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Guias e Dicas
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Marx: A Descoberta da Política e do Judaísmo na Universidade e na Vida, Notas de estudo de Cultura

A biografia de karl marx, nascido em 1818, filho de pais judaicos, que estudou na universidade e descobriu a política na gazeta renana. Através da colaboração com friedrich engels, marx começou a criticar a sociedade capitalista e se identificou como revolucionário. O documento também discute a importância da contribuição de engels para a formação da teoria materialista dialética de marx.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Marcela_Ba
Marcela_Ba 🇧🇷

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Baixe Marx: A Descoberta da Política e do Judaísmo na Universidade e na Vida e outras Notas de estudo em PDF para Cultura, somente na Docsity! 1 1 Introdução à obra de Marx José Paulo Netto A obra de Karl Marx, pela sua significação teórica, é um marco na cultura ocidental e, pelo seu impacto sócio-histórico, tem relevância universal. Ele instaurou as bases de uma teoria da sociedade burguesa que, nucleada numa ontologia social fundada no trabalho, permanece no centro das polêmicas relativas à natureza, à estrutura e à dinâmica da sociedade em que vivemos; e a investigação a que dedicou toda a sua vida foi norteada para subsidiar a ação revolucionária dos trabalhadores, cujo objetivo - a emancipação humana – supõe a ultrapassagem da ordem social comandada pelo capital. Teórico e homem de ação, pesquisador e militante, Marx foi invocado, ao longo do século XX, por aqueles que se empenharam na crítica radical da sociedade burguesa e nos processos prático-políticos de libertação nacional, de luta antiimperialista e de construção socialista. Intelectuais da mais diferente extração pautaram suas reflexões inspirados em Marx e milhões de homens e mulheres, jovens e velhos, nas mais diversas latitudes, protagonizaram combates e experiências em nome de suas idéias – ou de idéias a ele atribuídas, uma vez que seu legado foi objeto de múltiplas interpretações, vulgarizações, deformações etc. Reativamente, intelectuais conservadores desqualificaram a obra de Marx e líderes burgueses demonizaram o seu pensamento. Idolatrado ou odiado, Marx foi um contemporâneo de todos os que viveram o século XX. A crise terminal do “socialismo real”, nos anos 1980-1990, por um momento pareceu levar Marx para o museu das antiguidades. Mas foi apenas aparência, e momentânea: na entrada do século XXI, a reiteração das crises econômicas, a barbarização da vida social nas nossas sociedades, a insustentabilidade (até ecológica) do padrão de crescimento capitalista, o aprofundamento das desigualdades e a agudização exponenciada e planetária da “questão social” fazem Marx retornar ao palco da história no calor da hora. Nada indica que este senhor sairá de cena tão cedo. É oportuno, portanto, examinar (ou reexaminar) o seu pensamento, recorrendo diretamente à fonte original. Este volume pretende fornecer um elenco de textos marxianos que, com seu caráter expressivo da totalidade da obra de Marx, estimule este exame (ou reexame) necessário, em alguma medida subsidiado pelas informações contidas nas páginas desta Introdução. Da vida universitária à política 2 2 Marx nasceu a 5 de maio de 1818, em Tréveris (Renânia), segundo dos oito filhos de Heinrich Marx (1782-1838), um advogado que admirava Voltaire, e Henriette Pressburg (1787-1863) – ambos de ascendência judaica. Concluídos os seus estudos fundamentais na cidade natal, em outubro de 1835 Marx desloca-se para Bonn, em cuja universidade freqüenta o curso de direito. No ano seguinte, depois de ficar noivo, em segredo, de uma amiga de infância, Jenny von Westphalen (1814-1881), transfere-se para a universidade de Berlim. Aí tem suas primícias literárias (poesia, teatro), participa de um cenáculo de intelectuais hegelianos (o Doktorklub) e trava relações, entre outros, com os irmãos Bauer (Bruno, 1809-1882 e Edgar, 1820-1886) e Karl Köppen (1808-1863). A pouco e pouco, seus interesses dirigem-se para a filosofia, estimulado por Bruno Bauer, que lhe sugere a carreira universitária. À época, a Alemanha, sem experimentar as transformações próprias à revolução burguesa, não se erguera como um Estado nacional moderno: a Confederação Germânica, sob o comando da Prússia, era um conjunto de quase quatro dezenas de Estados, com sistemas de representação política diversificados e restritivos, ausência de laicização, burocracias de raiz feudal e submetida à dominação da nobreza fundiária. Este atraso - a “miséria alemã”, notável quando se comparava a persistência do Antigo Regime na Confederação Germânica com a nova ordem social que se consolidava na França, Inglaterra, Bélgica e Estados Unidos contrastava com a grandeza da sua filosofia clássica, que culminara na obra de Hegel (1770-1831). A sombra de Hegel se projetava para além de sua morte: na cultura alemã, nas duas décadas que se seguiram à morte do filósofo, disputava-se a sua herança - de um lado, alinhavam-se aqueles que extraíam do seu sistema conclusões conservadoras, a “direita hegeliana”; de outro, os que retinham de sua obra o método dialético, adequado à apreensão do movimento histórico, os “jovens” que constituíam a “esquerda hegeliana”. O Doktorklub era um espaço privilegiado no âmbito dessa disputa, reunindo os “jovens” mais credenciados. É no marco dessa polêmica que Marx se volta para a filosofia: a 15 de abril de 1841 obtém o grau de doutor na Universidade de Jena, com uma dissertação sobre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. O projeto de ingressar no magistério superior, porém, torna-se inviável: com a ascensão de Frederico Guilherme IV ao trono prussiano (1840), uma vaga reacionária se afirma e atinge também a universidade – e Bruno Bauer é dela excluído (outubro de 1841). Resta a Marx o ingresso na atividade jornalística: a partir de abril de 1842, começa a colaborar com a Gazeta Renana. Este jornal, criado a 1º de janeiro de 1842 em Colônia, era uma iniciativa dos setores burgueses da Renânia que animavam o débil liberalismo alemão, opondo-se ao reacionarismo de Frederico Guilherme IV. Marx não compartilhava de ilusões liberais, mas