua produtividade, que resultam do surgimento da grande indústria, levaram a que a massa de matérias primas voltada para o processo de produção aumentasse em maior proporção.(11) Essa função, que chegará mais tarde a sua plenitude, é também a que se revelará como a mais duradoura para a América Latina, mantendo toda sua importância mesmo depois que a divisão internacional do trabalho tenha alcançado em novo estágio. O que importa considerar aqui é que as funções que cumpre a América Latina na economia capitalista mundial transcendem a mera resposta aos requisitos físicos induzidos pela acumulação nos países industriais. Mais além de facilitar o crescimento quantitativo destes, a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção de maisvalia absoluta para a de maisvalia relativa, ou seja, que a acumulação passe a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador. No entanto, o desenvolvimento da produção latinoamericana, que permite à região coadjuvar com essa mudança qualitativa nos países centrais, darseá fundamentalmente com base em uma maior exploração do trabalhador. É esse caráter contraditório da dependência latinoamericana, que determina as relações de produção no conjunto do sistema capitalista, o que deve reter nossa atenção. 2. O segredo da troca desigual A inserção da América Latina na economia capitalista responde às exigências da passagem para a produção de maisvalia relativa nos países industriais. Esta é entendida como uma forma de exploração do trabalho assalariado que, fundamentalmente com base na transformação das condições técnicas de produção, resulta da desvalorização real da força de trabalho. Sem aprofundar a questão, é conveniente fazer aqui algumas precisões que se relacionam com nosso tema. Essencialmente, tratase de dissipar a confusão que se costuma estabelecer entre o conceito de maisvalia relativa e o de produtividade. De fato, se bem constitui a condição por excelência da maisvalia relativa, uma maior capacidade produtiva do trabalho não assegura por si só um aumento da maisvalía relativa. Ao aumentar a produtividade, o trabalhador só cria mais produtos no mesmo tempo, mas não mais valor; é justamente esse fato o que leva o capitalista individual a procurar o aumento de produtividade, já que isso permite reduzir o valor individual de sua mercadoria, em relação ao valor que as condições gerais de produção lhe atribuem, obtendo assim uma maisvalia superior à de seus competidores — ou seja, uma maisvalia extraordinária. Dessa forma, essa maisvalia extraordinária altera a repartição geral da maisvalia entre os diversos capitalistas, ao traduzirse em lucro extraordinário, mas não modifica o grau de exploração do trabalho na economia ou no setor considerado, ou seja, não incide na taxa de mais valia. Se o procedimento técnico que permitiu o aumento de produtividade se generaliza para as demais empresas e, por isso, torna uniforme a taxa de produtividade, isso tampouco acarreta no aumento da taxa de mais valia: será elevada apenas a massa de produtos, sem fazer variar seu valor, ou, o que é o mesmo, o valor social da unidade de produto será reduzido em termos proporcionais ao aumento da produtividade do trabalho. A consequência seria, então,não o incremento da maisvalia, mas na verdade a sua diminuição. Isso se deve ao fato de que a determinação da taxa de maisvalia não passa pela produtividade do trabalho em si, mas pelo grau de exploração da força de trabalho, ou seja, a relação entre o tempo de trabalho excedente (em que o operário produz maisvalia) e o tempo de trabalho necessário (em que o operário reproduz o valor de sua força de trabalho, isto é, o equivalente a seu salário).(12) Só a alteração dessa proporção, em um sentido favorável ao capitalista, ou seja, mediante o aumento do trabalho excedente sobre o necessário, pode modificar a taxa de maisvalia. Para isso, a redução do valor social das mercadorias deve incidir nos bens necessários à reprodução da força de trabalho, os benssalário. A maisvalia relativa está ligada indissoluvelmente, portanto, à desvalorização dos bens salário, para o que contribui, em geral, mas não necessariamente, a produtividade do trabalho.(13) Esta digressão era indispensável se desejássemos entender bem porque a inserção da América Latina no mercado mundial contribuiu para desenvolver o modo de produção especificamente capitalista, que se baseia na maisvalia relativa. Já mencionamos que uma das funções que lhe foi atribuída, no marco da divisão internacional do trabalho, foi a de prover os países industriais dos alimentos exigidos pelo crescimento da classe operária, em particular, e da população urbana, em geral, que ali se dava. A oferta mundial de alimentos, que a América Latina contribuiu para criar, e que alcançou seu auge na segunda metade do século 19, será um elemento decisivo para que os países industriais confiem ao comércio exterior a atenção de suas necessidade de meios de subsistência.(14) O efeito dessa oferta (ampliado pela depressão de preços dos produtos primários no mercado mundial, tema a que voltaremos adiante) será o de reduzir o valor real da força de trabalho nos países industriais, permitindo assim que o incremento da produtividade se traduza ali em taxas de maisvalia cada vez mais elevadas. Em outros termos, mediante a incorporação ao mercado mundial de benssalário, a América Latina desempenha um papel significativo no aumento da maisvalia relativa nos países industriais. Antes de analisar o outro lado da moeda, isto é, as condições internas de produção que permitirão à América Latina cumprir essa função, cabe indicar que não é só no nível de sua própria economia que a dependência latinoamericana se revela contraditória: a participação da América Latina no progresso do modo de produção capitalista nos países industriais será por sua vez contraditória. Isso se deve a que, como assinalamos antes, o aumento da capacidade produtiva do trabalho acarreta um consumo mais que proporcional de matérias primas. Na medida em que essa maior produtividade é acompanhada efetivamente de uma maior maisvalia relativa, isso significa que cai o valor do capital variável em relação ao do capital constante (que inclui as matérias primas), ou seja, que aumenta a composiçãovalor do capital. Assim sendo, o que é apropriado pelo capitalista não é diretamente a maísvalia produzida, mas a parte desta que lhe corresponde sob a forma de lucro. Como a taxa de lucro não pode ser fixada apenas em relação ao capital variável, mas sobre o total do capital adiantado no processo de produção, isto é, salários, instalações, maquinário, matérias primas etc, o resultado do aumento da maisvalia tende a ser — sempre que implique, ainda que seja em termos relativos, uma elevação simultânea do valor do capital constante empregado para produzila — uma queda da taxa de lucro. Essa contradição, crucial para a acumulação capitalista, é contraposta por diversos procedimentos que, desde um ponto de vista estritamente sobretudo em nível da concorrência entre nações industriais, e menos entre as que produzem bens primários, já que é entre as primeiras que as leis capitalistas da troca são exercidas de maneira plena; isso não quer dizer que não se verifiquem também entre estas últimas, principalmente quando se desenvolvem ali as relações capitalistas de produção. No segundo caso — transações entre nações que trocam distintas classes de mercadorias, como manufaturas e matérias primas — o mero fato de que umas produzam bens que as outras não produzem, ou não o fazem com a mesma facilidade, permite que as primeiras iludam a lei do valor, isto é, vendam seus produtos a preços superiores a seu valor, configurando assim uma troca desigual. Isso implica que as nações desfavorecidas devem ceder gratuitamente parte do valor que produzem, e que essa cessão ou transferência seja acentuada em favor daquele país que lhes venda mercadorias a um preço de produção mais baixo, em virtude de sua maior produtividade. Neste último caso, a transferência de valor é dupla, ainda que não necessariamente apareça assim para a nação que transfere valor, já que seus diferentes provedores podem vender todos a um mesmo preço, sem prejuízo de que os lucros se distribuam desigualmente entre eles e que a maior parte do valor cedido se concentre em mãos do país de produtividade mais elevada. Frente a esses mecanismos de transferência de valor, baseados seja na produtividade, seja no monopólio de produção, podemos identificar — sempre no nível das relações internacionais de mercado — um mecanismo de compensação. Tratase do recurso ao