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A Filosofia do Absoluto: Um Olhar sobre o Idealismo Alemão de Kant a Hegel, Manuais, Projetos, Pesquisas de Filosofia

Idealismo AlemãoFilosofia TranscendentalFilosofia do AbsolutoFilosofia AlemãFilosofia da natureza

Uma análise detalhada da filosofia do absoluto, com ênfase no idealismo alemão de filósofos como kant, fichte e schelling. Ele discute as ideias de filosofia como a ciência suprema, a síntese entre filosofia transcendental e filosofia da natureza, e a identidade absoluta como fundamento da filosofia. O texto também aborda a importância da reflexão sobre a união do mundo ideal com o mundo real, e a evolução da idéia ou do espírito universal.

O que você vai aprender

  • Qual é a importância da reflexão sobre a identidade absoluta na filosofia?
  • Quais são as três partes da filosofia do espírito de Hegel?
  • Qual é a ideia básica do Idealismo Alemão sobre a filosofia?
  • Como a Idéia ou o espírito universal evolui de ser ideal a ser real?
  • Como Schelling tentou realizar a síntese entre filosofia transcendental e filosofia da natureza?

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Amanda_90 🇧🇷

4.6

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Baixe A Filosofia do Absoluto: Um Olhar sobre o Idealismo Alemão de Kant a Hegel e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Filosofia, somente na Docsity! 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ TOYAH ALEXSANDRO THÊOS BAPTISTA DOS SANTOS A Noção de Sistema na Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio de Hegel FORTALEZA – CEARÁ 2006 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ TOYAH ALEXSANDRO THÊOS BAPTISTA DOS SANTOS A Noção de Sistema na Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio de Hegel Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de concentração: Filosofia Contemporânea Orientadora: Profa. Dra. Marly Carvalho Soares. FORTALEZA – CEARÁ 2006 4 Dedico este trabalho: A meus pais que tanto me ensinaram e incentivaram sobre a importância de uma vida de trabalho, respeito e dignidade para com o ser humano. A minha irmã, Heloisa, que tanto incentivou meus esforços com palavras de carinho, amor e esperança, motivando-me para lutar sempre. Ao grande amigo e irmão Prof. Ms. José Iran Nobre de Sena, pelos dias dedicados ao esclarecimento da filosofia hegeliana, este a quem devo fraternidade e gratidão eterna... A Profa. Dra. Marly Carvalho Soares, sendo a luz no caminho do drama do desenvolvimento da consciência da filosofia hegeliana, sendo não somente o guia, mas a grande amiga e companheira, que caminhou comigo sempre numa postura de integridade, seriedade e de respeito, a quem devo esta pesquisa. A minha mãe, amiga e companheira, pela paciência, dedicação, amor e compreensão nos momentos de angústia e aflição que foram não somente na composição deste trabalho, como também, nas tempestades da que juntos vivemos. Ao grande e imenso amor de Deus em minha vida, que sempre ilumina meus caminhos com pessoas possuidoras de enorme humanidade, respeito e compreensão, pois somente com a vossa presença maravilhosa é que vencemos... 5 Meus agradecimentos Ao Prof. Dr. Manfredo Araújo Oliveira, grandioso mestre, que sempre nas horas de dificuldades iluminou-me com considerações sempre oportunas acerca do pensamento filosófico de Hegel e pela confiança depositada na realização deste trabalho. Aos Prof. Dr. Custódio Almeida; pela amizade, atenção, simplicidade e sempre atento às necessidades daqueles que se encontram rumo ao caminho da luz filosófica. Ao grande amigo Prof. João Nogueira Mota Moraes – Diretor do Centro de Humanidades da UECE, que fora sempre a rocha de amparo em minha vida acadêmica. Ao Prof. Dr. Reginaldo da Costa, sempre atento e dedicado ao desenvolvimento dos seus alunos e da filosofia na Universidade Estado do Ceará. Ao Prof. Dr. Kleber Carneiro Amora, grande amigo e companheiro, pois nas horas difíceis em minha pesquisa, sempre esteve atento, orientando-me com intenso calor nas leituras difíceis e obscuras da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Aos prestimosos colegas do Mestrado e demais professores do Colegiado de Filosofia da UFC, e a todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente em minha vida acadêmica, pois somente com vossa participação é que foi possível este trabalho... 6 Epígrafe “O Indivíduo orgânico se produz a si mesmo, ele se faz o que é em si (...). Esta evolução se produz de maneira imediata, sem oposição e sem obstáculo. Nada pode se imiscuir entre o conceito e sua realização, a natureza do germe determinado em si e a existência que lhe é conveniente. No espírito isto é diferente. A passagem de sua determinação à sua realização se efetua graças à consciência e à vontade, as quais são primeiramente mergulhadas em sua vida natural imediata; por objeto e fim, elas têm antes de tudo a determinação natural como tal, que, pelo fato de que é o espírito que a anima, é em si mesma infinita quanto à sua pretensão, a seu poder e a sua riqueza. (...); ele é por si mesmo o verdadeiro obstáculo hostil que deve vencer; a evolução, calma produção na natureza, constitui para o espírito uma luta árdua, infinita, contra si mesmo. O que o espírito quer é alcançar seu próprio conceito; mas ele mesmo se o esconde e nesta alienação de si mesmo sente-se orgulhoso e pleno de alegria. Desta maneira, a evolução não é simples eclosão, sem esforço e sem luta, como a da vida orgânica, mas o trabalho duro e forçado sobre si mesmo”. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 PARTE I ........................................................................................................... 11 CONTRIBUIÇÕES À CONCEPÇÃO HEGELIANA DE SISTEMA ................... 11 CAPÍTULO 1 - O CONTEXTO FILOSÓFICO DE HEGEL ............................. 19 1.1 – O Contexto Filosófico e a Fundação do Sistema de Hegel ................ 19 1.1.1 – O Desenvolvimento do Kantismo ................................................ 21 1.1.1.1 – Os expoentes do Idealismo Alemão ..................................... 23 CAPÍTULO 2 – O IDEALISMO SUBJETIVO DE FICHTE ............................... 28 2.1 – A Doutrina-da-Ciência ........................................................................ 29 2.2 – O Ponto de Partida e o Princípio do Idealismo Subjetivo ................... 31 2.3 – Idealismo e Dogmatismo .................................................................... 34 2.4 – A Filosofia do Eu Puro ou Absoluto .................................................... 37 2.5 – O Eu Puro como Ato e a Intuição Intelectual ..................................... 40 2.6 – A Dialética do Eu ................................................................................ 44 2.7 – O Eu Infinito e o Eu Finito .................................................................. 50 2.8 – Da Dedução Transcendental a Multiplicidade do Mundo ................... 53 CAPÍTULO 3 – O IDEALISMO OBJETIVO DE SCHELLING .......................... 57 3.1 – Do Idealismo Subjetivo ao Idealismo Objetivo ................................... 59 3.2 – A Filosofia da Natureza ...................................................................... 63 3.3 – A Organização do Mundo .................................................................. 65 3.4 – Monismo Vitalista ............................................................................... 68 3.5 – O Sistema do Idealismo Transcendental ........................................... 71 3.5.1 - Do Sujeito ao Objeto .................................................................... 72 8 PARTE II .......................................................................................................... 74 A CONCEPÇÃO HEGELIANA DE SISTEMA .................................................. 74 CAPÍTULO I – O IDEALISMO ABSOLUTO DE HEGEL ................................. 80 1.1 - O Racionalismo Idealista .................................................................... 80 1.2 - A Originalidade da Dialética de Hegel ................................................ 83 1.3 - A Dialética do Finito e do Infinito ......................................................... 88 1.4 - O Espírito Absoluto como Deus .......................................................... 92 1.5 - O Espírito Absoluto como Idéia ........................................................... 94 CAPÍTULO 2 - O DEVIR DIALÉTICO DA IDÉIA ABSOLUTA ...................... 97 2.1 - Premissas Fundamentais do Sistema de Hegel ................................. 97 2.2 - O Desenvolvimento da Idéia Lógica ................................................. 102 2.2.1 - A Doutrina do Ser ..................................................................... 105 2.2.2 - A Doutrina da Essência ............................................................ 107 2.2.3 - A Doutrina do Conceito ............................................................. 111 2.3 - O Desenvolvimento da Idéia como Natureza .................................... 116 2.3.1 - A Mecânica ............................................................................... 122 2.3.2 - A Física ..................................................................................... 124 2.3.3 - A Física Orgânica ..................................................................... 126 2.4 - O Desenvolvimento da Idéia como Espírito ...................................... 129 2.4.1 - O Espírito Subjetivo .................................................................. 132 2.4.2 - O Espírito Objetivo .................................................................... 138 2.4.3 - A Evolução do Espírito Absoluto ............................................... 147 CAPÍTULO 3 - A NOÇÃO HEGELIANA DE SISTEMA NA ENCICLOPÉDIA À GUISA CONCLUSIVA ................................................................................... 164 3.1 - As Objeções ao Discurso Sistemático de Hegel ............................ 164 3.2 - A Noção de Sistema na Enciclopédia ............................................ 170 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 178 9 Introdução Primeiramente, queremos informar que durante a jornada filosófica, que a própria pesquisa nos levou a realizar, observamos que as muitas obras que comentam o pensamento filosófico de Hegel, onde a maioria faz objeções ao seu sistema dialético-discursivo, por não compreenderem como o mesmo se efetiva e/ou realiza. Incompreensão que já ocorria em seu momento História, como o próprio pensador declara, na Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio no Prefácio à terceira edição, que: “apareceram muitas críticas ao meu filosofar, as quais na sua maioria mostraram pouca vocação para essa tarefa”, e que “o iluminismo do entendimento por seu pensar formal, abstrato, carente-de-conteúdo, (...), mantiveram-se firme em seu formalismo (...)”; e, assim, condenaram o seu sistema discursivo dialético filosófico de necessitarista, determinista, dogmático, individualista e de totalitarista (HEGEL, 1830, p. 33-36). Assim, Iniciamos esta pesquisa pela realização de uma visão panorâmica do momento histórico, como também, dos problemas ocorridos no período moderno, buscando suas respectivas respostas pelos principais filósofos do Idealismo Alemão, que viviam numa Europa fragmentada e feudalizada; em seguida mostraremos em linhas gerais, que o pensamento sistemático dos filósofos, que antecederam Hegel portava de forma embrionária a noção de uma filosofia sistêmica, onde explicitaremos na exposição do pensamento sistemático-filosófico de Kant, Fichte e Schelling; e como estes influenciaram e foram decisivos na gênese do pensamento: sistemático, dialético e discursivo de Hegel. Em seguida a pesquisa, em seu capítulo primeiro, discorrerá sobre a origem da dialética em Heráclito, Parmênides etc., como também, as influências do pensamento sistemático de Kant, da dialética sistemática de Fichte, e ainda do pensamento sistemático de Schelling e, finalmente, a dialética hegeliana propriamente dita. Assim, após esse itinerário realizado em formas gerais nos sistemas de Kant, Fichte e Schelling; percorreremos o sistema filosófico de Hegel, que já havia se manifestado desde “As Diferenças 12 época das Luzes, que, recusando as verdades ditadas por autoridades, submetem tudo ao crivo da crítica. Porém, ninguém foi tão longe, nesse aspecto quanto Kant, que colocou a própria razão sob julgamento. Mas do que isso, com ele a crítica assume um sentido preciso e se torna atitude sistemática. Assim, a filosofia kantiana surge num momento em que a ideologia burguesa atinge o seu apogeu, baseada nos princípios do racionalismo e do empirismo; onde o ceticismo de Hume pareceu a muitos uma ameaça à convivência humana, dada à insegurança que ele implicava, ou seja, era preciso que se encontrassem fundamentos mais sólidos. Assim, aceitando a crítica de Hume, Kant se propõe a estabelecer esses fundamentos, que irá buscá-los na razão, como fez tempos atrás Sócrates e Platão, somente que, agora, a razão fizera a experiência da imanência e da ciência. Neste sentido, Kant não vai apelar para uma razão transcendente, mas para a própria razão humana, que criará um instrumento apto de autocontrole, que seria a ciência experimental. Porém, por outro lado, Kant não renuncia a ordem dos valores, os quais se mostram arredios à análise científica, mas, por ele, são integrados no horizonte da racionalidade, por meio da razão prática. Nesse sentido, o pensamento kantiano já é todo moderno, aonde a solução para o problema gnosiológico e ético se situa no horizonte do homem, onde Deus não é mais o ponto de referência, com isso a própria religião encontra, no homem, o horizonte de sua legitimidade. Então, Kant faz duas perguntas: como fundamentar, filosoficamente, a nova ciência, ou seja, a física e como fundamentar a moralidade? Ora, vale salientar, que devemos antes de tudo sentir a problemática da ciência, da maneira como Kant a sentiu, que para isso teremos que remontar à concepção de ciência legada ao Ocidente pelos Gregos e mantida pelos filósofos cristãos medievais, onde a ciência era aquele conhecimento universal e certo, do qual não se podia duvidar, pois o que garantia a universalidade e a certeza do conhecimento científico não era a experiência, mas somente a razão. Nesse sentido, a experiência fazia-nos conhecer somente fatos individuais, ou seja: esta laranja aqui, aquela laranja lá e etc. Assim, era a razão que ultrapassava os dados do sentido, marcados pelo espaço e pelo tempo, e colhia a essência, ou 13 seja, o dado universal e imutável, presente em todo objeto existente. Ora, era esse universal que a experiência não dava, aquele que possibilitava o discurso universal e certo da ciência; com isso vemos que toda essa justificativa era bastante eloqüente , quando as ciências, por excelência, eram a teologia, a filosofia e o direito. Mas, agora, a ciência que já se impunha, o conhecimento que abria caminhos largos para a Europa moderna, era a física; que a partir de Bacon e Galileu, ela se baseava, fundamentalmente, na experiência; onde os fatos pareciam mostrar que a razão foi destronada pela experiência. Assim, Kant na Crítica da razão Pura (1781 e 1787), procura mostrar que não; que também o discurso científico moderno, o da física, era, em última análise, um discurso da razão sobre a experiência, ou seja, a razão mantinha a primazia. Mas Kant nos ensina é que nós homens não conhecemos as coisas como as coisas