suas convicções democráticas viam na Gazeta 5 5 Marx afasta-se de seu ex-companheiro do Doktorklub porque considera a sua proposição insuficiente para a luta dos judeus; mas, sobretudo, critica Bauer pelo fato de conservar a questão em termos religiosos. Assumindo um ponto de vista materialista, Marx se nega a converter as questões mundanas (a emancipação política) em querelas religiosas (cristianismo/judaísmo): ao contrário, quer transformar estas últimas em questões mundanas (políticas). Por isso, Marx centra a atenção no Estado: mesmo quando este se laiciza (deixa de ser cristão e torna-se político stricto sensu), instaurando-se como comunidade política, na qual o homem se reconhece como um ser público, a vida prática decorre mesmo é na sociedade civil, na qual o homem age como indivíduo, pessoa privada. E assim age porque movido pelo egoísmo, componente inevitável da vida social fundada na propriedade privada e nas relações mediadas pelo dinheiro - relações que já eram objeto da crítica de outro “jovem hegeliano” convertido ao comunismo e com o qual Marx mantinha relações, Moses Hess (1812-1875). Para Marx, essa cisão (emblemática do que chamará de alienação) entre ser público/indivíduo, devida ao egoísmo, à necessidade prática e ao poder do dinheiro, realiza-se sob as condições da emancipação política (isto é: sem relações de dependência pessoal e com a igualdade formal de direitos) e sob o Estado político (inteiramente laico) – logo, o Estado político pode assegurar a emancipação política, mas não pode garantir a emancipação humana, que implica o fim da alienação (o poder da propriedade privada e do dinheiro) e garante a liberdade real e concreta de todos os homens. Marx descobre então que aquilo que outros chamarão depois de espírito do capitalismo está bem tipificado no judaísmo: o culto do poder do dinheiro. Mas, atenção: o judaísmo não é uma “característica” do “judeu” (e, portanto, não há, na posição de Marx, nenhum “anti-semitismo”) – é, antes, a característica da sociedade em que a distinção Estado político/sociedade civil, com a propriedade privada e as relações mediadas pelo dinheiro, apenas expressa, abertamente, a fratura do homem em ser público (o cidadão) e indivíduo privado (o burguês). É nesta linha de análise que, ao invés de considerar a “questão judaica” como um problema religioso, Marx afirma que “a emancipação social do judeu é a emancipação da sociedade relativamente ao judaísmo”. Segundo Marx, “só quando o homem individual retoma em si o cidadão abstrato e, como homem individual – na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais -, se tornou ser genérico; só quando o homem reconheceu e organizou as suas forces propres como forças sociais e, portanto, não separa mais de si a força social na figura da força política – [é] só então [que] está consumada a emancipação humana” (cf., adiante, a p....) 2 . Entretanto, em Para a questão judaica, ele não tematiza as condições que podem conduzir à emancipação humana, o que fará no outro texto publicado 2 Os números que, daqui em diante, vierem entre colchetes remetem às páginas deste volume. 6 6 nos Anais Franco-Alemães, sob o título Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução - redigido provavelmente em dezembro de 1843 e reproduzido integralmente adiante, às pp... . Para superar a “miséria alemã”, Marx está convencido de que são necessárias intervenções teóricas e práticas; no caso das primeiras, o caminho está desobstruído pela crítica da religião – o materialismo já fornece, na Alemanha, as bases necessárias para a crítica teórica; mas não bastam as armas da crítica, é necessária a crítica das armas: o que significa, em Marx, a urgência de vincular teoria e prática. Se o Estado alemão, evidência daquela “miséria”, é um anacronismo, a teoria alemã do Estado (a de Hegel) é contemporânea à realidade histórica – para Marx, aliás, os alemães só são contemporâneos do presente no domínio espiritual (filosófico). A crítica dessa teoria e de seu objeto, operada na teoria e na prática, atende, pois, não só a interesses dos alemães, mas a interesses universais – contudo, a viabilidade da emancipação humana, inscrita na filosofia que a exige, depende de um sujeito histórico para o qual essa emancipação é uma questão de vida ou de morte. Pela primeira vez nos escritos de Marx, este sujeito é identificado – o proletariado – e sua tarefa histórica assinalada – a revolução. A emancipação humana, assim, é posta na dependência da revolução: a realização prática da exigência filosófica (a liberdade) é a missão da classe operária que, executando-a, se suprime como classe porquanto suprime a existência da sociedade de classes – eis a formulação marxiana: “A filosofia é a cabeça desta emancipação [humana] e o proletariado é o seu coração. A filosofia não pode realizar-se sem a supra-sunção do proletariado e o proletariado não pode supra-sumir-se sem a realização da filosofia” [...]. A opção comunista e a maturação teórica de Marx O estágio alcançado pela reflexão de Marx, tal como o documentam os dois textos que acabamos de mencionar, inscrevem-no num campo ídeo-político que impede a continuidade de sua colaboração com o liberal Arnold Ruge – e o rompimento entre eles sela o fim dos Anais Franco-Alemães -: Marx, no primeiro trimestre de 1844, ingressa claramente no campo da crítica radical à sociedade capitalista e passa a se identificar como revolucionário. De fato, ele faz uma escolha, uma opção: torna-se comunista. Ao longo de todo este ano, Marx freqüenta os meios operários franceses, entra em contacto com pensadores socialistas – em particular com Proudhon – e liga-se aos trabalhadores emigrados alemães (escrevendo, inclusive, em sua imprensa, notadamente no Avante!). Começa aqui uma relação, a relação com os trabalhadores, que dará sentido à vida e à pesquisa de Marx – o comunismo marxiano, na medida em que sua opção toma corpo, é um comunismo proletário: Marx faz uma opção de classe. Ele tem plena consciência de que não é um proletário, nem quer fazer-se passar como tal – sem abrir mão de sua 7 7 condição de intelectual, que lhe impõe requisições específicas (teóricas), vincula-se ao proletariado assumindo a sua perspectiva de classe e os seus interesses emancipatórios universais. É