incremento de valor trocado, por parte da nação desfavorecida: sem impedir a transferência operada pelos mecanismos já descritos, isso permite neutralizála total ou parcialmente mediante o aumento do valor realizado. Esse mecanismo de compensação pode ser verificado tanto no plano da troca de produtos similares quanto de produtos originados de diferentes esferas de produção. Preocupamonos aqui apenas com o segundo caso. O que importa assinalar aqui é que, para aumentar a massa de valor produzida, o capitalista deve necessariamente lançar mão de uma maior exploração da força de trabalho, seja através do aumento de sua intensidade, seja mediante a prolongação da jornada de trabalho, seja finalmente combinando os dois procedimentos. A rigor, só o primeiro — o aumento da intensidade do trabalho — se contrapõe realmente às desvantagens resultantes de uma menor produtividade do trabalho, já que permite a criação de mais valor no mesmo tempo de trabalho. Factualmente, todos contribuem para aumentar a massa de valor realizada e, por isso, a quantidade de dinheiro obtida através da troca. Isso é o que explica, neste plano da análise, que a oferta mundial de matérias primas e alimentos aumente à medida que se acentua a margem entre seus preços de mercado e o valor real da produção.(18) O que aparece claramente, portanto, é que as nações desfavorecidas pela troca desigual não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar a perda de renda gerada pelo comércio internacional por meio do recurso de uma maior exploração do trabalhador. Chegamos assim a um ponto em que já não nos basta continuar trabalhando simplesmente a noção de troca entre nações, mas devemos encarar o fato de que, no marco dessa troca, a apropriação de valor realizado encobre a apropriação de uma maisvalia que é gerada mediante a exploração do trabalho no interior de cada nação. Sob esse ângulo, a transferência de valor é uma transferência de maisvalia, que se apresenta, desde o ponto de vista do capitalista que opera na nação desfavorecida, como uma queda da taxa de maisvalia e por isso da taxa de lucro. Assim, a contrapartida do processo mediante o qual a América Latina contribuiu para incrementar a taxa de maisvalia e a taxa de lucro nos países industriais implicou para ela efeitos rigorosamente opostos. E o que aparecia como um mecanismo de compensação no nível de mercado é de fato um mecanismo que opera em nível da produção interna. É para essa esfera que se deve deslocar, portanto, o enfoque de nossa análise. 3. A superexploração do trabalho Vimos que o problema colocado pela troca desigual para a América Latina não é precisamente o de se contrapor à transferência de valor que implica, mas compensar a perda de maisvalia, e que, incapaz de impedila no nível das relações de mercado, a reação da economia dependente é compensála no plano da produção interna. O aumento da intensidade do trabalho aparece, nessa perspectiva, como um aumento da maisvalia, obtido através de uma maior exploração do trabalhador e não do incremento de sua capacidade produtiva. O mesmo se poderia dizer da prolongação da jornada de trabalho, isto é, do aumento da maisvalia absoluta na sua forma clássica; diferentemente do primeiro, tratase aqui de aumentar simplesmente o tempo de trabalho excedente, que é aquele em que o operário continua produzindo depois de criar um valor equivalente ao dos meios de subsistência para seu próprio consumo. Devese assinalar, finalmente, um terceiro procedimento, que consiste em reduzir o consumo do operário mais além do seu limite normal, pelo qual "o fundo necessário de consumo do operário se converte de fato, dentro de certos limites, em um fundo de acumulação de capital", implicando assim em um modo específico de aumentar o tempo de trabalho excedente.(19) Precisemos aqui que a utilização de categorias que se referem à apropriação do trabalho excedente no marco de relações capitalistas de produção não implica o suposto de que a economia exportadora latino americana se baseia já na produção capitalista. Recorremos a essas categorias no espírito das observações metodológicas que avançamos ao iniciar este trabalho, ou seja, porque permitem caracterizar melhor os fenómenos que pretendemos estudar e também porque indicam a direção para a qual estes tendem. Por outra parte, não é a rigor necessário que exista a troca desigual para que comecem a operar os mecanismos de extração de maisvalia mencionados; o simples fato da vinculação ao mercado mundial, e a conversão conseguinte da produção de valores de uso em produção de valores de troca que isso acarreta, tem como resultado imediato desatar um afã por lucro que se torna tanto mais desenfreado quanto mais atrasado é o modo de produção existente. Como observa Marx, "[...] tão logo como os povos cujo regime de produção vinha se desenvolvendo nas formas primitivas de escravidão, relações de vassalagem etc, se vêem atraídos ao mercado mundial, onde impera o regime capitalista de produção e onde é imposto a tudo o interesse de dar vazão aos produtos para o estrangeiro, os tormentos bárbaros da escravidão, da servidão da gleba etc, se vêem acrescentados pelos tormentos civilizados do trabalho excedente".(20) O efeito da troca desigual é — à medida que coloca obstáculos a sua plena satisfação — o de exacerbar esse afã por lucro e aguçar portanto os métodos de extração de trabalho excedente. Pois bem, os três mecanismos identificados — a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho — configuram um modo de produção fundado exclusivamente na maior exploração do trabalhador, e não no desenvolvimento de sua capacidade produtiva. Isso é condizente com o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas na economia latinoamericana, mas também com os tipos de atividades que ali se realizam. De fato, mais que na indústria fabril, na qual um aumento de trabalho implica pelo menos um maior gasto de matérias primas, na indústria extrativa e na agricultura o efeito do aumento do trabalho sobre os elementos do capital constante são muito menos sensíveis, sendo possível, pela simples ação do homem sobre a natureza, aumentar a riqueza produzida sem um capital adicional.(21) Entendese que, nessas circunstâncias, a atividade produtiva baseiase sobretudo no uso extensivo e intensivo da força de trabalho: isso permite baixar a composiçãovalor do capital, o que, aliado à intensificação do grau de europeia, além de favorecer uma política no sentido de suprimir a escravidão. Recordemos que uma parte importante da população escrava encontravase na decadente zona açucareira do Nordeste e que o desenvolvimento do capitalismo agrário no Sul impunha sua liberação, a fim de constituir um mercado livre de trabalho. A criação desse mercado, com a lei da abolição da escravatura em 1888, que culminava uma série de medidas graduais nessa direção (como a condição de homem livre assegurada aos filhos de escravos etc), constitui um fenômeno dos mais interessantes; por um lado, definiase como uma medida extremamente radical, que liquidava com as bases da sociedade imperial (a monarquia sobreviverá pouco mais de um ano à lei de 1888) e chegava inclusive a negar qualquer tipo de indenização aos antigos proprietários de escravos; por outra parte, buscava compensar o impacto de seu efeito, por meio de medidas destinadas a atar o trabalhador à terra (a inclusão de um artigo no código civil que vinculava à pessoa as dívidas contraídas; o sistema de "barracão", verdadeiro monopólio do comércio de bens de consumo exercido pelo latifundiário no interior da fazenda etc.) e da outorga de créditos generosos aos proprietários afetados. O sistema misto de servidão e de trabalho assalariado que se estabelece no Brasil, ao se desenvolver a economia de exportação para o mercado mundial, é uma das vias pelas quais a América Latina chega ao capitalismo. Observemos que a forma que adotam as relações de produção nesse caso não se diferencia muito do regime de trabalho que se estabelece, por exemplo, nas minas chilenas de salitre, cujo "sistema de fichas" equivale ao "barracão". Em outras situações, que ocorrem sobretudo no processo de subordinação do interior às zonas de exportação, as relações de exploração podem se apresentar mais nitidamente como relações servis, sem que isso impeça que, através da extorsão do maisproduto do trabalhador pela ação do capital comercial ou usurário, o trabalhador se veja implicado em uma exploração direta pelo capital, que tende inclusive a assumir um caráter de superexploração.