são, e isso não porque ainda estamos atrasados e não conseguimos meios para conhecê- las, nem mesmo por causa dos condicionamentos psicológicos e sociológicos. Porém, a afirmação de Kant é mais radical, que não conhecemos as coisas tais quais são e jamais o conseguiremos, porque não temos capacidade para isso, pois somente o criador pode conhecer as coisas tais quais são, ou seja, as chamadas coisas-em-si. Mas nós conhecemos as coisas, na forma em que elas são apreendidas pelo nosso intelecto. Ora, nossos sentidos e nosso intelecto, que com uma só palavra Kant chama de razão teórica, são finitos, são limitados, tem sua maneira, digamos assim, de filtrar as coisas, ou seja, com isso é a coisa já filtrada que conhecemos. Assim, o sistema delineado por Kant surge como se fosse das mãos de um arquiteto, ou seja, simplesmente vai colocando os elementos do sistema num local específico; sem, no entanto, mostrar como cada um surgiu através dos encadeamentos lógicos de aumento de níveis de reflexividade. O mesmo caminho seguirá Fichte através da exposição do seu sistema do Idealismo Subjetivo, conforme exposto na Doutrina da Ciência de 1794. Porém, a metodologia fichteana é oposta a de Kant, onde parte de uma ciência tida como correta, procurando ascender ao conhecimento verdadeiro dos elementos transcendentais que a possibilitam. Segundo Fichte, iniciamos do 14 ponto de vista filosófico ou transcendental, tendo como ponto de partida uma proposição básica, uma vez que todo o sistema da experiência está nela implicado, assim inferimos dela as demais proposições da Doutrina da Ciência, ou seja, temos a ciência capaz de juízos sintéticos necessários e universais, construída a partir do saber filosófico, sendo um procedimento progressivo, e ao utilizar tal procedimento à filosofia fichteana estaria livre do problema da má circularidade, que contaminou o método transcendental de Kant, ou seja, “todas as outras proposições terão apenas uma certeza mediada e derivada dela; ela tem de ser imediatamente certeza. Nela se funda todo saber, e sem ela não seria possível em geral nenhum saber; mas ela não se funda em nenhum outro saber, e é a proposição do saber pura e simplesmente (Grifo meu)”. Mas esta ciência das ciências é também uma ciência, e como tal tem também uma sentença fundante, ou seja, da sentença fundamento se seguem todas as outras sentenças fundantes, sendo deduzíveis da primeira tanto na forma quanto no conteúdo, assim um sistema do saber só é possível sob a pressuposição de uma primeira sentença-fundamento à qual todos os demais saberes devem poder ser conduzidos, onde a filosofia se revela como ciência suprema dos princípios, cuja tarefa fundamental consiste na fundamentação dos princípios de todas as ciências e em estabelecer o sistema das ciências. Nesse sentido, “a proposição (...), – não pode adquirir sua certeza mediante a vinculação com as demais, mas deve tê-la anteriormente a essa vinculação; pois da unificação de várias partes não pode surgir nada que não esteja em nenhuma das partes. Mas todas as demais teriam de receber dela a sua certeza. Ela teria de ser certa e estipulada antes de toda vinculação”. Mas como podemos ter certeza do princípio antes de realizarmos o sistema ou a Doutrina da Ciência, propriamente dita? Porém, Fichte percebeu essa dificuldade, tematizando-a em “Sobre o conceito da Ciência”, mas não foi capaz de superá-la nesse contexto nem na própria “Doutrina da Ciência” em sua primeira versão, assim uma filosofia que quer ser efetivamente ser crítica não pode estar assentada em um mero postulado, como também um sistema da ciência que se quer como certo e válido de modo a priori, e mesmo como o fundamento de um saber absoluto, não pode depender de um princípio dado 17 subjetividade e objetividade, que para Schelling seria a Intuição Intelectual, que seria aquele ato primeiro que permite o acesso ao absoluto de modo imediato, onde reconheceríamos que a estrutura lógica do pensamento e a estrutura ontológica que constitui todas as coisas são uma e a mesma coisa, onde ser e pensamento são conhecidos como idênticos (SCHELLING, 1984, p. 128-129). Segundo Schelling, a Intuição Intelectual além de possibilitar o acesso ao absoluto, ela também é o tipo de conhecimento através do qual se realiza a própria construção teórica do mundo pelo filósofo, assim teríamos a postulação de um conhecimento a priórico intuitivo, não discursivo, estendendo-o a todo conhecimento filosófico, onde a Intuição Intelectual era considerada como o conceito chave de um conhecimento absoluto e indubitável, onde o recurso à intuição intelectual seria o divisor de águas com relação ao kantismo, pois ao assumirmos a possibilidade desse ponto de vista absoluto, eliminamos a oscilação entre dois tipos de procedimento, que seria o regressivo-crítico e outro progressivo-dogmático, oriunda de Kant e presente na primeira versão da Doutrina da Ciência de Fichte. Assim, não havendo oposição entre o método e a coisa não há sentido à postulação de nenhuma dúvida sobre os resultados conquistados pela Filosofia da Identidade. Ora, mesmo assim, ainda não se demonstrou como a inteligência constitui a natureza, desta forma teríamos o mesmo erro cometido por Fichte, novamente ocorrendo em Schelling, uma estrutura lógica absoluta precedendo a natureza, como uma figura da filosofia do real, o espírito que brota da natureza, limitando a identidade do real e do ideal a uma particularidade, que é a consciência subjetiva, e pensando sua absolutidade como objeto de uma tarefa infinita em vez de vê-la realizada no próprio Absoluto. Nesse sentido, não seria apenas dizer que uma aponta para a outra, mas se faz necessário demonstrar e explicitar as estruturas lógicas e universais. Observemos que Schelling esteve a um passo no sentido de realizar o pensamento de uma síntese entre filosofia transcendental e filosofia da natureza, correspondendo à concepção de sujeito e objeto, aquela estrutura em que ambos se referem a um ponto de indiferença, devendo ser concebido como idênticos. 18 Assim, esta unidade seria, imediatamente, à razão numa Intuição intelectual, aquela esfera em que sujeito e objeto é o mesmo e não o diverso como acontecia na Intuição sensível da filosofia kantiana, onde o Eu contemplador e o Eu contemplado se identificavam, e assim, a Intuição Intelectual seria aquele órgão supremo do pensamento transcendental, sendo o pressuposto sem o qual a filosofia kantiana seria impensável, pois sem este fundamento o sistema kantiano não se sustentaria, sendo o que constitui a “razão absoluta”: a esfera de “(...) indiferenciação total do subjetivo e do objetivo”. Assim, a Indiferença absoluta seria aquela instância em que teríamos uma não diferenciação entre sujeito e objeto, sendo o uno e o todo, ou seja, indiferença de Idealidade e Realidade, Conceito e Ser, Essência e Existência, assim ela não seria nem sujeito e tão pouco objeto, ou poderia ser ambos numa identidade originária e indiferenciada, encontrando sua unidade no Absoluto (SCHELLING, 1984, p. 96-97, § 246), sendo o fundamento da natureza e da consciência, onde tudo emergiria em sua essência última, ou seja, em sua verdade como pura identidade da identidade, autoconsciência (consciência-de-si), pois tudo existe somente na identidade, não existe algo fora da identidade, nesse sentido ela é igual a si mesma, assim a identidade absoluta é totalidade absoluta (HARTMANN, 1960, p. 159-1162.), uma vez que para Schelling a tematização da identidade absoluta do subjetivo e do objetivo não pertence ao próprio sistema, mas sim o precede (SCHELLING, 1984, p. 96, p. § 246). Assim, vemos claramente a indemonstrabilidade de tal identidade, pois se o Absoluto não é reflexivamente demonstrado, tudo o mais é arbitrário, situando-se nesse sentido, a crítica de Hegel com relação à Schelling. Neste sentido, mostraremos as premissas fundamentais existentes no pensamento filosófico e sistemático de Kant, Fichte e Schelling, que possivelmente contribuíram e possibilitaram a formação, o surgimento e o desenvolvimento do Idealismo Absoluto elaborado por Hegel. 19 Capítulo 1 - O CONTEXTO FILOSÓFICO DE HEGEL Segundo Hegel, sua própria época, como também, a que imediatamente precedeu, portava historicamente a exigência de um pensamento sistemático, capaz de dar conta da realidade como um todo. Necessidade esta também manifestada no esforço de alguns filósofos do Idealismo Alemão, que de forma consciente ou inconsciente, expressaram a noção de sistema como forma de responder aos problemas de sua época. Neste capítulo, portanto, trataremos da exposição do contexto filosófico de Hegel, que segundo o próprio filósofo possibilitaram a realização de sua filosofia sistemática. Nesse sentido, delinearemos o panorama filosófico da Europa, marcado por grandes transformações econômicas, sociais, culturais e políticas, bem como pela grande efervescência intelectual, especialmente explicitada pelo pensamento de filósofos como Descartes, Spinoza, Kant, Fichte e Schelling, etc. que, justamente, lançaram seu esforço reflexivo para compreender essa epocalidade de conflitos econômicos, sociais, culturais e políticos. 1.1 – O Contexto Filosófico e a Fundação do Sistema de Hegel O contexto filosófico que imediatamente precedeu Hegel foi caracterizado pela reação do Idealismo Alemão ao Empirismo Inglês; que dizia não haver nenhum conceito ou lei que pudesse aspirar à universalidade e que a unidade da razão era apenas uma unidade conferida pelo uso do hábito ou pelo costume, unidade que aderia aos fatos sem jamais os governar. Idealismo Alemão, em contraposição, emergiu como um projeto filosófico, que tomava para si a tarefa de unificar a unidade e a multiplicidade através de uma estrutura racional produtora de leis e conceitos gerais capazes de constituir os padrões universais da realidade, fundados na autonomia do sujeito. Nesse sentido, o Idealismo Alemão se inicia na segunda metade do século XVIII, onde nos encontramos com um dos mais notáveis florescimentos da especulação metafísica, que aparecem na história da filosofia ocidental, apresentando uma sucessão de sistemas de original interpretação da realidade, da vida humana e da história, que possuíam uma grandeza 22 Imanência e Variadas Formas de Positivismo neokantismo, Fenomenologia. Mas, podemos observar que, nenhumas dessas correntes conservam de forma pura a herança kantiana, tratando-se de sucessivas transformações de sua filosofia crítica; onde a primeira corrente após a Crítica kantiana foi o Idealismo Transcendental, que se manifesta nos seguidores continuadores de Kant (kantianos e antikantianos) como: K. L. Reinhold, G. E. Schulze, S. Maimon, J. S. Beck, F. H. Jacobi, C. G. Bardili e finalmente Fichte. O Idealismo, em sentido impróprio e vulgar como proclama os materialistas ou positivistas, seria toda filosofia que partindo de uma reflexão sobre a realidade, encontra uma solução em um nível acima da empiricidade dos dados imediatos, ou seja, toda filosofia metafísica que se eleva ao espiritual e transcendente; paralela a esta é a forma do Idealismo do pensador ou do filósofo, que é chamado idealista porque é atraído e elevado aos grandes valores ideais de bem, da beleza, da moral e da religião, e incluindo os ideais patrióticos e políticos em geral, ou seja, doutrina segundo a qual, reduzindo-se a filosofia a teoria do conhecimento, somente se pode alcançar o subjetivo e fenomenal, e toda metafísica, entendida como o conhecimento do objetivo e do absoluto, é impossível. Mas o Idealismo em sentido próprio seria o sistema que negaria a existência das coisas fora do pensamento e, portanto, sendo a filosofia que, opondo-se ao realismo que é a doutrina segundo a qual o ser é por natureza independente e indiferente do pensamento, chega a afirmar a imanência de todo o mundo empírico na atividade criadora do sujeito pensante. Na filosofia grega, Platão foi o primeiro idealista somente em sentido geral, porque seu pensamento se elevava ao mundo das idéias abstratas e supra-empíricas como se fossem arquétipos das coisas e fundamento da realidade destas. Mas seu idealismo lógico-ontológico não era um idealismo gnosiológico como ocorreu na filosofia posterior. Platão não lhe havia ocorrido negar a realidade das coisas fora de nós, ao contrário, ao colocar as idéias subsistentes para explicar os seres concretos, cabe dizer que se duplicava a realidade, como Aristóteles por sua vez lhe reprovava (realismo exagerado). De igual modo, grande parte da filosofia Grega, era realista, estando penetrada de idealismo em sentido amplo, enquanto solicitada a se elevar sobre o mundo 23 real da experiência para explicar o mundo por realidades transcendentes ao empírico. Aristóteles é mais realista do que idealista, pois este se situava sobre o nível empírico, recorre à tendência platônica para explicar sua realidade íntima por princípios transcendentes. O problema do idealismo não é da filosofia clássica e cristã, mas da filosofia moderna, pois suas raízes estão em Descartes, que é o ponto de partida. O cogito cartesiano põe decididamente o homem, ou a autoconsciência, no centro do mundo da experiência, suas idéias claras e distintas, inatas na mente e que refletem com perfeição as coisas, desde si mesmas, tendem a ser a medida da realidade. Observamos que Descartes não concedeu ao cogito ou a autoconsciência o significado que pelo idealismo lhe foi atribuído, destinado a ser o princípio absoluto de todo o real. A filosofia clássica buscava no objeto a norma do pensamento, mas a corrente moderna fazia o idealismo, desde Descartes, Locke e Hume, buscar a norma da validade de todo o conhecimento na atividade pensante do sujeito. Tal atitude favorece a tendência a resolver a realidade na atividade do pensamento. Berkeley foi o primeiro que tentou negar a existência material do mundo externo a nós, crendo apoiar uma concepção espiritual do sujeito. 1.1.1.1 – Os expoentes do Idealismo Alemão Na primeira metade do século XIX, encontramos-nos com um dos mais notáveis florescimentos da especulação metafísica, que aparecem na história da filosofia ocidental, apresentando uma sucessão de sistemas de original interpretação da realidade, da vida humana e da história, que possuíam uma grandeza inquestionável e que eram capazes de exercer sobre as mentes um peculiar poder de fascinação. Cada um dos pensadores dirigentes deste período possuía a intenção de resolver o enigma do mundo, de revelar o secreto do universo e o significado da existência humana2. 2 - HARTMANN. Nicolai, A Filosofia do Idealismo Alemão, tradução do original alemão intitulado: Die Philosophie dês Deutschen Idealismus, 4ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, São Paulo, 1960, p. 5-6. 