já este Marx comunista que se põe uma tarefa teórica específica: se percebera, desde os Manuscritos de Kreuznach, que a compreensão do Estado supunha a compreensão da sociedade civil, agora – em 1844 – dirige-se à análise do que chamará de “anatomia da sociedade civil”. Para esta análise, não bastam considerações filosóficas; é preciso explorar outra via – e o rumo das suas investigações foi definido pela mencionada contribuição de Engels aos Anais Franco-Alemães: o artigo enviado da Inglaterra indicou a Marx que um conhecimento profundo e radical da sociedade civil só poderia ser elaborado com base na crítica da Economia Política. É por influência de Engels, que se tornara comunista antes dele, que Marx descobre a Economia Política e, a partir de abril de 1844, dedica-se intensivamente ao estudo dos seus teóricos (A. Smith, D. Ricardo, J. Mill, Mac-Culloch, Boisguillebert, Say, Sismondi). Um dos principais resultados desse primeiro encontro de Marx com a Economia Política são os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (inéditos até 1932). Neste conjunto de três manuscritos, redigidos entre abril e agosto de 1844 e a que está apenso um importante excurso sobre a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, registra-se um momento seminal da reflexão marxiana: ainda sem se apropriar da riqueza teórica da Economia Política, Marx começa a elaborar a sua concepção ontológica do homem como ser prático e social. Ele desenvolve sua reflexão situando o trabalho como a objetivação primária através da qual o homem se auto-constituiu e concebe a essência humana como estrutura radicalmente histórica, cujo aviltamento se expressa na alienação, que tem suas raízes especialmente na propriedade privada. Marx mostra como o trabalho assalariado aliena o trabalhador de si mesmo, dos outros homens e da natureza tanto quanto aliena também o capitalista (cf., adiante, a p...). Mas a ultrapassagem da alienação só pode ser uma necessidade para os trabalhadores: a supressão da propriedade privada, com o comunismo, é o “momento da emancipação e da recuperação humanas” – o comunismo, pois, não é o fim da história, mas a forma da sociedade humana (cf., adiante, a p...). Os Manuscritos de 1844 começam a dar concreticidade ao humanismo de Marx: a crítica das categorias da Economia Política, neles iniciada, está direcionada para o projeto da emancipação humana que pode constituir uma livre sociabilidade que confira aos indivíduos a consciência do seu pertencimento ao gênero humano. Já estavam redigidos tais manuscritos quando, em finais de agosto, retornando da Inglaterra, Engels visitou Marx em Paris. Este foi, de fato, um encontro histórico: dando início a uma amizade que os uniria por toda a vida, inaugurou uma exemplar colaboração intelectual e política. Se ambos tinham chegado ao comunismo por vias diversas, a esta altura havia entre eles uma autêntica comunhão de idéias e de projetos. 10 10 Londres, reúnem-se noutro congresso delegados de vários países europeus, entre 29 de novembro e 8 de dezembro, com a presença de Marx e Engels. Os dois, eleitos para a direção central da Liga, são incumbidos de redigir o seu manifesto programático – é assim que, entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848, eles se dedicam à elaboração do Manifesto do partido comunista, cujos primeiros três mil exemplares, em alemão, são publicados – sem a identificação dos autores, o que se faria dois anos depois - em Londres, na última semana de fevereiro de 1848. O documento (reproduzido integralmente adiante, às pp...) é profundamente inovador na tradição de “manifestos” inaugurada pelo que o Professor Hobsbawm chamou de era das revoluções: é o primeiro, entre todos, que apresenta uma programática sócio-política embasada teoricamente. As suas propostas não partem de uma prospecção utópica de um futuro a ser construído pela dedicação eticamente generosa de uma vanguarda ilustrada, mas da análise das possibilidades concretas postas na dinâmica histórica pelo desenvolvimento real da situação presente. Por isso, o comunismo não aparece somente como a aspiração a uma sociedade “em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” [...]; antes, é uma possibilidade concreta que se inscreve na dinâmica da realidade: o evolver da sociedade burguesa põe objetivamente a alternativa comunista (pelo florescer das forças produtivas, pela exigência de uma força de trabalho crescentemente organizada, pela interdependência de todos os países através da criação do mercado mundial e, sobretudo, pela radicalização da contradição entre a produção progressivamente socializada e a apropriação privada do excedente econômico). A análise realizada no Manifesto parte dos fundamentos materiais que, na sociedade burguesa, põem a possibilidade do comunismo e opera com as categorias teóricas que a pesquisa marxiana veio elaborando a partir de 1844 – assim, a referencialidade central radica na determinação do desenvolvimento histórico como dinamizado pelas lutas de classes, do regime do capital como fundado na exploração e da sua natureza contraditória e historicamente transitória, do Estado como um poder de classe e da revolução como processo protagonizado por massas de homens e mulheres conscientemente organizados, sob a direção da classe operária. Ao longo dos anos seguintes, Marx afinará suas categorias heurísticas, retificará várias delas à base de novas pesquisas e descobertas e da experiência histórica, articulará novas categorias - ou seja: no Manifesto..., as bases da sua teoria social ainda não se apresentam plenamente fundamentadas. Mas a referencialidade central aqui indicada manter-se-á sem alterações substantivas: até o fim de seus dias, Marx – nunca animado por uma esperança profética ou mística, mas sempre movido por convicções teóricas e políticas – sustentará tal referencialidade. Revolução e exílio 11 11 Em fevereiro de 1848, quase simultaneamente à publicação do Manifesto, a revolução explode em Paris e logo se espraia pelo continente. Faísca que incendeia a pólvora acumulada desde a reação promovida pela Santa Aliança, o processo eversivo abala o edifício europeu de ponta a ponta, experimenta auges e refluxos por quase dezoito meses, envolve exigências sócio-econômicas, demandas políticas e aspirações nacionais e se conclui pela derrota das forças mais progressistas. 