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Guias e Dicas
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MANUAL DE INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO, Manuais, Projetos, Pesquisas de Direito

DISCIPLINAS JURIDICAS, SISTEMAS JURIDICOS, MORAL E DIREITO, FONTES DO DIREITO, A NORMA JURIDICA, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2019
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Compartilhado em 09/09/2019

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poliana-cristina-goncalves-9 🇧🇷

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Baixe MANUAL DE INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Direito, somente na Docsity! ISBN 9788547216344 Nunes, Rizzatto Manual de introdução ao estudo do direito : com exercícios para sala de aula e lições de casa / Rizzatto Nunes. – 14. ed. rev. e ampl. – São Paulo : Saraiva, 2017. 1. Direito - Estudo e ensino I. Título. 16-1365 CDU 34(07) Índices para catálogo sistemático: 1. Direito : Estudo e ensino 34(07) Presidente Eduardo Mufarej Vice-presidente Claudio Lensing Diretora editorial Flávia Alves Bravin Conselho editorial Presidente Carlos Ragazzo Gerente de aquisição Roberta Densa Consultor acadêmico Murilo Angeli Gerente de concursos Roberto Navarro Gerente editorial Thaís de Camargo Rodrigues Edição Daniel Pavani Naveira Produção editorial Ana Cristina Garcia (coord.) | Luciana Cordeiro Shirakawa Clarissa Boraschi Maria (coord.) | Kelli Priscila Pinto | Marília Cordeiro | Mônica Landi | Tatiana dos Santos Romão | Tiago Dela Rosa Diagramação (Livro Físico) Fabricando Ideias Design Gráfico Revisão PBA Preparação e Revisão de Textos Comunicação e MKT Elaine Cristina da Silva Capa Aero Comunicação / Danilo Zanott Livro digital (E-pub) Produção do e-pub Guilherme Henrique Martins Salvador 2.3. A Ciência do Direito 2.4. O objeto da Ciência do Direito. Que é o Direito? 2.5. A Ciência Dogmática do Direito 2.5.1. O termo “Ciência do Direito” 2.5.2. A escola racionalista. O jusnaturalismo 2.5.3. O empirismo jurídico 2.5.3.1. A Escola da Exegese 2.5.3.2. A Escola Histórica 2.5.4. A Ciência Dogmática do Direito — o Direito na atualidade 2.5.4.1. O enfoque dogmático 2.5.4.2. A instrumentalização 2.5.4.3. Dogmática e tecnologia 2.5.4.4. Solução e decisão 2.5.4.5. Eficiência e consciência 2.6. Verdade e Opinião na Ciência Dogmática do Direito 2.7. Exercícios 2.7.1. O texto a seguir foi extraído da Teoria pura do direito, de Hans Kelsen (São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1987, p. 1-3). Leia- o, e com base nele responda às questões formuladas. Perguntas: 2.7.2. O texto a seguir foi extraído de “Verdade e política”, capítulo de Entre o passado e o futuro, de Hannah Arendt (São Paulo, Ed. Perspectiva, 1972, montagem de p. 283 e 288). Leia-o e, após, responda às questões formuladas. Perguntas: 2.7.3. O texto a seguir, de autoria de Roque Spencer Maciel de Barros, foi publicado no Jornal da Tarde (12 mar. 1998, p. 2A). Leia-o e, depois, responda às questões formuladas. Perguntas: 2.7.4. Exercícios de revisão Parte A Capítulo 2, itens 2.1 e 2.2 Parte B Itens 2.3, 2.4 e 2.5 2.8. Bibliografia 3 - As Fontes do Direito 3.1. O conceito de fonte do direito 3.2. Fontes estatais e não estatais 3.3. As fontes estatais 3.3.1. A legislação 3.3.2. Os tratados internacionais 3.3.2.1. Elaboração 3.3.2.2. Monismo e dualismo 3.3.2.3. A recepção na ordem jurídica nacional 3.3.2.4. A posição hierárquica no sistema jurídico 3.3.3. A jurisprudência 3.4. As fontes não estatais 3.4.1. O costume jurídico 3.4.2. A doutrina 3.5. Exercícios 3.5.1. Leia o editorial do jornal O Estado de S. Paulo (10 mar. 1992) e, após, responda às questões formuladas. Perguntas: 3.5.2. A decisão abaixo é do 1º Tribunal de Alçada Civil (Bol. AASP n. 1.931, de 2-1-1996). Leia-a e, após, responda às questões formuladas. Perguntas: Parte A Parte B Pesquise e depois responda: 3.5.3. Exercícios de revisão Parte A Capítulo 3, itens 3.1, 3.2 e 3.3 Parte B Item 3.4 3.6. Bibliografia 4 - O Direito Positivo 4.1. O direito objetivo 4.2. O direito subjetivo 4.3. O dever subjetivo 4.4. A divisão no direito positivo 4.4.1. Divisão geral: Direito Público, Privado, difuso e coletivo 4.4.2.1. O Direito Constitucional 4.4.2.2. O Direito Administrativo 4.4.2.3. O Direito Tributário 4.4.2.4. O Direito Processual 4.4.2.5. O Direito Penal 4.4.2.6. O Direito Eleitoral 4.4.2.7. O Direito Militar 4.4.3. O Direito Público externo 4.4.3.1. O Direito Internacional Público 4.4.4. Os ramos do Direito Privado 4.4.4.1. O Direito Civil 4.4.4.2. O Direito Empresarial 4.4.5. Os ramos dos Direitos difusos e coletivos 4.4.5.1. O Direito do Trabalho 4.4.5.2. O Direito Previdenciário 4.4.5.3. O Direito Econômico 4.4.5.4. O Direito do Consumidor 4.4.5.5. O Direito Ambiental 4.4.6. O Direito difuso externo 4.4.6.1. O Direito Internacional Privado 4.5. Outros elementos de direito positivo 4.5.1. A relação jurídica 4.5.2. Os sujeitos da relação jurídica 4.5.2.1. A pessoa física 4.5.2.2. A pessoa jurídica 4.5.3. O objeto da relação jurídica 4.5.3.1. O objeto imediato: obrigação de fazer, de dar e de não fazer 4.5.3.2. O objeto mediato: bens jurídicos (coisas e pessoas) 4.5.4. A classificação fundada no objeto da relação jurídica 4.5.4.1. Os direitos obrigacionais 4.5.4.2. Os direitos reais 4.5.4.3. Os direitos da personalidade 4.5.5. O nascimento da relação jurídica 4.5.5.1. Os fatos naturais 4.5.5.2. Os atos jurídicos lícitos 4.5.5.3. Os atos jurídicos ilícitos 4.5.5.4. O abuso do direito 4.6. Exercícios 4.6.1. Leia o Acórdão da Segunda Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, relativo aos EI 106.119-1 (publicado na RJTJSP, 125:390), e, após, responda s questões formuladas. 6.6. As regras de interpretação 6.6.1. A interpretação gramatical 6.6.2. A interpretação lógica 6.6.3. A interpretação sistemática 6.6.4. A interpretação teleológica 6.6.5. A interpretação histórica 6.6.6. A interpretação quanto aos efeitos 6.6.6.1. A interpretação declarativa ou especificadora 6.6.6.2. A interpretação restritiva 6.6.6.3. A interpretação extensiva 6.7. O problema das lacunas e os meios de integração 6.7.1. A completude do sistema jurídico 6.7.2. As lacunas nas normas jurídicas 6.7.3. Os meios de integração. A constatação e o preenchimento das lacunas 6.8. A boa-fé objetiva como paradigma da conduta, na sociedade contemporânea, a ser considerada pelo intérprete 6.8.1. O comportamento humano previsto na norma 6.8.2. O modelo da boa-fé objetiva 6.8.3. A operação feita pelo intérprete 6.8.4. Conclusão 6.9. O problema da segurança jurídica e sua base de confiabilidade 6.10. Exercícios 6.10.1. Transcreve-se a seguir decisão do 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo publicada no Boletim da Associação dos Advogados de São Paulo (Bol. AASP n. 150, de 21-10-1987). Leia-a e, após, responda às questões formuladas. Perguntas: 6.10.2. A seguir transcrevem-se trechos de decisão publicada no Boletim da Associação dos Advogados de São Paulo (Bol. AASP n. 1.890, de 21-3-1995). Leia-os e, após, responda às questões formuladas. Perguntas: Parte A Parte B Pesquise e depois responda: 6.10.3. Leia