24 Os expoentes do Idealismo Alemão são: Fichte, Schelling e Hegel, estes filósofos colocaram uma confiança no poder da razão e na missão da filosofia, mostrando a realidade como uma automanifestação infinita da razão, onde o processo vital desta auto-expressão da razão pode ser descoberto pela reflexão. Estes filósofos do Idealismo Alemão estavam convencidos de que se podia atingir o espírito Absoluto ou a Idéia através de uma investigação transcendental da razão e que a natureza da realidade pode ser revelada à consciência humana e cada um expressava sua visão do universo com certa confiança em sua objetividade. Assim, a temática culminante no Idealismo Alemão é o problema teológico das relações entre o Absoluto, o divino infinito e o finito, sendo a preocupação central no pensamento de Fichte, Schelling e Hegel, que começaram seus estudos com a teologia, estando presentes em suas pesquisas e obras publicadas que, suas intenções eram demonstrar que a filosofia e a teologia eram as explicações culminantes do mundo, mesmo que em um ou outro, uma contivesse a outra e, assim, vice-versa. Nisso invocando uma interpretação racionalista do cristianismo. No pensamento de Fichte, Schelling e Hegel, que se apresentava como teólogos laicos racionalistas, nenhum se desvirtuou do problema religioso, antes aspiraram sempre ao transcendente divino, envolvendo em sua filosofia a explicação racional da religião cristã. Porém, em um ou outro, seus sistemas filosóficos, aspirando contemplar toda a realidade em uma visão unitária e sob um princípio absoluto, não passaram dos limites do círculo panteísta. Nesse sentido, vemos que não podemos negar que, o Idealismo Alemão ainda produz hoje grande interesse pelos círculos acadêmicos, dando-nos uma nova possibilidade de respostas quanto às determinações históricas, que vivemos na atualidade contemporânea em virtude do avanço das ciências e das tecnologias, e que a filosofia contemporânea está em diálogo direta ou indiretamente com o pensamento dialético sistemático da filosofia hegeliana, onde esse Idealismo Transcendental, tendo como expressão máxima Hegel, representa uma das maiores tentativas em dominar a realidade em uma visão intelectual unificada, e mesmo que as premissas desse Idealismo sejam questionadas, no sentido de não oferecer lugar para o contingente e a 27 imprimir realidade à natureza e, com isso, concebe o Absoluto não como um Eu, como certa consciência universal, mas como uma indiferenciada identidade da ordem real e da ordem ideal; ambas as ordens, ideal e real, nascem deste Absoluto por um desenvolvimento de si mesmo, que segundo Schelling, chama-se de Idealismo Objetivo. Porém, em reação a tais posicionamentos unilaterais, quanto à compreensão dos sistemas filosóficos, Hegel concebe o princípio supremo não como identidade indiferenciada, mas como algo espiritual, uma Idéia Absoluta, onde temos o Idealismo Absoluto. O Idealismo irrompe na filosofia alemã com Fichte, pois a sua obra assinala um dos maiores temas na história do pensamento filosófico, pois com Fichte, começou uma série de movimentos e sistemas filosóficos que, pela sua ousadia, tiveram pretensões colossais, contaram entre o mais grandioso espírito humano indagados, que jamais havia idealizado. A singular potência especulativa que o espírito alemão possuía em seu interior e que os cinco séculos anteriores haviam descarregado, entre uma e outra erupção, extravasa-se em causa própria, como reação ao empirismo inglês. O ponto de partida do Idealismo Alemão é a filosofia kantiana, onde Kant influencia de forma especial Fichte, do que a Schelling e Hegel. O Idealismo Objetivo de Schelling pressupõe as primeiras etapas do pensamento de Fichte; e o Idealismo Absoluto de Hegel, pressupõe as fases de ambas as filosofias. Fichte se apóia expressamente em Kant, desenvolvendo daí a sua filosofia. Mas seria equivocado pensar, que seu sistema surge como simples desenvolvimento do kantismo e não como uma profunda transformação do mesmo, devido à originalidade de sua especulação. Fichte levou em sua vida e pensamento a atitude heróica e rebelde do Sturm und Drang, uma vez que, a gênese do Idealismo Alemão é bastante complexa, como se fosse a simples especulação do pensamento kantiano através dos desenvolvimentos e críticas dos contemporâneos e imediatos epígonos. A interpretação dada por Reinhold e a exigência do princípio unitário do saber, as contradições marcadas por Jacobi e Schulze, a erosão do conceito da coisa em si pela crítica de Maimon, o transcendentalismo de Beck; são, sem dúvida, elementos importantíssimos que confluem na gênesis do 28 Idealismo Alemão. Mas isto não haveria tomado sua fisionomia particular, se não tivesse chegado à exaltação do Eu puro, ou seja, se não tivesse Fichte tocado o espírito da época, e em particular da atitude e o estado de ânimo que encontraram expressão poética no Sturm und Drang e no Romantismo, o elemento catalisador mais eficaz. A personalidade original e genial de Fichte foi quem realizou uma primeira síntese, inaugurando uma das direções mais importantes do pensamento moderno, que foi o Idealismo Subjetivo, sendo o Idealismo no sentido de que faz do ideal o princípio de toda existência; é subjetivo porque coloca este ideal no sujeito moral considerado como absoluto. Schelling, ao contrário de Fichte, professava um Idealismo Objetivo, pela necessidade que sentiu de repensar o exame da filosofia da consciência e repensar a fundo o pensamento de Fichte, colocando o objetivo em primeiro lugar e dele extraiu o subjetivo, ou seja, realizou o caminho oposto de Fichte, partindo do subjetivo como primeiro e absoluto e dele fazer derivar o objetivo. Mas o Idealismo Absoluto de Hegel tem como ponto de partida o “Idealismo Subjetivo” de Fichte e o “Idealismo Objetivo” de Schelling, pois todo seu pensamento se move na mesma atmosfera idealista que seus antecessores, cujos supostos básicos ele aceita. Como nestes filósofos, o tema da filosofia para Hegel é o infinito e sua relação com o finito; relação de unificação de ambos os termos no princípio absoluto, que em Fichte é o Eu infinito ou a consciência de si e em Schelling é a identidade do sujeito e do objeto no Absoluto. CAPÍTULO 2 – O IDEALISMO SUBJETIVO DE FICHTE A obra de Johann Gotllieb Fichte, situa-se num dos grandes pontos críticos na história do pensamento filosófico, com ele começa a poderosa aparição de uma série completa de movimentos filosóficos e sistemas que, pelo impulso, pela pretensão e proporções, pertence ao máximo a que o espírito investigador do homem já se atirou. Mas a sua origem está na filosofia kantiana; e, Fichte, reclama-se herdeiro consciente de Kant e quer desenvolvê- lo. Mas o que interessa a Fichte são as leituras da Crítica da Razão Prática de Kant, pois não lhe interessava o ser ou o cosmos, mas o homem e as suas 29 possibilidades internas puramente humanas, pois Kant via no homem um valor absoluto, contudo, não era o homem o único ser existente. Mas para Fichte o homem é tudo, pois o seu Eu é a origem de todo o universo. No Idealismo kantiano era crítico, ou seja, Kant queria traçar as fronteiras exatas ao mundo das representações do homem. Porém, para o representativo e evolutivo Eu de Fichte, já não há nenhumas fronteiras, por isso chamamos a esse Idealismo, que faz do sujeito e de cada coisa em particular, tudo, de Subjetivo. Desta forma, tem-se sempre considerado a ousadia e mesmo a temeridade da especulação fichteana em torno do eu. Mas, em toda a sua crítica, não se pode perder de vista o intenso ethos inspirador do todo e devemos levar em conta, aqui ainda mais que em Kant, o esforço para salvar a liberdade e a dignidade do homem em face da natureza e da matéria. A vocação filosófica de Fichte foi despertada pelo encontro com a filosofia kantiana, pois Fichte aceita a reviravolta copernicana, que Kant realiza na filosofia e a radicaliza no que concerne à problemática da fundamentação, ou seja, consiste na descoberta da transcendentalidade do pensar, que ao perguntarmos por um objeto, isso implica a pergunta pela conexão entre o objeto que se procura conhecer e a maneira do seu conhecimento, ou seja, que o princípio primeiro e último de todo pensar se fundamenta a si mesmo na medida em que dele não se pode abstrair sem pressupô-lo; e todas as considerações sobre o pensamento filosófico de Fichte, radicam-se em sua obra intitulada “Sobre o Conceito de Doutrina da Ciência ou da assim chamada Filosofia”, sendo um dos textos mais significativos da história da filosofia, onde com clareza e rigor se apresenta a idéia de filosofia como a “ciência suprema dos princípios”, onde este escrito se mostra como o manifesto do Idealismo Alemão, na medida em que tematiza a idéia de filosofia, que vai constituir o programa fundamental das filosofias de Schelling e Hegel; passemos a exposição da Doutrina da Ciência. 2.1 – A Doutrina-da-Ciência Fichte sempre denominou o seu sistema de A Doutrina da Ciência (Wissenschaftslehre ou Teoria da Ciência). Mas ao longo de todas as 32 repetidas para explicar todas as determinações da ciência e da realidade, encerradas na obstrusa interação dialética do Eu e do não-Eu. Fichte se instala como ponto de partida de sua metafísica, dentro do Idealismo Puro. O sistema fichteano nasceu em sua mente com a leitura entusiasta de Kant e da crítica dos pós-kantianos, sendo a posição que adota desde um princípio como convicção absoluta e fixa, que trata somente de demonstrar e desenvolver. O Eu aparece já considerado “como compreendendo o inteiro círculo absolutamente determinado de toda a realidade” e desentranhado de si dialeticamente todos os seus modos. Desta forma, “originariamente não existe senão uma só substância: o Eu. Nesta única substância são postos todos os possíveis acidentes e todas as possíveis realidades5”. Nesse sentido, o pensamento e o sistema kantianos foram superados de um só golpe pelo novo idealismo, pois no aspecto formal, Fichte não seguiu o mesmo caminho do aparato logicista e das críticas de Kant, de suas categorias e dos seus laboriosos razoamentos no triplo nível da sensibilidade, entendimento e razão, que já não serviam para desenvolver a sua visão idealista, simples e unitária de um Eu pensante e criador. Mas em seu lugar criou a dialética dos três momentos do Eu – só remotamente inspirada em Kant –, que se desenvolve em contínuos processos de posição (tético), oposição (antitético) e conciliação (sintético) de contrários, dentro do círculo fechado do EU; juntamente a esse jogo dialético, Fichte utilizou um uso constante do método regressivo da reflexão e abstração ou da reflexão abstraente, como desde o princípio anuncia: “A doutrina da ciência pressupõe as regras da reflexão e da abstração como válidas”. A reflexão, que pertence também aos modos necessários do laborar da inteligência e cujas leis encontramos no curso da ciência como as únicas possíveis que podem levar, a efeito, uma 5 - Fundamentos de Toda a Doutrina da Ciência (Doutrina da Ciência), p. 2, § 4º, primeiro teorema, 13. A Divisão da obra em três partes é muito irregular: a primeira parte é a exposição dos três princípios da Doutrina da Ciência inteira (p. 49-80), a segunda parte é o Princípio do Saber Teórico, que ocupa o grosso da obra (81-197), e que contém o primeiro teorema; a Terceira parte, que é o princípio da ciência prática (p. 199-280), dividida em outros sete teoremas e parágrafos, sendo a simples continuação da anterior. 33 doutrina da ciência, sendo a própria atividade do eu pensante fichteano, que em movimento contínuo retorna sobre si e sua própria reflexão, criando novos termos de oposição6. Porém, a abstração é entendida como um abstrair constante dos conteúdos materiais da consciência empírica. Mas tal direção metódica não impediu Fichte de usar correntemente, como qualquer outro filósofo, dos demais instrumentos da lógica comum, proposições, juízos e demonstrações, analises e sínteses. Assim, Fichte levou até o fim a superação do kantismo, com relação ao conteúdo e doutrina, aonde reiteradamente se dizia discípulo de Kant, como também dedicado e inclinado ao seu sistema, remetendo-se com grande respeito aos princípios do mestre, que na Primeira Introdução a Doutrina da Ciência, que seu sistema não é outro senão o sistema kantiano, ou seja, que contém o mesmo modo de ver o assunto, vale salientar, que é em seu modo de proceder totalmente independente da exposição kantiana, como também, que suas obras não possuem a intenção de explicar o sistema kantiano e tampouco serem expostas e/ou explicadas por ele; não se tratando para Fichte de corrigir nem completar os conceitos filosóficos, que se encontra em circulação em sua época, que se chamavam kantianos ou antikantianos; mas se tratava de extirpá-los totalmente, como também de inverter por completo o modo de pensar sobre estes pontos de meditação filosófica, aonde o objeto esta posto e determinado pela faculdade do conhecimento e não a faculdade do conhecimento pelo objeto. Neste sentido, podemos observar que Fichte se diz kantiano, somente no sentido de levar até às últimas conseqüências as premissas de Kant, onde o giro copernicano realizado por este; teremos que entender em toda sua radicalidade, que não somente o objeto é determinado pelo sujeito pensante, como também posto, ou seja, produzido por ele. Nesse sentido, Fichte chama isto de seguir o espírito de Kant, uma vez que, este em suas Críticas, quis expor não a ciência, mas somente a propedêutica da ciência, por isso Fichte chamou também o seu idealismo de criticismo, onde à essência da filosofia crítica consiste em que um eu absoluto, 6 - Sobre o conceito de Doutrina da Ciência, § 7º, p. 32-33. 34 vem posto como absolutamente incondicionado e não determinável por nada superior; e se esta filosofia conclui com este princípio fundamental; então, segundo Fichte, temos a doutrina-da-ciência7. Assim, vemos que, segundo o próprio Fichte, a inspiração do seu idealismo veio de Kant, mas a preparação imediata já estava dada pelos filósofos pós-kantianos, como dissemos anteriormente, pois a crítica do Aenesidemus (Gotlob Ernst Schulze) havia desbaratado a noção da “coisa-em-si” como contraditória com o princípio kantiano do a priori da razão pensante e sua espontaneidade. Karl Leonhard Reinhold havia estabelecido a unidade da consciência como supremo princípio da filosofia crítica, reduzindo a ela o fenômeno mesmo como elemento objetivo da representação8. E, ainda, mais claramente, em Salomon Maimon, que sustentava que todos os princípios do conhecimento deve se encontrar no interior da consciência; o objeto ou a matéria não pode ter causa externa à consciência, porque fora desta não há nada, pelo motivo de que a coisa em-sí é produto também da atividade da consciência9. E, com mais vigor, em Jacob Sigmund Beck, que resolvia a coisa-em-si na atividade da consciência imanente ou do eu transcendental, ou seja, quase todo o caminho da interpretação idealista do kantismo já estava percorrido10. Porém, a personalidade original e genial de Fichte operou a primeira síntese do idealismo, com sua exaltação do eu puro e da espontaneidade da liberdade 11. 2.3 – Idealismo e Dogmatismo Fichte numa tentativa de minimizar a brusca entrada do princípio idealista do eu, que abre a Doutrina-da-Ciência (1797), com adendos a diversos pontos do seu sistema e como defesa do mesmo contra as críticas que surgiam, onde desenvolve o famoso contraste entre o idealismo e o 7 - A Doutrina-da-Ciência de 1794, § 4º, p. 98. 8 - ROVIGHI. Sofia Vanni, História da Filosofia Moderna – da revolução científica a Hegel, tradução Marcos Bagno e Silvana Cabucci Leite, Edições Loyola, São Paulo, 1999, p. 612 ss. 9 - ibid, p. 617 ss. 10 - HARTMANN. Nicolai, A Filosofia do Idealismo Alemão, tradução do original alemão intitulado: Die Philosophie dês Deutschen Idealismus, 4ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, São Paulo, 1960, p. 34-36. 11 - Ibidem, p. 51-53. 37 pode deixar ou tomar segundo nossa vontade, mas que está animado pela alma do homem que o tem 14. Fichte era um homem ativo e dinâmico, animado por um exaltado amor pela liberdade e independência do próprio eu, e escolheu o idealismo para soltar o lastre de dependência à espontaneidade do eu, aonde o seu idealismo se perfila matizado por uma tendência pragmática à ação, tão contraposta em aparência a um autêntico idealismo. 