1848 foi um divisor de águas e adquiriu significado histórico-universal: esgotada a sua vocação emancipatória, a burguesia retrai-se no espaço do conservadorismo (ou do reformismo conservador) e o proletariado emerge na história como classe para si; no plano ídeo-cultural, a herança ilustrada da Modernidade, à direita, é ferida pelo emergente irracionalismo, ao centro degrada-se no positivismo e, à esquerda, é criticamente recolhida pelos socialistas revolucionários. No plano político, no epicentro francês, a subsequente vitória eleitoral de Luís Napoleão demonstrou que conquistas democráticas podem ser neutralizadas e, na Europa Central e Oriental, foi breve a primavera dos povos - mas o mundo mudou. A Liga dos Comunistas imerge no turbilhão e Marx faz a experiência da revolução a quente. O governo provisório da República Francesa cancela a sua ordem de expulsão e, nos primeiros dias de março, está em Paris; no fim do mês, organiza o retorno à Alemanha dos membros da Liga e redige, com Engels, as Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha, panfleto logo divulgado e que constitui o primeiro programa concreto do proletariado numa revolução democrática. Regressado à Alemanha, Marx, entre abril e maio, prepara em Colônia o lançamento da Nova Gazeta Renana, “órgão da democracia”, de que será o redator-chefe e que circulará de junho de 1848 a maio de 1849 – o jornal será de fato o dirigente da ala proletária na revolução e núcleo orientador da Liga (no interior da qual, aliás, se expressam divergências). Ademais das tarefas de redator-chefe e de editorialista, Marx, assim como Engels, firmou expressiva quantidade de artigos no periódico. Na seqüência da brutal repressão à insurreição do proletariado parisiense, que, entre 23 e 26 de junho de 1848, pôs na ordem do dia a instauração da república democrática e social, a contra-revolução se articula em escala européia. Na Alemanha, a partir de setembro, sucedem-se escaramuças que sinalizam uma agudização das lutas de classes e Marx se joga em febril atividade organizativa, tornada ainda mais urgente dadas as vitórias da contra-revolução na Áustria, em outubro. Em novembro, Frederico Guilherme IV ensaia a repressão; depois de relativa acalmia nos primeiros meses de 1849, em maio os conflitos se agravam e explodem insurreições em várias cidades alemãs - Marx se desloca para algumas delas, conclamando as forças democráticas e proletárias à unidade para a resistência. No fim de maio, com a generalização da ofensiva contra-revolucionária que prenuncia a derrota total do movimento, Marx é obrigado a retirar-se para a França, enquanto Engels ainda teima em combater de armas nas mãos. 12 12 A estada em Paris foi angustiante – com a capital sob estado de sítio, Marx, inteiramente sem recursos, esperou semanas por sua família (Jenny e três filhos). Pressionado pelas autoridades, foi compelido a dirigir-se à Inglaterra: chegou a Londres, onde viveria exilado até o fim de seus dias 3 , a 26 de agosto (sua família se juntaria a ele semanas depois). Quanto a Engels, só em novembro aportaria à capital inglesa. Mal se estabelece no exílio, Marx se empenha na organização de um periódico que dê continuidade à Nova Gazeta Renana – será a Nova Gazeta Renana. Revista Político-Econômica. É nela que, em 1850, único ano de vida da revista, Marx dá à luz uma série de três artigos (De 1848 a 1849), com um cuidadoso balanço do movimento revolucionário francês; muito depois (1895), Engels acrescerá a eles um quarto artigo, redigido por ambos em outubro de 1850, e os publicará sob o título de As lutas de classes na França (1848-1850). Durante todo o ano de 1850, Marx e Engels se esforçam, junto com outros revolucionários exilados, numa avaliação crítica do movimento derrotado, ao mesmo tempo em que procuram reconstituir a Liga dos Comunistas, para que ela pudesse operar sob as novas condições; também intentam dar vida, junto com cartistas ingleses e blanquistas, a uma Sociedade Internacional dos Comunistas Revolucionários, que não prosperará. Em março de 1850, na atividade de reconstrução da Liga, Marx e Engels redigem uma Mensagem da Direção Central à Liga; neste documento, extraindo lições do processo que se iniciara em 1848, discutem a relação entre a necessidade das alianças do proletariado com outras frações de classes e a sua autonomia no curso da revolução democrática – é quando formulam a teoria da revolução permanente. Destes anos iniciais do exílio, o trabalho mais expressivo de Marx é aquele que se refere ao golpe de Luís Bonaparte, de 2 de dezembro de 1851, e que desaguaria, um ano mais tarde, na restauração imperial. Muito rapidamente, pois o enviou a Nova York (onde seria publicado em maio) em fins de março de 1852, Marx escreveu O dezoito brumário de Luís Bonaparte – trata-se de um autêntico paradigma de análise de conjuntura: partindo do exame da estrutura de classes da França, Marx estuda a correlação das forças políticas no processo de 1848 e o significado do golpe, ao mesmo tempo em que desenvolve riquíssimas considerações sobre a natureza do Estado burguês e o fenômeno do bonapartismo (cf., adiante, as pp....). Ainda em 1851, ocupado com a solidariedade aos exilados, Marx tem de haver-se com problemas também na Alemanha: no bojo da vaga contra-revolucionária, instauram-se processos contra os revolucionários presos em Colônia, em especial os membros da Liga dos Comunistas. Os processos vão 3 Marx só voltará ao continente europeu em 1861 – a partir de então, fará várias viagens à Holanda e à Alemanha, viagens que, especialmente em busca de tratamento para a sua saúde abalada, nos anos seguintes prosseguirão incluindo outros países (a última das quais no segundo semestre de 1882). 