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Guias e Dicas
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Gazzaniga, M.-Neurociencia cognitiva - Cap 01, Notas de estudo de Biomedicina

neurofisiologia

Tipologia: Notas de estudo

2014
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Baixe Gazzaniga, M.-Neurociencia cognitiva - Cap 01 e outras Notas de estudo em PDF para Biomedicina, somente na Docsity! 1 Você pensa sobre grandes questões, como o sentido da vida ou o significado do significado? Ou você é do tipo que não se preocupa com tais questões? Se você é do se- gundo tipo, não leia este livro (muito embora seria me- lhor que você o lesse). Este livro é para aqueles que se preocupam com o que representa a vida, a mente, o sexo, o amor, o pensamento, o sentimento, o movimento, a atenção, o lembrar, o comunicar e o ser. Melhor, este li- vro trata do estudo científico destas grandes questões. Então, prepare-se para aprender sobre uma fantástica história que ainda está sendo escrita. O campo científico da neurociência cognitiva rece- beu este nome no final da década de 1970, no banco tra- seiro de um táxi da cidade de Nova York. Um de nós, Mi- chael S. Gazzaniga, estava com o grande fisiologista cog- nitivo George A. Miller, a caminho de um jantar de con- fraternização no Hotel Algonquin. O jantar era oferecido por cientistas das Universidades Rockfeller e Cornell, que estavam se esforçando para estudar como o cérebro* dá origem à mente, um assunto que necessitava de um nome. Desta corrida de táxi surgiu o termo neurociência cognitiva, que foi aceito na comunidade científica. Agora a questão é: O que isto significa? Para respon- der a essa intrigante questão, precisamos voltar atrás e olhar não somente para a história do pensamento huma- no, mas também para as disciplinas científicas de biolo- gia, psicologia e medicina. Para compreender as propriedades miraculosas das funções cerebrais, você deve ter em mente que foi a Mãe Natureza que as criou, e não uma equipe de engenheiros racionais. Apesar da Terra ter sido formada há aproxima- damente 5 bilhões de anos, e da vida ter surgido há cer- ca de 3,5 bilhões de anos, os encéfalos humanos, na sua forma final, apareceram há somente 100.000 anos. O en- céfalo dos primatas apareceu há aproximadamente 20 milhões de anos, e a evolução tomou seu curso para construir o encéfalo humano de hoje, capaz de todo o ti- po de façanhas maravilhosas – e banais. Durante grande parte da história, os humanos esti- veram muito ocupados para ter chance de pensar sobre o pensamento. Embora não se tenha dúvida de que o encé- falo humano possa exercer tais atividades, a vida exigia atenção a aspectos práticos, como a sobrevivência em ambientes adversos, a criação de melhores maneiras de PENSANDO SOBRE AS GRANDES QUESTÕES Do que trata o campo da neurociência cognitiva? De onde surgiu? Para onde está indo? Começamos este livro com uma breve história das pessoas e das idéias que levaram ao novo campo da neurociên- cia cognitiva, aquele que tem suas raízes na neurologia, na neurociência e na ciência cognitiva. A neu- rociência cognitiva, atualmente, representa um híbrido de disciplinas, de maneira que um estudante da mente deve estar atento a ter conhecimento em várias áreas para entender completamente os tópi- cos nela estudados. E esta área muda rapidamente. Ao final deste capítulo, apresentamos a curta e muito recente história da neuroimagem. O imageamento do cérebro tornou-se um ponto central no estudo da mente nos últimos anos. Breve História da Neurociência Cognitiva * N. de T. Aqui, a palavra “cérebro” é utilizada de forma mais ampla, para expressar muitas vezes o encéfalo ou, até mesmo, o sistema nervoso como um todo. • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN20 Um problema lhe é dado para ser resolvido. Sabe-se que uma fatia de tecido biológico pensa, lembra, presta atenção, resolve problemas, deseja sexo, pratica jogos, escreve novelas, expressa preconceito e faz milhões de outras coisas. É proposto que você descubra como isso acontece. Antes de começar, você pode fazer algumas perguntas. O tecido trabalha como uma unidade, com todas as partes contribuindo como um todo? Ou ele é cheio de processadores individuais, cada um deles ten- do suas funções específicas, resultando em algo que pa- rece funcionar como uma só unidade? Lembre-se que, a distância, a cidade de Nova York parece um todo inte- grado, mas na realidade ela é composta de milhões de processadores individuais, que são as pessoas. Talvez as pessoas, por sua vez, sejam feitas de unidades menores, mais especializadas. Este tema central – se o cérebro funciona como um todo, ou se partes dele trabalham independentemente, constituindo a mente – é o que alimenta muito das pes- quisas modernas. Como veremos, a visão dominante mudou nos últimos 100 anos, e continua a mudar. Tudo começou no século XIX, quando os frenologistas, lidera- dos por Franz Joseph Gall e J. G. Spurzheim (entre 1810 e 1819), declararam que o cérebro era organizado com cerca de 35 funções específicas (Figura 1.1). Essas fun- ções, que variavam de funções básicas cognitivas, como a linguagem e a percepção da cor, até capacidades mais efêmeras, como a esperança e a auto-estima, eram con- viver, inventando a agricultura ou domesticando ani- mais, e assim por diante. Entretanto, logo que a civiliza- ção se desenvolveu a ponto de que o esforço diário para sobreviver não ocupasse todas as horas do dia, nossos ancestrais começaram a dedicar mais tempo construindo teorias complexas sobre as motivações dos seres huma- nos. Exemplos de tentativas de compreender o mundo e nosso lugar nele incluem Oedipus Rex (Édipo Rei), a anti- ga peça do teatro grego que lida com a natureza do con- flito pai-filho e as teorias mesopotâmica e egípcia sobre a natureza da religião e do universo. Os mecanismos ce- rebrais que possibilitam a geração de teorias sobre a ca- racterística da natureza humana prosperaram no pensa- mento dos ancestrais humanos. Ainda assim eles tinham um grande problema: não possuíam a habilidade de ex- plorar a mente de forma sistemática por meio da experi- mentação. Em um trecho de um diário de 1846, o brilhante filó- sofo Soren Kierkegaard escreveu: Um homem deve dizer simples e profundamente que não compreende como a consciência leva à existência – é perfei- tamente natural. Mas um homem deve grudar seus olhos em um microscópio e olhar e olhar – e ainda assim não ser capaz de ver como está acontecendo –; é ridículo, e é parti- cularmente ridículo quando se supõe que isto é sério... Se as ciências