2.4 – A Filosofia do Eu Puro ou Absoluto Toda a filosofia de Fichte gira em torno do eu-em-si, ou seja, a autoconsciência do sujeito pensante, constituindo-se no objeto do idealismo e, portanto, em ponto de partida e princípio originário de toda a Doutrina da Ciência. Desde o eu e no eu se constrói e explica tanto a natureza do saber ou da teoria da ciência, como a natureza do querer livre ou da ação moral, aonde nada espera uma metafísica, uma cosmologia ou psicologia clássica. Fichte procura como, no plano do conhecimento reflexivo, o primeiro e originário é a consciência do eu ou do espírito pensante, e tudo o mais se segue logicamente, ou seja, toda a estrutura do mundo será resultante da estrutura do eu em seu ritmo dialético. A concepção fichteana do eu tem sua origem remota na noção kantiana da unidade transcendental da consciência ou o eu penso, onde a ele alude o mesmo Fichte; mas observa que Kant, na dedução de suas categorias, não colocou esta autoconsciência como princípio fundamental determinante de todas as afecções da experiência. A razão pura, que produz as formas, fica limitada pelo fenômeno, perdendo-se assim a absoluta espontaneidade do espírito. Vemos também que, num caso distante, Descartes partiu de um princípio semelhante, do fato imediato da consciência. Porém, o eu se troca em seguida em coisa; a res cogitans é a alma como substância. Seguindo a mesma trilha, também Spinoza tratou de pensar o conceito de um sujeito puro com atributos de absoluto e infinito, partindo da consciência empírica; mas o 14 - Ibid, p. 60-61. 38 põe fora de si, como ser-em-si e o separa, portanto, da consciência 15. Assim, vemos que não havia chegado à verdadeira filosofia do espírito, que é o idealismo puro, a formação do conceito do subjetivo espiritual, a noção do eu puro, como ato incondicionado e absoluto da consciência. Ser o eu é, em sua originalidade, não uma determinação, senão autodeterminação. O eu é para-si, enquanto que todo ser objetivo deve estar referido a uma consciência para a qual existe; é concebido por si e não pode ser conhecido imediatamente, mas que por si mesmo 16. Este eu absoluto é um primeiro princípio ou postulado indemonstrável aos demais, dado imediatamente à consciência de si como sujeito absoluto ou autoconsciente. Porém, Fichte procura mostrar como o filósofo chega a essa consciência do eu puro pela reflexão através da consciência vulgar. Admite, de fato, o eu empírico como distinto do eu puro, originário e radical, do sujeito pensante. Assim, antes da consciência pura do eu está a consciência vulgar do homem concreto em um estado pré-filosófico; aonde o eu empírico é esse homem existencial, que se debate no mundo e, seguindo o impulso espontâneo, admite a realidade das coisas em torno, num conhecimento direto delas, uma vez que, a consciência vulgar, como somente fala de si mesma, não pode dizer nada mais senão que para ela existem coisas; aonde isto não é nenhuma ilusão, que pode ou deva ser retida pela filosofia, sendo nossa única verdade. Assim, de uma coisa-em-si não sabe nada a consciência vulgar, justamente porque é a consciência vulgar, que não há de saltar, ou seja, é de se esperar, por cima de si mesma 17. Neste sentido, esse eu empírico se torna em eu filosófico, quando por sua espontânea liberdade se decide a pensar em si mesmo e em sua atividade. O pensamento vulgar se transforma em reflexão explícita sobre o próprio ato da consciência. Isto se verifica mediante certo requerimento: ao filósofo se lhe requer ou exige, a voltar sobre si mesmo, a entrar no seu próprio interior, apartando-se voluntariamente dos objetos e dos dados, incluso da experiência 15 - A Doutrina da Ciência de 1794, § 1º, p. 48-49. 16 - Ibid, § 1º, p. 48. 17 - Ibidem, p. 49. 39 interna, para surpreender ao eu no próprio ato de pensar-se a si mesmo. Nesse sentido, Fichte nos chama para olharmos para o nosso interior e fixarmos em si mesmo, despreendendo-nos de tudo o que há fora de si, aonde temos uma filosofia da interioridade, da imanência; portanto, a primeira questão será a seguinte: como é o eu para si mesmo? Donde, surge o primeiro postulado: pensa-te a ti mesmo, constrói o conceito de ti mesmo; dentro desta afirmação existe o seguinte: somente ao fazer encontrará que, ao pensar esse conceito, sua atividade como inteligência voltar-se-á sobre si mesma, fazendo de si mesma seu objeto 18. O procedimento para chegar à consciência do eu puro é chamado outras vezes de abstração ou de reflexão abstraente. A abstração é máxima e deve formar-se de todas as determinações empíricas da consciência, ou seja, da experiência, que Fichte designa como o sistema das representações acompanhadas do sentimento de necessidade, aonde o homem encontra em suas representações dos elementos unidos: a coisa determinada em si mesma e a inteligência que conhece. Assim, o filósofo pode abstrair de uma das duas e, então, se abstrai da experiência e se eleva sobre ela. Nesse sentido, ao se abstrair da primeira, obtém uma inteligência em si, ou seja, abstraída de sua relação com a experiência; ao se abstrair da última, obtém uma coisa-em-si, uma ou outra, como fundamento explicativo da experiência. O primeiro procedimento se chama idealismo; o segundo dogmatismo 19. Assim, tal figura da abstração, nada tem a ver com o abstrair dos conceitos universais da lógica clássica. Esta nunca separava o conceito de seus conteúdos objetivos, pensados com mais ou menos universalidade e separação dos acidentes individuais. Fichte exige a abstração de todos os objetos ou determinações das coisas, e ainda das afecções da vida interior, ou seja, ponhamos um fato qualquer da consciência empírica e separemos dele, uma depois da outra, todas as determinações empíricas, a fim de que fique somente aquilo que não se pode excluir, então, ficará somente o puro 18 - A Filosofia do Idealismo Alemão, p. 59-60. 19 - Ibid, p. 62-63. 42 própria interioridade, pois para ele, justamente o último e mais primitivo não pode ser captado mediante razões, conclusões e definições. Porém, o seu idealismo precisa elevar-se por cima do pensar discursivo, que permanece em círculo e em regresso infinito de cadeias de raciocínios. Mas como todos os idealismos, Fichte terá de pôr um instrumento para o mundo inteligível, uma função do espírito de visão simples que estabeleça um contato íntimo com o supra-sensível, sendo esta a sua noção de intuição intelectual. A intuição intelectual é do eu puro, da consciência imediata como atividade: este intuir-se a si mesmo ao levar a cabo o ato, mediante o qual surge para ele o eu, o chamamos de intuição intelectual, ou seja, é a consciência imediata de que atua e de que atuação tenho, que há semelhante intuição intelectual, não pode demonstrasse por meio de conceitos, nem o que ela seja tirar-se de conceitos, onde cada qual terá que encontrar-lhe em si mesmo ou nunca chegará a conhece-la 24. Ora, Kant rechaçava toda intuição intelectual e não admitia outra, que não fosse à intuição sensível num sujeito finito. Mas é que seu problema teórico era exclusivamente o do conhecimento do objeto ou da natureza, aonde não colocava o problema do fundamento da ciência do saber mesmo, a qual teria de descobrir a essência do espírito e de suas funções espirituais; o que é possível se o espírito se intui a si mesmo. Mas Kant teve que pôr o imperativo categórico como postulado absoluto, de acordo com o eu puro; onde isso não é possível sem partir do pressuposto de uma absoluta existência do eu. Assim, justamente este fato da lei moral e da liberdade dados como postulado absoluto na consciência moral, onde foi o ponto de partida da reflexão fichteana, sendo isso o que sugeriu o seu idealismo. Fichte também apela a isso para explicar a possibilidade da intuição intelectual, pois a consciência da lei moral é uma consciência imediata, fundada na intuição da espontaneidade e da liberdade, onde a razão prática é intuída na consciência do dever, onde essa intuição intelectual da vida moral é a única que origina realmente, sem liberdade de abstração filosófica, que acontece em todo homem. Desde esse 24 - Ibid, p. 62 e 63. 43 momento se pode ascender à noção dessa auto-intuição intelectual do espírito e as suas funções, onde cada qual deve produzir-se essa consciência em si mesmo por meio da liberdade 25. A Intuição Intelectual se distingue, segundo Fichte, da intuição sensível, que é própria do eu empírico, onde esta se refere aos fatos da experiência, aos conhecimentos dos objetos, à ação livre voltada para eles, onde nunca se dá sozinha, nem completa a consciência sem a intuição intelectual, uma vez que, esta não se dá nunca na consciência real sem intuição sensível, ou seja, sem a intuição do objeto. Isso significa que a intuição intelectual esta no fundo dos conhecimentos objetivos por meio de conceitos, como forma da consciência de si, contida naquele pensamento necessário do eu como: o que se põe a si mesmo, aonde se descobre por abstração de todo o objetivo da consciência. Assim, os conceitos são algo de secundário, que temos que superar, então, como poderia o absolutamente incompreensivo, o in-objetivo, ficar aprisionado em conceitos, que são em primeiro termo conceitos de objeto, conceitos de ser? Todo o discursivo e o conceitual significam para o filósofo da ciência, tão somente um meio que assinala o caminho até a auto-intuição originária 26. Mas no fundo, esta consciência da intuição intelectual, que apreende a si mesma na execução da subjetividade, significa para Fichte a união com o primordial da egoidade; onde o eu absoluto, em sua unidade indiferenciada como sujeito-objeto, é ele mesmo intuição intelectual, pensamento de si que se contempla e põe a si mesmo, ou seja, é identidade de uma atividade ideal da visão com uma atividade real da liberdade, repousando nisso sua função fundamental, que a intuição intelectual é a única posição sólida para uma filosofia, pois partindo dela se pode explicar tudo o que se apresenta a consciência 27. 25 - A Doutrina-da-Ciência, § 5º, II, p. 140, nota 129. 26 - A Filosofia do Idealismo Alemão, p. 63 e 64. 27 - Ibidem. 44 2.6 – A Dialética do Eu A Dialética do Eu é o ponto central do pensamento filosófico fichteano, como também, é certo que o núcleo de sua metafísica idealista desenvolveu-a em sua primeira e básica exposição, ou seja, em sua Primeira Parte intitulada princípios de toda a Doutrina-da-Ciência, que gira em torno da dialética do eu, onde em sua primeira parte estabelece seus três princípios ou momentos, e desde eles intenta uma dedução sistemática, nas duas seguintes, da vida teórica e prática do homem. Ora, o método dialético foi iniciado por Kant, com sua tendência a divisão das categorias, pelos três momentos do juízo: afirmação-negação- limitação. Mas Fichte aplica estas fórmulas à gênese ontológico-transcendental do eu: posição ou tese, oposição ou antítese e superação ou síntese. Assim, inaugura o famoso processo dialético em três fases, que se impõe a todo o Idealismo Alemão, perdurando até os dias atuais através da filosofia dialética marxista. Vejamos, então, como se apresenta a dialética do eu: 1º - Primeiro Princípio: “O Eu se põe a si mesmo e é na força desde puro pôr-se”, sendo este o começo originário de toda consciência e ser é que o eu se põe a si mesmo 28. Vemos que este primeiro princípio não é demonstrável e nem deduzido de outro. Porém, Fichte o intenta explicar partindo de qualquer proposição certa dada na consciência empírica e buscando o seu fundamento, porque qualquer dado supõe a consciência e, portanto, o eu, seja a proposição A = A, que é a expressão de um juízo absoluto, no caso de identidade; onde nele não se afirma algo como existente, senão somente se atende à forma e não ao conteúdo, onde somente expressa uma relação necessária entre o sujeito e o predicado, ou seja, se A é, A é; quer dizer o seguinte: posto A como sujeito existente, se põe também como predicado, onde esta dita relação é de momento uma incógnita, um X. Mas sob que condição A existe?, ou, qual é o fundamento de X? Fichte responde que esta afirmação é posta pelo eu, por ser 28 - Doutrina da Ciência de 1794, § 1º, p. 43 a 46. 47 mesma certeza com que, entre os fatos da consciência empírica, se apresenta a proposição – A não é A. Mas a mesma possibilidade de opor em si pressupõe a identidade da consciência, ou seja, o opor é possível somente a condição da unidade da consciência daquele que opõe e daquele que põe, se a consciência do primeiro ato não estivesse ligada com a consciência do segundo, este segundo pôr não seria um opor, mas somente um pôr 33. Assim, se pressupõe que o eu que atua em ambos os atos e sobre ambos julga, seja o mesmo, portanto, a passagem do pôr ao opor não é possível senão pela passagem do eu. Nesse sentido, enquanto oposto – como contrário em geral –, é posto por esse ato absoluto. Todo o contrário, enquanto contrário, é absolutamente na força de um ato do eu, e não depende de nenhum outro princípio, onde o estado de ser oposto em geral é absolutamente posto pelo eu 34. Fichte acrescenta que a oposição absoluta não pode dar-se senão pondo algo oposto ao eu. Mas o que é oposto ao eu é o não eu 35. Porém, Fichte já advertia que na mesma identidade do eu é o lugar aonde se dão ambos os atos de pôr e de opor, onde teremos o seguinte: que não somente ao eu se contrapõe em absoluto um não eu, senão que o eu, ao pôr-se, põe simultaneamente um não eu; como ao perceber que A = A, percebemos que – A não é A, a consciência, ao perceber que eu = eu, percebe que eu não é um não eu. Mas o eu se põe a si mesmo ao adquirir consciência de si; daí que ao pôr-se o eu concebe e, por sua vez, põe o não eu. O não eu não somente se põe a si mesmo, senão que opõe também a si mesmo qualquer coisa que, enquanto lhe é oposta, é não eu (objeto, mundo, natureza), pois o contrário de tudo o que pertence ao eu deve pertencer ao não eu 36. Assim, já havíamos visto o que significa este pôr-se do eu como atividade consciente autocriadora e como, por sua vez, põe ao não eu, qual é o alcance e a conseqüência dele ou, então, deixa à exposição do terceiro 33 - Ibid, § 2º, item 6º, p. 50. 34 - Ibid, § 2º, item 4º-5º, p. 50. 35 - Ibid, § 2º, item 9º, p. 51. 36 - Ibid, § 2º, item 11º, p. 51. 48 momento do processo dialético, somente acrescentando que este segundo momento é igualmente absoluto e anuncia o princípio lógico da oposição (que em seu sistema se troca em princípio ontológico), correspondendo à categoria de negação. 3º - Terceiro Princípio: “eu oponho no eu, ao eu divisível, um não eu divisível 37”, ou seja, este terceiro princípio é demonstrável dos dois anteriores, porque é condicionado enquanto à forma, incondicionado somente pelo conteúdo, ao segundo princípio era, ao contrário, somente condicionado pela forma: o ato de opor não se podia deduzir; posto incondicionadamente, se podia, em câmbio, demonstrar que o oposto devia ser o não eu; este complicado processo demonstrativo, se resume no que mostraremos a seguir: Assim, o eu e o não eu se encontram na mesma consciência absoluta e se negam mutuamente, onde o eu se opõe ao não eu, e o não eu ao eu, portanto, se destruiriam; ou seja, enquanto é posto o não eu, o eu não é posto, pois o não eu suprime completamente o eu; portanto, o eu não é posto no eu, enquanto o não eu é posto no eu ou, em todo o caso, o eu seria igual ao não eu e este igual ao eu 38. Mas devendo buscar um princípio de solução para que não se destruam mutuamente, este princípio somente pode ser a unidade da consciência. As oposições devem ser conciliadas na identidade da consciência, já que “tanto o eu como o não eu são ambos produzidos por atos originários do eu, e a consciência mesma é um produto do primeiro ato originário do eu, do pôr do eu por si mesmo 39”. Nesse sentido, esta conciliação de ambos os opostos, postos como iguais sem que se destruam mutuamente, se verifica enquanto que ambos se limitam mutuamente. O ato de síntese será uma recíproca limitação de ambos os opostos, e o seu produto – X – indicará os limites; com efeito, limitar uma coisa significa: suprimir a realidade por meio de uma negação; não completamente, senão somente em parte. No conceito de limite, além dos 37 - Ibid, § 3º, letra D, p. 55. 