a decisão a seguir transcrita, da 4ª Câmara do 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo (AgI 821.589.2, Rel. Juiz Rizzatto Nunes, j. 4-11-1998, v.u.). Após, responda à questão formulada. Pergunta: 6.10.4. Exercícios de revisão Parte A Capítulo 6, itens 6.1 a 6.5 Parte B Itens 6.6 a 6.9 6.11. Bibliografia 7 - Anotações sobre a Justiça 7.1. Considerações em torno do conceito 7.1.1. Justiça, Direito, harmonia e paz social 7.1.2. Justiça como fundamento do ordenamento jurídico 7.1.3. Justiça entre os indivíduos 7.1.4. A justiça na sociedade capitalista atual 7.1.5. O peso dos preços, os consumidores pobres e ricos e a injustiça do mercado73 7.2. O problema da Justiça e os operadores do direito no Brasil 7.3. Justiça como virtude 7.4. Justiça e Igualdade no sistema jurídico brasileiro 7.5. O Problema da Lei Justa 7.6. Justiça e Vontade 7.7. Justiça Real e Equidade 7.8. A Interpretação do Sistema Jurídico 7.9. Provas da Equidade 7.9.1. Caso n. 1 7.9.2. Caso n. 2 7.9.3. Caso n. 3 7.9.4. Caso n. 4 7.10. Um Método para fazer Justiça no Caso Concreto 7.10.1. Qualquer método 7.10.2. O método intitulado “princípio da proporcionalidade” 7.10.3. O método “intuitivo” 7.11. Técnicas para aplicação da justiça: opções para o julgador agir visando uma decisão justa 7.12. Exercícios 7.12.1. Leia a sentença a seguir transcrita e responda às perguntas após formuladas. “6ª Vara da Fazenda Pública — São Paulo — Capital Proc. n. 70/89 Ordinária Perguntas: 7.12.2. Transcrevem-se a seguir trechos de decisão do 1º Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo (Bol. AASP n. 1.012 — j. em 22-12-1977). Leia-os e, após, responda às questões formuladas. Perguntas: 7.12.3. É transcrita a seguir uma decisão da 4ª Câmara do 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo (AgI 824.085-1, Rel. Juiz Rizzatto Nunes, j. 4-11-1998, v.u.). Após sua leitura, responda à questão formulada. Pergunta: 7.12.4. Exercícios de revisão 7.13. Bibliografia ANEXO I - Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 ANEXO II - Lei Complementar n. 95, de 26 de fevereiro de 1998 ANEXO III - Abreviaturas ANEXO IV - Alguns diplomas legais conhecidos pelos seus nomes ANEXO V - Emenda Constitucional n. 32, de 11 de setembro de 2001 BIBLIOGRAFIA GERAL 22. Intuição (romance). São Paulo: Método, 2000 (esgotado). 23. Um balão caindo perto de nós (romance infantojuvenil). São Paulo: Saraiva, 2001; 2. tir. 2011. 24. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002; 3. ed. ampl. 2010. 25. Modelos jurídicos: área cível. São Paulo: Saraiva, 2003 (CD-ROM). 26. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2004; 11. ed. rev., atual. e ampl. 2017. 27. Modelos jurídicos: área trabalhista. São Paulo: Saraiva, 2004 (CD-ROM). Em coautoria com Flávio Secolin. 28. Manual de filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2004; 6. ed. rev. e ampl. 2015. 29. Aconteceu em Sampa (contos). São Paulo: Método, 2004. Em coautoria com Rodrigo Ferrari Nunes (esgotado). 30. Modelos jurídicos: área criminal. São Paulo: Saraiva, 2005 (CD-ROM). Em coautoria com Luiz Antonio de Souza. 31. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. reform. São Paulo: Saraiva, 2008. 8. ed. rev. atual. e ampl. 2015. 32. As aventuras de Joãozinho Legal (romance infantojuvenil). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005 (esgotado). 33. Bê-á-bá do consumidor. São Paulo: Método/Casa do Direito, 2006 (esgotado). 34. Superdicas para comprar bem e defender seus direitos de consumidor. São Paulo: Saraiva, 2008. 35. O abismo (romance). São Paulo: Editora da Praça, 2009 (esgotado). 36. Tudo o que você precisa saber sobre Direito do Consumidor (audiolivro). São Paulo: Saraiva, 2009. 37. Turma da Mônica em superindividados . São Paulo: Maurício de Sousa Editora, 2009 (em coautoria com Marli Aparecida Sampaio e em parceria com Maurício de Sousa). 38. Tudo o que você precisa saber sobre Dano Moral (audiolivro). São Paulo: Saraiva, 2010. 39. Bê-á-bá do consumidor — projeta-se de forma prática e simples. São Paulo: Cia. dos Livros, 2010. 40. Manual de Monografia. Como se faz uma monografia, uma dissertação, uma tese (Para áreas não jurídicas). Nova edição. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2010. 41. Capitalismo e consumo no século XXI. Ribeirão Preto: Migalhas, 2016. 42. Manual do direito do consumidor para concursos. São Paulo: Saraiva, 2016. Para meu filho, Rodrigo. “Prezado Professor: Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética só são importantes Se fizerem nossas crianças mais humanas.”* ao Estudo do Direito, que, ao adotarem esta obra, deram um apoio que muito me apraz e me enche de orgulho e responsabilidade, como professor que também sou. São Paulo, novembro de 1998. Rizzatto Nunes 1 A Questão do Ensino Jurídico Sumário: 1.1. Uma necessária crítica à pedagogia no curso de Direito. 1.2. O problema da educação bancária. 1.3. O pacote fechado ou o supermercado jurídico. 1.3.1. Atraso reiterado e reinventado. 1.3.2. O pacote. 1.4. A ficção. 1.4.1. O objeto-modelo ficcional. 1.4.2. O ensino ficcional. 1.5. O modelo não difere de escola para escola. 1.6. A exposição ou o cuspimento do saber. 1.6.1. O despejar de informações. 1.6.2. A phdite ou doutorite (irmãos da juizite e da promotorite). 1.6.3. A confusão de papéis. 1.7. A negação da individualidade do aluno. 1.7.1. Alegria, respeito e individualidade. 1.7.2. O problema da avaliação. 1.7.2.1. Avaliar e não decidir. 1.7.2.2. O resultado da avaliação. 1.7.2.3. Provas e avaliações não geram bons profissionais. 1.8. Conclusão. 1.9. Exercícios. 1.10. Bibliografia. O texto que inseri como epígrafe, antes do índice, foi-me entregue por um aluno. Para mim ele representa a síntese daquilo que é essencial em matéria de ensino. O professor deve tê-lo na alma. 1.1. UMA NECESSÁRIA CRÍTICA À PEDAGOGIA NO CURSO DE DIREITO A escola de Direito tem problemas, e dentre eles um dos mais relevantes é de ordem pedagógica: o ensino oferecido tem peculiaridades tais que, muitas vezes, faz com que se duvide, inclusive, se se está ensinando algo. Pois bem. No presente capítulo, apresentaremos nossos apontamentos para a elaboração de um estudo crítico da pedagogia nos cursos jurídicos. São notas ainda preliminares, elaboradas a partir da experiência de mais de 24 anos na profissão de professor em diversas escolas, e colhidas de pesquisa que vimos fazendo junto aos alunos de graduação de várias escolas, assim como com mestrandos, doutorandos e professores. São antes reflexões que conclusões, análises subjetivas de dados que já permitam a construção de um novo modelo capaz de, de alguma maneira, modificar, ainda que timidamente, o quadro existente. Trazemo-las a público exatamente para permitir a discussão com um maior número de estudiosos e, quiçá, obter saídas para a crise do ensino jurídico. E, claro, sua apresentação ao alunado que chega no curso de Direito é bastante propícia. 