naturais estivessem desenvolvidas nos tempos de Sócrates como estão agora, todos os sofistas seriam cien- tistas. Haveria microscópios pendurados do lado de fora das lojas para atrair fregueses e teria uma placa dizendo: “Aprenda e veja através de um microscópio gigante como um homem pensa (e, lendo esta placa, Sócrates teria dito: ‘Assim se comporta um homem que não pensa’)”. O prêmio Nobel Max Delbruk (1986) iniciou seu fascinante relato sobre a evolução do cosmos no livro Mind from Matter? com esta citação de Kierkegaard. Del- bruck faz parte da tradição moderna que se iniciou no sé- culo XIX. Observa, manipula, mede e começa a determi- nar como o encéfalo faz o seu trabalho. O pensamento teórico é algo maravilhoso e produziu ciências fascinan- tes, como as teorias da física e da matemática. Contudo, para entender como um sistema biológico funciona, é necessário um laboratório, e experimentos têm de ser realizados. Idéias derivadas da introspecção podem ser eloqüentes e fascinantes, mas elas são verdadeiras? A fi- losofia pode acrescentar perspectivas, mas estariam cor- retas? Somente o método científico pode guiar um tópi- co por um caminho seguro. Pense sobre a riqueza de fe- nômenos a serem estudados. Pegue a percepção de faces, por exemplo. Alguns dizem que o cérebro tem um siste- ma especial para reconhecimento de faces. Esse sistema especializado foi identificado porque pacientes com cer- tas lesões cerebrais tinham dificuldade em reconhecer faces de todo o tipo. Cientistas imediatamente debate- ram sobre a possível existência de um sistema especiali- zado. Não, alguns disseram, o dano seria com a percep- ção de objetos em geral, não com faces em particular. Eles mostraram pesquisas que sugeriam que pessoas com dificuldades em reconhecer faces também tinham problemas em reconhecer objetos ou faces de animais. Mas eis que surge um novo caso. Um paciente, com grande dificuldade em identificar objetos do dia-a-dia, não tinha problema para identificar faces! De fato, se a face era composta de frutas arrumadas de modo a pare- cer uma face, o paciente dizia que via uma face, mas não reconhecia que ela era feita de frutas! Incrível, mas real. Parecia, então, que um sistema especial no cérebro reco- nhecia faces; esse seria ativado para produzir a percepção em nossa consciência por meio da configuração de ele- mentos. Este processador especial de faces não sabe e não se importa com os elementos que as compõem: des- de que os elementos estejam de acordo, uma face é per- cebida. O que poderia ser mais fascinante do que estudar como o cérebro faz tais coisas? A HISTÓRIA DO CÉREBRO NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 23 tente com as observações de Hughlings Jackson, entre- tanto, o paciente podia murmurar algumas coisas – co- mo o som “tam”. Esses pacientes em geral falam auto- maticamente; assim, enquanto apenas dizem “tam, tam, tam...” em resposta à questão “quem é você?”, podem facilmente contar de um a dez de maneira normal. A exata parte do cérebro que estava lesionada no pa- ciente de Broca era o lobo frontal esquerdo. Denominou- se, posteriormente, esta região de área de Broca. O impac- to de seus achados foi enorme. Aqui havia um aspecto ex- clusivo da linguagem que estava prejudicado por uma le- são específica. Esse tema foi escolhido pelo neurologista alemão Carl Wernicke. Em 1876, quando tinha apenas 26 anos, ele relatou o caso de uma vítima de acidente vascu- lar cerebral que podia falar quase normalmente, diferen- temente do paciente de Broca, mas o que ele falava não fazia sentido. O paciente de Wernicke também não com- preendia a linguagem escrita ou falada. Ele tinha uma le- são numa região mais posterior do hemisfério esquerdo, na área e ao seu redor, onde os lobos parietal e temporal se encontram. Hoje, essas diferenças sobre como o encé- falo responde a doenças focais já são bem-compreendi- das. Todos os neurologistas, em todos os hospitais, sa- bem dessas coisas. Contudo, há pouco mais de 100 anos, as descobertas de Broca e Wernicke fizeram “tremer a Terra”. Filósofos, médicos e os primeiros psicólogos assu- miram um ponto de partida fundamental: doenças focais causam déficits específicos. Naquela época, os investiga- dores eram limitados em sua habilidade para identificar as lesões dos pacientes. Os médicos podiam observar o local do dano – por exemplo, uma lesão penetrante pro- vocada por uma bala –, mas eles tinham de esperar o pa- ciente morrer para determinar o local da lesão. A morte podia levar meses ou anos, e, em alguns casos, geralmen- te não era possível realizar a observação: o médico perdia contato com o paciente após sua recuperação, e, quando este finalmente morria, o médico não era informado e as- sim não podia examinar o encéfalo e correlacionar a lesão cerebral com os déficits de comportamento da pessoa. Hoje, o local da lesão cerebral pode ser determinado em poucos minutos com métodos de imagem que mapeiam e fotografam o encéfalo vivo. Vamos aprender sobre essas técnicas conforme avançarmos na leitura deste livro. (Co- mo uma observação histórica interessante, o encéfalo do paciente famoso de Broca foi preservado. Mapeamentos recentes do encéfalo deste paciente revelaram que a lesão era muito maior do que aquela descrita por Broca.) Como acontece na maioria dos casos, os estudos em humanos levaram a questões para aqueles que traba- lham com modelos animais. Logo após a descoberta de Broca, os fisiologistas alemães Gustav Fritsch e Eduard Hitzig estimularam eletricamente pequenas partes do encéfalo de um cão e observaram que este estímulo pro- duzia movimentos característicos no animal (Figura 1.6). Essa descoberta levou os neuroanatomistas a uma análise mais detalhada do córtex cerebral e sua organiza- ção celular; eles queriam apoio para suas idéias sobre a importância de regiões localizadas. Como essas regiões executavam diferentes funções, concluíram que deviam olhar de modo diferente o nível celular. Seguindo essa lógica, os neuroanatomistas alemães começaram a analisar o encéfalo utilizando métodos mi- croscópicos para ver tipos de células em diferentes re- giões cerebrais. Talvez o mais famoso no grupo fosse Korbinian Brodmann, que analisou a organização celular do córtex e caracterizou 52 regiões diferentes (Figura 1.7). Brodmann usou tecidos corados, como aqueles de- senvolvidos por Franz Nissl, que permitiram que ele vi- sualizasse diferentes tipos de células em diferentes re- giões cerebrais. Como as células diferiam entre as re- giões cerebrais, essa divisão foi chamada de citoarquite- tônica, ou arquitetura celular. Logo, muitos