(27) Entretanto, a servidão apresenta, para o capitalista, o inconveniente de que não lhe permite dirigir diretamente a produção, além de colocar sempre a possibilidade, ainda que teórica, de que o produtor imediato se emancipe da dependência em que o coloca o capitalista. Não é, entretanto, nosso objetivo estudar aqui as formas econômicas particulares que existiam na América Latina antes que esta ingressasse efetivamente na etapa capitalista de produção, nem as vias através das quais teve lugar a transição. O que pretendemos é tão somente fixar a pauta em que há de ser conduzido este estudo, pauta que corresponde ao movimento real da formação do capitalismo dependente: da circulação à produção, da vinculação ao mercado mundial ao impacto que isso acarreta sobre a organização interna do trabalho, para voltar então a recolocar o problema da circulação. Porque é próprio do capital criar seu próprio modo de circulação, e/ou disso depende a reprodução ampliada em escala mundial do modo de produção capitalista: [...] já que só o capital implica as condições de produção do capital, já que só ele satisfaz essas condições e busca realizálas, sua tendência geral é a de formar por todos os lugares as bases da circulação, os centros produtores desta, e assimilálas, isto é, convertêlas em centros de produção virtual ou efetivamente criadores de capital.(28) Uma vez convertida em centro produtor de capital, a América Latina deverá criar, portanto, seu próprio modo de circulação, que não pode ser o mesmo que aquele engendrado pelo capitalismo industrial e que deu lugar à dependência. Para constituir um todo complexo, há que recorrer a elementos simples e combináveis entre si, mas não iguais. Compreender a especificidade do ciclo do capital na economia dependente latinoamericana significa, portanto, iluminar o fundamento mesmo de sua dependência em relação à economia capitalista mundial. 4. O ciclo do capital na economia dependente Desenvolvendo sua economia mercantil, em função do mercado mundial, a América Latina é levada a reproduzir em seu seio as relações de produção que se encontravam na origem da formação desse mercado, e determinavam seu caráter e sua expansão.(29) Mas esse processo estava marcado por uma profunda contradição: chamada para contribuir com a acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, a América Latina teve de fazêlo mediante uma acumulação baseada na superexploração do trabalhador. E nessa contradição que se radica a essência da dependência latinoamericana. A base real sobre a qual se desenvolve são os laços que ligam a economia latinoamericana com a economia capitalista mundial. Nascida para atender as exigências da circulação capitalista, cujo eixo de articulação está constituído pelos países industriais, e centrada portanto sobre o mercado mundial, a produção latinoamericana não depende da capacidade interna de consumo para sua realização. Operase, assim, desde o ponto de vista do país dependente, a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital — a produção e a circulação de mercadorias — cujo efeito é fazer com que apareça de maneira específica na economia latinoamericana a contradição inerente à produção capitalista em geral, ou seja, a que opõe o capital ao trabalhador enquanto vendedor e comprador de mercadorias. (30) Tratase de um pontochave para entender o caráter da economia latinoamericana. Inicialmente, há de se considerar que, nos países industriais, cuja acumulação de capital se baseia na produtividade do trabalho, essa oposição que gera o duplo caráter do trabalho — produtor e consumidor —, ainda que seja efetiva, se vê, em certa medida, contraposta pela forma que assume o ciclo do capital. É assim como, em que pese o privilégio do capital pelo consumo produtivo do trabalhador (ou seja, o consumo de meios de produção que implica o processo de trabalho), e se inclina a desestimular seu consumo individual (que o trabalhador emprega para repor sua força de trabalho), o qual lhe aparece como consumo improdutivo,(31) isso se dá exclusivamente no momento da produção. Ao ser iniciada a fase de realização, essa contradição aparente entre o consumo individual dos trabalhadores e a reprodução do capital desaparece, uma vez que o dito consumo (somado ao dos capitalistas e das camadas improdutivas em geral) restabelece ao capital a forma que lhe é necessária para começar um novo ciclo, quer dizer, a forma dinheiro. O consumo individual dos trabalhadores representa, portanto, um elemento decisivo na criação de demanda para mercadorias produzidas, sendo uma das condições para que o fluxo da produção se resolva adequadamente no fluxo da circulação.(32) Por meio da mediação que se estabelece pela luta entre os operários e os patrões em torno da fixação do nível dos salários, os dois tipos de consumo do operário tendem assim a se complementar, no curso do ciclo do capital, superando a situação inicial de oposição em que se encontravam. Essa é, ademais, uma das razões pelas quais a dinâmica do sistema tende a se canalizar por meio da maisvalia relativa, que implica, em última instância, o barateamento das mercadorias que entram na composição do consumo individual do trabalhador. Na economia exportadora latinoamericana, as coisas se dão de outra maneira. Como a circulação se separa da produção e se efetua basicamente no âmbito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador não interfere na realização do produto, ainda que determine a taxa de mais valia. Em consequência, a tendência natural do sistema será a de explorar ao máximo a força de trabalho do operário, sem se preocupar em criar as condições para que este a reponha, sempre e quando seja possível substituílo pela incorporação de novos braços ao processo produtivo. O dramático para a população trabalhadora da América Latina é que essa hipótese foi cumprida amplamente: a existência de reservas de mão de obra indígena (como no México), ou os fluxos migratórios derivados do deslocamento de mão de obra europeia, provocado pelo progresso tecnológico (como na América do Sul), permitiram aumentar constantemente a massa trabalhadora, até o início do século 20. Seu resultado tem sido o de abrir livre curso para a compressão do consumo individual do operário e, portanto, para a superexploração do trabalho. correspondência entre o ritmo da acumulação e o da expansão do mercado. A possibilidade que tem o capitalista industrial de obter no exterior, a preço baixo, os alimentos necessários ao trabalhador, leva a estreitar o nexo entre a acumulação e o mercado, uma vez que aumenta a parte do consumo individual do operário dedicada à absorção de produtos manufaturados. É por isso que a produção industrial, nesse tipo de economia, concentrase basicamente nos bens de consumo popular e procura barateálos, uma vez que incidem diretamente no valor da força de trabalho e portanto — à medida que as condições em que se dá a luta entre os operários e os patrões tende a aproximar os salários desse valor na taxa de maisvalia. Vimos que essa é a razão fundamental pela qual a economia capitalista clássica deve se orientar para o aumento da produtividade do trabalho. O desenvolvimento da acumulação baseada na produtividade do trabalho tem como resultado o aumento da maisvalia e, em consequência, da demanda criada pela parte desta que não é acumulada. Em outras palavras, cresce o consumo individual das classes não produtoras, com o que se amplia a esfera da circulação que lhes corresponde. Isso não só impulsiona o crescimento da produção de bens de consumo manufaturados, em geral, como também o da produção de artigos supérfluos.