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Guias e Dicas
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Diferença Sexual, Direitos e Identidade: Debate com Carla Rodrigues, Notas de estudo de Ciências Sociais

Este artigo aborda a questão da diferença sexual a partir da perspectiva da teoria de desconstrução de jacques derrida, estabelecendo uma ligação entre a diferença sexual e a reivindicação de direitos para as mulheres, questionada pelo pensamento da desconstrução. O texto explora as ideias de derrida sobre a diferença sexual, a binariedade e os direitos, baseadas em sua leitura de heidegger e emmanuel levinas.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 29/10/2010

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cristina-barreto-2 🇧🇷

4.3

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Baixe Diferença Sexual, Direitos e Identidade: Debate com Carla Rodrigues e outras Notas de estudo em PDF para Ciências Sociais, somente na Docsity! ARTIGOS cadernos pagu (34), janeiro-junho de 2010:209-233. Diferença sexual, direitos e identidade: um debate a partir do pensamento da desconstrução* Carla Rodrigues ** Resumo Este artigo aborda a diferença sexual a partir da análise do filósofo Jacques Derrida e seu diálogo com a filosofia de Heidegger e de Emmanuel Levinas, articulando essa questão com a reivindicação de direitos para as mulheres, pensada como forma de superação da hierarquia de gênero implícita na dualidade masculino/feminino e questionada pelo pensamento da desconstrução. O trabalho procura demonstrar as possibilidades de aliança entre o pensamento da desconstrução e as teorias feministas. Palavras-chave: Pós-estruturalismo, Diferença Sexual, Gênero, Jacques Derrida, Teoria Feminista. * Recebido para publicação em dezembro de 2008, aceito em novembro de 2009. Este artigo é parte da minha dissertação de mestrado – O sonho dos incalculáveis - coreografias do feminino e do feminismo a partir de Jacques Derrida –, defendida em março de 2008, no Departamento de Filosofia da PUC-Rio sob orientação de Paulo Cesar Duque-Estrada, a quem agradeço o acolhimento. ** Doutoranda em Filosofia (PUC-Rio), pesquisadora do Núcleo de Estudos em Ética e Desconstrução (NEED/www.need.pro.br), jornalista. carla@puc-rio.br Diferença sexual, direitos e identidade 210 Sexual Difference, Rights and Identity: a Debate arising from the Poststructuralist Theory Abstract The analysis of philosopher Jacques Derrida and his dialog with the philosophy of both Heidegger and Emmanuel Levinas is the starting point for this paper, which presents a discussion about sexual difference, establishing a link between the issues of sexual difference and claim for women‟s rights as a way to overcome the hierarchy of gender, which is implicit in the feminine/masculine dualism and questioned by deconstruction. This paper attempts to show the possibilities of alliance between deconstruction and feminists theories. Key Words: Deconstruction, Gender, Sexual Difference, Jacques Derrida, Feminist Theory. Carla Rodrigues 213 se o Dasein não é neutro e se ele não é o homem, a primeira conseqüência a tirar é que ele não se submete à divisão binária com a qual se pensa mais espontaneamente, nesse caso, a diferença sexual (Id.ib.:153). Derrida argumenta que se o Dasein não significa o homem, também não significa, a princípio, nem o homem nem a mulher. O que Heidegger trata como a negatividade da neutralidade do Dasein, para Derrida será uma positividade da qual nem mesmo Heidegger se deu conta. Se o Dasein não pertence a nenhum dos dois sexos, isso não significa que o ente seja privado de sexo. Ao contrário, se pode pensar aqui em uma sexualidade pré- diferencial, ou antes, pré-dual, o que não significa unitária, homogênea, indiferente (Id.ib.:156). O filósofo estaria, assim, pensando na potencialidade de uma sexualidade pré-dual, anterior à disseminação factual do ente, que ele compara à positividade do desvelamento (aletheia): Dasein em geral esconde, participa em si da possibilidade interna de uma dispersão ou de uma disseminação factual no seu corpo próprio e na sexualidade. Todo corpo próprio é sexuado e não há Dasein sem corpo próprio. Mas a ligação proposta por Heidegger parece muito clara: a multiplicidade dispersante não tem início com a sexualidade