1.2. O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO BANCÁRIA O professor Paulo Freire, numa de suas obras obrigatórias a qualquer professor, A pedagogia do oprimido, faz um diagnóstico preciso do sistema educacional. Naquilo que nos interessa para a escola de Direito e descrição daquilo que o mestre intitula “educação bancária”, cuja crítica é corretíssima, encaixa-se como uma luva no sistema de ensino da escola de Direito. A educação bancária é modo de opressão ou, antes, pressupõe a ausência de liberdade e a imposição unilateral do educador. Nela os educandos são meros depositários e o educador aquele que deposita, transfere, transmite informações, conhecimentos, valores. Nesse modo de transmissão, as pessoas são vistas como adaptáveis, capazes de se ajustar. Esses depósitos feitos aos educandos, quanto mais preenchem seus “arquivos” mentais, mais limitam sua capacidade crítica de inserção no mundo como pessoas dotadas de uma consciência que lhes permitissem transformá-lo (ao mundo). Esse ensino feito por narrativas conduz o educando à memorização mecânica dos conteúdos: os alunos são tidos como vasilhas, recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais o recipiente for enchido, melhor será o educador; quanto mais dócil for o educando na permissão do enchimento, melhor será o educando. Não há entre os dois propriamente comunicação — dialógica como seria de esperar —, mas apenas transferências, nas quais o educador “comunica”, isto é, informa, remete e o educando recebe, memoriza e repete. Nesse modelo de ensino o “saber” é uma doação daqueles que se julgam sábios aos educandos, que eles julgam nada saber. Paulo Freire detalha as características do modelo que, repita-se, é típica da escola de Direito: “a) o educador é o que educa; os educandos os que são educados; b) o educador é o que sabe; os educandos os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; d) o educador é o que diz a palavra; os educandos os que escutam docilmente; poder (democrático ou não, tanto faz). Funciona como uma verdadeira prateleira de supermercado com produtos à mostra. É bem fácil imaginar a oferta nesse estabelecimento: o aluno, ao ingressar na escola, depara-se com uma prateleira de cinco andares, previamente montada: na primeira estão dispostos alguns produtos: Direito Civil, IED, TGD etc.; na segunda: Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Penal, Direito Constitucional etc. Nas terceira, quarta e quinta prateleiras, as demais disciplinas; cada prateleira correspondendo a um ano de estudos. Alguns desses produtos são rotulados por números: Direito Civil I, Direito Civil II, Direito Civil III, IV, V, Direito Processual Civil I, II, III, Direito Penal I, II, e assim por diante.​ Os produtos organizados nas prateleiras variam um pouco de escola para escola, mas no contexto geral da estante, praticamente são os mesmos produtos os oferecidos. Há casos, inclusive, da oferta de produtos com data de validade vencida (quando, por exemplo, se diz que lei complementar tem hierarquia superior à lei ordinária), produtos deteriorados (quando, por exemplo, se explica que a medida provisória só pode ser editada segundo os ditames de relevância e urgência), produtos estragados em função da mistura que se operou na prateleira (o que ocorre quando a escola, por exemplo, resolve oferecer o produto Direito do Consumidor “dentro” do produto Direito Civil ou Direito Comercial). Enfim, a escola não passa de um grande supermercado cujos produtos tem rótulos bem conhecidos de todos. Na maior parte, os produtos são rótulos para diplomas legais; estudam-se leis como se fossem Direito: Direito Civil = Código Civil; Processo Civil = Código de Processo Civil; Direito Penal = Código Penal; Direito do Consumidor = Código de Defesa do Consumidor etc. Veja-se aqui já um drama: se fosse verdade que Direito confunde-se com norma de Direito positivo (e, no mais das vezes, apenas e tão somente leis), então, com a entrada em vigor do Novo Código Civil, em janeiro de 2002, todos os operadores de Direito vivos no país teriam de voltar para a escola, pois nenhum deles estudou aquele texto (ou produto, o que é o mesmo). Além disso, esse grande pacote (não gostaríamos de usar a expressão embrulho...) é oferecido num modelo metodológico formal, fechado, definitivo, que não permite questionamentos, soluções para seus paradoxos ou contradições e que se apresenta mais de forma ficcional que real. É o que veremos na sequência. 1.4. A FICÇÃO 1.4.1. O objeto-modelo ficcional A produção do conhecimento na faculdade de Direito é bastante duvidosa, mas piora se pensarmos no conteúdo do que se transmite. A escola de Direito é, em larga medida, ficção, no sentido de que objeto posto ao exame do aluno sequer existe. Expliquemos. Nas salas de aula é usual que o professor se utilize de objetos--modelo para exposição dos conteúdos de suas disciplinas. Esses objetos-modelos são uma espécie de tipo ideal3 que funcionam como intermediários entre o professor e sua exposição e os alunos que ele visa ensinar. É um tipo de mapa que o professor pendura em algum lugar ou desenha na lousa, e mediante o qual faz demonstrações e raciocínios. Esses objetos são, por vezes, representantes de sistemas específicos da escola. Vamos adotar aqui, para nossa explicação, uma ideia de sistema. O sistema não é um dado real, concreto, encontrado na realidade empírica. É uma construção científica que tem como função explicar a realidade a que ele se refere4. Além de ser um objeto construído, o sistema é um objeto-modelo que funciona como intermediário entre o intérprete e o objeto científico que pertence à sua área de investigação. É uma espécie de tipo ideal, para usar uma expressão citada e cunhada por Max Weber5. O tipo ideal é construído a partir da concepção de sentido, sendo “sentido” aquilo que faz sentido, como se, de repente, todas as conexões causais fossem uma totalidade. O sentido não urge como significação de acontecimentos particulares, mas como um conjunto percebido em bloco; unidades que não se articulam são captadas em conjunto. O tipo ideal é um construído racional que seleciona as conexões causais, removendo o que há de alheio. É uma espécie de modelo; o que não se encaixa não serve e é deixado de lado. Construído o modelo, capta-se o sentido.