15 15 mudanças sociais na Rússia (abolição da servidão, 1861) e com a guerra civil norte-americana -, Marx empreendeu a redação de mais um conjunto de manuscritos, volumoso material só integralmente publicado em 1976-1982. Também aqui, Marx não escreve para publicar – também esses manuscritos são o diagrama da sua pesquisa, da sua investigação, a serem objeto de uma formalização especial quando da publicação; por isto, como no caso dos anteriores, a existência de passagens inconclusas e pouco polidas estiliscamente. Mas a genialidade teórica se mostra a cada página: se, nestes manuscritos, uma parte importante trata da análise histórico-crítica dos economistas, essencial é a abordagem de questões relacionadas ao problema geral da produção do capital: transformação do dinheiro em capital, mais-valia, subsunção formal e real do trabalho ao capital, tecnologia e capital, acumulação e acumulação originária. E Marx avança, ainda, para a problemática da reprodução, enfrentando as relações entre mais-valia e lucro. Os manuscritos de 1861-1863, na realidade, contêm elementos dos vários livros d’O capital. Enfim, o tour de force em questão – que expressa o apogeu intelectual de Marx – responde pela elaboração, entre 1863 e 1865, de um terceiro conjunto de manuscritos, menos volumoso que os dois anteriores e só publicado em 1988. Aqui, a análise marxiana centra-se em dimensões pouco exploradas nos manuscritos anteriores: a circulação do capital e as formas transformadas da mais-valia. Nestes três conjuntos de manuscritos 4 está em processo a investigação marxiana que descobriu, na sua riqueza e complexidade, a estrutura e a dinâmica – com suas tendências (“leis”) fundamentais – e os limites imanentes do modo de produção capitalista. Está aí o que se poderia designar como as redações provisórias da opus magnum inconclusa de Marx, O capital. Crítica da economia política. Mas a exposição nunca concluída 5 da sua investigação só começaria no ano seguinte – cerca de seis meses depois que, em junho de 1865, polemizando com um certo John Weston no interior do Conselho Geral da Internacional (que abordaremos mais à frente), Marx antecipou uma síntese dos resultados de suas pesquisas, só publicada em 1898, sob o título Salário, preço e lucro (de que oferecemos extratos adiante, às pp.....). O capital: uma obra inacabada A conversão da investigação em exposição foi mínima. [mínima? Mas O capital é ou não um “todo artístico?] Ela começou em janeiro de 1866, razões de saúde e a militância na Internacional 4 Deles não coligimos nenhum texto (exceto da “introdução” aos Elementos fundamentais..., já referida), na medida em que, adiante, serão extratadas [!!!] passagens d´O capital. 5 De fato, Marx prosseguiu até 1879 pesquisando e buscando dar forma expositiva ao conteúdo dos três conjuntos de manuscritos citados – assim é que, entre 1865/1870 e depois de 1877, pensando na forma do livro II, acumulou 8 novos manuscritos; pensando na forma do livro III, produziu novos manuscritos entre 1867-1870 e 1870-1879. Somente os manuscritos cujo conteúdo referiam-se especificamente ao livro IV (o terceiro conjunto acima referido, redigido em 1861-1863) não foram, posteriormente, enriquecidos de modo significativo. 16 16 interromperam-na várias vezes, e em abril de 1867 o texto estava pronto – numa tiragem de mil exemplares, saiu em Hamburgo, pela editora de Otto Meissner, em meados de setembro de 1867: O capital. Crítica da economia política. [vc já citou o título. Precisa repetir?] Era somente o Livro I, centrado no processo de produção do capital – de todo o enorme conjunto de manuscritos, apenas este Livro I foi preparado para publicação por Marx. Nem esta primeira versão, todavia, pode ser considerada definitiva: para a segunda edição (1873), Marx fez adições significativas ao texto – de fato, o Livro I só adquiriu sua feição última a partir da quarta edição alemã (1890), com a revisão de Engels a partir de outras anotações de Marx. Marx prosseguiu seu trabalho até por volta de 1880, mas não chegou nunca a uma redação final. Dois anos após a morte de Marx, ou seja: em 1885, saiu o Livro II, cujo objeto é o processo de circulação do capital, editado por Engels. [editado por Engels, mas Marx preparou o essencial]. E só quase dez anos depois, em 1894, veio à luz o Livro III, que trata do processo global da produção capitalista – a demora da publicação deveu-se ao estado dos materiais deixados por Marx, bastante desarticulados; por isso, no caso deste Livro III, cabe dizer que Engels foi muito mais que um editor, intervindo notavelmente na sua estruturação. O Livro IV, uma história crítica do pensamento econômico (as teorias da mais-valia), veio à luz entre 1905 e 1910, sob a responsabilidade de Kautsky, numa edição bastante precária (somente nos anos 1950 foi possível contar com uma edição confiável) 6 . Em síntese: essa opus magnum permaneceu de fato inconclusa – afora o Livro I, o restante d’O capital é menos uma obra finalizada que um projeto/processo em curso, inacabado, por mais que o esforço sistematizante de Engels (cujo mérito, quanto a isto, nunca será exagerado) produza impressão diferente. [Eu não diria isso: Marx não preparou o texto final, mas criou os conceitos já conteudisticamente, ainda que não formalmente, entrelaçados. Nenhum dos conceitos da versão final é de Engels.] Não cabe, aqui, esboçar qualquer “resumo” d´O capital 7 - mas é preciso dizer algo mais sobre a sua estrutura. O Livro I, O processo de produção do capital, trata basicamente da relação de produção determinante do modo de produção capitalista: a exploração do trabalho assalariado pelo capital. A análise parte da “célula” do MPC [da primeira vez, é preciso pôr por extenso], a mercadoria, expõe os efeitos da mercantilização universal das relações sociais (o fetichismo), desvela a natureza do valor, mostra a transformação do dinheiro em capital, determina a peculiaridade da mercadoria força-de- trabalho, distingue capital constante de capital variável, descobre a essência da exploração do trabalho e precisa a sua natureza no trato da mais-valia – e traz à luz a lei geral da acumulação capitalista (de todas essas categorias e processos oferecemos extratos adiante, às pp...). O Livro II, O processo de circulação 6 A maioria das edições d´O capital, desde então, trata este Livro IV como obra autônoma – tem-se, pois, geralmente, duas “obras”: O capital, composto pelos livros I, II e III (em seis volumes, nas duas versões brasileiras [na da Abril são só cinco]) e Teorias da mais-valia, enfeixando o conteúdo do Livro IV (na única versão brasileira, em três volumes). 