(36) A circulação tende portanto a se dividir em duas esferas, de maneira similar ao que constatamos na economia latinoamericana de exportação, mas com uma diferença substancial: a expansão da esfera superior é uma consequiência da transformação das condições de produção e se torna possível à medida que, aumentando a produtividade do trabalho, a parte do consumo individual total que corresponde ao operário diminui em termos reais. A ligação existente entre as duas esferas de consumo é distendida, mas não se rompe. Outro fator contribui para impedir que a ruptura se realize: é a forma como se amplia o mercado mundial. A demanda adicional de produtos supérfluos que cria o mercado exterior é necessariamente limitada, primeiro porque, quando o comércio se efetua entre nações que produzem esses bens, o avanço de uma nação implica no retrocesso de outra, o que suscita, por parte da última, mecanismos de defesa; e depois porque, no caso da troca com os países dependentes, essa demanda se restringe às classes altas, e se vê assim constrangida pela forte concentração de renda que implica a superexploração do trabalho. Portanto, para que a produção de bens de luxo possa se expandir, esses bens têm de mudar o seu caráter, ou seja, converterse em produtos de consumo popular no interior mesmo da economia industrial. As circunstâncias que permitem elevar ali os salários reais, a partir da segunda metade do século 19, às quais não é estranha a desvalorização dos alimentos e a possibilidade de redistribuir internamente parte do excedente subtraído das nações dependentes, ajudam, na medida em que ampliam o consumo individual dos trabalhadores, a se contrapor às tendências desarticuladoras que atuam no nível da circulação. A industrialização(37) latinoamericana se dá sobre bases distintas. A compressão permanente que exercia a economia exportadora sobre o consumo individual do trabalhador não permitiu mais do que a criação de uma indústria débil, que só se ampliava quando fatores externos (como as crises comerciais, conjunturalmente, e a limitação dos excedentes da balança comercial, pelas razoes já assinaladas) fechavam parcialmente o acesso da esfera alta de consumo para o comércio de importação.(38) É a maior incidência desses fatores, como vimos, o que acelera o crescimento industrial, a partir de certo momento, e provoca a mudança qualitativa do capitalismo dependente. A industrialização latinoamericana não cria, portanto, como nas economias clássicas, sua própria demanda, mas nasce para atender a uma demanda préexistente, e se estruturará em função das exigências de mercado procedentes dos países avançados. No início da industrialização, a participação dos trabalhadores na criação da demanda não joga portanto um papel significativo na América Latina. Operando no marco de uma estrutura de mercado previamente dada, cujo nível de preços atuava no sentido de impedir o acesso do consumo popular, a indústria não tinha razões para aspirar uma situação distinta. A capacidade de demanda era, naquele momento, superior à oferta, pelo que não se apresentava ao capitalista o problema de criar mercado para suas mercadorias, mas uma situação inversa. Por outro lado, ainda quando a oferta chegue a se equilibrar com a demanda — isso não colocará de imediato para o capitalista a ampliação do mercado, levandoo antes a jogar sobre a margem entre o preço de mercado e o preço de produção, ou seja, sobre o aumento da massa de lucro em função do preço unitário do produto. Para isso, o capitalista industrial forçará, por um lado, o aumento de preços, aproveitandose da situação monopolista criada de fato pela crise do comércio mundial e reforçada pelas barreiras alfandegárias. Por outro lado, e dado que o baixo nível tecnológico faz com que o preço de produção seja determinado fundamentalmente pelos salários, o capitalista industrial valerseá do excedente de mão de obra criado pela própria economia exportadora e agravado pela crise que esta atravessa (crise que obriga o setor exportador a liberar mão de obra), para pressionar os salários no sentido descendente. Isso lhe permitirá absorver grandes massas de trabalho, o que, acentuado pela intensificação do trabalho e pela prolongação da jornada de trabalho, acelerará a concentração de capital no setor industrial. Partindo então do modo de circulação que caracterizara a economia exportadora, a economia industrial dependente reproduz, de forma específica, a acumulação de capital baseada na superexploração do trabalhador. Em consequência, reproduz também o modo de circulação que corresponde a esse tipo de acumulação, ainda que de maneira modificada: já não é a dissociação entre a produção e a circulação de mercadorias em função do mercado mundial o que opera, mas a separação entre a esfera alta e a esfera baixa da circulação no interior mesmo da economia, separação que, ao não ser contraposta pelos fatores que atuam na economia capitalista clássica, adquire um caráter muito mais radical. Dedicada à produção de bens que não entram, ou entram muito escassamente, na composição do consumo popular, a produção industrial latinoamericana é independente das condições de salário próprias dos trabalhadores; isso em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque, ao não ser um elemento essencial do consumo individual do operário, o valor das manufaturas não determina o valor da força de trabalho; não será, portanto, a desvalorização das manufaturas o que influirá na taxa de mais valia. Isso dispensa o industrial de se preocupar em aumentar a produtividade do trabalho para, fazendo baixar o valor da unidade de produto, depreciar a força de trabalho, e o leva, inversamente, a buscar o aumento da maisvalia por meio da maior exploração — intensiva e extensiva — do trabalhador, assim como a redução de salários mais além de seu limite normal. Em segundo lugar, porque a relação inversa que daí se deriva para a evolução da oferta de mercadorias e do poder de compra dos operários, isto é, o fato de que a primeira cresça à custa da redução do segundo, não cria problemas para o capitalista na esfera da circulação, uma vez que, como deixamos claro, as manufaturas não são elementos essenciais no consumo individual do operário. Dissemos anteriormente que a uma certa altura do processo, que varia segundo os países,(39) a oferta industrial coincide em linhas gerais com a demanda existente, constituída pela esfera alta da circulação. Surge então a necessidade de generalizar o consumo de manufaturas, o que corresponde àquele momento em que, na economia clássica, os bens supérfluos tiveram de se converter em bens de consumo popular. Isso leva a dois tipos de adaptações na economia industrial dependente: a ampliação do consumo das camadas médias, que é criado a partir da maisvalia não acumulada, e o esforço para aumentar a produtividade do trabalho, condição sine qua non para baratear as mercadorias. O segundo movimento tenderia, normalmente, a provocar uma mudança qualitativa na base da acumulação de capital, permitindo ao consumo individual do operário modificar sua composição e incluir bens manufaturados. Se agisse sozinho, levaria ao deslocamento do eixo da acumulação, da exploração do trabalhador para o aumento da capacidade produtiva do trabalho. Entretanto, é parcialmente neutralizado pela de trabalho produtivo em relação ao tempo total disponível para a produção, o que, na sociedade capitalista, se manifesta por meio da diminuição da população operária paralelamente ao crescimento da população que se dedica a atividades não produtivas, às que correspondem aos serviços. Essa é a forma específica que assume o desenvolvimento tecnológico em uma sociedade baseada na exploração do trabalho, mas não a forma geral do desenvolvimento tecnológico. É por isso que as recomendações que se têm feito para os países dependentes, onde se verifica uma grande disponibilidade de mão de obra, no sentido de que adotem tecnologias que incorporem mais força de trabalho, com o objetivo de defender os níveis de emprego, representam um duplo engano: levam a preconizar a opção por um menor desenvolvimento tecnológico e confundem os efeitos sociais especificamente capitalistas da técnica com a técnica em si. Além disso, essas recomendações ignoram as condições concretas em que se dá a introdução do progresso técnico nos países dependentes. Essa introdução depende, como assinalamos, menos das preferências que eles tenham e mais da dinâmica objetiva da acumulação de capital em escala mundial. Ela foi a que impulsionou a divisão internacional do trabalho a assumir uma configuração, em cujo marco foram abertos novos rumos para a difusão do progresso técnico e deuse a esta um ritmo mais acelerado. Os efeitos daí derivados para a situação dos trabalhadores nos países dependentes não poderiam diferir em essência dos que são consubstanciais a uma sociedade capitalista: redução da população produtiva e crescimento das camadas sociais não produtivas. Mas, esses efeitos teriam de aparecer modificados pelas condições de produção próprias do capitalismo dependente. É assim como, incidindo sobre uma estrutura produtiva baseada na maior exploração dos trabalhadores, o progresso técnico possibilitou ao capitalista intensificar o ritmo de trabalho do operário, elevar sua produtividade e, simultaneamente, sustentar a tendência para remunerálo em proporção inferior a seu valor real. Para isso contribuiu decisivamente a vinculação das novas técnicas de produção com setores industriais orientados para tipos de consumo que, se tendem a convertêlos em consumo popular nos países avançados, não podem fazêlo sob nenhuma