do corpo próprio, é o corpo próprio, ele mesmo, a carne, a corporalidade [leiblichkeit] que participa originariamente do Dasein na dispersão e, por conseqüência, na diferença sexual (Id.ib.:161). Derrida chama a atenção para a expressão “por conseqüência”, recorrente no texto heideggeriano como uma Diferença sexual, direitos e identidade 214 forma de demonstrar que o Dasein deveria ter ou ser “a priori um corpo que se encontra sexuado e afetado pela divisão sexual” (Id.ib.:161). O autor também problematiza a negatividade heideggeeriana, ao afirmar que o Dasein, estando submetido a um corpo, está submetido a uma divisão em direção à sexualidade, em direção a um sexo determinado. A negatividade que aparece em diversos termos empregados no texto de Heidegger (dispersão, divisão, dissociação) esconderiam, para Derrida, a positividade e a potência que também aparecem na idéia de disseminação originária ou de dispersão transcendental que Heidegger confere ao Dasein. Se deveria, portanto, dizer que nenhuma significação negativa está ontologicamente ligada ao neutro em geral, nem, sobretudo, a essa dispersão transcendental do Dasein (Id.ib.:169). Elizabeth Grosz aponta que a questão do status ontológico da diferença sexual é uma das mais centrais à teoria feminista atual. Para ela, na leitura que Derrida faz de Heidegger há um distanciamento em relação ao modelo binário da sexualidade. Essa distância faria Derrida caminhar em direção à neutralização do Dasein (Grosz, 1997:88). Segundo a autora, Derrida estaria reivindicando uma sexualidade mais primordial do que a da oposição binária entre os sexos, uma diferença sexual que é neutra em relação a ambos os sexos, a “matéria-prima” a partir da qual, através da dispersão e da dissociação, a diferença sexual se torna concreta e específica. “Esta sexualidade primordial é, por assim dizer, Dasein, uma ordem sexual anterior à determinação que é em si sexual” (Id.ib.:89). Grosz argumenta ainda que Heidegger parece estar comprometido com duas posições de difícil conciliação: de um lado, o filósofo alemão insistiria na neutralidade do termo Dasein. De outro, ao fazer do Dasein a origem das coisas, da existência concreta, inclusive da existência humana, Heidegger Carla Rodrigues 215 estaria concordando que há no Dasein uma abertura à especificidade sexual. Nas palavras da autora, Há, por um lado, o endividamento [indebtedness] da oposição sexual a um neutro, o Dasein; por outro lado, o Dasein é o estado primordial da sexualidade antes da sua determinação em forma concreta (Id.ib.:89). Após explorar essa dupla postura heideggeriana, Grosz afirma que o Dasein contém sua própria possibilidade de dispersão e de multiplicidade, incluindo a aquisição de diversas qualidades, como a especificidade sexual. O Dasein seria, assim, na compreensão de Grosz, a condição de possibilidade de determinação sexual. Na sua leitura de Derrida, Grosz afirma que ele sugere que o Dasein não é simplesmente neutro, sem vestígios de marca sexual, mas que “neutraliza qualquer marca sexual prévia”. Derrida estaria indicando que não existe, na estrutura do Dasein, um predicado propriamente sexual. A partir da leitura sobre a diferença sexual em Heidegger, Derrida problematiza a dualidade da diferença sexual, quando diz que Heidegger neutraliza não a sexualidade “ela mesma”, mas a marca genérica da diferença sexual, o pertencimento a um dos dois sexos. Nas palavras de Derrida, A partir daí, tomando de volta a dispersão e a multiplicação, não se pode começar a pensar numa diferença sexual (sem negatividade, precisemos) que não seria selada pelo dois? (Derrida, 1990:172). Em Chorégraphies, Derrida volta ao tema da diferença sexual em Heidegger para afirmar que o Dasein não carrega as marcas dessa oposição ou dessa alternativa entre um ou outro dos dois sexos. Essas Diferença sexual, direitos e identidade 218 totalmente outro 4 de Levinas estaria além ou antes da determinação sexual? 