7 Para “resumos” ou condensações d´O capital, cf., adiante, a Bibliografia de Marx. 17 17 do capital, apreende, na análise do movimento do capital, as metamorfoses do capital e os seus ciclos; a rotação do capital e a circulação da mais-valia, a reprodução e a acumulação são examinadas do ponto de vista da circulação. [Importante aqui são as três metamorfoses do capital: dinheiro, produtivo, mercantil.] O Livro III, O processo global da produção capitalista, culmina a análise do modo de produção capitalista: Marx estuda-o como unidade indissolúvel de produção e circulação; a vigência efetiva da lei do valor é verificada e as formas concretas do capital (inclusive a do “capital produtor de juros”) são estudadas em seu movimento; Marx também se ocupa da renda fundiária e, ainda, dos limites imanentes à produção capitalista, bem como da alternativa do “reino da liberdade” (também oferecemos adiante, pp...., extratos dessas elaborações). No Livro IV, o dedicado às teorias da mais-valia, para além da análise crítica do pensamento econômico (Steuart, os fisiocratas, Smith, Ricardo, Sismondi et alii), Marx tematiza a questão fundamental do trabalho produtivo e improdutivo (cf., adiante, as pp...). A análise exaustiva do modo de produção capitalista é a condição necessária para a compreensão totalizadora da sociedade burguesa, que nele se funda – afinal, desde A ideologia alemã, para Marx o conhecimento da sociedade demanda o conhecimento de como os homens organizam a produção material das condições da sua vida social. A crítica da economia política propicia o conhecimento dessa produção e, a partir dela, pode se desenvolver adequadamente a investigação sobre as instituições sociais e políticas, o ethos e a cultura, que exigem tratos [abordagens] específicos. Marx, em 1857, determinou com precisão o método que permite o conhecimento do modo de produção capitalista – aquele que “consiste em elevar-se do abstrato ao concreto”, no qual “as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento” (cf., adiante, a p...) - por isto, o leitor não encontrará n´O capital definições e sim determinações, cada vez mais ricas e mais inclusivas na reconstrução teórica do movimento real do capital. A crítica da economia política é, pois, a condição para a teoria social, capaz de reconstruir reflexivamente a dinâmica da sociedade; resumidamente, é sobre ela que se pode elaborar o conhecimento das classes sociais, suas relações e seu movimento, do poder político, da cultura etc. Estas instâncias ou níveis da vida social dispõem de legalidades e especificidades próprias, mas a sua inteligibilidade está hipotecada à compreensão do modo de produção. O capital, portanto, não nos oferece inteiramente a teoria social de Marx – que está contida tanto nesta obra quanto naquelas que a precedem e sucedem -, mas o seu fundamento. Temos insistido em que O capital é uma obra inacabada. Devemos observar o duplo caráter desse inacabamento: de um lado, Marx não concluiu nem expôs o conjunto da pesquisa a que procedeu; de outro, o seu objeto (o modo de produção capitalista) não se esgotou ou desapareceu historicamente – prosseguiu e prossegue se desenvolvendo, instaurando novos processos e gestando novas categorias. Mais de um século depois da morte de Marx, é compreensível que O capital não baste para apreender o modo 20 20 breve da organização, toda a intervenção de Marx visou a um objetivo estratégico: assegurar a sua unidade classista e internacionalista. Este objetivo, de fato, não foi alcançado por completo: a crescente influência de Marx e suas idéias, simultânea à grande expansão da organização no final dos anos 1860, não impediu conflitos importantes, jamais inteiramente solucionados nos vários congressos da Internacional 9 . Desses conflitos, o mais significativo opôs a Marx o anarquista russo Mikhail Bakunin (1814-1876), que, em 1869, criou a Aliança Democrática Socialista; contra ele e seus seguidores, aliás, Marx e Engels redigiram o documento As pretensas cisões na Internacional (1872) e Marx colaborou no texto, também dirigido contra o anarquismo, de 1873, escrito por Engels e Paul Lafargue (1842-1911, genro de Marx), A Aliança Democrática Socialista e a Associação Internacional dos Trabalhadores. Em 1872, o congresso da Internacional reunido em Haia decidiu pela expulsão de Bakunin e seus seguidores e transferiu o Conselho Geral de Londres para Nova Iorque (1872) e a Conferência da Filadélfia (1876) acabou por dissolver a organização. Então, Marx concluíra que ela já não correspondia às necessidades do movimento revolucionário – e, para esta conclusão, contribuiu a Comuna de Paris, primeira experiência de poder operário, para Marx um verdadeiro assalto ao céu. Estourando a guerra franco-prussiana a 15 de julho de 1870, após a derrota de Sedan (2 de setembro) instaurou-se a república na França e o governo provisório tentou negociar, inutilmente, com Bismarck, que sitiou Paris. Um novo governo, chefiado por Adolphe Thiers (1797-1877), político reacionário que fora primeiro-ministro do deposto Napoleão III, assinou uma paz ominosa – rechaçada pelos trabalhadores de Paris, que não depuseram as armas e, em março de 1871, proclamaram a Comuna, que resistiu heroicamente às forças de Thiers (apoiadas pelos prussianos) até maio, quando elas entraram em Paris e, numa repressão inaudita, massacraram covardemente dezenas de milhares de communards. Marx, que em nome da Internacional, ainda em setembro de 1870, advertira os trabalhadores parisienses contra qualquer insurreição prematura, pôs-se a organizar a solidariedade a eles, denunciou as barbaridades cometidas por Thiers e mobilizou a Internacional na defesa da Comuna, notadamente contra as calúnias que a imprensa da época fez ecoar contra ela. Marx, porém, não se ateve apenas aos aspectos mais salientes dessa primeira e meteórica experiência de poder operário e democracia direta: analisou-a profunda e detalhadamente, extraindo dela inferências (em especial, as relativas à questão do Estado) que avaliou como decisivas para o projeto revolucionário – e o fez na última das três Mensagens que preparou para serem emitidas pelo Conselho Geral da Internacional, entre julho de 1870 e maio de 1871. É desta mensagem, A guerra civil na França, que oferecemos extratos adiante, às pp.... 9 Os congressos da Internacional reuniram-se em 1866 (Genebra), 1867 (Lausanne), 1868 (Bruxelas), 1869 (Basiléia) e Haia (1872). 