hipótese nas sociedades dependentes. O abismo existente entre o nível de vida dos trabalhadores e o dos setores que alimentam a esfera alta da circulação torna inevitável que produtos como automóveis, aparelhos eletrodomésticos etc. sejam destinados necessariamente para esta última. Nessa medida, e toda vez que não representam bens que intervenham no consumo dos trabalhadores, o aumento de produtividade induzido pela técnica nesses setores de produção não poderia se traduzir em maiores lucros por meio da elevação da taxa de maisvalia, mas apenas mediante o aumento da massa de valor realizado. A difusão do progresso técnico na economia dependente seguirá, portanto, junto a uma maior exploração do trabalhador, precisamente porque a acumulação continua dependendo fundamentalmente mais do aumento da massa de valor — e portanto de maisvalia — que da taxa de maisvalia. Pois bem, ao se concentrar de maneira significativa nos setores produtores de bens supérfluos, o desenvolvimento tecnológico acabaria por colocar graves problemas de realização. O recurso utilizado para solucioná los tem sido o de fazer a intervenção do Estado (por meio da ampliação do aparato burocrático, das subvenções aos produtores e do financiamento ao consumo supérfluo), assim como fazer intervir na inflação, com o propósito de transferir poder de compra da esfera baixa para a esfera alta da circulação; isso implicou em rebaixar ainda mais os salários reais, com o objetivo de contar com excedentes suficientes para efetuar a transferência de renda. Mas, na medida em que se comprime dessa forma a capacidade de consumo dos trabalhadores, é fechada qualquer possibilidade de estímulo ao investimento tecnológico no setor de produção destinado a atender o consumo popular. Não pode ser, portanto, motivo de surpresa que, enquanto as indústrias de bens supérfluo crescem a taxas elevadas, as indústrias orientadas para o consumo de massas (as chamadas "indústrias tradicionais") tendem à estagnação e inclusive à regressão. Na medida em que se realizava, com dificuldade e a um ritmo extremamente lento, a tendência à aproximação entre as duas esferas de circulação, que se havia observado a partir de certo momento, não pode continuar se desenvolvendo. Ao contrário, o que se impõe é novamente o afastamento entre ambas as esferas, uma vez que a compressão do nível de vida das massas trabalhadoras passa a ser a condição necessária da expansão da demanda criada pelas camadas que vivem da maisvalia. A produção baseada na superexploração do trabalho voltou a engendrar assim o modo de circulação que lhe corresponde, ao mesmo tempo em que divorciava o aparato produtivo das necessidades de consumo das massas. A estratificação desse aparato no que se costuma chamar "indústrias dinâmicas" (setores produtores de bens supérfluos e de bens de capital que se destinam principalmente para estes) e "indústrias tradicionais" está refletindo a adequação da estrutura de produção à estrutura de circulação própria do capitalismo dependente. Mas não se detém aí a reaproximação do modelo industrial dependente ao da economia exportadora. A absorção do progresso técnico em condições de superexploração do trabalho acarreta a inevitável restrição do mercado interno, a que se contrapõe a necessidade de realizar massas sempre crescentes de valor (já que a acumulação depende mais da massa que da taxa de maisvalia). Essa contradição não poderia ser resolvida por meio da ampliação da esfera alta de consumo no interior da economia, além dos limites estabelecidos pela própria superexploração. Em outras palavras, não podendo estender aos trabalhadores a criação de demanda para os bens supérfluos, e se orientando antes para a compressão salarial, o que os exclui de fato desse tipo de consumo, a economia industrial dependente não só teve de contar com um imenso exército de reserva, como também se obrigou a restringir aos capitalistas e camadas médias altas a realização das mercadorias supérfluas. Isso colocará, a partir de certo momento (que se define nitidamente em meados da década de 1960), a necessidade de expansão para o exterior, isto é, de desdobrar novamente — ainda que agora a partir da base industrial — o ciclo de capital, para centrar parcialmente a circulação sobre o mercado mundial. A exportação de manufaturas, tanto de bens essenciais quanto de produtos supérfluos, convertese então na tábua de salvação de uma economia incapaz de superar os fatores desarticuladores que a afligem. Desde os projetos de integração econômica regional e subregional até o desenho de políticas agressivas de competição internacional, assistese em toda a América Latina à ressureição do modelo da velha economia exportadora. Nos últimos anos, a expressão acentuada dessas tendências no Brasil nos levou a falar de um subimperialismo.(42) Não pretendemos retomar aqui o tema, já que a caracterização do subimperialismo vai mais além da simples economia, não podendo ser levada a cabo se não recorrermos também à sociologia e à política. Limitarnosemos a indicar que, em sua dimensão mais ampla, o subimperialismo não é um fenômeno especificamente brasileiro nem corresponde a uma anomalia na evolução do capitalismo dependente. É certo que são as condições próprias da economia brasileira que lhe permitiram levar bem adiante a sua industrialização e criar inclusive uma indústria pesada, assim como as condições que caracterizam a sua sociedade política, cujas contradições têm dado origem a um Estado militarista de tipo prussiano, as que levaram o Brasil ao subimperialismo, mas não é menos certo que esse não é nada mais do que uma forma particular que assume a economia industrial que se desenvolve no marco do capitalismo dependente. Na Argentina ou em El Salvador, no México, Chile, Peru, a dialética do desenvolvimento capitalista dependente não é essencialmente distinta da que procuramos analisar aqui, em seus traços mais gerais. Utilizar essa linha de análise para estudar as formações sociais concretas da América Latina, orientar esse estudo no sentido de definir as determinações que se encontram na base da luta de classes que ali se desenvolve e abrir assim perspectivas mais claras para as forças sociais empenhadas em destruir essa formação monstruosa que é o capitalismo dependente: este é o desafio teórico que se coloca hoje em dia para os Haveria de se considerar, ademais, que a ênfase nos problemas de realização somente seria censurável caso se fizesse em detrimento do que cabe às condições em que se realiza a produção e não contribuísse para explicálas. Portanto, ao constatar o divórcio que se verifica entre produção e circulação na economia dependente (e sublinhar as formas particulares que assume esse divórcio nas distintas fases de seu desenvolvimento) se insistiu: a. no fato de que esse divórcio se gera a partir das condições peculiares que adquirem a exploração do trabalho em dita economia — as que denominei superexploração; e b. na maneira como essas condições fazem brotar, permanentemente, desde o seio mesmo da produção, os fatores que agravam o divórcio e o levam, ao se configurar a economia industrial, a desembocar em graves problemas de realização. 1. Dois momentos na economia internacional É nessa perspectiva que poderemos avançar para a elaboração de uma teoria marxista da dependência. Em meu ensaio tratei de demonstrar que é em função da acumulação de capital em escala mundial, e em particular em função de seu instrumento vital, a taxa geral de lucro, que podemos entender a formação da economia dependente. No essencial, os passos seguidos foram examinar o problema desde o ponto de vista da tendência à baixa da taxa de lucro nas economias industriais e colocálo à luz das leis que operam no comércio internacional, e que lhe dão o caráter de intercâmbio desigual. Posteriormente, o foco de atenção se desloca para os fenômenos internos da economia dependente, para prosseguir depois na linha metodológica já indicada. Dado o nível de abstração do ensaio, preocupeime tão somente, ao desenvolver o tema do intercâmbio desigual, do mercado mundial capitalista em seu estado de maturidade, isto é, submetido plenamente aos mecanismos de acumulação de capital. Convém, entretanto, indicar aqui como esses mecanismos se impõem. A diversidade do grau de desenvolvimento das forças produtivas nas economias que se integram ao mercado mundial implica diferenças significativas em suas respectivas composições orgânicas do capital, que apontam para distintas formas e graus de exploração do trabalho. A medida que o intercâmbio entre elas vai se estabilizando, tende a se