anatomistas agora famosos, incluindo Oskar Vogt, Vladimir Betz, Theodor Meynert, Constantin von Economo, Gerhardt von Bonin e Percival Bailey, contribuíram para este traba- lho, e muitos subdividiram o córtex ainda mais do que Brodmann havia feito. De maneira mais ampla, esses in- vestigadores descobriram que várias áreas cerebrais des- critas pela citoarquitetura realmente representavam re- giões cerebrais funcionalmente diferentes. Por exemplo, Brodmann foi o primeiro a distinguir as áreas 17 e 18, distinção essa que provou ser correta em estudos funcio- Figura 1.6 Esquerda: O fisiologista e ana- tomista Gustav Theodor Fritsch (1838-1907). Centro: O professor de Psiquiatria Eduard Hitzig (1838-1927). Direita: Ilustração origi- nal de Fritsch e Hitzig do córtex de um cachor- ro, por Fritsch e Hitzig. • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN24 nais subseqüentes. A caracterização da área visual pri- mária do córtex, área 17, como sendo distinta da área 18, demonstrou o poder do estudo da abordagem pela ci- toarquitetura, como vamos ver melhor no Capítulo 3. No entanto, a grande revolução na nossa compreen- são sobre o sistema nervoso estava ocorrendo mais ao sul da Europa, na Itália e na Espanha. Lá, uma luta inten- sa ocorria entre dois brilhantes neuroanatomistas. Estra- nhamente, foi o trabalho de um deles que levou à com- preensão do trabalho do outro. O italiano Camillo Golgi desenvolveu uma coloração que impregnava neurônios individuais com prata (Figura 1.8). Essa coloração per- mitia a visualização completa de um único neurônio. Usando o método de Golgi, o espanhol Santiago Ramón y Cajal descobriu que, ao contrário da visão de Golgi e outros, os neurônios eram entidades únicas (Figura 1.9). Golgi acreditava que todo o encéfalo era um sincício, ou uma massa contínua de tecido que compartilhava um único citoplasma! Cajal estendeu seus achados e foi o primeiro a identificar não somente a natureza unitária do neurônio, mas também a transmissão de informação elétrica em uma única direção, dos dendritos para a ex- tremidade do axônio (Figura 1.10). Muitos cientistas genuinamente brilhantes estive- ram envolvidos na história inicial da doutrina neuronal. Por exemplo, Johannes Evangelista Purkinje – um tcheco educado em Praga, à época ainda controlada pelos ale- mães, que teve de viajar para a Polônia para conseguir uma posição na universidade (Figura 1.11) – descreveu não somente a primeira célula nervosa, mas também in- ventou o estroboscópio, descreveu fenômenos visuais comuns e encaminhou uma série de outras descobertas. Até mesmo Sigmund Freud entrou na história do neu- rônio (Figura 1.12). Como um jovem cientista, ele estu- dou anatomia microscópica com o grande anatomista ale- mão Ernst Brücke. Freud escreveu um ensaio sobre seu trabalho subseqüente e independente acerca do lagostim. Na realidade, algumas das biografias de Freud sugerem que ele também defendeu a idéia de que o neurônio era uma unidade fisiológica distinta e separada. Hermann von Helmholtz, talvez um dos mais fa- mosos cientistas de todos os tempos, também contri- buiu para os primeiros estudos sobre o sistema nervo- Figura 1.8 Esquerda: Camillo Golgi (1843-1926), co-vencedor do Prêmio Nobel em 1906. Direita: Desenhos de Golgi de diferentes tipos de células ganglionares em cachorro e gato. Figura 1.10 Uma célula bipolar da retina. Axônio Corpo celular Dendritos Figura 1.7 As 52 áreas distintas descritas por Brodmann, baseadas na estrutura e no arranjo celulares. Adaptada de Brodmann (1909). 9 8 6 4 10 46 11 47 45 44 38 22 21 20 42 41 3 1 2 5 40 39 37 19 18 17 7 43 52 Figura 1.9 Esquerda: Santiago Ramón y Cajal (1852-1934), co-ven- cedor do Prêmio Nobel de 1906. Direita: Desenhos de Cajal das aferên- cias no córtex de mamíferos. NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 25 Figura 1.13 Esquerda: Hermann Ludwig von Helmholtz (1821-1894). Direita: O aparelho de Helmholtz para medir a velocidade de condução nervosa. Figura 1.11 Esquerda: Johannes Evange- lista Purkinje, que descreveu o primeiro neu- rônio no sistema nervoso. Direita: Uma célu- la de Purkinje do cerebelo. Dendritos Corpo celular Axônio Figura 1.12 Esquerda: Sigmund Freud (1856-1939). Direita: Do seu trabalho com o lagostim, Freud publicou esta ilustração co- mo um exemplo de anastomose de fibras nervosas, um conceito que Cajal mostrou es- tar errado. • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN28 sim, Pávia foi o berço de cientistas espetaculares, como o físico Alessandro Volta, Christopher Columbus e um grupo de grandes biologistas. Nesse brilhante grupo, Golgi era um médico e cientista muito bem-formado. Apesar de sua carreira ter começado de forma promis- sora, Golgi foi forçado, devido a necessidades financeiras, a aceitar um emprego fora de Pávia, na cidade de Abbiate- grasso, onde trabalhou como médico residente na Casa dos Incuráveis. Nessas circunstâncias, era muito pouco provável que Golgi continuasse sua carreira científica. Mas ele perseverou e, trabalhando sob a luz do candelabro de sua cozinha, desenvolveu a mais famosa coloração de toda Ao escrever livros-texto, os autores usam amplaspinceladas para comunicar os marcos que setornaram importantes para o nosso pensa- mento durante um longo período de tempo. Seria bo- bagem, entretanto, não alertar o leitor sobre a com- plexa e intrigante rede de aspectos pessoais, culturais e intelectuais. Os problemas que atormentaram o mundo dos primeiros cientistas permanecem, até ho- je, em total glória. Questões de autoria, ego, fundos e créditos são todos integrantes da fábrica da vida inte- lectual. Assim como os adolescentes nunca imaginam que seus pais tenham tido os mesmos interesses e de- sejos que eles têm, os novatos em ciências acreditam que estão abordando novas questões pela primeira vez na história humana. Gordon Shepherd (1992), em seu histórico livro Foundations of the Neuron Doctri- ne, detalhou a variedade de forças atuantes no traba- lho de cientistas que agora conhecemos em nossa bre- ve história. Shepherd notou que a explosão de pesquisas so- bre o sistema nervoso começou no século XVIII, co- mo parte de uma intensa atividade presente quando do nascimento das ciências modernas. Robert Ful- ton, por exemplo, inventou a máquina a vapor em 1807; Hans Christian Ørsted descobriu o eletromag- netismo. Mais interessante para o nosso campo foi Leopold Nobili, um físico italiano que inventou o precursor do galvanômetro – o aparelho que permi- tiu as bases para o estudo de correntes elétricas em tecidos vivos. Muitos anos antes, em 1674, Anton van