21 21 Marx mantinha-se atento às mudanças no capitalismo (transitando da “primeira” para a “segunda” Revolução Industrial), às modificações na correlação internacional de forças (com a entrada em cena de uma Alemanha unificada e se industrializando sob o tacão de Bismarck), às transformações fora do eixo euro-ocidental (especialmente nos Estados Unidos e na Rússia) e, sobretudo, ao amadurecimento político da classe operária e de outros segmentos trabalhadores. Compreendendo que emergia uma nova quadra histórica, passou a preocupar-se sobretudo com a constituição de partidos operários de massa – e, por isso, dedicou particular importância aos seus embriões, tais como se apresentavam na Alemanha, desde meados dos anos 1860, com o surgimento da Associação Geral dos Operários Alemães, animada e dominada por Lassalle e seus adeptos, e na França pós-Comuna, com o nascente Partido Operário Francês, capitaneado por Jules Guesde (1845-1922). Principalmente o processo alemão interessava a Marx: as transformações em curso no país sugeriam a ele e a Engels (que sempre pensaram a revolução mundial a partir dos países capitalistas mais avançados, até então simbolizados pela Inglaterra) que o centro de gravidade da revolução se deslocava para lá. Assim, Marx acompanhou com cuidado a aproximação entre os lassalleanos e os seus próprios seguidores – liderados por A. Bebel (1840-1913) e K. Liebknecht (1826-1900) -, conhecidos como eisenachianos, uma vez que, em 1869, num congresso em Eisenach, haviam criado um Partido Operário Social-Democrata (a fórmula “socialdemocracia”, diga-se de passagem, sempre desagradou a Marx). As duas correntes se fundiram, em 1875, num congresso realizado em Gotha, do qual resultou o Partido Social-Democrata Alemão. Marx defendia a unidade das correntes socialistas e revolucionárias, desde que assentada em princípios claros e numa programática definida – mas não verificou nada disso no congresso de Gotha, vendo nele, antes, uma tática apressada e uma solução conciliadora. Diante do programa proposto no congresso, Marx redigiu umas Glosas marginais a ele, enviadas aos dirigentes partidários, mas só publicadas por Engels, em 1891, sob o título Crítica ao Programa de Gotha. Seguramente o último texto teórico-político relevante de Marx, a Crítica... (aqui reproduzida integralmente, às pp.....) formula idéias sumamente importantes acerca da transição revolucionária para além do capitalismo, inclusive a distinção entre as “duas fases” da sociedade comunista. A coerência de uma vida Apontar a Crítica ao Programa de Gotha como o último texto relevante de Marx não significa dizer que com ele se encerra a sua atividade intelectual. De fato, Marx continuou trabalhando até por volta de 1881, quando perdeu Jenny, a companheira da sua vida. Até lá, prossegue em suas investigações econômicas, intervém na tradução francesa do livro I d´O capital, faz inúmeras leituras sobre a Rússia, 22 22 elabora um capítulo para o livro de Engels O Sr. Dühring subverte a ciência [Anti-Dühring] (1878), estuda física e matemática (Leibniz e Descartes), prepara um questionário para uma pesquisa junto a trabalhadores franceses, lê a obra econômica de A. Wagner (1835-1917), entusiasma-se com as pesquisas de L. H. Morgan (1818-1881), acompanha a evolução do movimento operário e colabora esporadicamente com jornais e revistas. Desfrutando desde o final dos anos 1860 de uma vida decente (sem a miséria da primeira década e meia do exílio, quando se viu perseguido por dívidas a merceeiros, açougueiros e padeiros), é, porém, afetado pela deterioração da sua saúde. Compensa-o o reconhecimento de sua obra e de sua militância pelas vanguardas operárias e por alguns restritos círculos intelectuais. Está longe, porém, de ser um pensador célebre e de ver suas idéias ganharem um peso ponderável entre as massas trabalhadoras – o que só viria a ocorrer após a sua morte, inicialmente com a invenção, a divulgação e a vulgarização do marxismo através da publicística da Segunda Internacional. Morreu sem grandes padecimentos (ao contrário de Engels), e sobretudo morreu em paz: a meio da tarde de 14 de março de 1883, depois de uma hemorragia que lhe sobreveio pela manhã, o amigo de quatro décadas subiu ao seu quarto: “Quando entramos”, anotou Engels, “estava deitado, dormindo, mas para não mais acordar. [...] Em dois minutos adormecera tranquilamente e sem sofrimento”. Foi sepultado no dia 17, no cemitério de Highgate, na tumba onde já repousava Jenny. Coube a um emocionado Engels a despedida final. Adolescente ainda, estudante de liceu, o jovem Marx escrevera, numa redação de agosto de 1835 - seu mais antigo texto conservado: Reflexão de um jovem em face da escolha de uma profissão -: “Se o [homem] trabalha apenas para si mesmo, poderá talvez tornar-se um célebre erudito, um grande sábio ou um excelente poeta, mas nunca será um homem completo, verdadeiramente grande [...]. Se escolhermos uma profissão em que possamos trabalhar ao máximo pela humanidade [...] não fruiremos uma alegria pobre, limitada, egoísta, mas a nossa felicidade pertencerá a milhões [de pessoas]”. Vê-se a coerência de Marx: trabalhou pela emancipação da humanidade, foi um homem verdadeiramente completo e grande. Sua morte, ao fim de um triste inverno londrino, sinalizou apenas o cumprimento coerente de toda uma vida. 25 25 Sobre o complicado destino editorial da obra de Marx, vale recorrer à breve informação de Hobsbawm (cf. Eric J. Hobsbawm, org., História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, vol. 1, 1980, pp. 423- 443). No que toca à publicação sistemática do espólio Marx-Engels, cabe assinalar a iniciativa pioneira de David Riazanov (1870-1938, assassinado pela polícia política stalinista), nos anos 1920, para a edição Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA): planejava ele coligir textos marxianos e engelsianos em 42 volumes – o plano foi implementado entre 1928 e 1935, mas não se completou. Nos anos 1950, projetou- se, nas então União Soviética e República Democrática Alemã, a edição Marx-Engels Werke (MEW) – que se efetivou entre 1956 e 1968, com a publicação de 39 volumes (mais adendos). Na década de 1970, surgiu o projeto de