38 - Ibid, § 3º, letra A, p. 52 e 53. 39 - Ibid, § 3º, letra B, p. 53. 49 conceitos da realidade e da negação, está também implícito o conceito de divisibilidade, tanto o eu como o não eu são postos como divisíveis 40. Essa conciliação se verifica por uma autolimitação do princípio primitivo e absoluto. Assim, no ato pelo que o eu é posto ao não eu e vice-versa, ambos como divisíveis e limitando-se, uma parte da realidade, aquela que é atribuída ao não eu, é suprimida no eu 41, porque o não eu como determinação, ainda negativa, do eu é, posto como uma quantidade, e toda quantidade é também realidade, sendo uma negação real de uma grandeza negativa. Assim, desde o ponto de vista da pura relação é indiferente a qual a negação, onde o que no eu é negação, será realidade no não eu e vice-versa 42, sendo que ambos os opostos, ao serem opostos como tais, terão negado e suprimido uma parte da realidade do outro. Fichte se vangloria de que com este procedimento antitético teria resolvido de uma maneira mais geral e satisfatória o problema da Crítica de Kant, ou seja, como são possíveis juízos sintéticos a priori. Segundo Fichte, teria levado a cabo, no terceiro princípio fundamental, uma síntese entre o eu e o não eu opostos por meio da divisibilidade posta de ambos 43. Mas nenhuma síntese é possível sem uma antítese precedente, e como a antítese não é possível sem a síntese, nem a síntese sem antítese, como também, tampouco ambas são possíveis sem a tese, sem um ato de pôr absoluto, mediante o qual um A (o eu) não é já posto como igual ou contrário a um outro, senão somente é posto absolutamente 44. Assim, tese, antítese e síntese; este é o contínuo jogo dialético da atividade do eu como autocriador de toda a realidade, porque a primeira síntese dos princípios fundamentais deve seguir-se uma infinita cadeia de oposições, que terão de ser de novo conciliadas e reunidas em sínteses, ou seja, devemos buscar nos opostos, conciliados por esta primeira síntese, novos 40 - Ibid, § 3º, letra B, item 8º, p. 54. 41 - Ibid, § 3º, letra C, item 1º, p. 54. 42 - Ibid, Segunda Parte, § 4º, letra A, p. 64. 43 - Ibid, § 3º, letra D, item 5º, p. 57. 44 - Ibid, § 3º, letra D, item 7º, p. 58. 52 Fichte ainda se esforça em belíssimas e grandiosas reflexões, constituindo quase toda a segunda parte (Fundação do Saber Teórico) da Doutrina da Ciência, por tornar compreensível esta síntese dos contrários e como da cisão da realidade absoluta e infinita do eu puro, brota, sem contradição, a realidade de um eu finito como oposta a um não eu; e que este não eu, que em sua forma lógica aparece como simples negação, assim é uma realidade posta pelo mesmo eu originário, onde apenas se depreende algo mais do já exposto no terceiro princípio, que o eu se determina a si mesmo com sua atividade absoluta e se põe a si mesmo como determinado pelo não eu, uma vez que, põe um não eu como determinante; que o eu se determina em parte e é em parte determinado. Neste sentido, ambos os extremos, o eu finito e o não-eu são dotados de atividade e passividade, pois ambos são determináveis pelo seu contrário e em parte o determinam, mantendo assim uma contínua ação recíproca, onde ambos possuem igualmente realidade finita ou parcial, contraposta ao seu contrário, ou seja, o eu põe em si negação, enquanto põe realidade no não-eu, e põe realidade em si, enquanto põe negação no não-eu 52. Assim, tudo isso somente se compreende através de uma degradação do eu primitivo para que se possa fazer comparação em grau de igualdade com o não-eu, pois o eu mesmo á rebaixado a um conceito inferior para que possa ser posto como igual ao não-eu, onde não se dá um ascender, mais um descender; onde eu e não-eu, enquanto são postos como iguais e opostos, ficam a mercê do conceito de mútua limitação, ou seja, são ambos algo – acidentes – no eu, como substância divisível; são postos pelo eu como sujeito absoluto não limitável 53. Vemos que Fichte aceita a noção de Spinoza de uma substância única e apresenta o eu limitado (os eu individuais) e o não-eu – (as coisas) como acidentes ou afecções dessa substância que é o eu puro. Mas que fique bem entendido, que não se entenda a substância em sentido clássico, senão como simples atividade, pois para Fichte o conceito de realidade é igual ao de atividade. Neste sentido, Fichte diz que originariamente 52 - Ibid, § 4º, letra B, p. 66 e 64. 53 - Ibid, § 3º, p. 53 e 54. 53 não há senão uma substância: o eu, aonde nesta única substância são postos todos os possíveis acidentes, ou seja, todas as possíveis realidades 54. A idéia de substância única tem em Fichte o mesmo sentido panteísta que em Spinoza, a quem acusa de dogmático e de não ter salvado o primeiro princípio da unidade suprema da consciência ou do eu, livre e independente, que ele transladou a uma substância superior, determinada por uma necessidade interna 55. Segundo Fichte, o eu finito se distingue de algum modo do eu infinito, de cuja atividade originária é produto; pois, em certo sentido, o eu finito é chamado também oposto a esse eu absoluto. Mas, por sua vez, é integrado com ele na unidade da consciência; tratando-se de uma duplicidade de momentos ou situações do mesmo eu, que se compara a distinção spinoziana, modal, entre a substância única e seus acidentes ou entre um círculo particular e a inteira circunferência; onde este infinito eu é em Fichte o eu humano, que é soberanamente livre e independente, que na consciência concreta dos objetos e conteúdos se troca no eu empírico. Nas posteriores exposições, acentuam-se a separação entre o princípio infinito da consciência, relegado ao Absoluto, e o eu humano 56. 2.8 – Da Dedução Transcendental a Multiplicidade do Mundo A dedução mencionada por Fichte em seu sistema transcendental não tem sentido lógico, mas somente ontológico, pois é a simples explicação do procedimento dialético, segundo o qual se realiza a passagem ou o descenso da unidade do princípio supremo, que é o eu absoluto, ao múltiplo e variado das coisas; onde o procedimento não é mais, que o simples desenvolvimento ou a repetição da primeira síntese dada nos três primeiros princípios, onde no primeiro ato sintético, na síntese fundamental – a do eu e não-eu –, é posto um conteúdo para todas as possíveis sínteses futuras, pois tudo o que deve pertencer ao domínio da doutrina da ciência deve desenvolver-se desde aquela 54 - Ibid, § 4º, letra D, p. 74. 55 - Ibid, § 4º, letra D, p. 61. 56 - Ibid, § 3º, letra C, item 1 e 2, p. 54. 54 síntese fundamental, anunciado no princípio da Fundação do Saber Teórico por Fichte 57. Segundo Fichte, tudo isso se sucede mediante a ação recíproca do eu e do não-eu, donde daí que nasce tanto o conhecimento teórico (a representação) como a ação moral. Agora trataremos do Saber Teórico, que é a Segunda Parte da Doutrina da Ciência, pois como havíamos dito a pura atividade do eu infinito, enquanto retorna em si mesma, é ainda infinita. Mas enquanto o eu põe limites, a sua atividade – do pôr – não cai imediatamente sobre si mesma, mas somente sobre um não eu, que deve ser oposto. Nesse sentido, não é atividade pura, senão atividade objetiva, que se põe um objeto, resultando o eu finito, enquanto sua atividade é objetiva 58. Fichte encontra esta idéia expressada no termo mesmo de objeto (Gegenstand), que indica algo oposto e contrastante, que oferece resistência, ou seja, o objeto não é posto senão enquanto resiste a uma atividade do eu; onde sem tal atividade do eu não há objeto, mas somente enquanto resiste àquela atividade, um objeto pode ser posto, e enquanto não resiste a ela, não há objeto 59. Assim, a objetivação do eu é explicada por uma resistência ou choque, que encontra a sua atividade. Mas esta resistência provém do não eu, sendo a simples posição do não eu, pelo o que se havia limitado o eu, portanto, todo o ato de limitação do eu com a posição do não eu é ato de objetivação no que se dá uma representação. Mas isto se sucede porque o eu é ato de inteligência, ou seja, enquanto o eu é inteligência, sua atividade de determinar-se e limitar- se em eu e não eu, contraposta a uma representação em que o eu põe um subjetivo e a este contrapõe um objetivo, e assim sucessivamente na série das representações da consciência empírica. Mas, se ambos devem ser sinteticamente conciliados, ambos devem ser postos num único e mesmo ato do eu, uma vez que, não há objeto sem sujeito 60. 57 - Ibid, § 4º, p. 63. 58 - Ibid, § 5º, II, p. 138. 59 - Ibid, § 5º, II, p. 138 e 139. 60 - Ibid, § 4º, II, item 3º, p. 115. 57 A imaginação produtiva é apresentada como a faculdade de síntese, que tem como missão conciliar os opostos, de pensá-los como uno 68; já que todo o pensar se realiza por um pôr o não-eu como determinação do eu, um objetivo como determinante do eu subjetivo; onde a série de proposições opostas e de conciliação ou sínteses superadoras se sucedem numa cadeia infinita, pois que a infinita atividade do eu consiste num ilimitado pôr-se e contra-pôr-se constante e infinito 69. Assim, é como se constrói a ciência, Fichte não determina, mas nem descende a nenhum outro problema ou explicação de filosofia teórica, pois sua Doutrina da Ciência é somente isso: estabelecer a possibilidade do saber e que todo o saber emana aprioristicamente da atividade subjetiva da dialética incessante do eu e do não-eu. Após a exposição das linhas gerais do pensamento filosófico fichteano. CAPÍTULO 3 – O IDEALISMO OBJETIVO DE SCHELLING Segundo E. Hartmann, Friedrich Wilhelm Joseph Schelling teria duas fases em seu pensamento, tendo o mesmo acentuado em sua polêmica com Hegel, sendo essas fases a distinção entre a “filosofia negativa” e “filosofia positiva”, onde a segunda não rechaçou inteiramente a primeira, senão a via incorporada e subordinada a positiva, encontrando em seus primeiros ensaios a tendência ao concreto e histórico na manifestação do Eu. Assim um sinal claro desta continuidade seria o programa, que publicou em 1795 para seu sistema de filosofia, onde este sistema deveria proceder da idéia do eu, sendo como o absoluto ser livre, para passar, mediante a posição do não-eu, para a esfera do mundo físico, do espírito humano e do mundo moral; desenvolvendo os princípios da liberdade dos seres espirituais, dos processos históricos e da idéia de beleza como ato supremo da razão, unindo filosofia e religião. Desde um princípio delineou dentro do seu sistema o desenvolvimento duma filosofia da natureza, uma filosofia da história, da arte, da liberdade, da religião, que deveria ocupar por muito tempo sua atenção, sendo este sistema o novo 68 - Ibid, § 4º, 3º, p. 115. 69 - Ibid, § 4º, III, p. 123 e 124. 58 Idealismo, que partiria do Eu Infinito fichteano para se desenvolver em todas as manifestações e realizações objetivas. Ora, sabemos que o princípio do Infinito foi o que assegurou o êxito da filosofia de Fichte, ou seja, a infinita atividade do eu que atua na consciência do homem e encontra sempre no infinito progresso do saber sua imagem adequada. O reconhecimento e afirmação do infinito determinaram o entusiasmo da doutrina de Fichte, que havia suscitado, porque expressava a aspiração da época. A filosofia de Kant era uma filosofia do finito, que se move dentro dos estreitos limites do eu empírico. Mas Fichte, ao contrário, inaugurava uma filosofia do infinito dentro e fora do homem e abre, assim, a fase do Romantismo. Schelling e os românticos vêem claramente que Fichte inicia uma nova direção, uma nova era da especulação. Mas o Idealismo de Fichte se levantou sobre uma base frágil, que todo o ser seja posição do eu e que nós estamos encerrados numa infranqueável contemplação de nossas próprias modificações, Schelling, até certo ponto, comunga deste tipo de princípio do Idealismo fichteano. Mas Schelling possui a intenção de harmonizar o Eu Absoluto de Fichte com a Substância de Spinoza, onde esta aparece como o princípio da infinitude objetiva. Nesse sentido, Fichte quis unir os dois infinitos no conceito de um Absoluto, que não fosse reduzível ao sujeito e tampouco ao objeto, porque tinha que ser o princípio de ambos. Assim, Schelling mostrou que uma atividade espiritual – Eu de Fichte – não pode explicar o nascimento do mundo natural, como uma realidade puramente objetiva não pode explicar a origem da inteligência e do Eu. Desta forma, Fichte se dirigiu a natureza somente para descobrir nela o teatro da ação moral ou para declará-la “una pura nada”. Porém, a natureza, segundo Schelling, tinha vida e inteligibilidade, sendo espírito adormecido, tendo nela um princípio espiritual; onde este princípio deve ser idêntico ao que explica o mundo da razão e do Eu. Assim, este princípio supremo deve ser um Absoluto, que seja ao mesmo tempo sujeito e objeto, razão e natureza, idealidade e realidade. 59 3.1 – Do Idealismo Subjetivo ao Idealismo Objetivo Schelling realiza a transição do Idealismo Subjetivo ao Idealismo Objetivo, ao Absoluto objetivado na natureza, desde seus primeiros ensaios devido à influência da filosofia fichteana, pois parte da acepção do Eu infinito e da Doutrina da Ciência; mas estes princípios recebem uma interpretação totalmente nova e independente. No trabalho intitulado “Sobre a possibilidade de uma forma da filosofia em geral” (1794), segue o pensamento de Fichte, reconhecendo no Eu Infinito o princípio incondicionado de todo o saber. Assim, o condicionado é, portanto, o não-Eu; e que o não-Eu é posto pelo Eu, todo o condicionado é determinado pelo incondicionado. Donde, temos o seguinte: “a proposição fundamental pode ser somente esta: eu sou eu 70”, Schelling já acentua a Idéia de Absoluto, se bem que, seguindo Fichte, descreve-o como o Eu Absoluto: “O sistema completo da ciência parte do Eu Absoluto”; e se a tarefa da filosofia está em explicar a experiência no sentido de um sistema de representações acompanhadas do sentimento de necessidade, Fichte nos mostrou que o Eu através de constantes posições, oposições e sínteses da origem das representações mediante a atividade da imaginação produtiva que opera inconscientemente, de tal modo que, para a consciência empírica, o mundo nos mostra inevitavelmente uma aparência de ser independente. Schelling ao publicar seu segundo trabalho intitulado: “O Eu como princípio da filosofia ou o incondicionado no saber humano” (1795), onde formula também o princípio: “Eu sou eu, ou eu sou 71”, de que procede toda ciência. Desta proposição procede a posição do não-eu e argúi que ambos mutuamente se condicionam, ou seja, que não há sujeito sem objeto e nem tampouco objeto sem sujeito. Assim, deve haver um fator de mediação, um comum produto que enlace a ambos, sendo este fator a representação. A tese do trabalho de Schelling é que o Eu Absoluto deve ser pensado de acordo com a substância de Spinoza. O incondicionado não pode ser objeto e nem tampouco pode ser sujeito condicionado ou finito, senão que deve ser um 70 - Sobre a possibilidade de uma forma de filosofia em geral, em Werke, Ed. M. Schröter (1927), I p. 57. As referências remetem às páginas desta edição de Obras Completas. 