Leeuwenhoek, na Holanda, usou um microscó- pio primitivo para observar tecidos animais (Figura A). Uma das suas primeiras observações foi uma se- ção transversal de um nervo de vaca, no qual ele no- tou “vasos muito pequenos”. Essa observação foi consistente com a idéia de René Descartes, de que os nervos contêm fluidos ou “espíritos”; estes seriam responsáveis pelo fluxo de informação sensorial e motora no corpo (Figura B). Indo mais longe, entre- tanto, este trabalho revolucionário teria de superar os problemas com os primeiros microscópios, no mí- nimo a qualidade do vidro usado nas lentes. Aberra- ções cromáticas tornaram estes aparelhos inúteis pa- ra a função de aumento. Foi somente quando os fa- bricantes de lentes resolveram este problema, que a anatomia microscópica tornou-se novamente impor- tante na história da biologia. MARCOS EM NEUROCIÊNCIA COGNITIVA Interlúdio Figura A Esquerda: Anton van Leeuwenhoek. Direita: Um dos microscópios originais usado por Leeuwenhoek, composto por duas placas de bronze que sustentavam a lente. Figura B Retrato de René Descartes, por Frans Hals. NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 29 a história. Golgi descobriu o método da prata para corar neurônios – la reazione negra, a “reação negra”. A coloração de Golgi ficou famosa, assim como ele próprio. Seu grande interesse pelas doenças o levou a vá- rias descobertas em patologia, e ele então voltou a Pávia para ser professor. Porém seus escritos não eram muito conhecidos fora da Itália; então, traduziu-os e publicou- os no Italian Archives of Biology – que, curiosamente, era editado em francês. A reputação de Golgi cresceu, e em 1906 ele recebeu o Prêmio Nobel juntamente com Cajal. Neste meio tempo, Cajal era o impetuoso filho de outro médico. Somente a partir dos ensinamentos em casa, realizados pelo pai, que Cajal desenvolveu algum interesse pela biologia. Após uma infância complicada, Cajal emergiu como, conforme alguns chamam, o “pai da neurociência moderna”. Ele recebeu os créditos por ter sido o primeiro a articular, na sua totalidade, a doutrina neuronal. A ironia nesta história, como já mencionamos, é que Cajal fez muitas de suas descobertas utilizando a colora- ção de Golgi. Ele viu pela primeira vez a coloração na ca- sa de um amigo, em Madri, Don Luis Simarro, que havia aprendido a técnica enquanto participava de um encon- tro em Paris. Cajal disse que foi lá, no laboratório da ca- sa de Simarro – não muito diferente do laboratório onde Golgi inventou a coloração – que ele viu pela primeira vez “as famosas fatias de encéfalo impregnadas com o método de prata do sábio de Pávia”. A resposta de Cajal, ao ver a coloração, permanece fascinante (traduzida por Sherrington, em 1935): Contra um fundo claro apareciam filamentos negros, al- guns finos e lisos, outros grossos e espinhosos, em um pa- drão pontuado por pontos pequenos e denso, estrelados ou fusiformes. Tudo era definido como um esboço de tinta nanquim em papel transparente japonês. E pensar que es- te era o mesmo tecido que, corado com carmim ou campe- che, aparecia como um bolo emaranhado em que o olhar tateava e tentava inutilmente exergar alguma coisa, termi- nando frustrado na tentativa de desvendar uma confusão e completamente perdido em sombria dúvida. Aqui, ao con- trário, tudo estava claro e simples como um diagrama. Uma olhada era suficiente. Como um tolo, eu não podia ti- rar os olhos do microscópio. Todavia, muitos anos depois, a cena na cerimônia do Prêmio Nobel, em Estocolmo, foi horrível. Golgi apare- ceu como um egocêntrico e, à sua maneira, negou-se a reconhecer as descobertas de Cajal, que naquele momen- to já tinha estabelecido a doutrina neuronal. Ambos es- tavam usando a mesma coloração, o mesmo microscópio e estudavam o mesmo tecido. Um enxergou a resposta, o outro não. Golgi continuava a ver seu amado sincício de neurônios como uma só unidade, enquanto Cajal en- xergava cada neurônio como uma unidade independen- te, como depois foi comprovado. Há quem fique desapontado em saber que os resultados dos primeiros trabalhos de Cajal e de outros confundi- ram os cientistas na primeira metade do século XX. To- do o seu trabalho, especialmente quando visto retrospec- tivamente, argumentava sobre a importância dos neurô- nios isolados. Para saber como o sistema nervoso funcio- na, faz-se necessário compreender como um único neu- rônio interage e se comporta, assim como, para com- preender as proteínas, necessita-se entender como os aminoácidos são organizados. A excentricidade dos pro- cessos sinciciais, das redes nervosas e dos processos ho- lísticos não era necessária. O sistema nervoso não é uma grande bolha; ele é construído de unidades distin- tas. Se pudermos compreender como esse sistema fun- ciona e descrever as leis e os princípios de suas intera- ções, então, o problema de como o encéfalo dá origem à mente pode ser tratado e, finalmente, resolvido. Esta é a visão ideal, isto é, ao conhecer todos os ele- mentos de um sistema, podemos compreender esse sis- tema. Porém o encéfalo humano é composto de bilhões de neurônios, e pensar que precisamos saber a ação de todos eles para entender como o encéfalo funciona seria irracional. Na realidade, foi um grande esforço com- preender como o gânglio somatogástrico da lagosta, com oito neurônios, produzia atividade rítmica. Os avanços são feitos trabalhando-se em diferentes níveis de organi- zação, eis a estratégia fundamental em neurociência cog- nitiva. Sabendo-se qual comportamento é realmente produzido, não precisamos conhecer todas as possibili- dades de interações que ocorrem entre os elementos re- lacionados. Dessa maneira, um problema se torna restri- to e passível de solução. Mas essa não era a questão do- minante no início do século XX. Apesar de o renomado fisiologista inglês Sir Charles Sherrington acreditar enfa- ticamente que o neurônio se comportava como uma uni- dade e criar o termo sinapse para descrever a junção entre dois neurônios, os cientistas que trabalhavam em ques- tões mais “amplas” do encéfalo e do comportamento mantiveram-se unidos à idéia do processo holístico. Le- vou tempo para que as novas idéias fossem amplamente aceitas, principalmente porque importantes figuras do início dos estudos cerebrais estavam bastante divididas em suas teorias. Além do mais, muitas das primeiras propostas eram na realidade bem razoáveis, levando-se em consideração o estado do conhecimento científico na- quele dado momento. O SÉCULO XX • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN30 Tomemos como exemplo a idéia de contemporâ- neos de Broca, como