2) ou, ao contrário, a determinação sexual é parte do conceito de totalmente outro, tomando esse outro como feminino? Em primeiro lugar, ela reconhece a importância de Levinas ter assumido que escreve como homem. Um reconhecimento que aparece em Derrida, quando ele diz que há na escrita levinasiana uma “assinatura masculina” que romperia com a associação tradicional entre neutralidade e masculino. Mas Grosz também enxerga, na leitura que Derrida faz do pensamento de Levinas, um tratamento secundário ao tema da diferença sexual. De At this very moment in this work here I am ela destaca a seguinte passagem: O trabalho de Emmanuel Levinas me parece sempre ter deixado como secundário, derivativo e subordinado a alteridade como diferença sexual, o traço da diferença sexual, para a alteridade da sexualidade não marcada pelo totalmente outro (Derrida apud Grosz, 1997:90). Não é a mulher ou o feminino que é tornado secundário, derivado ou subordinado, mas a diferença sexual (Derrida, 1991:40). Adicionei o trecho em negrito porque me pareceu relevante mostrar que, a partir deste ponto, Derrida discutirá outro aspecto do pensamento de Levinas: a secundarização da diferença sexual, que ficaria subordinada à marca do masculino. 4 Em texto dedicado a Emmanuel Levinas, Derrida (2004) homenageia o amigo ao afirmar que o pensamento do filósofo teria sido, para ele, fonte de grande inspiração. Derrida afirma ainda que Levinas mudou o curso da filosofia contemporânea com o pensamento do outro. Essa idéia do totalmente outro – expressão que Derrida incorpora no vocabulário da desconstrução e na sua formulação de singularidade – propõe o reconhecimento da “dissimetria absoluta” em relação ao outro. Cornell (1992a) reconhece a influência da obra de Levinas no pensamento de Derrida e também dialoga com essa proposição levinasiana do totalmente outro. Carla Rodrigues 219 A questão também será problematizada por McDonald em Chorégraphies: o filósofo lituano se alinharia à tradição de secundarização da mulher quando apresenta a sexualidade masculina como uma “origem neutra ou ao menos anterior e superior a toda marca sexual”? (Derrida, 1992:109). Derrida se pergunta ainda: como a marca masculina poderia ser anterior à diferença sexual? Para discutir esse aspecto do pensamento de Levinas, Derrida (1991:41) cita passagens de dois textos do filósofo: Judaism and the feminine e de Et Dieu créa la femme: O sentido do feminino será esclarecido tomando como ponto de partida a essência humana, o Ischa como seqüência do Isch: não o feminino como seqüência do masculino, mas a divisão – a dicotomia – entre masculino e feminino na seqüência do homem. (…) O problema, em cada uma das linhas que estamos comentando, é que na hipótese de uma espiritualidade do masculino, o feminino não seja seu correlativo mas seu corolário; a especificidade feminina ou a diferença entre os sexos que se anuncia não são imediatamente situadas na altura do oposições constitutivas do Espírito. Audaciosa pergunta: como pode a equivalência dos sexos proceder de uma propriedade masculina? Teria que haver uma diferença que não comprometesse a equidade, a diferença sexual; e, conseqüentemente, uma certa pré-eminência do homem, a mulher chegou mais tarde e como um apêndice ao humano (Levinas apud Derrida 1977:134). A partir desse trecho de Levinas, citado por Derrida, observo que, tanto no diálogo com McDonald como na leitura de Grosz, a pergunta formulada por Derrida é de interesse da teoria feminista: “Como se pode caracterizar como masculino o que é considerado anterior, ou mesmo estrangeiro, à diferença sexual?” (Derrida apud Grosz, 1997:90). Diferença sexual, direitos e identidade 220 Essa marca do masculino como anterior à diferença sexual comprometeria o neutro em direção ao privilégio do masculino, já que a humanidade em geral, antes da divisão em dois sexos, seria masculina, e só com o advento posterior da diferença sexual é que viria a mulher (Grosz, 1997:91). O texto que Grosz discute, At this very moment in this work here I am, foi editado pela primeira vez em francês em 1980 sob o título En ce moment même dans cet ouvrage me voici. Em 1996, por ocasião da morte de Levinas, Derrida publicou A palavra acolhimento, em que ele volta a discutir a questão do feminino na obra do filósofo lituano. Nesse texto, Derrida demonstra que, ao associar acolhimento ao feminino, Levinas poderia estar apresentando uma abordagem “tradicional e androcêntrica” ou, ao contrário, a mesma proposição levinasiana poderia ser lida como um “manifesto feminista” (Derrida, 2004:60). Derrida cita um trecho da obra de Levinas para demonstrar que as duas leituras, embora opostas, são