​ O sistema, como construído, tipo-ideal, objeto-modelo, é uma espécie de mapa, que reduz a complexidade do mundo real, à qual se refere, mas é o objeto por meio do qual se pode compreender a realidade. Pois bem. Para demonstrar nosso argumento vamos comparar, por exemplo, aulas numa escola de geografia, numa de medicina e na de Direito. Vamos supor que numa aula na escola de geografia o professor pretenda expor o funcionamento do sistema fluvial dos rios brasileiros. Ele leva, então, para a sala de aula seu objeto-modelo: um mapa do Brasil com os principais rios e afluentes. Os elementos desse sistema fluvial são certamente os rios e afluentes que se relacionam numa estrutura natural, em que os rios vão da nascente, descem da montanha em direção ao mar. As exceções são, inclusive, facilmente demonstradas por intermédio do mapa dentro da estrutura: por exemplo, o fenômeno da pororoca do rio Amazonas, no qual o mar vai em direção ao rio, merece uma explicação adicional. O aluno de geografia sabe que o mapa (o objeto-modelo) não corresponde à realidade. Na verdade, do próprio mapa consta uma escala (1:10.000, por exemplo) que permite conhecer a relação entre aquele mero desenho, abstrato, e a realidade dos rios; vale dizer, o aluno, examinando o mapa, sabe (tem plena consciência) que aqueles rios e afluentes ali apresentados não se confundem de modo algum com a própria realidade geográfica existente. O aluno sabe muito bem que se for visitar o rio Amazonas encontrará curvas que não aparecem no mapa, descobrirá afluentes que não foram citados etc.; isso porque como o mapa é redutor ideal da realidade, a escala da redução não permite que tudo lá seja colocado, nem as curvas tais quais são etc. Pensemos agora numa aula num curso de medicina. O professor leva para a sala de aula seu mapa (seu objeto-modelo): um desenho do corpo humano que permite estudar o sistema circulatório. Os elementos do sistema circulatório estão apresentados: as veias, as artérias, o coração. O professor mostra o sistema e diz como se dá seu funcionamento. O tamanho do mapa, no caso, não é o mais importante; o desenho talvez possa ser quase o de um corpo humano real. parte do discurso abstrato imposto unilateralmente pelo professor. O que se perde é, portanto, a possível consistência de uma Ciência do Direito que jamais foi construída. Para ficar apenas com um simples exemplo, em 13 de julho de 1990, foi promulgada a Lei n. 8.069, o ECA — Estatuto da Criança e do Adolescente (mais uma produção de esperança legislativa abstrata, trazida ao país como promessa ainda não cumprida — um dia será? — de efetiva criação de direito e respeito às crianças e aos adolescentes)9. Muito bem, o ECA foi incorporado por algumas escolas (e desprezado por outras, mas para o que estamos a falar não importa), que o estudam em sala de aula. Mas, até o presente momento, pela pesquisa efetivada, não soubemos de estudos que levassem o aluno a se preocupar efetivamente com a vida real dos milhares — talvez milhões... — de crianças e adolescentes que vivem em abandono material e moral. Não se vê em nenhuma grande cidade professores e estudantes de Direito aqui e ali cuidando desses seres humanos literalmente jogados nas sarjetas das esquinas abandonadas. Na escola de Direito tudo é perfeito e acabado. O ECA é encarado em sua perfeição garantidora de direitos; é estudado em sua forma abstrata que reduz desigualdades, respeita a dignidade dos menores, protegendo-os contra os abusos etc. Enfim, tudo se dá como se não houvesse mais problemas a resolver; na sala de aula a abstração do conteúdo transmitido suprime a violência real do mundo, isolando e alienando o estudante. E isso se dá praticamente em todas as disciplinas, desde as que estudam apenas e tão somente textos de leis e normas como as demais que não o fazem. Não pode surpreender depois que, ao julgar um caso, o juiz, investido dessa proposta alienante, dando as costas às pessoas cujos direitos estão sendo ali postos para discussão e exame — e muitas das vezes trazendo um drama por elas vivido —, decida o caso com meras abstrações vazias de conteúdo real e/ou ritualísticas procedimentais que estão a quilômetros de distância de seu verdadeiro mister que é fazer justiça no caso concreto. Ele sequer é capaz de entender o que se está aqui a expor. É vítima do processo como todos os demais estudantes e acaba fazendo mal — ao invés do bem para o qual deveria ter sido preparado — na medida em que é mero instrumento de manutenção de um sistema injusto, arbitrário e que não tem na ética nem na métrica científica a base do “conhecimento” produzido. 1.5. O MODELO NÃO DIFERE DE ESCOLA PARA ESCOLA Por aquilo que consta, tanto as chamadas escolas de primeira linha como as demais adotam o mesmo modo de produção do “conhecimento jurídico”. Apesar de não podermos aqui fazer essa afirmação categórica em relação a todas as instituições de ensino — vez que nossa pesquisa não está terminada —, podemos afirmar sem receio de errar que, ao que tudo indica, o modelo é amplo e geral, pois isso se reflete na maneira uniforme de atuar de quase todos os operadores do Direito — já falaremos das exceções —, bem como pode ser verificado na leitura de sua produção técnica, especialmente livros didáticos, mas também nas demais obras que cuidam dos diversos setores normativos do sistema: há uma cansativa e monótona repetição das mesmas fórmulas produzidas, já agora secularmente adotadas pela escola de Direito. Em alguns setores localizados, inclusive, o que muda é apenas a editora e o nome do autor, pois, de regra, o conteúdo se apresenta quase sempre muito semelhante. As exceções não se dão por diferenças no ensino de cada escola, mas pela qualidade especial dos alunos: alguns são melhores que outros nos seus esforços pessoais de produzir um novo conhecimento. Isso, desde logo, garante que se possa implantar métodos modernos de ensino, que estão expostos nos livros do professor Paulo Freire10, e, que, na extensão desse trabalho, não há como abordar11. Do mesmo modo, esse resultado autêntico e excepcional acaba aparecendo nas obras de alguns pesquisadores e professores autodidatas, que ao molde de Machado de Assis (um autodidata exemplar) são capazes de escapar do quadro fechado e dogmático imposto pela escola da qual vieram e na qual exercitam sua profissão. Todos eles, alunos e professores, são, de um lado, heróis que buscam saídas para que um dia se produza verdadeiramente um conhecimento jurídico profundo e ético — e, quiçá, também científico, por que não? — e, de outro, a prova de que é possível, sim, pensar num outro modelo e método de ensino. 1.6. A EXPOSIÇÃO OU O CUSPIMENTO DO SABER 1.6.1. O despejar de informações É conhecida a expressão dos empresários que exploram a educação universitária no Brasil (especialmente cursos de Direito, Administração de Empresas e Economia): “Monta-se esses cursos dada a facilidade de fazê-lo: é só cuspe e giz”. E, claro, um prédio. A afirmação está longe de ser falsa e, infelizmente, reflete um problema muito mais grave e profundo: o da mentalidade não só do quadro dirigente das escolas, como dos professores que compõem o corpo docente. A maior parte desses professores acredita mesmo que são capazes de “ensinar” seus alunos “cuspindo” neles seu próprio conhecimento. Só isso, desde logo, é altamente desestimulador ao aluno que quer aprender de fato. O aluno, postado diante desse professor, percebe, muitas vezes, que, talvez, valesse a pena ficar em casa lendo um livro, que trate do mesmo assunto, do que ficar ali em posição de sentido, olhando para cima — às vezes com prejuízo do próprio pescoço — vendo e ouvindo o professor declamar aquilo que consta do livro. Muitas dessas vezes o livro é de autoria do próprio professor e daí a situação piora, pois o professor repete ipsis litteris o que escreveu. Nesse despejar oratório de supostos conhecimentos — que não pode nem precisa ser eliminado, mas colocado em outros termos didáticos num novo quadro pedagógico a ser incrementado — é frequente que o expositor não dê chance ao aluno-ouvinte sequer de fazer perguntas, questionar o que ouve. Sua fala deve ser digerida como um alimento que se lhe penetra pela