Pierre Marie. Enquanto Broca es- tava defendendo a importância da localização das fun- ções, Marie demonstrava a variabilidade da localização cortical. Marie relatou que somente metade de seus pa- cientes apresentava dificuldades de fala quando as le- sões eram localizadas no terceiro giro frontal do hemis- fério cerebral esquerdo – a área de Broca. Ele também notou que muitos pacientes com lesões que não atin- giam essa área tinham afasia do tipo de Broca. Marie estava tanto certo quanto errado. Existe uma grande variação no encéfalo humano, mas, por meio da obser- vação da estrutura subjacente, ele poderia bem ter des- coberto que uma região crucial do encéfalo simples- mente trocava de um lugar para outro durante o desen- volvimento. A noção de localização, portanto, não foi realmente modificada com o tipo de observação que Marie ofereceu. Ainda hoje, algumas pessoas simplesmente se recu- sam a aceitar que, compreendendo a função de um único neurônio ou de áreas menores do encéfalo, podemos ex- plicar como o encéfalo funciona. Essa visão é tão comum hoje como era no início do século XX. Todos os envolvi- dos no problema tinham o seu exemplo favorito das pro- fundas contradições vistas nesta lógica. Durante a época de Broca, um professor de fisiologia alemão chamado Friedrich Goltz levava seu cachorro em encontros cientí- ficos (Figura 1.14). Goltz havia removido grande parte do córtex do animal, e, mesmo que alguns danos fossem percebidos, o comportamento do cachorro era perfeita- mente funcional. Mostrou-se, posteriormente, que a le- são do cachorro era bem menor do que aquela relatada, mas o exemplo não é incomum. Em humanos com lesão cerebral, é comum nos surpreendermos com a ausência de sintomas em um paciente, dada a extensão da lesão vista em um exame de imagens do cérebro. Ainda assim, um grande avanço havia sido feito. No início do século XX, quase todos queriam provar que al- gum grau de localização funcional ocorria no córtex cere- bral. Mesmo Goltz notou muitas diferenças nos seus ani- mais quando o lobo occipital era removido, em compara- ção a quando o córtex motor era removido. Os críticos então diziam que era impossível localizar “funções corti- cais superiores”, como o pensamento e a memória, dife- rente da visão original, que postulava a ausência de qual- quer localização de funções encefálicas. Essas ressalvas estavam de acordo com a primeira observação articulada por Hughlings Jackson, isto é, de que se deve distinguir entre a evidência para localização de sintomas e a idéia de localização de função. Com isso, Hughlings Jackson que- ria dizer que, enquanto uma lesão cerebral pode produzir um sintoma bizarro, não quer dizer que a área afetada se- ja especializada somente nessa função. A lesão pode mui- to bem afetar outras estruturas no encéfalo, porque pode danificar neurônios conectados a outras regiões. A distin- ção de Hughlings Jackson foi também uma das primeiras evidências de que comportamentos expressam uma cons- telação de atividades independentes, e não uma entidade única. Essa distinção é crucial quando analisamos dados de modernas imagens cerebrais, como veremos adiante. Stanley Finger (1994), em sua histórica descrição dos eventos relacionados a este tema fundamental em Origins of neuroscience, apresenta citações dos antilocaliza- cionistas. Na virada do século, um movimento de amplas bases foi absorvido pelos processos de Gestalt, a idéia de que o todo é diferente da soma das partes. Um dos mem- bros desse movimento, o grande biólogo francês Claude Bernard, escreveu em 1855: Figura 1.14 Esquerda: Friedrich Leopold Goltz (1834-1902). Centro: O cachorro que Goltz mostrou no Congresso Internacional de Medicina em 1881. Direita: O cérebro do cachorro do qual Goltz removeu uma porção do córtex. NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 33 Enquanto a profissão médica foi pioneira nos estudos sobre como o encéfalo funciona, os psicólogos começa- ram a defender que tinham condições de mensurar o comportamento e sem dúvida estudar a mente. Até o co- meço da psicologia experimental, a mente era terreno dos filósofos, que questionavam a natureza do conheci- mento, sobre como conhecemos o que nos cerca. Os filó- sofos tinham duas posições principais: empirismo e ra- cionalismo. O racionalismo se desenvolveu no Século das Luzes (Iluminismo). Tomou o lugar da religião e, en- tre os intelectuais e cientistas, tornou-se a única manei- ra de pensar sobre o mundo. Por meio do pensamento correto, os racionalistas podiam determinar suas verda- deiras opiniões. Eles rejeitavam opiniões que, mesmo que fossem reconfortantes, eram inexplicáveis e total- mente supersticiosas. Embora o racionalismo freqüentemente seja equipa- rado ao pensamento lógico, ele é diferente. O racionalis- mo leva em conta alguns temas, como o sentido da vida, enquanto que a lógica não. A lógica simplesmente se ba- des nervos identificados nas lesmas Aplysia (lebre mari- nha) e Helix (lesma da terra). Arvanitaki também desco- briu que, em soluções com pouco cálcio, fibras nervosas isoladas do cefalópodo Sepia (um parente do polvo) produziam oscilações elétricas regulares que se torna- vam periodicamente maiores e maiores, até que o nervo começava, de tempos em tempos, a disparar potenciais de ação. Ela foi a primeira a demonstrar que, esponta- neamente, a atividade rítmica recorrente pode ser uma propriedade inerente de um único nervo sem a necessi- dade do circuito neural gerá-la. Além disso, ela notou que, quando dois ou mais nervos correm juntos, a ativi- dade de um nervo pode atingir a atividade do vizinho. Hodgkin e Huxley ganharam o Prêmio Nobel de fisiolo- gia e medicina em 1963 por analisarem as bases iônicas do potencial de ação no axônio da lula e são reconheci- dos na maioria dos livros-texto de neurociências, ofus- cando as significativas contribuições de Arvanitaki a es- ta área de estudo. Desde o trabalho sobre memória de Brenda Milner na década de 1960, muitas mulheres em várias áreas das neurociências têm sido reconhecidas como cientistas de ponta em suas áreas: Patricia Goldman-Rakic (neurofisio- logia e neuroanatomia do córtex frontal) – ex-presiden- te da Sociedade de Neurociências; Margaret Livingstone (neurofisiologia visual); Leslie Ungerleider (neuroima- gem cortical funcional); Carol Colby (visão e córtex parie- tal); Mary Hatten (neurofisiologia celular do desenvolvi- mento); Carla Shatz (neurofisiologia visual) – ex-presi- dente da Sociedade de Neurociências; Christine Nussel- lin-Volhard (neurofisiologia molecular), e, talvez a mais conhecida, Rita