cristalizar um preço comercial cujo termo de referência é, mais além de suas variações cíclicas, o valor das mercadorias produzidas. Em consequência, o grau de participação no valor global realizado na circulação internacional é maior para as economias de composição orgânica mais baixa, ou seja para as economias dependentes. Em termos estritamente econômicos, as economias industriais se defrontam com essa situação recorrendo a mecanismos que tem como resultado extremo as diferenças iniciais em que se dava o intercâmbio. E assim como lançam mão do aumento da produtividade, com o fim de rebaixar o valor individual das mercadorias em relação ao valor médio em vigor e de elevar, portanto, sua participação no montante total de valor trocado. Isso se verificada tanto entre produtores individuais de uma mesma nação quanto entre as nações competidoras. Entretanto, esse procedimento, que corresponde ao intento de burlar as leis do mercado mediante a aplicação delas mesmas, implica a elevação de sua composição orgânica e ativa a tendência à queda de sua taxa de lucro, pelas razões assinalas em meu ensaio. Como se viu, a ação das economias industriais repercute no mercado mundial no sentido de inflar a demanda de alimentos e de matérias primas, mas a resposta que lhe dá a economia exportadora é rigorosamente inversa: em vez de recorrer ao aumento da produtividade, ou mesmo fazê lo com caráter prioritário, ela se vale de um maior emprego extensivo e intensivo da força de trabalho; em consequência, baixa sua composição orgânica e aumenta o valor das mercadorias produzidas, o que faz elevar simultaneamente a maisvalia e o lucro. No plano do mercado, leva a que melhorem em seu favor os termos do intercâmbio, onde havia se estabelecido um preço comercial para os produtos primários. Obscurecida pelas flutuações cíclicas do mercado, essa tendência se mantém até a década de 1870; o crescimento das exportações latinoamericanas conduz, inclusive, a que comecem a se apresentar saldos favoráveis na balança comercial, que superam os pagamentos por conceito de amortização e juros da dívida externa, o que está indicando que o sistema de crédito concebido pelos países industriais, e que se destinava primariamente a funcionar como fundo de compensação das transações internacionais, não é suficiente para reverter a tendência. É evidente que, independentemente das demais causas que atuam no mesmo sentido e que têm a ver com a passagem do capitalismo industrial à etapa imperialista, a situação descrita contribui para motivar as exportações de capital para as economias dependentes, uma vez que os lucros são ali consideráveis. Um primeiro resultado disso é a elevação da composição orgânica do capital em ditas economias e o aumento da produtividade do trabalho, que se traduzem na baixa do valor das mercadorias que (se não houver a superexploração) deveriam conduzir à baixa da taxa de lucro. Em consequência, começam a declinar intencionalmente os termos do intercâmbio, como se indica em meu ensaio. Por outra parte, a presença crescente do capital estrangeiro no financiamento, na comercialização e, inclusive, na produção dos países dependentes, assim como nos serviços básicos, atua no sentido de transferir parte dos lucros ali obtidos para os países industriais; a partir de então, o montante do capital cedido pela economia dependente por meio das operações financeiras cresce mais rapidamente do que o saldo comercial. A transferência de lucros e, consequentemente, de maisvalia para os países industriais aponta no sentido de formação de uma taxa média de lucro em nível internacional, liberando, portanto, o intercâmbio de sua dependência estrita em relação ao valor das mercadorias; em outros termos, a importância, que, na etapa anterior, tinha o valor como regulador das transações internacionais cede progressivamente lugar à primazia do preço de produção (o custo de produção mais o lucro médio, que, como vimos, é inferior à maisvalia, no caso dos países dependentes). Somente então se pode afirmar que (apesar de seguir estorvada por fatores de ordem extraeconômica, como por exemplo, os monopólios coloniais) a economia internacional alcança sua plena maturidade e faz jogar em escala crescente os mecanismos próprios da acumulação de capital.(47) Recordemos, para evitar equívocos, que a baixa da taxa de lucro nos países dependentes, como contrapartida da elevação de sua composição orgânica, se compensa mediante os procedimentos de superexploração do trabalho, ademais das circunstâncias peculiares que favorecem, nas economias agrárias e mineiras, a alta rentabilidade do capital variável. Em consequência, a economia dependente segue expandindo suas exportações, a preços sempre mais compensadores para os países industriais (com os efeitos conhecidos na acumulação interna destes) e, simultaneamente, mantém seu atrativo para os capitais externos, o que permite dar continuidade ao processo. 2. 0 desenvolvimento capitalista e a superexploração do trabalho É nesse sentido que a economia dependente — e, por consequência, a superexploração do trabalho — aparece como uma condição necessária do capitalismo mundial, contradizendo àqueles que, como Fernando Henrique Cardoso, a entendem como um fenômeno acidental no desenvolvimento deste. A opinião de Cardoso, emitida num comentário polemico ao meu ensaio, é a de que, tendo em vista que a especificidade do capitalismo industrial reside na produção de maisvalia relativa, tudo o que se refere às formas de produção baseadas na maisvalia absoluta, por significativa que seja sua importância histórica, carece de interesse teórico. Entretanto, para Cardoso, isso não implica abandonar o estudo da economia dependente, uma vez que nesta se dá um processo simultâneo de desenvolvimento e de Entretanto, existe uma estreita interdependência entre o aumento da produtividade, a intensificação do trabalho e a duração da jornada de trabalho. O aumento da força produtiva do trabalho, ao implicar um menor gasto de força física, é o que permite aumentar a intensidade; mas o aumento da intensidade chocase com a possibilidade de estender a jornada de trabalho e pressiona para reduzi la. Inversamente, uma menor produtividade limita a possibilidade de intensificar o ritmo de trabalho e aponta para a extensão da jornada. O fato de que, nos países altamente industrializados, a elevação simultânea de produtividade e de intensidade de trabalho não se tenham traduzido desde várias décadas na redução da jornada não invalida o que se disse. Apenas revela a incapacidade da classe operária para defender seus legítimos interesses, e se traduz no esgotamento prematuro da força de trabalho, expresso na redução progressiva da vida útil do trabalhador, assim como em transtornos psicofísicos provocados pelo excesso de fadiga. Na mesma linha de raciocínio, as limitações surgidas nos países dependentes para estender ao máximo a jornada de trabalho têm obrigado o capital a recorrer ao aumento da produtividade e da intensidade de trabalho, com os efeitos conhecidos no grau de conservação e desenvolvimento desta. O que importa assinalar aqui, em primeiro lugar, é que a superexploração não corresponde a uma sobrevivência de modos primitivos de acumulação de capital, mas que é inerente a esta e cresce correlativamente ao desenvolvimento da força produtiva do trabalho. Supor o contrário equivale a admitir que o capitalismo, à medida que se aproxima de seu modelo puro, convertese em um sistema cada vez menos explorador e logra reunir as condições para solucionar indefinidamente suas contradições internas. Em segundo lugar, de acordo com o grau de desenvolvimento das economias nacionais que integram o sistema, e do que se verifica nos setores que compõem cada uma delas, a maior ou menor incidência das formas de exploração e a configuração específica que elas assumem modificam qualitativamente a maneira como ali incidem as leis de movimento do sistema e, em particular, a lei geral da acumulação do capital. E por essa razão que a chamada marginalidade social não pode ser tratada independentemente do modo como se entrelaçam nas economias dependentes o aumento da produtividade do trabalho, que deriva da importação de tecnologia, com a maior exploração do trabalhador, que esse aumento da produtividade torna possível. Não por outra razão, a marginalidade somente adquire sua plena expressão nos países latino americanos ao desenvolverse nestes a economia industrial. A tarefa fundamental da teoria marxista da dependência consiste em determinar a legalidade específica pela qual se rege a economia dependente. Isso