uma nova MEGA (conhecida como MEGA²), formulado também nas ex-União Soviética e República Democrática Alemã, com a previsão de 114 volumes; interrompido com pelos eventos que culminaram com a crise do “socialismo real”, o projeto foi retomado nos anos 1990 – e está em curso – pelo Internationale Marx-Engels Stiftung (IMES), instituição criada especificamente para este fim pelo International Institute of Social History (IISH), de Amsterdã. Ainda hoje, há milhares de páginas de Marx que permanecem inéditas. Para uma informação (que cobre até os anos 1960) sobre as edições brasileiras de escritos de Marx, Engels e seus seguidores, o texto de referência é o de Edgard Carone, O marxismo no Brasil. Das origens a 1964 (Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986). Arrolam-se a seguir os principais títulos marxianos disponíveis em português, editados depois de 1960: Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Lisboa: Presença, 1972. Liberdade de imprensa. Porto Alegre: L&PM, 1999 [seleção de textos da Gazeta Renana e outros periódicos, escritos entre 1842 e 1861]. Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005 [contendo o manuscrito de Kreuznach, de 1843, e o texto publicado nos Anais Franco-Alemães, em 1844]. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. A sagrada família ou crítica da crítica crítica [com F. Engels]. São Paulo: Boitempo, 2003. A ideologia alemã [com F. Engels]. São Paulo: Boitempo, 2007 [contendo as Teses sobre Feuerbach]. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006. Miséria da filosofia. São Paulo: Expressão Popular, 2009. Trabalho assalariado e capital. In Marx, K. e Engels, F. Obras escolhidas em três volumes. Rio de Janeiro: Vitória, vol. I, 1961. 26 26 Manifesto do partido comunista [com F. Engels]. São Paulo: Cortez, 1998. A burguesia e a contra-revolução. São Paulo: Ensaio, 1987 [textos da Nova Gazeta Renana, de dezembro de 1848]. As lutas de classes na França (1848-1850). São Paulo: Global, 1986. O dezoito brumário de Luís Bonaparte. In Marx, K. e Engels, F. Obras escolhidas em três volumes. Rio de Janeiro: Vitória, vol. I, 1961. A Espanha revolucionária. In Marx, K. e Engels, F. A revolução espanhola. Rio de Janeiro: Leitura, 1966 [contém os oito textos marxianos publicados no New York Daily Tribune, de julho a setembro de 1854, mais uma série de textos de Marx e Engels, também referidos à Espanha, preparados entre 1855 e 1873]. Simon Bolívar. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977 [materiais constitutivos dos manuscritos de 1857-1858, editados pela primeira vez em 1939-1941 sob o título de Gründrisse der Kritik der Politischen Ökonomie. Rohentwurf. 1857-1858 (Elementos fundamentais para a crítica da economia política. Rascunhos. 1857-1858)], cuja tradução integral está anunciada pela Ed. Contraponto (Rio de Janeiro). Para a crítica da economia política. In Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, col. “Os pensadores”, 1974. Senhor Vogt. Lisboa: Iniciativas Editoriais, I-II, 1976. Salário, preço e lucro. In Marx, K. e Engels, F. Obras escolhidas em três volumes. Rio de Janeiro: Vitória, vol. I, 1961. O capital. Crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 6 volumes, 1967-1974 [edição dos livros I-II-III d’O capital]. Há ainda outra edição, em tradução diversa: O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, col. “Os economistas”, 6 volumes, 1983- 1985. O capital. Livro I, capítulo VI (inédito). São Paulo: Ciências Humanas, 1978. Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico. São Paulo: DIFEL, 3 volumes, 1980- 1985 [edição do livro IV d’O capital]. A guerra civil na França. São Paulo: Global, 1986. Crítica ao programa de Gotha. In Marx, K. e Engels, F. Obras escolhidas em três volumes. Rio de Janeiro: Vitória, vol. II, 1961. O questionário de 1880. In Thiolent, Michel. Crítica metodológica, investigação social e enquête operária. São Paulo: Pólis, 1982 [trata-se do questionário, elaborado em abril de 1880, a pedido dos 27 27 socialistas franceses, para uma pesquisa a ser feita entre operários acerca da sua situação econômica, social e política]. Pequena parte dos materiais – especialmente jornalísticos - produzidos por Marx referentes a processos extra-europeus encontra-se em Marx, K. e Engels, F. Sobre o colonialismo. Lisboa: Estampa, 1978 e em idem. Obras escolhidas em três volumes. Rio de Janeiro: Vitória, vol. 1, 1961. A copiosa correspondência de Marx continua praticamente inédita em português. Nos títulos seguintes, encontram-se algumas cartas de inequívoca relevância teórico-política: Marx, Karl e Engels, Friedrich. Obras escolhidas em três volumes. Rio de Janeiro: Vitória, vols. 1-2, 1961, vol. 3, 1963. Marx, Karl e Engels, Friedrich. História. São Paulo: Ática, col. “Grandes cientistas sociais”, vol. 36, 1983. Marx, Karl. O 18 brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. Dois “resumos” do Livro I d´O Capital foram publicados no Brasil: Deville, Gabriel. O capital. São Paulo: Ed. e Pub. Brasil Editora, 1962. Cafiero, Carlo. O capital. Uma leitura popular. São Paulo: Polis, 1987. “Resumos” dos três livros d´O capital encontram-se em: Brouwne, Alfredo L. Leitura básica de O capital. Resumo e crítica da obra de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. Borchardt, Julian. O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. E uma “condensação” dos três livros é acessível em: Bicalho, Luiz de C. O capital. Resumo literal. Condensação dos livros 1, 2 e 3. São Paulo: Novos Rumos, s.d. [1988?]. Bibliografia sobre Marx A bibliografia sobre Marx listada a seguir, contendo apenas títulos editados no Brasil, é, obviamente, apenas uma mínima amostragem do imenso acervo relativo ao autor d’O capital. Ela recolhe materiais de análise e contextualização histórica, de crítica imanente, de interpretação e reinterpretação etc. produzidos por marxistas e não-marxistas – e envolve escritos de níveis de complexidade muito diversos, de obras de divulgação a textos de argumentação mais sofisticada. Althusser, Louis et alii. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar, I-II, 1979-1980. Aricó, José. Marx e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
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