Levi-Montalcini, a neurobióloga que divi- diu o Prêmio Nobel de medicina de 1986 pela descoberta do fator de crescimento nervoso. Embora o campo das neurociências ainda tenha mais membros homens que mulheres, este desequilíbrio está desaparecendo rapida- mente, como pode ser visto pelo número de estudantes mulheres realizando sua formação em neurociências. Esquerda: Ida Hyde (1854-1945). Primeira mulher eleita para a Sociedade Americana de Fisiologia, 1902. Direita: Microeletrodo de Ida Hyde (1921). a, bateria; b, comutador; c, bobina de indução; d, presilha; e, fio de platina; f, ponta da pipeta; g, presilha; h, tubo de borracha. a b c d e f g h A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN34 seia no raciocínio indutivo, na estatística e nas probabili- dades. Ela não trata de inquietações a respeito de estados mentais, como felicidade, interesses pessoais e bem-estar geral. Cada pessoa pesa essas questões de maneira dife- rente e, como conseqüência, uma decisão racional é mais problemática do que uma simples decisão lógica. Clara- mente, o racionalismo é uma atividade mental complexa. O empirismo, por outro lado, é a idéia de que todo conhecimento advém de uma experiência sensorial. A experiência sensorial direta produz idéias e conceitos simples. Quando idéias simples interagem e se associam umas com as outras, idéias e conceitos complexos são criados em um sistema de conhecimento do indivíduo. Os filósofos britânicos – de Thomas Hobbes no século XVII, John Locke e David Hume, até John Stuart Mill no século XIX – enfatizaram o papel da experiência. Não é surpresa, então, que a principal escola de psicologia ex- perimental tenha nascido dessa visão associacionista. Um dos primeiros cientistas a defender o associa- cionismo foi Hermann Ebbinghaus. No final do século XIX, ele afirmou que processos complexos, como a me- mória, podiam ser medidos e analisados, saindo à fren- te dos notáveis psicofísicos Gustav Fechner e E.H. We- ber. Estes trabalhavam arduamente, relacionando as propriedades físicas de fenômenos, como a luz e o som, às experiências psicológicas que produziam no observa- dor. Essas medidas eram rigorosas e reproduzíveis. Eb- binghaus foi um dos primeiros a compreender que era possível medir processos mentais internos, como a me- mória (ver Capítulo 8). Ainda mais influente foi a monografia clássica de Ed- ward Thorndike, Animal Intelligence: An Experimental Study of the Associative Process in Animals (Figura 1.16). Nesse volume, publicado em 1911, Thorndike articulou sua lei do efeito, que foi a primeira demonstração sobre a natu- reza das associações. De vários pontos de vista, sua teo- ria era muito simples. Thorndike apenas observou que a resposta a uma recompensa estaria gravada no organis- mo como uma resposta habitual. Se não existisse recom- pensa após a resposta, esta desapareceria. Assim, as re- compensas eram responsáveis por disponibilizar um me- canismo que estabelecesse uma resposta mais adaptati- va. Essa idéia se assemelha um pouco com a teoria da se- leção natural de Darwin – na realidade, Thorndike foi profundamente influenciado por Darwin. Ainda assim, o pai do pensamento associativo em psicologia misturou sua terminologia. Associacionismo dificilmente combina com nativismo (isto é, a idéia de que muitas formas de conhecimento já estão presentes no organismo desde o nascimento). O associacionismo é comprometido com a idéia amplamente popularizada pelo psicólogo americano John B. Watson, que promo- veu a noção de que ele podia pegar qualquer bebê e transformá-lo em qualquer coisa (Figura 1.17). Apren- der era a chave da questão, ele proclamava, e todos ti- nham os mesmos equipamentos nos quais o aprendiza- do podia ser construído. A psicologia americana foi to- mada por essa idéia. Consumidos por isso, todos os grandes setores da psicologia dos Estados Unidos eram liderados por pessoas que tinham essa visão. Todo esse tumulto na psicologia behaviorista conti- nuou, apesar da bem-estabelecida posição – primeiramen- te articulada por Descartes, Leibniz, Kant e outros – de que a complexidade estava embutida no organismo. Infor- mações sensoriais são meramente dados nos quais estru- turas mentais preexistentes agem. Essa idéia, que domina a psicologia atualmente, foi alegremente afirmada nessa idade de ouro. Com os associacionistas tomando a frente, foram realizados milhares de experimentos e, pelo volu- me de atividade, roubaram essa questão para eles. A couraça dos behavioristas começou a quebrar, en- tretanto, quando os psicólogos da Gestalt, trabalhando com o fenômeno perceptual, demonstraram que a per- cepção era melhor compreendida em relação às proprie- dades emergentes de um estímulo. O movimento aparen- te, por exemplo, era uma propriedade emergente dos es- tímulos do mundo real. Existia somente como uma fun- ção das propriedades preexistentes no encéfalo. Não era aprendido. Os psicólogos gestaltistas desenvolveram cen- tenas de demonstrações mostrando pontos similares. O verdadeiro fim da dominância do behaviorismo e da psicologia do estímulo-resposta não veio antes do fi- nal dos anos de 1950. Quase de um dia para o outro, os psicólogos começaram a pensar em termos de cognição, e não somente em comportamento. George Miller, que era um behaviorista assumido, ofereceu o que ele cha- mou de “memórias muito pessoais” daquele evento (Fi- gura 1.18). Miller provocou uma revolução nos anos de 1950. Em 1951, ele escreveu um livro muito influente chamado Language and Communication e observou: “O viés é behaviorista...”. Onze anos depois, ele escreveu outro livro, chamado Psychology, the Science of Mental Life, título que reflete uma completa rejeição à idéia de que a psico-Figura 1.16 Edward L.Thorndike. NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 35 logia deveria estudar somente o comportamento. Con- forme as palavras de Miller: “Meu despertar cognitivo deve ter ocorrido nos anos de 1950”. Após uma rápida avaliação, Miller colocou a exata data de seu despertar em 11 de setembro de 1956, du- rante o Segundo Simpósio sobre Teoria da Informação, que ocorreu no Instituto de Tecnologia de Massachu- setts (MIT). Aquele foi um ano muito rico para várias disciplinas. Nas ciências da computação, Allen Newell e Herbert Simon lançaram com sucesso Information Processing Language I, um poderoso programa que si- mulava a prova dos teoremas lógicos. O guru da com- putação John von Neumann escreveu as Palestras Sil- liman em organização neural. Um famoso encontro sobre inteligência artificial aconteceu na Faculdade Dartmouth, com Marvin Minsky, Claude Shannon (co- nhecido como o pai da teoria da informação) e muitos outros. Grandes iniciativas também estavam acontecendo na psicologia. Como resultado da II Guerra Mundial, novas técnicas psicológicas estavam sendo aplicadas. James Tanner e John Swets utilizaram a detecção de sinais, teo- ria servo e a tecnologia computacional para estudar per- cepção. (Essas técnicas foram desenvolvidas, em grande parte, para ajudar o departamento de defesa americano a detectar submarinos.) Miller também escreveu seu clás- sico artigo “The Magical Number Seven, Plus-or-Minus two”, no qual mostrou que existe um limite no volume de informação que pode ser captada em um breve perío- do de tempo. Igualmente, o psicólogo do desenvolvi- mento Jerome Bruner estava trabalhando no problema do pensamento. Ao mesmo tempo em que via uma utili- dade limitada das idéias associacionistas no aprendizado infantil, ele acreditava em mecanismos superiores envol- vidos no pensamento, construídos por meio de represen- tações e mapas mentais. Talvez a mais importante reve- lação, entretanto, tenha sido o trabalho de Noam Chom- sky (Figura 1.19). Uma versão preliminar de suas idéias em teorias sintáticas foi publicada sob o título Three Mo- dels of Language. O esforço de Chomsky transformou o es- Figura 1.18 George A. Miller. Figura 1.19 Noam Chomsky. Figura 1.17 Esquerda: John B. Watson. Direita: John B. Watson e o “Pequeno Albert”, durante um de seus experimentos de condiciona- mento de medo. • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN38 É difícil entender a evolução meteórica das imagens ce- rebrais. Quando da 1a edição deste livro, o imageamento cerebral tinha algum apoio na neurociência cognitiva, mas a maior parte do trabalho provinha de poucos labo- ratórios ao redor do mundo. Na época da presente edi- ção, a neuroimagem expandiu-se para dezenas de cen- tros. Na realidade, hoje, todo o tradicional departamen- to acadêmico de psicologia possui um aparelho de resso- nância magnética no seu subsolo, ou planeja ter um. Co- mo tudo isso aconteceu? Como o estudo do fluxo san- güíneo cerebral por meio de imagens nos ajuda a enten- der processos como a atenção ou a leitura? Muitas coisas boas tiveram início na Itália, e isso in- clui a pesquisa do fisiologista Angelo Mosso, que traba- lhou em uma enfermaria de neurocirurgia e estudou pa- cientes com defeitos no crânio. Ele notou que a pulsação do córtex humano aumentava regionalmente durante a atividade mental. Com esse trabalho, Mosso havia esta- belecido a correlação entre o fluxo sangüíneo cerebral e a atividade neural. Mas foi somente após a II Guerra Mundial que a relação entre fluxo cerebral e função neural começou a ser quantificada. Seymour Kety, Lou Sokoloff, e mui- tos outros, a serviço do Instituto Nacional de Saúde, começaram a medir o fluxo cerebral no encéfalo de animais. Esse trabalho abriu caminho para o surgi- mento dos primeiros aparelhos de imagem cerebral. Primeiro, os pesquisadores escandinavos David Ing- var e Neils Lassen desenvolveram um capacete com contadores de cintilação que envolvia toda a cabeça e permitia a medida regional bruta de mudanças no flu- xo cerebral durante a atividade mental. Essa técnica logo deu lugar a uma tecnologia muito mais poderosa e espacialmente mais acurada chamada tomografia por emissão de pósitrons (TEP). Com a TEP, uma técnica desenvolvida na Universi- dade de Washington, em Saint Louis, tanto o fluxo ce- rebral como o metabolismo podiam ser quantificados. Usando procedimentos desenvolvidos por Kety e Soko- loff, os pesquisadores podiam agora, de forma similar, retratar o encéfalo humano. Rapidamente, entretanto, a medida do metabolismo perdeu espaço para a medi- da do fluxo cerebral. Com o desenvolvimento de radio- fármacos (p. ex., H2 15O) com meia-vida curta (123 se- como uma construção complexa realizada pelo encéfalo. Desde o avanço de Chomsky, ficou claro que a gramática é um instinto, enquanto o léxico é aprendido. O extraordinariamente talentoso David Marr, do MIT, fez um grande esforço para ligar os mecanismos ce- rebrais e a percepção. Marr, que morreu tragicamente muito jovem, deu uma visão do que seria a neurociência cognitiva. Como Kosslyn e Andersen (1992) colocaram, “naquele momento, o trabalho de Marr era unicamente interdisciplinar e particularmente importante porque propiciou os primeiros exemplos rigorosos de teorias da neurociência cognitiva”. Marr reforçou a idéia de que a computação neural pode ser compreendida pela análise em múltiplos níveis. Filósofos das ciências têm observado, há muito tempo, que um único fenômeno pode ser examinado em múlti- plos níveis de análise. Ao considerar a psicologia, filóso- fos como Jerry Fodor distinguiram níveis funcionais e fí- sicos; o nível funcional atribuía papéis e propósitos aos eventos, enquanto o nível físico caracterizava os compo- nentes elétricos e químicos próprios desses eventos. Marr levou esses passos iniciais muito adiante. Ele atribuiu uma hierarquia aos níveis, baseado na idéia de que o encéfalo computa. Assim, dividiu o nível funcional em dois níveis, um que caracteriza o que é computado e outro que caracteriza como a computação é realizada (is- to é, algoritmos), e mostrou como esses níveis relaciona- vam-se ao nível mais baixo, o de implementação. Apesar de moderna e arrojada, a abordagem de Marr não era muito precisa. Sua idéia foi adotada pelos teóricos cognitivos porque ele sugeriu que poderíamos entender o nível cognitivo simplesmente com a racio- nalidade. Teorias que pretendiam explicar aptidões mentais como a linguagem, a memória ou a atenção re- queriam análises mais profundas, incluindo algoritmos, para descrever como os processos neuropsicológicos produzem o estado cognitivo. Mas as idéias de Marr não funcionaram completa- mente. A distinção entre níveis – isto é, entre os algorit- mos e os mecanismos de implementação dos neurônios – era muito vaga. Não existe somente um tipo de neurô- nio no encéfalo; há muitos tipos, cada um com proprie- dades diferentes, acionado por diferentes neurotrans- missores, e assim por diante. Qualquer teoria computa- cional, por conseqüência, deve ser sensível à real biolo- gia do sistema nervoso e limitada pela maneira como o encéfalo realmente funciona – e ele funciona de maneira diferente para diferentes funções. Não que amplas generalizações das funções do siste- ma nervoso não existam. Elas existem e permitem que os cientistas procurem por mecanismos específicos, o que levou ao crescimento rápido do campo de pesquisas de rede neural. Aqui, os cientistas constroem modelos de como o encéfalo pode