goela sem qualquer possibilidade de mastigação. De fato, funciona como um remédio amargo que o expositor pressupõe seja capaz de curar a ignorância do ouvinte. Goste ou não do sabor, não importa: é o paladar do aluno-ouvinte-deglutidor que deve se adaptar. É curioso notar o comportamento de alguns desses professores que, às vezes, organizam as possíveis falas de seus alunos-ouvintes: alguns permitem perguntas ao final da exposição. Nesse caso, o defeito está em que nem sempre o aluno ainda lembra da dúvida e, se lembra, por certo o resto da sala não lembrará, e a pergunta que poderia ser socializada com aproveitamento para todos fica, então, com sua capacidade de produção dialética reduzida. juiz ou promotor — consciente ou inconscientemente — para exatamente quando ocuparem o cargo despejar sua bílis; b) primeiro, também — que pode ser adicionado ou não ao anterior —, um problema de má- educação: trata-se pura e simplesmente de pessoa mal-educada, incapaz de respeitar o outro como ele merece; c) segundo, pode tratar-se de imitação do modelo de professor cujo exemplo acadêmico o candidato a juiz e promotor, quando no cargo, quer seguir. Ele, então, copia o modelo autoritário, prepotente e arrogante do professor: c.1) porque lhe agradou — e, aí, há inconscientemente uma nota dos itens a e b, supra; c.2) porque, alienado, ele pensa que esse é o melhor modelo a ser seguido; c.3) porque, alienado, ele pensa que esta é a melhor — às vezes, pensa que é a única — maneira de ele se dar bem na profissão; d) segundo, ainda — o que pode surgir adicionado ou não ao aspecto do item c — pode tratar- se de imitação do modelo de profissional. O candidato ao cargo acaba se comportando de modo idêntico ao do profissional-objeto, exatamente nos mesmos moldes apontados nos subitens c.1, c.2 e c.3, vale dizer, o candidato ao cargo copia o modelo autoritário, prepotente e arrogante do profissional: d.1) porque lhe agradou — e, aí, há inconscientemente uma nota dos itens a e b, supra; d.2) porque, alienado, ele pensa que esse é o melhor modelo a ser seguido; d.3) porque, alienado, ele pensa que esta é a melhor — às vezes, pensa que é a única — maneira de ele se dar bem na profissão. Apenas para ilustrar nosso discurso, anote-se o caso que ficou nacionalmente conhecido do magistrado carioca que pôs para fora sua inflamação num dos mais clamorosos eventos de juizite de que se tem notícia. Trata-se do pleito judicial feito por ele, no qual foi requerido que o Poder Judiciário obrigasse o funcionário do condomínio em que ele morava a não chamá-lo por “você” (não nos esqueçamos que foi um advogado que assinou a peça e que, inclusive, o pleito foi deferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, liminarmente pelo Desembargador Relator)13. Fizemos questão de colocar esse caso apenas para podermos perguntar: é a escola de Direito a culpada por esse tipo de conduta? Será que a escola de Direito, realmente, não é capaz de formar quadros que possam compreender melhor sua função social? Ou esses exemplos são meras passagens isoladas de alguns profissionais que se perderam no caminho? A verdade é que, ao que consta, a escola de Direito não tem sido capaz pelo menos de evitar que dela saiam profissionais que não conseguem conhecer seu próprio papel social e suas obrigações enquanto tal. Veja-se o relato na sequência. 1.6.3. A confusão de papéis A alienação em que estão inseridos alunos e professores, fruto, em parte, do modelo educacional imposto, tem gerado fatos que, ao mesmo tempo em que mostram as vicissitudes desse modelo educacional, clamam por uma reforma urgente. O evento abaixo é real e ocorreu nos idos dos anos 1990 na PUCSP, na Faculdade de Direito. Um professor, que tinha como profissão, além da de dar aulas, ser Promotor de Justiça, gerou uma situação inédita. Num certo dia ao fazer chamada, ele pegou “em flagrante” um aluno respondendo chamada por outro, ausente. Disse: “Qual seu nome?”, apontando para o jovem que respondera “presente” pela segunda vez. O rapaz disse o nome e o professor pôde confirmar que se tratava de outro aluno. Instaurou-se imediatamente uma confusão: o professor queria levar esse aluno para a Delegacia de Polícia para determinar sua prisão em flagrante por ter cometido um certo crime de falsidade. Se não tivesse sido chamado o Diretor da Faculdade, que, acalmando o dito professor, convenceu-o a não realizar tão mirabolante proeza, sabe-se lá o que teria acontecido. Esse episódio ilustra bem a confusão de papéis que atinge os “professores” de Direito que ostentam outras profissões jurídicas. Sem uma formação pedagógica adequada, eles ingressam na sala de aula, muitas vezes, como se estivessem na outra profissão que exercem. Por isso ocorre de o juiz “condenar” o aluno a ser reprovado ou “absolvê-lo” para que ele passe, o que não tem, evidentemente, nenhuma relação com avaliação. Há também o Promotor de Justiça que “acusa” o jovem de ser mau aluno, de que ele não faz as tarefas etc., acusação incabível em ordenamento pedagógico sério. Essa confusão de papéis é fruto da incapacidade de autorreflexão do professor que não recebeu da escola a adequada formação que lhe permitisse não deixá-la influir em seu comportamento social. (Esse tipo de confusão não está adstrito às profissões jurídicas, evidentemente, pois é problema generalizado, e também não está restrito à escola: acontece, por exemplo, de o juiz condenar o próprio filho que não estuda ou não come ou não dorme na hora que ele determina; de o Promotor de Justiça acusar o filho do mesmo modo etc.)14. Esses problemas envolvendo certos professores levam-nos a pensar a questão da avaliação, o que faremos na sequência. 1.7. A NEGAÇÃO DA INDIVIDUALIDADE DO ALUNO 1.7.1. Alegria, respeito e individualidade O ensino é uma dádiva a ser administrada de modo adequado e inteligente na relação com o auditório. Além disso, de forma alegre, aberta e cortez. Ora, por isso temos de afirmar que seriedade não significa sisudez; questionamento não importa em desrespeito. O professor deve ser tanto alegre quanto aberto. Deve transmitir seu conhecimento com o prazer que isso propicia e tem de estar apto para, ouvindo seus alunos, com eles aprender. Ensinar é uma troca. Não basta dizer o que se sabe; é preciso estimular o aluno a produzir seu próprio aprendizado. É nessa interação que o conhecimento surge. Um diretor de escola contou-me o seguinte. Certo dia, um antigo professor de Engenharia, aposentado há muito tempo, havia ido à sua sala, do diretor, tratar de uma questão profissional: o professor, engenheiro, agora dedicava-se a, de O sofrimento da véspera das avaliações postas como expectativa normativa negativa por parte dos alunos, que apenas podem tentar imaginar o que se lhes será perguntado, só pode ser comparado ao sofrimento da espera pelo resultado da avaliação. Nesse aspecto, a faculdade de Direito, em algumas disciplinas, dadas suas peculiaridades, que impõem questões e respostas argumentativas, geram uma verdadeira expectativa dramática. É o ponto em que os abusos podem ser amplamente praticados pelos professores. Em vez de se colocarem numa perspectiva