cabíveis: a casa que fundamenta a posse não é posse no mesmo sentido que as coisas móveis, que ela pode recolher e guardar. É possuída, porque ela é, desde logo, hospitaleira para o seu proprietário; o que nos remete para a sua interioridade essencial e para o habitante que a habita antes de todo habitante, para o acolhedor por excelência, para o acolhedor em si – para o ser feminino (Levinas apud Derrida, 2004:60 [grifos no original]). Derrida mostra que o pensamento do acolhimento estaria, em Levinas, necessariamente marcado pela diferença sexual – já não mais neutralizada, como nos textos anteriores –, e que esse acolhimento originário seria, “por excelência”, feminino. Geoffrey Bennington aponta que, mesmo quando Derrida demonstra que, muitas vezes, o pensamento de Levinas associa ao feminino uma série de características ligadas à tradição metafísica, ele se interessa pelo alinhamento levinasiano entre o Carla Rodrigues 223 Levar em conta a diferença sexual na determinação de direitos é uma questão pertinente tanto à teoria quanto à política feminista. Grosz pontua que Derrida não oferece soluções, nem ao feminismo nem a nenhum outro tipo de política, uma atitude que costuma provocar suspeitas e percepções de que seu trabalho seria “não-político ou apolítico” ou alinhado a forças conservadoras. O que dificilmente é reconhecido, diz Grosz, são as intenções do pensamento da desconstrução: ao mesmo tempo em que pretende repensar os caminhos sobre os quais a política tem sido feita, não pretende criar uma nova forma de fazer política, mas “reorganizar, ou talvez desorganizar” os caminhos pelos quais as formas de fazer política vêm sendo compreendidas. Nesse contexto, chama a atenção o fato de Derrida considerar que as reivindicações feministas não se resolvem apenas com a aquisição de certos direitos. Me alinho aos esforços de Caputo, que são coerentes com os de Cornell. Ambos afirmam que o pensamento da desconstrução tem algo a dizer sobre a política feminista e apresentam argumentos para justificar a aliança entre desconstrução e feminismo. Cornell reconhece que há tensões entre feministas e desconstrução, haja vista que as críticas de Derrida ao sujeito estável do feminismo não foram bem aceitas por algumas teóricas feministas, ainda que autoras como Judith Butler, Gayatri Spivak e Chantal Mouffe tenham levado adiante as reflexões e as possibilidades de aliança entre o pensamento da desconstrução e a política feminista. 6 6 Para exemplificar algumas dessas reações, Cornell cita a expressão de Seyla Benhabib, para quem a aliança entre feminismo e desconstrução “não é fácil”. Diane Elam elenca reações de diferentes pensadoras que expressam o “pânico feminista” diante da idéia da desconstrução da categoria do sujeito estável da tradição. Entre os exemplos de Elam está a reação de Margaret Whitford, emblemática de um desejo de unidade totalizante, contrária a qualquer aceitação da idéia de contaminação e fragmentação: “[a desconstrução do sujeito] deixa as mulheres em estado de fragmentação e disseminação que reproduz e perpetua a violência patriarcal que aparta as mulheres” (Whitford apud Elam, 1994:71). Diferença sexual, direitos e identidade 224 Cornell também considera que uma das importantes contribuições do pensamento da desconstrução à política e à teoria feminista está no fato de que a desconstrução considera a diferença sexual como questão “crucial” no debate sobre ética. Derrida questionou a hierarquia de gênero ao problematizar a divisão binária masculino/feminino, mostrando como essa é mais uma oposição convencional sustentada por uma hierarquia que toma o masculino como universal. Cornell destaca que entre as possibilidades de aliança entre feminismo e desconstrução está o fato de que, para Derrida, é precisamente a possibilidade de reinterpretação do feminino que oferece às mulheres a esperança de não serem para sempre aprisionadas em papéis de gênero que, embora muitas vezes pareçam “libertadores”, também correm o risco de funcionar, segundo Derrida, como “novas determinações topográficas”. Com essa expressão, ele questiona as reivindicações feministas de encontrar um lugar para a mulher: A senhora [McDonald] não teme que uma vez engajada no caminho dessa topografia nós nos reencontremos forçosamente de volta ao “em casa ou