71 - O Eu como princípio da filosofia, em Werke I, p. 100-103. 62 senão que tudo se origina e se origina do Eu, onde “somente na autoconsciência de um espírito se dá à identidade de representação e objeto; por isso (...) se há de se mostrar que o espírito, ao contemplar um objeto, se intui a si mesmo. Se isto se demonstra, a realidade de nosso saber já esta assegurada 75”. Assim, o espírito como auto-intuição é criador do mundo, do dinamismo da natureza: “O mundo infinito não é mais que nosso espírito criador em suas infinitas produções e reproduções 76”. A consciência natural vê no conhecimento dos fatores: o subjetivo e o objetivo, a representação e a coisa, que se relacionam entre si como se fossem a cópia e o original. Mas a consciência filosófica reconhece no original mesmo, ou seja, no objeto mesmo um produto necessário do espírito e na cópia a representação deste produto 77. Da mesma forma se falamos da coisa em si, onde hipoteticamente supomos que a matéria precede ao conhecimento, não entenderemos nada. Porém se queremos nos conhecer, “não resta se não afirmar que o espírito não nasce da matéria, mas a matéria é que nasce do espírito, princípio que assinala o trânsito à filosofia prática 78”. Mas a auto-intuição ou autoprodução da natureza é um ato inconsciente, que aparece o espírito mesmo como produto. Os graus de desenvolvimento da natureza podem ser compreendidos somente como criações ou produções do espírito, pelas quais esta natureza se eleva até consciência e a liberdade 79. E, posto, que é inconsciente, a atividade produtiva do espírito não é conhecimento, senão querer, uma consciência pura da 75 - Ibid, p.290. 76 - Ibidem, p. 284 285: “A natureza não é nada distinto destas leis (do espírito); é somente uma ação continuada deste espírito, na qual ele vem a consciência e pela qual dá a esta consciência extensão, duração, continuidade e necessidade”. 77 - Ibidem, p. 296: “Quem se eleve a um ponto de vista mais alto encontra que, originariamente, não há diferença entre idealidade e realidade, e que nosso saber (...) é, por sua vez, real e ideal. Originariamente é o modo obrar do espírito e o produto desse obrar uno e mesmo. Mas não podemos ser conscientes de ambos sem opor um ao outro”. 78 - Ibidem, p. 297. 79 - Ibidem, p. 311: “A série dos graus de organização e o passo da natureza morta à natureza viva revelam claramente uma força produtiva que se desenvolve até a completa liberdade”. Assiná-la, ainda, antes: “Uma força é somente força do espírito. Por isso as coisas não são coisas em si, não podem realmente ser por si somente; podem ser somente criaturas, somente forças do espírito”. 63 atividade fora do conhecimento teórico 80. A vontade será o princípio espiritual inconsciente de toda produção da natureza e de todas as manifestações do espírito, que com ele Schelling colocou o fundamento da sua filosofia da natureza. 3.2 – A Filosofia da Natureza Após os anos de 1797 a 1800, Schelling se dedicou a estruturar a sua “Filosofia da Natureza”, consagrando diversas publicações de pesquisas. Mas esta filosofia não é uma cosmologia no sentido usual ou um simples estudo científico da natureza, segundo os dados das ciências físico-químicas da época, pois contém a primeira versão do seu Idealismo Objetivo. Schelling se propôs, nela, dar uma visão orgânica do mundo natural em conformidade com os avanços da ciência, incluindo os numerosos descobrimentos do seu tempo no campo da química, do magnetismo e da eletricidade, da biologia, mas desenvolvendo através deles sua interpretação metafísica da natureza, sendo como a realização e manifestação de um absoluto, que é ao mesmo tempo matéria e espírito, atividade inconsciente e razão. Schelling integrou em sua construção teórica da natureza os elementos da ciência moderna, onde estava convencido de que a investigação experimental pressupõe a inteligibilidade da natureza. Nesse momento histórico, a física experimental não alcançou, ainda, o valor de ciência, onde o experimento, dizia, seria uma pergunta feita à natureza, sendo que a natureza estaria obrigada a contestar 81; ou seja, deve estar iluminado e dirigido por uma visão teórica da natureza, que determina a priori todas as suas manifestações. Assim, esta física empírica deve ser assumida, segundo Schelling, pela física especulativa, uma construção puramente teórica ou dedutiva da matéria e dos tipos básicos de seres inorgânicos e orgânicos, desde os princípios da ciência 80 - Ibidem, p. 230: “O espírito é uma vontade original, onde este querer deve ser infinito como o espírito mesmo (...). O espírito está ligado aos objetos pelo seu próprio querer. Ao contrário, sem a liberdade do querer há em nós somente uma representação cega e nenhuma consciência de nossa representação em nós (...), somente é liberdade do querer a que suporta todo o sistema de representações e o mundo mesmo consiste numa expansão e contração do espírito”. 81 - Introdução ao projeto de um sistema de natureza, em Werke, Ed. M. Schröter, II, p. 176. 64 do Absoluto. Esta física especulativa, “que é a alma dos verdadeiros experimentos e é a mão de todos os grandes descobrimentos da natureza 82”, equivale a sua filosofia da natureza. Trata-se de uma construção ideal, que desenvolve de um modo sistemático o dinamismo interno da natureza, como manifestação do Absoluto. A justificação última da mesma é a sua teoria metafísica do Absoluto, que foi elaborada como “pura identidade” de subjetividade e objetividade, da ordem ideal e da ordem real, que esta identidade se reflete na mútua interpretação da natureza e o conhecimento da mesma no espírito humano. O filósofo deve mostrar que a natureza é espírito visível, e que o espírito, natureza invisível 83. Nesta elaboração, a natureza se espiritualiza e transforma em subjetividade o Eu. Mas, ao mesmo tempo, o espírito se tem objetivado e convertido em seu princípio criador ou produtivo. Assim, este segundo aspecto do Absoluto adquiriu maior importância em Schelling, que não se propôs, como em Fichte, justificar a atividade infinita do Eu, senão justificar a infinita atividade do Absoluto como natureza. Nesse sentido, o Absoluto em si mesmo é um ato eterno de conhecimento, onde não há sucessão temporal. Mas em sua objetivação na natureza, em sua expansão no mundo dos fenômenos como atividade ilimitada se distingue três momentos ou fases: a) no primeiro momento, o Absoluto se objetiva a si mesmo como natureza ideal ou universal, exemplar dela mesma, que Schelling designa com o termo Spinoziano natura naturans; b) o segundo momento é a externa objetivação do Absoluto na natura naturata, ou seja, na natureza como sistema de coisas particulares, que é o símbolo e a aparência da natura naturans; e, finalmente, c) o terceiro momento, sendo a síntese de ambos, a transformação da objetividade em subjetividade, como mundo ideal da representação, em que a natureza é representada em e pelo conhecimento humano, passando de novo ao universal, ou seja, a um nível conceitual 84. Nestes três momentos, distinguíveis por reflexão filosófica na vida interna do 82 - Ibidem, p. 280. 83 - Idéias para uma filosofia da natureza, em Werke I, p. 706. Ibidem, p. 708: “Esta visão de que o Absoluto Ideal é o Absoluto real é a condição de toda ciência superior”. 84 - Ibidem, p. 713-715 e 717: A natura naturata é a natureza como tal; “não como o absoluto ato de conhecimento, senão como mero corpo e símbolo do mesmo”. 67 produtos singulares da natureza (os indivíduos) o grau de uma continua evolução em que se manifesta esta infinita atividade. Estes pontos de interrupção são as qualidades originárias, ou ações de um determinado grau, que constituem as unidades indivisíveis da natureza. Desde o ponto de vista da mecânica atomista, estas unidades aparecem como átomos, mas desde um ponto de vista dinâmico devem ser entendidas como ações originárias e graus distintos de uma atividade única. Os corpos naturais são combinações destas ações; o conjunto das ações constitui a coesão e seus limites, a figura do corpo no espaço. A formação do corpo no espaço pressupõe uma condição de informidade, porque o passar de uma forma a outra ocorre sempre mediante a perda de uma forma, assim, a matéria informe é matéria fluida; por conseguinte, o desenvolvimento inteiro da natureza se reduz a uma luta entre o que é fluido e o fluido, entre o que é ausência de forma e a forma 85. Mas se a natureza é uma infinita atividade, então um só princípio preside a organização de todo o sistema do mundo. Logo, todas as formas individuais aparecem como diversos graus do desenvolvimento de uma mesma organização absoluta 86”; e esta organização tende a se reorganizar de uma forma cada vez mais completa através de uma maior unificação dos produtos singulares. Este – os indivíduos singulares – é tão somente o meio com respeito à tarefa a que tende a natureza, onde: “O indivíduo deve aparecer como um meio e a espécie como um fim da natureza; o indivíduo passa e a espécie permanece, se for verdade que os produtos singulares devem ser considerados como tentativas frustradas de representar o Absoluto 87”. Nesta concepção em que a natureza constitui um todo, que continuamente se desenvolve, um organismo vivo que se renova ao infinito, em cada produto singular, a tentativa de se realizar infinitamente, o mundo inorgânico deverá estar dotado também de vida, ainda que em grau inferior de desenvolvimento, logo no mundo inorgânico há organização e evolução. A 85 - Primeiro Projeto de um Sistema da Filosofia da Natureza, em Werke II, ed. cit., p. 33. 86 - Ibid., p. 33. 87 - Ibid., p. 51. 68 diferença consiste que o mundo orgânico tem em si a própria organização ou forma de vida, enquanto que no mundo inorgânico a esta organização ou forma de vida, parte de uma organização que o compreende. Daí que Schelling tratará de estabelecer as leis de organização ou evolução dos corpos inorgânicos. Estas não se produzem por reunião de elementos originariamente distintos, ou seja, por composição, mas mediante a produção ou emanação de uma unidade originária, que é a evolução. Da mesma forma, entendeu a noção de vida e organização dos corpos celestes, que também eles teriam a sua geração, onde essa cosmologia teria um processo análogo à gênese dos corpos viventes, regido pela lei fundamental da gravitação que governa sua produção 88. Na lei fundamental da gravitação, Schelling encontrou a base para afirmar a unidade das forças que atuam no mundo natural. As forças universais da natureza são: o magnetismo, a eletricidade e o processo químico, sendo análogas às três forças, que atuam na natureza orgânica: sensibilidade, irritabilidade e reprodução. Do magnetismo universal surge a sensibilidade, do processo elétrico surge a irritabilidade e do processo químico a reprodução, que é a atividade formativa. A polaridade definida como a identidade na duplicidade e a duplicidade na identidade, é a causa do magnetismo e da sensibilidade, a fonte dinâmica da atividade e a fonte da vida da natureza 89, caracterizando-se através de um monismo vitalista. 3.4 – Monismo Vitalista Nesta mesma linha de concepção da natureza caminha outro escrito de Schelling intitulado: “Sobre a Alma do Mundo” (Über die Weltseele, 1798), tendo como subtítulo a “Hipótese da mais Alta Física para a Explicação do Organismo Universal”, que está destinado em demonstrar a continuidade do mundo orgânico e do mundo inorgânico em um Todo, onde o mesmo é um organismo vivente. 88 - Ibidem, p. 106 ss. 89 - Ibidem, p. 19. 69 Esta especulação parte da idéia do desenvolvimento evolutivo do mundo como um todo orgânico, segundo Schelling, que na natureza tudo se move continuamente, avançando e que devemos buscar o fundamento dele no princípio que seja a fonte inesgotável da força positiva e sustenta o movimento ininterrupto. Este princípio positivo é a força primeira da natureza. Mas há outra força invisível que reduz todos os fenômenos no mundo a um eterno círculo, que a última razão dele deve ser uma força negativa que limite os efeitos do princípio positivo. Para Schelling, este princípio negativo é a segunda força da natureza 90, uma vez que, este dinamismo universal é concebido segundo a dialética fichteana da posição, ou tese, da oposição e limitação, ou antítese, surgindo à síntese unificadora e superadora dos contrários, que Schelling conclui dizendo que, estas duas forças, representadas como unidade e conflito, levam à idéia de um princípio que organiza o mundo num sistema, sendo o que chamavam os antigos de alma do mundo 91. Nesta teoria da natureza animada por um princípio vital imanente há um eco das especulações gregas, refletidas nas frases de Sêneca: Mens Agitat mundam, onde esta alma do mundo não pode ser descoberta pela investigação empírica, pois é um postulado ou hipótese, tampouco é uma inteligência consciente. Mas é um princípio organizador, que se manifesta na natureza e que faz surgir a consciência na mente humana. Schelling procede igualmente a versão nas forças físicas dessas atividades contrárias, como foi exposto no item 1.3.2 - “A Filosofia da Natureza”. O princípio ou alma do mundo representaria a unidade das duas forças contrapostas – atração e repulsão –, que atuam na natureza e se manifesta no fluido que os antigos chamavam éter; o dualismo ou choque dessas forças, na oposição de luz e oxigênio em que se divide o éter, e a polaridade unificante, na força magnética. Na descrição das teorias físico-químicas Schelling, não é sempre constante, e variam segundo os diversos escritos. 90 - Sobre a Alma do Mundo, em Werke, p. 449. 91 - Ibidem, p. 449. 72 coisas não se encontra nada mais que, o que representamos delas em nós mesmos 97”. 3.5.1 - Do Sujeito ao Objeto Schelling com a sua nova versão idealista não tinha a intenção de anular a sua filosofia anterior, como também a sua ciência da natureza, mas trata de uma via paralela e complementar daquela, uma vez que, a ciência da natureza como filosofia transcendental repõe a unidade única no Absoluto por si mesmo causa e efeito, na absoluta identidade do subjetivo e do objetivo 98, onde podemos chamar natureza à totalidade dos elementos objetivos de nosso saber, enquanto que o conjunto dos elementos subjetivos se denomina o Eu ou Inteligência. A Inteligência é concebida como o puro representante; a natureza como o puro representável; aquela como o consciente, esta como o inconsciente 99. Nesse sentido, duas direções são possíveis para a investigação filosófica: a) Que se admita primeiramente o objetivo ou a natureza. Então teremos a filosofia da natureza, mostrando que esta ao se desenvolver resulta no espírito, como o subjetivo se identifica com o objetivo. A missão “deste ramo necessário e fundamental da filosofia era a de fazer inteligível a natureza”, mostrar que “a chamada natureza morta é uma inteligência imatura, que em seus fenômenos se transluz mesmo que num estado inconsciente, o caráter inteligente”; que em sua última e mais alta reflexão, que é o homem ou a razão, dando-se o completo retorno da natureza a si mesma e aparecendo idêntica àquilo que em nós se revela como inteligente e consciente. Assim, esta ciência da natureza chegaria ao cume da perfeição se chegasse a espiritualizar perfeitamente todas as leis naturais da intuição e do pensamento 100. b) Que seja posto primeiramente o Subjetivo, onde surge a “filosofia transcendental, o outro ramo necessário e fundamental da filosofia”, sendo o 97 - Sistema do Idealismo Transcendental, Introdução, p. 11-12 e 14, § 2º e 3º. 98 - Ibidem, seção I, p. 24. 