avaliativa-cognitiva, eles, podendo fazer avaliações pautadas por critérios subjetivos- autoritários, apenas decidem — sem necessariamente apresentar fundamentos legítimos — que nota devem “conferir” ao aluno. Os estudantes de Direito sabem disso e, claro, sofrem violentamente. Os professores reclamam: mas o que fazer? Eles colam? Ora, eles colam? Os alunos, o tempo todo, apresentam suas respostas apenas e tão somente no sistema que não foi por eles criado. Se o professor acaba descobrindo alunos colando, isso apenas prova que é o sistema que permite essa atitude. Fosse outra a forma de avaliação e, evidentemente, não existiria cola. Quando, por exemplo, é pedido que o aluno, como forma de avaliação, elabore uma monografia, que depois ele vai defender numa banca (ainda que, evidentemente, os abusos possam também se repetir nas bancas pelos arguidores), o resultado é completamente diferente (nota: antes que se objete que também é possível produzir fraude em monografias, queremos deixar consignada a falácia desse argumento: se existe orientador que acompanha o aluno na produção, e se essa produção é cobrada legitimamente numa banca, é raríssimo — senão impossível — que se possa perpetrar uma fraude. Se ela existe, o que em termos humanos pode mesmo se dar, e não foi verificada durante o processo de elaboração e arguição, a falta deve ser imputada mais ao orientador e especialmente à banca, pois, por evidente, é dificílimo a quem não elaborou o trabalho falar sobre ele, a pesquisa que o engendrou, os livros que leu etc.). 1.7.2.2. O resultado da avaliação A avaliação, de qualquer modo, dificilmente satisfaz os melhores alunos. Os outros, isto é, aqueles que, digamos assim, não “estudam” convenientemente, conforme determina o sistema, sujeitam-se à nota conferida, tanto mais se realmente não se esforçaram. Mas, os que se dedicam, se esforçam e superam o solicitado nunca aceitam menos que o máximo (10, 10 com louvor, A, ou A+). Qualquer nota menor que isso será altamente insatisfatório. Percebe-se que a nota gera apenas frustração, pois se confirma a expectativa do aluno é óbvia e aguardada, e se não o faz, frustra. Pior: nos dois casos oprime, porque o aluno nunca sabe a priori como será avaliado, se a avaliação será justa, objetiva, isenta; vive e sobrevive de sobressaltos da tensão pré-avaliação. 1.7.2.3. Provas e avaliações não geram bons profissionais A melhor demonstração de que o sistema de ensino e avaliação não é adequado está no resultado. Os egressos das faculdades de Direito, dirigindo-se aos concursos das carreiras jurídicas, apesar de alguns deles ser altamente concorridos, acabam não se tornando bons profissionais, demonstrando no exercício da profissão toda sorte de erros técnicos e de falta de conduta ética. São petições mal feitas, acusações equivocadas, decisões erradas, desprezo pela pessoa humana dos envolvidos nas questões jurídicas. Não resta dúvida, pois, que a escola de Direito merece reforma de ordem pedagógica. 1.8. CONCLUSÃO Como dito, este texto é apenas um ensaio com apontamentos para uma crítica ao ensino do Direito. São, pois, questões postas em aberto, para que se possa pesquisar e pensar mais sobre os assuntos abordados. E, para terminar, dentro da perspectiva de inspiração que fundamenta nossa análise, não poderíamos deixar de, mais uma vez, citar Paulo Freire, o que faremos na transcrição de uma de suas percucientes análises: “Me parece demasiado óbvio que a educação de que precisamos, capaz de formar pessoas críticas, de raciocínio rápido, com sentido do risco, curiosas, indagadoras não pode ser a que exercita a memorização mecânica dos educandos. A que treina, em lugar de formar. Não pode ser a que ‘deposita’ conteúdos na cabeça ‘vazia’ dos educandos, mas a que, pelo contrário, os desafia a pensar certo. Por isso, é a que coloca ao educador ou educadora a tarefa de, ensinando conteúdos aos educandos, ensinar-lhes a pensar criticamente. O aprendizado de um conteúdo que se dê à margem de ou sem incorporar o aprendizado maior que é o da rigorosidade do pensar no sentido da apreensão da razão de ser do objeto não possibilita a indispensável rapidez de raciocínio para responder àquela exigência. É tão fundamental, por outro lado, a prática do pensar certo para o confronto de novos desafios que as inovações tecnológicas nos põem hoje quanto a liberdade de criar. Uma educação em que a liberdade de criar seja viável necessariamente tem de estimular a superação do medo da aventura responsável, tem de ir mais além do gosto medíocre da repetição pela repetição, tem de tornar evidente aos educandos que errar não é pecado, mas um momento normal do processo gnosiológico”16. 1.9. EXERCÍCIOS 1.9.1. O texto abaixo é de Piero Mussio (Introdução à informática, Petrópolis, Vozes, p. 13- 4). Leia-o e, com base nele, responda às questões formuladas. “Quando se fala de informática, hoje, depara-se frequentemente com duas posições opostas e inconciliáveis: a dos triunfalistas e a dos luddistas. Os primeiros vêem na informática, assim como ela é, o novo evangelho da evolução da humanidade, e dentro de seus esquemas de raciocínio, como o verdadeiro modo de pensar, e, portanto, acreditam na necessidade de uma alfabetização informática: todos devem aprender a programar computadores, pois que esta é a única via de desenvolvimento. Os segundos, os luddistas, dizem, ao invés, que a máquina (o computador, no caso) é ruim, perigosa, danosa e, por isso, querem destruí-la. Sou um especialista em informática: logo, não posso ser um luddista. Por outro lado, tenho uma história pessoal que me leva a dizer que eu não gosto nem mesmo da palavra ‘alfabetização’. Na realidade, nasci na África. Na África, os italianos alfabetizaram os abissínios, que tinham uma 2 A Ciência do Direito Sumário: 2.1. A ciência. 2.2. As escolas científicas. 2.3. A Ciência do Direito. 2.4. O objeto da Ciência do Direito. Que é o Direito? 2.5. A Ciência Dogmática do Direito. 2.5.1. O termo “Ciência do Direito”. 2.5.2. A escola racionalista. O jusnaturalismo. 2.5.3. O empirismo jurídico. 2.5.3.1. A Escola da Exegese. 2.5.3.2. A Escola Histórica. 2.5.4. A Ciência Dogmática do Direito — o Direito na atualidade. 2.5.4.1. O enfoque dogmático. 2.5.4.2. A instrumentalização. 2.5.4.3. Dogmática e tecnologia. 2.5.4.4. Solução e decisão. 2.5.4.5. Eficiência e consciência. 2.6. Verdade e opinião na Ciência Dogmática do Direito. 2.7. Exercícios. 2.8. Bibliografia. 