funcionar e tentam limitar co- mo as redes funcionam, incluindo informações da neuro- fisiologia e da neuroanatomia. O SÚBITO NASCIMENTO DO IMAGEAMENTO CEREBRAL NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 39 Aprendemos como pelo menos dois campos acadêmicos ricos e poderosos se uniram para produzir outro campo científico de pesquisa, a neurociência cognitiva. A ciên- cia do encéfalo emergiu no século passado e deu-nos o conhecimento de que ele é feito de unidades distintas – os neurônios. Cajal uniu a história sobre a importância de entidades distintas, neurônios funcionais, e como eles devem interagir para produzir o comportamento. Em um nível mais geral, linhas de batalha foram travadas para determinar de que modo o encéfalo, como um todo, era organizado. Alguns pesquisadores acreditavam que as funções eram localizadas em áreas distintas do encéfalo; outros se opuseram duramente a essa idéia e sustenta- ram a tese de que as funções eram representadas em to- do córtex cerebral. Como o debate a respeito da localização continuou no século XX, os psicólogos começaram a pensar dife- rentemente sobre suas teorias. Colocando as idéias de Freud de lado, os maiores cientistas experimentais que trabalhavam em temas da psicologia passaram a acredi- tar em alguma forma de associacionismo. Em princípio, entendiam que tudo o que influenciava o organismo, no sentido de explicar por que e o que as pessoas aprendiam e lembravam, era baseado na teoria da recompensa e pu- nição. Essa convicção de que as contingências do am- biente poderiam explicar tudo tornou-se parte essencial desse pensamento. Afinal, isso refletia o “sonho ameri- cano”. Qualquer um podia tornar-se qualquer coisa no ambiente certo. Tudo isso veio abaixo no fim da década de 1950. O empirismo não conseguiu explicar funções mentais com- plexas, como a linguagem e outras funções perceptuais. Os cientistas começaram a considerar que a representa- ção de informações vinha embutida no encéfalo pratica- mente desde o nascimento. Conseqüentemente, surgiu a psicologia cognitiva, que promoveu a noção de que está- gios de processamento e atividade cognitiva podiam ser analisados levando em consideração seus componentes interligados. Entretanto, toda essa atividade produziu uma nova visão. Se alguém quisesse entender como o encéfalo per- mitia a cognição, o pensamento da neurociência não es- tava preparado para tal trabalho. Da mesma maneira, na psicologia propriamente dita, modelos estavam sendo construídos, e processos mentais estavam sendo simula- dos – mas sem interesse a respeito de como o encéfalo fazia o trabalho. Ou seja, houve interesse em como a mente devia funcionar, ou como podia funcionar, mas não em como realmente funciona. Neste livro, explora- mos como realmente o cérebro dá origem à mente. gundos), o fluxo cerebral podia ser medido rapidamen- te (<1 minuto), e cada indivíduo podia ser estudado várias vezes, permitindo, assim, medidas cognitivas complexas. Na década de 1980, começou a existir um grande inte- resse em como a TEP poderia ajudar a esclarecer a cogni- ção humana. Psicólogos cognitivos rapidamente se envol- veram nesses estudos. Michael I. Posner e Steve Petersen uniram esforços na Universidade de Washington e colabo- raram com Marcus Raichle. Seu trabalho pioneiro lançou um campo inteiro de pesquisa. Nos 10 anos seguintes, pesquisadores realizaram estudos e mais estudos usando basicamente o chamado método da subtração. Derivado ori- ginalmente do trabalho realizado pelo fisiologista holan- dês Franciscus Donders em 1868, esse método envolve a subtração de um mapeamento cerebral adquirido durante um estado de comportamento particular de outro mapea- mento feito durante um diferente estado de comporta- mento. Assim, um mapeamento obtido enquanto alguém olhava uma tela branca podia ser subtraído de um mapea- mento feito quando a mesma pessoa olhava a mesma tela com uma palavra escrita. O mapeamento subtraído isola- va um processo especificamente associado com a leitura. Enquanto esses estudos revolucionários estavam sendo conduzidos, outro avanço em imagem cerebral foi desenvolvido. Ele se baseava em outro princípio fí- sico, o comportamento dos átomos de hidrogênio ou prótons em um campo magnético. Paul Lauterbur, en- tão na Universidade de Illinois, percebeu como traba- lhos anteriores da física podiam ser utilizados para se fazer imagens biológicas, e sua criatividade levou ao desenvolvimento da imagem por ressônancia magnéti- ca (IRM). Inicialmente, as imagens eram relacionadas com a anatomia do encéfalo; estas eram chamadas ima- gens estruturais. Contudo, Seiji Ogawa e colaboradores rapidamente entenderam que o estado funcional do encéfalo também podia ser representado. Baseado em fatos químicos prévios, descobertos por Linus Pauling e colaboradores – segundo os quais o montante de oxi- gênio carregado pela hemoglobina muda o grau pelo qual a hemoglobina perturba o campo magnético—, a idéia de trilhar o fluxo cerebral usando IRM tornou-se uma realidade. O sinal tornou-se conhecido como o “sinal dependente do nível sangüíneo de oxigênio”, ou blood oxygen level dependent (BOLD), e é a base para a maioria dos estudos em imagem cerebral. Os detalhes dos métodos de imagem serão apresentados no Capí- tulo 4. Para saber mais sobre essa fascinante história, leia a excelente revisão escrita por um dos fundadores desse campo, Marcus Raichle (1998). RESUMO • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN40 associacionismo behaviorismo campo agregado citoarquitetura diásquise empirismo frenologia holismo localização racionalismo sincício doutrina neuronal TERMOS-CHAVE 1. É possível realizar um estudo sobre como a mente trabalha sem se estudar o encéfalo? 2. Os novos experimentos em imageamento cerebral poderão tornar-se a nova frenologia? 3. O que os psicólogos cognitivos querem dizer com o termo representação? E o que os neurocientistas querem dizer com esse termo? 4. Você consegue imaginar como o encéfalo poderá ser escaneado no futuro? QUESTÕES PARA PENSAR KASS-SIMON, G., and FARNES, P. (1990). Women of Science: Righting the Record. Bloomington, IN: Indiana University Press. LINDZEY, G. (Ed.). (1936). History of Psychology in Autobio- graphy, Vol. III. Worcester, MA: Clark University Press. RAICHLE, M.E. (1998). Behind the scenes of functional brain imaging: A historical and physiological perspective. Proc. Nat. Acad. Sci. U.S.A. 95:765-772. SHEPHERD, G.M. (1992). Foundations of the Neuron Doctrine. New York: Oxford University Press. LEITURAS SUGERIDAS
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