supõe, desde logo, situar seu estudo no contexto mais amplo das leis de desenvolvimento do sistema em seu conjunto e definir os graus intermediários pelos quais essas leis se vão especificando. E assim que a simultaneidade da dependência e do desenvolvimento poderá ser entendida. O conceito de subimperialismo emerge da definição desses graus intermediários e aponta para a especificação de como incide na economia dependente a lei segundo a qual o aumento da produtividade do trabalho (e, por consequência, da composição orgânica do capital) acarreta um aumento da superexploração. É evidente que tal conceito não esgota a totalidade do problema. Como quer que seja, a exigência de especificar as leis gerais de desenvolvimento capitalista não permite, desde um ponto de vista rigorosamente científico, recorrer a generalidades como a de que a nova forma da dependência repousa na maisvalia relativa e no aumento da produtividade. E não permite porque esta é a característica geral de todo o desenvolvimento capitalista, como vimos. O problema está, portanto, em determinar o caráter que assume na economia dependente a produção de maisvalia relativa e o aumento da produtividade do trabalho. Nesse sentido, podem ser encontradas em meu ensaio indicações que, ainda que notoriamente insuficientes, permitem vislumbrar o problema de fundo que a teoria marxista da dependência está chamada a enfrentar: o fato de que as condições criadas pela superexploração do trabalho na economia dependente tendem a obstaculizar seu trânsito desde a produção da maisvalia absoluta à maisvalia relativa, enquanto forma dominante nas relações entre capital e trabalho. A gravitação desproporcional que a mais valia extraordinária assume no sistema dependente é o resultado disso e corresponde à expansão do exército industrial de reserva e ao estrangulamento relativo da capacidade de realização da produção. Mais que meros acidentes no curso do desenvolvimento dependente, ou elementos de ordem transicional, esses fenômenos são manifestações da maneira como incide na economia dependente a lei geral da acumulação de capital. Em última instância, é de novo à superexploração do trabalho que temos de nos referir para analisálos. Essas são questões substantivas de meu ensaio, que conviria detalhar e esclarecer. Elas estão reafirmando a tese central que ali se sustenta, isto é, a de que o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho. Não nos resta, nesta breve nota, senão advertir que as implicações da superexploração transcendem o plano da análise econômica e devem ser estudadas também do ponto de vista sociológico e político. É avançando nessa direção que aceleraremos o parto da teoria marxista da dependência, libertandoa das características funcionaldesenvolvimentistas que se lhe aderiram em sua gestação. Início da página Notas de rodapé: (1) Introduccion a la critica de la economia politica/1857, Uruguai, Ed. Carabella, s.d., p.44. (retornar ao texto) (2) Idem, p. 41 (retornar ao texto) (3) “Até a metade do século 19, as exportações latinoamericanas se encontram estagnadas e a balança comercial latinoamericana é deficitária; os empréstimos estrangeiros se destinam à sustentação da capacidade de importação. Ao aumentar as exportações, e, sobretudo a partir do momento em que o comércio exterior começa a gerar saldos positivos, o papel da dívida externa passa a ser o de transferir para a metrópole parte do excedente obtido na América Latina. O caso do Brasil é revelador: a partir da década de 1860, quando os saldos da balança comercial se tornam cada vez mais importantes, o serviço da dívida externa aumenta: dos 50% que representava sobre esse saldo nos anos de 1960, se eleva para 99% na década seguinte". (Nelson Werneck Sodré, Formação Histórica do Brasil. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1964). "Entre 19021913, enquanto o valor das exportações aumenta em 79,6%, a dívida externa brasileira cresce em 144,6%, e representa, em 1913, 60% do gasto público total". (J. A. BarbozaCarneiro, Situation économique et financière du Brésil: memorandum presente à la Conférence Financière Internationale. Bruxelas, setembrooutubro de 1920). (retornar ao texto) (4) Vejase, por exemplo, seu artigo "Quién es el ejemplo inmediato", Pensamiento Crítico n° 13, La Habana, 1968. (retornar ao texto) (5) Georges Canguilhem, Lo normal e lo patológico. Ed. Siglo XI Argentina, Buenos Aires, 1971, p. 60. Sobre os conceitos de homogeneidade e continuidade, vejase o capítulo III dessa obra. (retornar ao texto) (6) Vejase Celso Furtado, Formación Econômica del Brasil. Ed. Fondo de Cultura Ecomomica, México, 1962, pp. 9091. (retornar ao texto) (7) Em um trabalho que minimiza enormemente a importância do mercado mundial para o desenvolvimento do capitalismo, Paul Bairoch observa que só "a partir de 18401850 começa a verdadeira expansão do comércio exterior [da Inglaterra]; desde 1860, as exportações representam 14% da renda nacional, e é apenas o começo de uma evolução nacional que alcançará seu máximo nos anos que precedem a guerra de 19141918, quando as exportações alcançaram ao redor de 40% da renda nacional. O começo dessa expansão marca uma modificação da estrutura das atividades inglesas, como vimos no capítulo da agricultura: a partir de 18401850, a Inglaterra começará a depender cada vez mais do estrangeiro para sua subsistência": Revolución industrialy subdesarrollo, Ed. Siglo XXI, México, 1967, p. 285. Quando se trata da inserção da América Latina na economia capitalista mundial, é à Inglaterra que se deve referir, mesmo naqueles casos (como o da exportação chilena de cereais para os Estados Unidos) em que a relação não é direta. É por isso que as estatísticas mencionadas explicam a constatação de um historiador, no sentido de que "em quase todas as partes [da América Latina], os níveis de comércio internacional de 1850 não excedem em muito os de 1825" (Túlio Halperin Donghi, Historia contemporânea de América Latina. Alianza Editorial, Madrid, 1970, p.158). (retornar ao texto) a exportação de algodão passou a ser um recurso vital para aqueles Estados, a exploração intensiva do negro se converteu em fator de um sistema calculado e calculador, chegando a ocorrer casos de esgotamento da vida do trabalhador em sete anos de trabalho. Agora, já não se tratava de arrancarlhe uma certa quantidade de produtos úteis. Agora, tudo girava em torno à produção de maisvalia pela própria maisvalia. E outro tanto aconteceu com as relações de vassalagem, por exemplo, nos principados do Danúbio". Ibidem. (retornar ao texto) (21) Cf. El Capital, I, XXII, pp. 508509. (retornar ao texto) (22) "Toda variaçao na magnitude, extensiva ou intensiva, do trabalho afeta [...] o valor da força de trabalho, na medida em que acelera seu desgaste". Tradução literal de El Capital, I, XVII, II, p. 1.017, Plêiade. Cf. El Capital, I, XXVIII. (retornar ao texto) (23) Um fenômeno similar é observado na Europa, no início da produção capitalista. Basta analisar mais de perto a maneira como se realiza ali a passagem fundamental do feudalismo para o capitalismo para darse conta que a condição do trabalhador, ao sair do estado de servidão, se assemelha mais à do escravo que à do moderno operário assalariado. Cf. El Capital, I, XXVIII. (retornar ao texto) (24) Capítulo VI (inédito), op. cit., pp. 6869. (retornar ao texto) (25) El Capital, I, VIII, 5, p. 208. (retornar ao texto) (26) Cairnes, cit. em El Capital, I, VIII, 5, p. 209. (retornar ao texto) (27) É assim como Marx se refere a países "em que o trabalho não tenha ainda sido absorvido formalmente pelo capital, ainda que o operário esteja na realidade sendo explorado pelo capitalista", exemplificando com o caso da Índia, "onde o ryot trabalha como camponês independente, onde sua produção não foi ainda, portanto, absorvida pelo capital, ainda que o usurário possa ficar, sob a forma de juros, não só com seu trabalho excedente, mas inclusive também, falando em termos capitalistas, com uma parte de seu salário". El Capital, III, XIII, p. 216. (retornar ao texto) (28) Marx, Príncipes d'une critique de l'économie politique, em Oeuvres, Plêiade, II, p. 254. (retornar ao texto) (29) Já assinalamos que isto se dá inicialmente nos pontos de conexão imediata com o mercado mundial; só progressivamente, e ainda hoje de maneira desigual, o modo de produção capitalista irá subordinando o conjunto da economia. (retornar ao texto) (30) "Contradição do regime de produção capitalista: os operários como compradores de mercadorias são importantes para o mercado. Mas, como vendedores de sua mercadoria — a força de trabalho — a sociedade capitalista tende a reduzilos ao mínimo do preço." El Capital, II, XVI, III, nota. Marx indica nessa nota a intenção de tratar, na seção seguinte, a teoria do subconsumo operário, mas, como observa Maximilien Rubel (op. cit., t. II, p. 1.715), não chega a concretizála. Alguns elementos tinham sido avançados nos Grundrisse; vejase Príncipes..., pp. 267268. (retornar ao texto) (31) De fato, como demonstra Marx, ambos os tipos de consumo correspondem a um consumo produtivo, desde o ponto de vista do capital. Ainda mais, "o consumo individual do trabalhador é improdutivo para ele mesmo, pois não faz mais que reproduzir o indivíduo necessitado; é produtivo para o capitalista e o Estado, pois produz a força criadora de sua riqueza". Tradução literal de El Capital, I, XXIII, p. 1.075, Plêiade; cf. edição Fondo de Cultura Econômica, I, XXI, p. 482. (retornar ao texto) (32) "O consumo individual do trabalhador e o da parte nao acumulada do produto excedente englobam a totalidade do consumo individual. Este condiciona, em sua totalidade, a circulação do capital." Tradução literal de El Capital, II, p. 543, Plêiade; cf. Fondo de Cultura Econômica, p. 84. (retornar ao texto) (33) A tese da industrialização substitutiva de importações representou um elemento básico na ideologia desenvolvimentista, cujo grande epígono foi a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe (Cepal); o trabalho clássico neste sentido é o de Maria da Conceição Tavares, sobre a industrialização brasileira, publicado originalmente em United Nations, "The growth and decline of imput substitution in Brazil", Economic Bulletinfor Latin America, vol. IX, n° 1, março de 1964. Nos anos recentes, essa tese tem sido objeto de discussões que, se não chegam a lhe retirar a validade, tendem a relativizar o papel desempenhado pela substituição de importações no processo de industrialização da América Latina; um bom exemplo disso é o artigo de Don L. Huddle, "Reflexões sobre a industrialização brasileira: fontes de crescimento e mudança estrutural — 19471963", Revista Brasileira de Economia, vol. XXIII, n° 2, junho de 1969. Por outro lado, alguns autores se preocuparam em estudar a situação da indústria na economia latinoamericana antes que se acelerasse a substituição de importações; é significativo, nesta última linha de pesquisa, o ensaio de Vânia Bambirra, Hacia uma tipologia de la dependência. Industrialización y estruetura socioeconômica, Ceso, Universidad de Chile, Documento de Trabajo, mimeo, 1971. (retornar ao texto) (34) É interessante observar que a indústria complementar à exportação representou o setor mais ativo das atividades industriais na economia exportadora. É assim como os dados disponíveis para a Argentina mostram que, em 1895, o capital investido na indústria que produzia para o mercado interno correspondia a cerca de 175 milhões de pesos, contra mais de 280 milhões investidos na indústria vinculada à exportação; na primeira, o capital médio por empresa era de somente 10 mil pesos, configurando claramente um setor artesanal, enquanto que, na segunda, montava a 100 mil pesos (cf. Roberto Cortes Conde, Problemas del crecimiento industrial em Argentina, sociedad de masas. Ed. Euseba, Buenos Aires, 1965). (retornar ao texto) (35) A reprodução ampliada desta relação constitui a essência mesma da reprodução capitalista; cf. particularmente El Capital, I, XXIV. (retornar ao texto) (36) El Capital, I, XIII, p. 370. (retornar ao texto) (37) Empregamos o termo "industrialização" para salientar o processo pelo qual a indústria, empreendendo a mudança qualitativa global da velha sociedade, caminha no sentido de se converter em eixo da acumulação de capital. É por isso que consideramos que não se dá um processo de industrialização no seio da economia exportadora, em que pese o fato de que se observa nessa economia atividades industriais. (retornar ao texto) (38) Um historiador brasileiro, referindose à campanha pelo aumento de tarifas alfandegárias desencadeada pelos industriais brasileiros em 1928, destaca com clareza o mecanismo de expansão do setor industrial na economia exportadora: "Sob a pressão de uma recessão da demanda de tecidos de má qualidade nas áreas rurais, como consequência da queda de preços do café — o preço médio da saca de 60 quilos caiu de 215$ 109 para 170$ 719 entre 1925 e 1926 — vários industriais se especializaram na produção de tecidos médios e finos, a partir de meados da década de 1920. Ao penetrar nesta faixa do mercado, passaram a sofrer o impacto da concorrência inglesa, que foi acusada de realizar um 'dumping' para liquidar a produção nacional. Os Centros Industriais se articularam em uma campanha visando o aumento das tarifas de tecidos de algodão e a restrição das importações de maquinado, alegando que o mercado não comportava a ampliação da capacidade produtiva existente". Boris Fausto. A revolução de 1930. Historiografia e historia. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1970, pp. 3334. O episódio é exemplar: a queda dos preços do café restringe o poder de compra dos trabalhadores, mas também a capacidade de importação para atender a esfera alta da circulação, provocando um movimento da indústria no sentido de se deslocar para esta última e se beneficiar dos melhores preços que ali se pode obter. Como veremos, esse tropismo da indústria latino americana não é privilégio da velha economia exportadora. (retornar ao texto) (39) Para Argentina e Brasil, por exemplo, isto se apresenta já na passagem da década de 1940 para a de 1950, mais rapidamente para a Argentina do que para o Brasil. (retornar ao texto) (40) Vejase Ernest Mandel, Tratado de Economia Marxista, Ed. Era, México, 1969. (retornar ao texto) (41) A produção estadunidense de máquinas e ferramentas foi duplicada entre 1960 e 1966, enquanto crescia tão só em 60% na Europa Ocidental e 70% no Japão. Por outra parte, desenvolveuse mais rapidamente nos Estados Unidos a fabricação de conjuntos automatizados, cujo valor alcançou os 247 milhões de dólares em 1966, contra 43,5 milhões na Europa Ocidental e apenas 2,7 milhões de dólares no Japão. Dados disponibilizados por Ernest Mandel Europe versus América? Contradictions of Imperialism. NLR, Londres, 1970, p. 80, nota. (retornar ao texto) (42) Os trabalhos que se referem a este tema foram reunidos no meu livro Subdesarrollo y revolución, Ed. Siglo XXI, México, 1969. O primeiro deles foi publicado originalmente com o título "Brazilian Interdependence and Imperialist Integration", Monthly Review, Nova York, dezembro de 1965, XVII, n° 7. (retornar ao texto) (43) O Capital. Ed. Fondo de Cultura Econômica, México, t. III, cap. VII, p. 180. Esta será a edição citada, quando não se indique outra. (retornar ao texto) (44) Vejase o tratamento que dá a este tema Jaime Torres, em Para um conceito de "formação social colonial". Ceso, Santiago, 1972, mimeo (retornar ao texto) (45) Segundo Marx, a tendência decrescente da taxa geral de lucro não é senão "uma maneira própria ao modo de produção capitalista de expressar o progresso da produtividade social do trabalho", sendo que "a acumulação mesma é o meio material de aumentar a produtividade". Le Capital. Ouvres, NRF. Paris, t. II, pp. 1002 y 1006, sublinhado por Marx; cf. edición FCE, III, pp. 215 e 219. (retornar ao texto) (46) "No começo a produção fundada no capital partia da circulação; vemos agora como aquela põe a circulação como sua própria condição e põe igualmente o processo de produção, em sua imediatez, enquanto momento do processo de circulação, assim como põe a este como fase do processo de produção em sua totalidade". Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la economia política (borrador) 18571858. Ed. Siglo Veinteuno, Argentina, Buenos Aires, 1972, vol. II, p. 34. (retornar ao texto) (47) Para dizer com Marx: "A troca de mercadorias por seus valores ou aproximadamente por seus valores pressupõe ... uma fase muito mais baixa que a troca em base aos preços de produção, o que requer um nível bastante elevado no desenvolvimento capitalista". O Capital, III, VIII, p. 181. (retornar ao texto) (48) "A produção de maisvalia absoluta é a base geral sobre a que descansa o sistema capitalista e o ponto de arranque para a produção de maisvalia relativa." O Capital, I, XIV, p. 246. (retornar ao texto) (49) Vejase: de José Nun, "Superpopulação relativa, exército industrial de reserva e massa marginal", em Revista Latinoamericana de Sociologia n° 2, Buenos Aires, 1969; e de F. H. Cardoso, "Comentário sobre los conceptos de sobrepopulación relativa y