2.1. A CIÊNCIA Todo ser humano, de uma forma ou de outra, acumula conhecimentos, ou, em outras palavras, todos têm memória, todos guardam lembranças. Qualquer pessoa, mesmo sem nenhuma bagagem científica, é capaz de um mínimo de operação mental que demonstre algum conhecimento a respeito de alguma coisa. Mesmo o ser humano não alfabetizado é capaz de conhecer e até de elaborar e operar códigos de comunicação para a transmissão de algum conhecimento. Esse conhecimento usual que o homem tem de si mesmo e do mundo é chamado conhecimento vulgar, isto é, é um conhecimento não científico. E até por isso se lhe tiram o termo “conhecimento”, para chamá-lo apenas “senso”, senso comum, reservando-se a palavra “conhecimento” para o científico. O conhecimento científico é uma espécie de otimização desse conhecimento vulgar. A ciência busca organizar e sistematizar o conhecimento do homem. O cientista é um ser preocupado com a veracidade e a comprovação de seu conhecimento, o que faz com que construa uma série de enunciados e regras rigorosas, que permitem a descoberta e a prova desse conhecimento. É a partir desses enunciados que se diz que o cientista fala a verdade. Aliás, diga-se desde já que a verdade ou falsidade é algo ligado às proposições apresentadas. Enquanto o senso comum é difuso, desorganizado, assistematizado e advém de várias fontes desordenadas e simultâneas, o conhecimento científico tenta ser coerente, coeso, organizado, sistemático, ordenado e orientado a partir de fontes específicas e muitas vezes pré-constituídas. O senso vulgar implica ou parte de constatações — circunstâncias apreendidas no dia a dia do homem comum. O conhecimento científico também implica constatações e delas parte; porém pretende exercer sobre elas certo domínio para conseguir explicar o que existiu, o que existe e, também, o que existirá. A ciência tenta rigorosamente descrever situações, constatando efeitos a partir de causas. Esta relação de causa e efeito é um elemento norteador do pensamento científico, que pretende apontar os acontecimentos futuros. É um princípio lógico da ciência: se um efeito x é ocasionado pelas causas a, b, c, toda vez que forem acionadas as causas a, b, c, nas mesmas condições que a anterior, dá-se novamente o efeito x. Em outras palavras, conhecida a lei da gravidade e sua força, o cientista sabe — e todos sabem — que, ao soltar uma pedra no ar, ela vai ao chão. O cientista consegue, inclusive, porque tem o controle adequado do conhecimento, calcular com bastante precisão, por exemplo, a velocidade da pedra ao cair e o tempo que ela leva para chegar ao solo. Claro que, como se sabe, a física inseriu aí o componente da relatividade e da probabilidade, o que não impediu que se calculasse com muita aproximação a probabilidade. Agora, pode-se dizer que a base para a sistematização e do conhecimento científico são os dados comprovados plenamente. Esses dados tornam-se leis que ordenam todo o conhecimento relativo ao campo de estudo. Quando o cientista elabora enunciados que ainda não podem ser comprovados, porque não existe conhecimento acumulado suficiente para tanto, ou porque é uma proposta inicial que visa a uma comprovação futura, fala-se não em leis, mas em hipóteses, que serão ou não comprovadas. E, ao serem comprovadas, transformam-se em leis (cf. Tercio Sampaio Ferraz Jr., A ciência do direito, São Paulo, Atlas, 1977, p. 9 e s.). É por isso que ciência é teoria, ainda que suas hipóteses e suas leis, bem como o aprendizado, as comprovações e as constatações, tenham caráter prático, verificadas e vivenciadas que são na realidade social e real. Apesar disso, continua sendo teoria. Toda ciência postula um método de investigação e também um objeto de investigação que lhe pertence. O método pode ser ligado diretamente ao tipo de ciência que dele se utiliza, isto é, cada ciência tem, ou, pelo menos, pode ter, um método apropriado para seu campo. É pelo método que se elabora o conhecimento científico, o que faz com que ele seja parte integrante do próprio sistema a que serve. O objeto, por sua vez, varia, também, em função da ciência, o que vai implicando uma necessária opção de método. Mas, naturalmente, quando se fala em ciência, objeto e método, tem-se de falar também no cientista, que é o sujeito da investigação. Assim, no conhecimento científico estão ligados sujeito e objeto, através de um método; tudo possibilitando a constatação, a construção, a aplicação e a transmissão do conhecimento científico. Quanto à classificação das ciências, existem vários tipos propostos pela doutrina. Encontramos classificações conhecidas e famosas, como as de Aristóteles ou a de Augusto Comte. Dentro do espírito do presente trabalho, podemos apontar uma básica, e quase sempre aceita: a distinção entre dois tipos de ciências, as naturais e as humanas. O Direito está classificado entre as ciências humanas. É também colocado como pertencente às chamadas ciências sociais aplicadas (é assim que ele aparece classificado nos órgãos governamentais brasileiros, na CAPES/MEC, por exemplo). Para nossa análise, tratemo-lo como parte das ciências humanas. Dentre as diferenças possíveis entre os dois tipos, podemos apontar o seguinte: nas ciências naturais o conhecimento é construído com o objetivo de explicar os fatos e tentar descobrir as ligações entre eles, organizando um mundo próprio de constatações descritas e explicadas. conjunto discursivo dos enunciados que apresentam seus axiomas. A rigor, o conjunto de proposições das escolas oculta ideias nem sempre declaradas e crenças que fundamentam o próprio método e, assim, as respostas obtidas. O estudante de Direito deve, portanto, tentar ler o que se diz das ciências e o que elas dizem, no seu conteúdo não declarado, oculto, tentando desvendar suas crenças, para não se tornar mero reprodutor das fórmulas secularizadas. Para, em vez de tornar-se instrumento, surgir como sujeito da investigação. O estudo do Direito contemporâneo impõe ao investigador uma nova forma de abordagem, uma vez que os paradigmas utilizados pelas ciências tradicionais estão esgotados como modelos capazes de permitir a proteção do conhecimento jurídico. É preciso reformular os critérios de estudo do Direito, que se apresenta como um fenômeno complexo, cujo entendimento abriga uma nova fórmula de análise. Tratar o modelo jurídico no modelo tradicional — o sistema jurídico, por exemplo — como capaz de servir de referência ao entendimento da realidade é ficar distante do atingimento da meta de construção do conhecimento jurídico. Essa complexidade foi, por exemplo, examinada recentemente em defesa de Tese de Doutoramento pelo professor Marcelo Souza Aguiar17. Diz ele que o Direito é um fenômeno natural e social. Desse modo, a sua compreensão possui um grau de complexidade inerente tanto ao fator humano como à sua inserção no contexto da natureza. O conhecimento do fenômeno jurídico exige a passagem da sua realidade para um modo de apreensão que se consuma com a elaboração do sistema jurídico. O Direito é o fenômeno e o sistema jurídico é a maneira de torná-lo inteligível, por intermédio da identificação do seu repertório e da sua estrutura. Não se trata, porém, de captar o Direito por meio de um sistema reificado. A formulação do sistema jurídico não pode torná-lo um “objeto”, externo e diferenciado do contexto de vida do sujeito cognoscente. Dessarte, impõe-se uma perspectiva filosófica na abordagem do sistema jurídico, o qual, quando posto como “sistema-objeto”, denota a sua complexidade reflexiva para com a consciência que o examina. Vale dizer, o sujeito cognoscente, na sua vida biológica e psíquica, integra o repertório do sistema jurídico e, assim, determina a reflexidade do processo de conhecimento do Direito a partir da imensidão do espírito humano e do sentido existencial da vida. Portanto, de uma