na cozinha”, ou na direção das prisões domiciliares, como se diz em francês na linguagem penitenciária – o que finalmente daria no mesmo? Por que seria necessário que houvesse um lugar para a mulher? E por que um só, um essencial? (Derrida, 1992a:99). Na leitura de Chorégraphies, Cornell lembra que Derrida demonstra não querer que o feminismo seja “outra desculpa para um desfile de carteiras de identidade sexual” (Cornell, 1999:87). Segundo ela, ao defender a não-identidade da mulher, Derrida tem sido acusado de reafirmar as estruturas hierárquicas da sociedade patriarcal, na qual a mulher não teria identidade por só poder ser pensada como o Outro do homem, o que faria da desconstrução “apenas o disfarce do pior aspecto do patriarcado” (Cornell, 1999:102). Carla Rodrigues 225 O diálogo de Cornell com Derrida passa também pela compreensão de que, para o filósofo, a “desconstrução é um chamado à justiça”. Cornell trabalha com essa hipótese, recuperando a idéia de que, no pensamento da desconstrução, a justiça é um chamado do Outro. Nessa concepção de justiça, ela retoma as afirmações de Derrida e lembra que “eqüidade não é igualdade, a proporcionalidade calculada, a distribuição eqüitativa, mas, ao contrário, a infinita demanda do chamado do Outro” (Derrida apud Cornell, 1999:113). Para interrogar a universalidade do masculino, a autora faz uma distinção entre direitos iguais e equivalência de direitos, não em termos de uma disjuntiva, mas de um deslocamento da idéia de busca pela igualdade, que se mostraria inútil na eliminação das desigualdades entre homens e mulheres, na medida em que toma o masculino como norma. Direitos iguais aos dos homens seriam, para ela, apenas uma forma de manter o masculino como superior ao feminino. Para Cornell, os direitos das mulheres não podem estar relacionados às normas que a cultura impõe à feminilidade (Cornell, 1998), porque estariam limitados a essas características e se baseariam na diferença sexual como justificativa para a subordinação e para a exclusão da mulher. Em outras palavras, Cornell aponta para o fato de que pensar a igualdade é ignorar a injustiça constitutiva da polaridade homem/mulher e, por conseqüência, contribuir para sua manutenção. Assim, a autora defende como tarefa crucial para uma aliança entre desconstrução e feminismo não endossar uma concepção de justiça que aprisione as mulheres. Cornell defende, assim, uma obrigação masculina de se endereçar diretamente às mulheres – “the rectitute of adress” – não como uma “resposta paternalista à incapacidade de falar em seu discurso” (Cornell, 1999:115), mas pela obrigação de ouvir o chamado das mulheres. “Por que é „justo‟ tomar os homens como o padrão, com exceção do fato de que tem sido sempre assim e, por isso, o Diferença sexual, direitos e identidade 228 envolve o reconhecimento da diferença feminina nas circunstâncias em que somos diferentes, como na nossa relação com a gravidez, enquanto simultaneamente não reforça os estereótipos através dos quais o patriarcado tem tentado fazer sentido com que a diferença limite nosso poder (Id. ib.:293). Cornell não quer tomar o masculino como padrão por acreditar que isso serviria para legitimar a concepção de que os direitos, tal qual foram formulados pelos homens, seriam a norma e o modelo a ser alcançado. As idéias de Cornell fizeram eco, por exemplo, no pensamento de Diane Elam, para quem a equivalência de direitos – em substituição aos direitos iguais – seria uma forma de reconhecer categorias de direitos que não estariam contempladas na idéia de direitos iguais. Elam problematiza a proposição de Cornell, segundo a qual a equivalência de direitos – em substituição aos direitos iguais – seria uma forma de reconhecer categorias de direitos que não estariam contemplados na idéia de direitos iguais. Elam discute a questão da equivalência de direitos apresentada por Cornell ao questionar a validade da reivindicação de direitos tomando os homens como se “fossem os únicos gêneros da espécie humana” (Id. ib.:281). Elam lembra que na concepção tradicional de política, antes que se reivindiquem direitos específicos, é preciso supor a existência de um sujeito político. Assim, o sujeito político seria instituído primeiro, para que depois o direito desse sujeito fosse conquistado. Mas, argumenta ela, se