99 - Ibidem, Introdução, p. 7, § 1º. 100 - Ibidem, Introdução, p. 8-9, Introdução § 1º. 73 subjetivo o primeiro e único fundamento de toda a realidade, o único princípio explicativo de todo o resto, e desde o sujeito ou o espírito deve se realizar derivar todas as realidades do objeto. O Idealismo transcendental tem por função e obrigação, esta segunda parte do saber filosófico, mostrando como o espírito se desenvolve na natureza e se projeta nela, constituindo-se o complemento da ciência da natureza e a parte mais elevada do saber. Disso se conclui que, não há natureza que seja puramente tal ou pura objetividade, nem há espírito que seja puramente tal ou pura subjetividade, uma indagação sobre a natureza haverá de chegar ao espírito, e uma investigação sobre o espírito haverá de chegar à natureza. Segundo Schelling, “toda a filosofia deve conduzir ou o produzir da natureza a uma inteligência, ou da inteligência a uma natureza 101”. Mas sua convicção é que os caracteres complementares da filosofia da natureza e do Idealismo Transcendental, manifestando o Absoluto como identidade do sujeito e do objeto, do ideal e do real, pois “como a ciência da natureza extrai o Idealismo do Realismo, espiritualizando as leis naturais em leis da inteligência, acoplando ao material formal, desta forma, a filosofia transcendental extrai o realismo do idealismo, enquanto materializa as leis da inteligência em leis naturais e agrega ao formal o material”. Assim, esta indagação recorre o caminho inverso: do sujeito ao objeto. 101 - Ibidem, p. 10. 74 PARTE II A CONCEPÇÃO HEGELIANA DE SISTEMA Um dos principais fatos que determinaram a existência de um solo promissor ao pensamento filosófico e sistemático de Hegel foi a chegada de Fichte à Universidade de Jena em 1794, publicando no mesmo ano o seu “Fundamento de toda a Doutrina da Ciência”. Porém, sua influência foi tão grande que se estendeu a todas as esferas da vida cultural daquela cidade. Mas em 1799 se instalou contra Fichte uma polêmica de “ateísmo”, que lhe obrigou a abandonar Jena em conseqüência dos conflitos com as autoridades desta cidade. Assim, a primeira geração do pensamento romântico esteve embalada pela filosofia fichteana, pois viram na doutrina da autonomia do Eu a expressão filosófica da emancipação dos sentimentos e a preocupação pelo destina da personalidade. Mas foi Schelling, que tinha uma predileção especial pela natureza, a arte e a religião, que atraiu o interesse dos românticos. Assim, vemos que, Friedrich Schlegel, transferi-se para Jena no intuito de conhecer a filosofia Fichteana, mas a visão conjunta da conexão espiritual do universo que buscava somente poderia se relacionar com os postulados de Schelling, pois a intuição intelectual era vista como o imperativo categórico da teoria, que mediante a mesma era possível aceder ao objeto comum da filosofia e da arte, tendo sempre o ponto de partida na natureza. Nesse sentido, a unidade da poesia e da filosofia, que Schiller descobriu na reflexão teórica sobre os fundamentos da atividade poética, era o ponto em que se conectam o movimento romântico e o jovem Schelling. Schelling inicialmente estava vinculado aos delineamentos da filosofia fichteana, ou seja, nas primeiras exposições da “Doutrina da Ciência”. Efetivamente, em “Sobre a possibilidade de um forma de filosofia em Geral” (1794) e, de forma mais explícita, em “Do eu como princípio da filosofia” (1795), Schelling realiza como se fosse seu o Idealismo Transcendental do eu absoluto, tendo como intenção fundamentar um único princípio, donde a partir 77 leitura das publicações de Schelling e através das correspondências que mantinha com o mesmo. Nesse sentido, Hegel é reconhecido, em 13 de agosto de 1801, na Faculdade de Filosofia de Jena, pois seus estudos realizados sobre a “Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling” foram bastante elogiados. Em 27 de agosto do mesmo ano, realizou o exame para a habilitação de docência na Universidade com a apresentação de sua “Dissertatio Philosophica de Orbitis Planetarum” e a defesa de “Doze teses”, que segundo Sofia vanni Rovighi o sistema hegeliano já estaria “in nuce”. Mas no semestre do inverno de 1801 a 1802, começou suas lições sobre lógica e metafísica, já os anos de 1802 a 1803 são de colaboração juntamente com Schelling no “Kritisches Journal der Philosophie”, lugar onde Hegel publica seus ensaios sobre a crítica filosófica, o sentido comum, o cepticismo, ”Crer e Saber” e o “Direito Natural”. Porém, em 1803 Schelling se transfere à Wüsburg, mas Hegel continua desenvolvendo seu próprio sistema filosófico em Jena, cujas linhas fundamentais já se encontravam quase que totalmente traçadas nas “Diferenças entre os Sistemas Filosóficos de Fichte e Schelling”. Assim, vemos que entre Hegel e Schelling existiu uma comunidade de interesses e intenções filosóficas pelo menos nos anos iniciais de sua estada em Jena. Mas isto não significa que ambos tivessem o mesmo ponto de vista, tanto ao modo de levar a cabo as tarefas da filosofia e, como também, ao papel que esta deve desempenhar no conjunto da cultura, pois como vemos Hegel se apresentava como autor filosófico com uma série de escritos críticos de filosofia, sendo este um ponto decisivo na hora de interpretar as “Diferenças entre os Sistemas de Filosofia de Fichte e Schelling”, além dos motivos imediatos com a polêmica com Reinhold; pois a construção de um Idealismo que pudesse caracterizar-se legitimamente como conhecimento especulativo efetivamente se inicia com Hegel através de um delineamento explícito da função da filosofia. Isto é devido ao fato de que, por um lado, a filosofia se fundamenta em si mesma enquanto desenvolvimento imanente do pensamento e/ou, por outro lado, se encontra intrinsecamente vinculada, desde a sua raiz, às condições concretas da vida, portanto, vemos que Hegel distingue entre as 78 condições históricas dadas na cultura da época e a filosofia mesma, que de antemão se determina como conhecimento metafísico do Absoluto, desenvolvido como sistema a partir do princípio da especulação, que expôs tanto na “Fenomenologia do Espírito”, publicada em 1807, que se caracterizava como “Introdução” e “Parte do Sistema”; a “Ciência da Lógica”, publicada em 1812, sendo a primeira parte da exposição do “Sistema da Ciência”, como o próprio Hegel menciona no “Prefácio da Primeira Edição” (Hegel, 1993, p. 40), como também, na “Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio”, publicada em 1817, 1827 e 1830, sendo revisada e corrigida duas vezes, que apresenta a exposição geral de todo o seu sistema-discursivo-dialético- filosófico, e ainda os “Princípios da Filosofia do Direito”, publica em 1820, onde expôs parte do terceiro momento da Ciência do Espírito intitulado de “Espírito Objetivo”. Mas vale salientar que, em todas as obras filosóficas de Hegel, temos a exposição, a demonstração e a evolução do “sistema da ciência” de forma gradual através dos desdobramentos lógicos de aumento de níveis de reflexividade. Desta forma, Hegel nos apresenta e expõe um discursivo- filosófico-dialético, que tem como caráter excepcional a sistematicidade do real, ou seja, a sistematicidade real e não uma sistematicidade artificiosa e aparente, como ocorreu com Spinoza, Kant, Fichte e até mesmo em Schelling, pois Hegel recusava o formalismo destes filósofos, sendo este o ponto que diferencia a filosofia hegeliana das demais filosofias; mas que fique bem entendido aqui, que não se trata de uma apologia. Nesse sentido, o sistema hegeliano é verdadeiramente um sistema e o sistema, porque nele a ordem das razões de conhecer e a ordem das razões de ser são idênticos, como também, que no seu curso se verifica e se constata a afirmação hegeliana de que pensamento e ser fazem-se um só. Assim, fez e se faz necessário que para compreendermos a sistematicidade do discurso-filosófico-dialético hegeliano, que estejamos sujeito ao imperativo de apreendê-lo e analisá-lo como ele se oferece, onde temos que nos cingir as próprias palavras do autor e não na possibilidade de se encontrar em outro lugar desconhecido, pois o segredo do discurso hegeliano é aquele que unifica determinações particulares, ou seja, 79 sendo efetivamente o universal delas, mas um universal que estivesse no exterior das determinações particulares, ou seja, um exterior por sua oposição unilateral ao exterior; um particular por sua diferença abstrata – que o particulariza – com as particularidades. Nesse sentido, após termos exposto as linhas gerais do pensamento filosófico de Kant, Fichte e Schelling, passaremos à exposição dos delineamentos fundamentais do “Idealismo Absoluto” de Hegel, suas características e o “Devir Dialético da Idéia”, donde no ao final teremos algumas objeções fundamentais à filosofia hegeliana e a “noção de sistema”, que se dá na exposição, demonstração e evolução do “Sistema da Ciência”, que se encontra na “Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio”. 82 de que a realidade seja penetrada ou entendida pela razão, senão a necessária e substancial identidade da realidade e a razão, porque a razão ou a idéia é o princípio infinito autoconsciente em que se resolve a realidade finita, com isto não quer anular as determinações do real num absoluto indiferente, o que condena em Schelling; mas quer conservar toda a riqueza da realidade e não reduzi-la a meros esquemas intelectuais. Hegel, ainda, declara sua conformidade com o empirismo no princípio de que nada há de mais verdadeiro que o real, o qual não pode ser reduzido a um puro dever ser, que chega a depreciar a realidade presente 113, pois a realidade mesma em sua vida concreta é intrínseca a razão, por sua parte a razão não é pura idealidade, abstração, deve ser; sendo o que é real e concretamente existe. Nesse sentido, é que surge a crítica de Hegel em relação a Kant, em que a crítica entre o dever ser e o ser forma parte integrante da filosofia, pois para Kant as idéias da razão são meros ideais, ou seja, regras necessárias que guiam até uma acabada e inalcançável realização. No domínio da moral, a vontade não coincide com a razão e não alcança nunca a santidade, que é o fim (telos) de um progresso ao infinito e somente é atual em Deus. Assim, o ser não se adequa nunca com o dever ser, nem a realidade com a racionalidade. Assim, segundo Hegel, essa adequação é necessária, pois separar a realidade do racional significa ver nas idéias nada mais que puras idéias ou abstrações 114. Nesse sentido, a filosofia não deve se ocupar mais que do ser, onde a realidade é sempre o que deve ser: racionalidade total e perfeita. Hegel aplicou este princípio da racionalidade a todos os domínios. Assim, a natureza é racionalidade em si e, dessa forma, a filosofia deve renunciar à absurda pretensão de determiná-la e guiá-la, devendo somente transpor em forma de pensamento, ou seja, elaborar em conceitos o conteúdo real que a experiência oferece, demonstrando sua intrínseca racionalidade por meio da reflexão; assim faz universal o conteúdo da realidade e o transforma em categorias ou conceitos 115. Desta forma se a realidade é razão, será também absoluta 113 - Ibid, p. 103-104, § 38, Esclarecimentos. 114 - Ibidem, p. 45, § 6, Esclarecimentos. 115 - Ibid, p. 103-104, § 38, Esclarecimentos. 83 necessidade, que a filosofia terá de demonstrar. Mas o mesmo deve de se admitir para o mundo ético, o Estado, onde o objetivo da Filosofia do Direito consiste simplesmente na justificação racional da realidade política em ato e a transformação em conceitos daquela racionalidade que se realiza nas instituições vigentes 116. Isto ocorrerá também ao campo da história e da especulação filosófica, pois todos os sistemas passados refletiram cada qual o seu tempo, a verdade da única filosofia 117. Nesse sentido, é notório o acúmulo de divergências, oposições e lutas existentes no mundo da natureza contingente e, mais ainda, na realidade ética e social ou nos sistemas filosóficos. Assim, a oposição se dá a respeito dos conceitos imóveis do entendimento, incapazes de recorrer à riqueza da realidade. Porém, para a razão dialética, que não exclui as contradições, mas as aplica, onde a verdade total se dá na síntese superadora dos contrários, sendo a única maneira de se evadir do total relativismo historicista. 1.2 - A Originalidade da Dialética de Hegel Neste tópico pretendemos explicitar a originalidade da dialética de Hegel, tanto em relação à dialética antiga, quanto em relação à dialética moderna, que lhe é antecedente e contemporânea. De fato, a sua concepção de dialética pouco ou nada tem a ver com o sentido antigo de instrumento lógico de argumentação em disputa e diálogo, pois é também claro que Hegel deriva e recorre a sua dialética imediatamente de Fichte, o processo antes descrito da oposição do ser e do não-ser com a síntese e união de ambos no Dasein, ser existente ou algo, está calcado sobre os princípios fundamentais do sistema fichteano: o eu se põe a si, põe o não-eu, e ambos se conciliam e autolimitam na consciência, o eu finito, como germe da tensão dialética, que origina a multiplicidade de seres por sucessivas teses, antíteses e sínteses. Assim, ambos percorrem similar caminho de dedução dialética da multiplicidade das coisas, desde o espírito ou autoconsciência infinita, só que em Fichte tudo ficava na subjetividade do eu. 116 - Cf. HEGEL, Filosofia do Direito, Prefácio, p. XXVI. 117 - Cf. HEGEL, Enciclopédia, volume I, p. 54, § 13. 84 O idealismo de Hegel é realista e percorre todas as esferas da realidade; seu princípio dialético não é o eu, senão o ser, como na filosofia antiga. Por outra parte, Hegel não emprega o termo “tese”, “antítese” e “síntese”, que Fichte utilizava como simples divergência de forma, porque a tricotomia dialética de oposição de contrários e passando a uma nova síntese ou conceito, que concilia os contrários na unidade, ocorrendo com mais rigor e amplitude em Hegel. Desta forma, o método dialético fichteano se dá em três momentos ou etapas e tem suas raízes em Kant, sendo influenciado por seu princípio da dedução transcendental e sua divisão das categorias em tríades e por suas famosas antinomias. Hegel trata de superar esta concepção de dialética – recuperando toda a filosofia antiga, sustentando que Sócrates fez uso dela, que Platão a descobriu ao afirmar que o movimento é o princípio da multiplicidade das coisas e que também Aristóteles havia sustentado este princípio – articulada com a experiência mais profunda da realidade 118. Mas é notório que a doutrina aristotélica do movimento está longe de opor-se ao princípio de identidade e admitir a oposição atual no seio dos seres, pois cada coisa pode passar a ser outra, incluindo a contrária; mas não pela força da contradição ou negação de si nela contida, mas por que está em potência para receber outras formas pela ação de uma causa. Não podemos deixar de mencionar a importância de Heráclito na filosofia de Hegel, e de modo especial em sua dialética. De fato, o próprio Hegel explicitou – numa exaltação a Heráclito – em suas lições sobre a História da Filosofia, não haver nada da filosofia de Heráclito que não tenha assimilado em sua lógica. Assim, é certo que a teoria de Hegel tem um precedente direto em Heráclito 119; nosso filósofo renova a velha doutrina heracliana dos contrários e do fluir das coisas, no devir enquanto fundo de toda a realidade. 