o pensamento da desconstrução considera que os sujeitos políticos são provisórios, esse pensamento passa a prestar atenção na forma pela qual cada direito institui o sujeito político a quem tal direito é atribuído. Para Elam, a aliança entre desconstrução e feminismo requer a discussão da questão dos direitos a partir de outra pergunta: que direitos pertencem a quais sujeitos? Para ela, a partir do momento em que o pensamento da desconstrução Carla Rodrigues 229 desloca a idéia de direito como uma propriedade dos sujeitos, modificam-se os critérios para determinar os “direitos”. Assim, a autora argumenta que não é simplesmente uma questão de acordo ou de equilíbrio de direitos, porque a noção de justiça distributiva é injusta, na medida em que pressupõe a existência prévia de pessoas como entidades auto- evidentes para as quais a justiça é distribuída (Elam, 1994:80). Embora endosse a proposição de equivalência de direitos de Cornell como uma “posição estratégica útil”, Elam argumenta que essa idéia não ofereceria uma forma de avançar para além da política baseada no sujeito estável e identificável (Id.ib.:77). Em outras palavras, a autora está interessada em articular a questão da equivalência de direitos a que se refere Cornell com a questão da mulher como “sujeito de direitos”, de tal forma que a política não seja pensada apenas como reivindicação identitária. Apesar dessas diferenças, as duas autoras inscrevem a diferença sexual como critério importante na reivindicação dos direitos, sem que se tome essa diferença para manter as mulheres presas a uma hierarquia de gênero que privilegia o masculino ou em busca de um tipo de “libertação” que toma o masculino como norma. Considerações finais O aspecto que busquei articular nas duas partes deste artigo parte da associação entre o status de problema filosófico que a desconstrução confere à diferença sexual e sua articulação com a questão dos direitos, questão que Cornell defende ao apontar que a aliança entre a desconstrução e o feminismo oferece a possibilidade de uma “descoberta da especificidade Diferença sexual, direitos e identidade 230 feminina”, permitindo ver o gênero feminino de um modo “realmente diferente” (Cornell, 1999:117): O pensamento da diferença sexual não pode ser reduzido a questões políticas ou jurídicas em termos de “direitos das mulheres”. Pensar a “Mulher” além da oposição é resistir à lógica da identidade reproduzida na hierarquia de gênero (Id.ib.:118). A autora lembra que Derrida sempre faz distinção entre o sonho de uma nova coreografia da diferença sexual, que não pode ser apagada, e a realidade do sistema de opressão à mulher. Para Cornell, o importante não é valorizar apenas a possibilidade de uma nova coreografia da diferença sexual, mas valorizar o feminino dentro da estrutura da diferença sexual. Diferentemente de Françoise Collin 10 , que entende o deslocamento da identidade sexual, tal como proposto pelo pensamento da desconstrução, como uma aliança com o patriarcado, Cornell apresenta uma proposição de dupla postura que repete o gesto derridiano de invocar um duplo trabalho para o feminismo. Seguindo uma proposição muito presente em Derrida, Cornell propõe ao mesmo tempo evitar a cumplicidade com os mecanismos da sociedade patriarcal e o rompimento com a hierarquia de gênero e com a afirmação da identidade sexual. O que torna a aliança entre feminismo e desconstrução muito mais difícil, mas também mais instigante e desafiadora. 10 A autora rechaça o pensamento da desconstrução, argumentando que sua abordagem é insuficiente por ocultar o fato de que foi a dominação de um sexo sobre outro que produziu o dualismo que Derrida quer desconstruir. Na sua visão, a desconstrução estaria propondo que o homem ocupe, “desolado”, a posição feminina, enquanto a mulher feminista é posta como falogocêntrica. Collin afirma que só quando o feminino ganhou valor na cultura e na sociedade – resultado, lembra ela, das lutas feministas – é que Derrida teria se declarado também feminino e proposto a recusa à lógica opositiva. Na sua crítica, Collin avalia que há um anti-feminismo no pensamento da desconstrução, como se “a instância do feminino, como modo de estar no mundo, pudesse abrir mão das mulheres” (Collin, 2004:4).
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