118 - Ibidem, p. 163-166, § 81, Adendo. 119 - Ibid, p. 184, § 88, Adendo. No ser está o nada, e no nada está o ser. Este ser que em si tem o nada é o devir, em cuja unidade não está destruída a diferença de ambos os termos. O devir é o primeiro momento concreto e, portanto, a primeira determinação verdadeira do pensamento. Na história da filosofia, o sistema de Heráclito representa este grau da idéia lógica, pois Heráclito ao dizer que tudo era fluido – ponta rei – , reconheceu o devir como a determinação primeira de quanto existe, enquanto os Eleátas, compreenderam como única verdade o ser vazio e abstrato. Mas referindo-se ao princípio dos Eleátas, diz Heráclito: “o ser 87 são por sua diferença e sobre esta função do entendimento se funda a lógica antiga, que é do finito, do abstrato e formal, mas com um detalhe se torna válida em todo o campo dos conceitos rígidos com que operam as ciências e a matemática. Assim, como o âmbito da vida prática, em que as coisas aparecem como idênticas a si mesmas e negação das outras coisas. Mas, aplicado o campo da especulação filosófica, cai-se em contradições irredutíveis, pois o infinito e o finito são irrevogavelmente opostos e todas as demais oposições são inconciliáveis. A vida do absoluto não pode ser captada por essa lógica comum do entendimento. Nesse sentido é que o pensamento deve elevar-se desde esse nível inferior e superficial do entendimento a um nível superior do espírito, que é o pensamento especulativo. Este nível superior ou da especulação metafísica é a função da razão (Vernunft), capaz de superar a rigidez dos conceitos do entendimento e resolver as oposições numa unidade superior, que é a identidade na diferença. A razão é a única que pode captar a vida do absoluto ou da idéia, enquanto contínuo desdobrar ou evolução por distintos momentos, em que cada conceito gera inexoravelmente seu contrário, passando a outro oposto, para unirem-se de novo os dois numa síntese superior que não anula as diferenças, porque a identidade pura e abstrata somente existe no pensamento formal da lógica ordinária. A verdadeira identidade contém a diferença e cada conceito ou determinação do ser traz consigo seu oposto, afirmando e colocando por sua vez a contradição. A razão dele é que nossos conceitos são limitados e não expressam toda a realidade que se encontra em contínua transformação; por serem finitos não contém o infinito da idéia. Assim, ao afirmar um conceito ou determinação é preciso negá-lo, colocando por sua vez sua negação ou limite a respeito dos outros e ao romper essa limitação, anula-se ou suprime a si mesmo para retornar a uma unidade superior que não destrói as diferenças. Assim é a dialética do pensamento, que Hegel declara ser a lei constitutiva do mesmo e a verdadeira lógica do pensar superior ou racional 125, 125 - Ibidem, p. 51, § 11, Esclarecimento. 88 entende-se antes de tudo como lei inerente ao pensamento mesmo, em que a emergência da contradição ou o conflito de conceitos opostos e a resolução do conflito na síntese que dá passagem à outra contradição, sendo a força impulsora do movimento dialético. Mas o pensamento e o ser são, para Hegel, idênticos. Por isso acrescenta que a dialética constitui essencialmente o princípio da vida do movimento e da atividade na esfera da realidade, pela qual a dialética é a alma de todo o conhecimento verdadeiramente científico 126, ou seja, o movimento dialético está imbricado como lei ontológica imanente na realidade inteira com todas suas determinações, sendo o princípio que constrói a vida do absoluto e o princípio no qual constrói seu sistema filosófico, pois a filosofia significa para nosso pensador, não somente o fiel reflexo cognoscitivo, mas a vida mesma do absoluto. A dialética hegeliana não é um simples método ou instrumento de pensar, mas constitui em princípio o movimento construtivo do mundo do espírito, da natureza e de toda a história da cultura humana. 1.3 - A Dialética do Finito e do Infinito A intenção de Hegel será desenvolver o sistema idealista numa linha independente, que será a linha Universalista da harmonia mais plena do ideal com o real, do eterno da idéia com o mutável e dinâmico evolutivo da história. Assim, refuta o princípio do Eu fichteano por excesso de subjetividade, por descuidar da natureza, reduzida a um objeto ideal. A interpretação fichteana da relação do infinito com o finito, que é também a de Schelling é refutada por conter um dualismo não resolvido, “que deixa subsistente a oposição do finito e o infinito”. O finito, que se diz nascer do infinito ou ser causado por este, é posto ao lado do eu. Então, se dá ao finito “um valor próprio e uma existência independente; neste dualismo, o finito aparece como uma existência absoluta”. Por outro lado, “o infinito, posto ao lado do finito, como seu oposto, assume a forma de uma existência particular, não é mais o infinito, mas o finito”. Estas teorias expressam uma má infinitude, pois “limitam o infinito e o põe como 126 - Ibidem, p. 162, § 81. 89 finito, porque aparece neles o finito como tendo uma existência própria e sem estar expressamente suprimido 127”. O verdadeiro infinito deve por isto anular o finito, reconhecendo e realizando, dentro das aparências do mesmo, sua própria infinitude. “O que constitui a realidade do finito é mais bem a sua identidade (...). Esta idealidade do finito é o princípio fundamental da filosofia, e a única verdadeira filosofia é o idealismo 128”. Trata-se de um idealismo em que a realidade do finito é dissolvida e diluída nos termos do infinito, como um momento no processo de sua vida, ou seja, o Idealismo Absoluto, como mesmo o chama Hegel 129. E termina dizendo, que desta interpretação “depende a noção fundamental da filosofia e do verdadeiro infinito 130”. Este princípio infinito e noção fundamental da filosofia é o Absoluto. Hegel se volta, assim, do Eu de Fichte, que resulta num idealismo subjetivo, ao absoluto de Schelling, que aceita como objeto próprio da filosofia. Porém, o seu propósito não é deter-se no sujeito, mas voltar-se aos objetos, à realidade das coisas que devem ser compreendidas no sistema do saber. Seu sistema será também a filosofia do Absoluto, que se esforça por se elevar à consciência do Absoluto como primeira verdade e primeiro ser, para penetrar desde ele todas as coisas como momentos ou manifestações do mesmo. E o Absoluto é concebido como totalidade; a realidade do universo, como um todo. Esta realidade universal é também vida; mais que isso, é vida e conhecimento, conforme esta explicitada na lógica como Idéia. No Prefácio da Fenomenologia do Espírito, que aceita esta designação do Absoluto, Hegel ataca duramente a noção schellinguiana do mesmo, e que marcou sua ruptura com Schelling. Hegel admite a noção do Absoluto como identidade do real e do ideal, como expressou Schelling; mas não como a 127 - HEGEL, G. W. Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compendio: 1930, Volume I: A Ciência da Lógica, Tradução: Paulo Menezes, com a colaboração de José Machado, Edições Loyola, São Paulo, 1995. Cf., p.191 ss, § 95. 128 - Ibidem, p. 193 ss, § 96. 129 - Ibidem, p. 115 ss, § 45. 130 - Ibidem, p. 95 ss. § 191. 92 1.4 - O Espírito Absoluto como Deus É corrente em Hegel designar o Absoluto – esse Espírito ou sujeito absoluto que se pensa a si mesmo – como Deus. A linguagem da religião se compenetra em seu sistema. Mas a noção hegeliana de Deus está muito distante de uma doutrina que admite a existência de um Deus e a sua ação providencial no mundo (teísmo), caso se pensasse isso com Hegel estaríamos destruindo seu sistema filosófico. Nas “Preliminares” da Enciclopédia das Ciências Filosóficas rechaça resolutamente, entre os modos de pensar ou sistemas de filosofia insustentáveis – juntamente com o empirismo, o criticismo de Kant e a teoria da ciência imediata ou o intuicionismo de Jacobi –, “a teologia racional da metafísica antiga”, que pretende demonstrar com suas provas a existência de um Deus transcendente, separado e independente do mundo. É uma abstração vã e vazia de conteúdo, sendo pura abstração ou meros nomes, os atributos com que se pretende pôr Deus a frente do mundo e atribuir-lhe uma existência real. “Se Deus se considera como ser abstrato e ao mesmo tempo como ser supremamente real, Deus será para nós como um ser inconcebível”; pois “sua infinitude intelectual, seu ser puro, são em realidade finitos, pois excluem a especialidade ou determinidade (o particular e o individual), e, portanto, se limita e se nega a si mesmo”. Hegel condensa seu pensamento, assim: “(...). Esse provar, que tem por regra a identidade-de- entendimento, é estorvado pela dificuldade de fazer passagem do finito para o infinito. Assim, ou não podia libertar Deus da finitude – que permanece positivamente – do mundo aí-essente, de modo que Deus tinha que ser determinado como substância imediata do mundo (panteísmo); ou então Deus ficava como um objeto defronte do sujeito, desse modo, portanto, como algo finito (dualismo) 139”. Desta forma, Hegel reprova tal “Dualismo”, sendo o que lhe conduzirá ao conceito de Deus transcendente da metafísica clássica, onde não pode haver outro tipo de concepção, já que em seu sistema o Absoluto é concebido 139 - HEGEL, G. W. Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compendio: 1930, Volume I: A Ciência da Lógica, Tradução: Paulo Menezes, com a colaboração de José Machado, Edições Loyola, São Paulo, 1995, p. 99, § 36 – inciso b. 93 como totalidade. Não pode se falar, pois, de outro ser transcendente, separado e oposto a essa realidade total. A esfera da objetividade e da subjetividade está nele compreendida como dois momentos na vida do Absoluto, que se expressam a si mesmos na objetividade da natureza e retorna a si na consciência humana como Espírito. O em si é sujeito ou pensamento autoconsciente, não já constituído, senão no processo de atualização através das sucessivas fases de seu devir. O Deus de Hegel não é, portanto, a “inteligência que se pensa a si mesma”, separada e independente do mundo de Aristóteles, senão o Absoluto como totalidade, que é vida e é espírito. “A vida íntima do Espírito, o pensamento, o Eu, ou bem a totalidade concreta dos seres, que não é outra coisa, senão: Deus 140”. Mas como o absoluto é propriamente o princípio infinito, e o mundo não é mais que uma existência fenomenal que não tem verdadeira realidade, o Deus de Hegel se configura como um panteísmo idealista, pois se identifica com o Espírito infinito; e, assim, “por ser o homem pensante, tanto o bom senso quanto a filosofia não vão desistir de elevar-se a Deus, partindo e saindo da intuição empírica do mundo. (...). Só a natureza espiritual é o mais digno e mais verdadeiro ponto de partida para o pensar do absoluto, na medida em que o pensar [toma para si] um ponto de partida e quer tomar o mais próximo 141”; que se realizará na exposição do exposição do Espírito Absoluto como Idéia. 140 - Ibidem, § 15, Cf. § 12, p. 52: “Desse modo encontra em si, na idéia da essência universal desses fenômenos, antes de tudo, sua satisfação; essa idéia (o Absoluto, Deus) por ser mais ou menos abstrata”. 141 - Ibidem, p. 123 ss, § 50. Dentro de sua postura da idealidade do mundo, Hegel nesse momento absolve Spinoza de ateísmo, pois em sua noção de substância absoluta, cujos dois atributos são o pensamento e a extensão, esta extensão ou matéria se resolve naquela. Deverá se acusar a este filósofo de absorver o mundo em Deus, ou de acosmismo (sistema filosófico que declara o mundo independente da divindade), mais que de absorver a Deus no mundo, o de ateísmo. Mas as duas posições são equivalentes e negadoras do verdadeiro teísmo. Adverte já curiosamente Hegel (p. 149 ss, § 71), que a acusação de ateísmo é menos freqüente nesta época, porque as exigências em matéria de religião e o conteúdo da religião mesma têm-se reduzido, e se remetem ao parágrafo seguinte (p. 151, § 7), donde se diz: “Deus, como objeto da religião, é expressamente limitado ao Deus em geral, ao supra-sensível indeterminado; e a religião, em seu conteúdo, é reduzida a seu mínimo”. Com o qual reflete exatamente seu pensamento. Em efeito, dada a atmosfera de religiosidade vaga e difusa em que se moviam os românticos e idealistas resultantes das atitudes acomodatícias da ortodoxia luterana, a acusação de ateísmo era temida como uma injúria (...). 94 1.5 - O Espírito Absoluto como Idéia O Espírito Absoluto é designado finalmente como Idéia. “Desse modo, o espírito vem a si mesmo, no profundo sentido da palavra, porque seu sentido – sua ipseidade sem mescla – é o pensar 142”. Tal parece ser a designação definitiva e que compreende todas as demais. “A definição do Absoluto, de que é a idéia, agora é ela mesma absoluta. Todas as definições anteriores voltam a essa 143”. E, com efeito, Hegel expôs seu sistema em torno da idéia como princípio, que afirma ser o objeto da filosofia 144. Assim, o sistema se encontra dividido em três partes, que são os três momentos do desenvolvimento da Idéia: a Lógica, a filosofia da natureza e a filosofia do espírito 145. Hegel parece ter chegado a esta concepção de absoluto como idéia, desde a noção kantiana das três idéias transcendentais 146. Reconhece que “A Crítica da faculdade de julgar tem notável valor naquilo que Kant exprimiu como a representação, e mesmo o pensamento, da idéia”, que abrange a totalidade do conteúdo no postulado da harmonia da natureza 147. Mas seu 142 - Ibidem, p. 51, § 11. 143 - Ibidem, p. 348, § 213. 144 - Ibidem, p. 44 ss, § 6. 145 - Ibidem, p. 58 ss, § 18. 146 - KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Introdução de Notas de Alexandre Fradique Morujão, 4ª Edição, Editora Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa – Portugal, 1997, Segunda Divisão – DIALÉTICA TRANSCENDENTAL, Livro Primeiro: DOS CONCEITOS DA RAZÃO PURA, Das Idéias Transcendentais, Segunda Secção, p. 313-319. Kant chama aos conceitos puros, formados por essa razão superior em seu uso transcendental, idéias. Então, a idéia kantiana se trata de um conceito que excede a possibilidade da experiência e que determina, segundo os princípios, o uso do entendimento no conjunto da experiência completa, ou seja, se refere à unidade coletiva de toda a experiência possível. Terceira Secção, p. 320-324. A idéia não é senão o conceito de totalidade de condições para um condicionado dado. Assim, para Kant o sistema de idéias transcendentais são três, que contém os três modos de totalidade absoluta da experiência: a idéia de alma, que contém a unidade absoluta (incondicionada) do sujeito pensante; a idéia de mundo, que representa a unidade absoluta da série das condições do fenômeno ou o conjunto de todos os fenômenos; a idéia de Deus, que representa a unidade absoluta da condição de todos os objetos do pensamento em geral ou a condição suprema da possibilidade de tudo o que se possa ser pensado, onde Kant desenvolve suas idéias em três capítulos, que são os seguintes: Dos Paralogismos da Razão Pura, que são concernentes a alma ou psicologia racional; A Antinomia da Razão Pura, que se enfrentam com o mundo da cosmologia racional; e, finalmente, A Idéia da Razão Pura, em que combate as provas da existência de Deus. 147 - Ibidem, p. 131, § 55.
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