dimensão filosófica. Com efeito, a pessoa humana, parte da natureza, da sociedade e, pois, do Direito, é um ente nuclear do sistema jurídico, determina a intersubjetividade cogente da essência do Direito e consagra a valoração do justo no seu ser. As necessidades humanas, advindas da constatação do ser biológico e psicossocial, provocam uma permanente atualização do sistema jurídico baseada na força imanente e transcendente do princípio da justiça. Este é pautado pela atributividade intrínseca ao primado do respeito à dignidade da pessoa humana. O sistema jurídico é complexo, exposto, adaptativo, uma representação do vasto universo do Direito. É complexo porque há a multiplicidade do seu repertório, marcado pela qualidade, o qual congrega o fato, o valor, a norma, o poder; a consciência individual e coletiva, com as angústias e privações, com o desejo de ação libertária e do ato justo, de amor ao semelhante, na senda da consciência intersubjetiva e transubjetiva, imbuída do valor maior da justiça. É exposto porque, sendo algo que pulsa, está em contato e sujeito à expansão do repertório dos demais subsistemas sociais. É adaptativo porque, embora complexo e exposto, diante dos conflitos sociais que partilha com os demais sistemas, possui a capacidade de restabelecer o seu equilíbrio por conta dos seus princípios nucleares. Reage ao ataque do flagelo humano, mas não se dissolve ou se asfixia pela multiplicidade do seu repertório. Ao contrário, mantém a sua consistência de retorno ao ponto central onde se situa a pessoa humana. Diz o Professor Marcelo Aguiar que “o sistema jurídico não apenas ‘sobrevive’. Ele interage com os outros sistemas, donde emergem as recorrências hiperarticuladas do seu repertório, tendo por nota característica a complexidade do ser humano. Os conflitos sociais, componentes do repertório, têm o condão de elevar o grau de complexidade do sistema jurídico no patamar da metassistematização, por meio da qual tal sistema, em permanente expansão e troca de informações com os demais sistemas, rearticula os seus elementos de sorte a que o horizonte aberto no seio da consciência (fluxo de vivências) resistia à desordem e ao caos e mova-se para a ordem do seu estatuto fundamental informado pelo princípio dos Direitos Humanos”. A complexidade do sistema jurídico não é, portanto, uma opção metodológica. É um imperativo da realidade imanente às relações interpessoais, ao mesmo tempo em que é uma imposição do sentido da Humanidade. A Humanidade, como princípio, não é o resultado da somatória das individualidades, mas representa a totalidade de sentido da existência do ser humano sobre a Terra. Na percepção do fenômeno jurídico não há lugar para uma visão do sistema jurídico como sendo “fechado”, “autopoiético”. A proposta da clausura do sistema jurídico, da sua funcionalidade diferencial, esbarra no óbice da inexorável satisfatividade dos postulados inerentes à condição humana, à vida em sociedade. Tampouco nos satisfaz a postura da dogmática tradicional, que pretende controlar o conhecimento do Direito a partir de conceitos lógico-formais moldados para a solução imediata de conflitos dentro de um espectro de previsibilidade que não enfrenta a problemática do caso concreto. Ed., 1999, p. 63-4). Dito isso, examinemos, na sequência, uma escola contemporânea, a fenomenologia. Ela não só influenciou largas correntes do pensamento mais recente como também filósofos de porte, tais como Sartre, Heidegger e Jaspers, sobretudo porque a postulação de seu método é importante para uma ciência com as características da Ciência do Direito. A escola fenomenológica foi fundada por Edmund Husserl, com a pretensão de encontrar para a filosofia um método e um ponto de partida tão indiscutíveis quanto os da matemática. Ambicioso projeto já tentado por Descartes, que o inspirou. No método husserliano constata-se uma relação essencial e lógica entre sujeito e objeto, numa tensão dialética que os une. Husserl recusa-se a tomar partido em relação ao idealismo ou empirismo, optando pela “neutralidade”. Mas há de reconhecer, como se verá, que ele consegue ultrapassar tanto um quanto outro, criando algo totalmente novo. Acompanhemos os fundamentos, o funcionamento e os postulados da fenomenologia. Husserl, primeiramente matemático, interessou-se, posteriormente, pela psicologia. Ambas as esferas de conhecimento em Husserl encontraram no terreno fértil preparado por Descartes as sementes que fariam brotar o método fenomenológico. Ao separar corpo e mente, Descartes pusera os filósofos diante da questão: se a mente é distinta do corpo e seus órgãos, e se são estes que entram em contato com o mundo exterior, como ter certeza da existência do próprio mundo exterior? Para Descartes, tanto o corpo como a alma (ou mente) são substâncias completas, autossuficientes e sem relações imediatas recíprocas. E a mente, essencialmente distinta do corpo e dele independente, é mais fácil de conhecer que a matéria, porque aquela é conhecida diretamente, ao passo que esta não o é, senão por intermédio das sensações. Voltemos à questão: se a alma é distinta do corpo e seus órgãos, e são estes que entram em contato com o mundo exterior, como ter certeza da existência do próprio mundo exterior? Não resta dúvida que temos representações muito nítidas desse mundo, ricas, coerentes e que se complementam; representações que são, todavia, inteiramente subjetivas, cuja correspondência com um objeto exterior à nossa subjetividade (à nossa consciência) é impossível de ser verificada. Estamos encerrados em nós mesmos e por isso não podemos atingir nenhuma realidade objetiva. É-nos vedado ir além do pensamento; esse além é impensável. Husserl é bem específico quanto a todos esses aspectos: “O caminho que aqui se abre para o pensamento é o seguinte: por mais que eu estenda a dúvida da crítica do conhecimento, não posso duvidar de que eu sou e duvido, de que eu represento, julgo, sinto, ou, seja como for que possam ainda ser chamadas as aparições internamente percebidas, delas não posso duvidar durante a vivência mesma em que as tenho; uma dúvida nesses casos seria evidentemente um contrassenso. Portanto, temos ‘evidência’ da existência dos objetos da percepção interna, temos o mais claro dos conhecimentos, aquela certeza inabalável que distingue o saber, no sentido mais estrito. O que acontece com a percepção externa é completamente diferente. Falta a ela a evidência, e, de fato, uma múltipla contradição nos enunciados nela confiados indica que ela é capaz de nos induzir em erros e ilusões. De antemão, não temos, portanto, o direito de acreditar que os objetos das percepções externas existam efetiva e verdadeiramente tais como eles nos aparecem” (Investigações lógicas — sexta investigação, in Os pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1991, p. 169 — coleção). Com efeito, a atitude fenomenológica surgiu como resposta à falta de argumentos apodíticos (evidentes, irrefutáveis) que pusessem fim ao drama revelado pela impossibilidade de penetrar na natureza dos objetos conhecidos. Ao invés de eternizar-se nessa busca, a fenomenologia escolheu dedicar-se ao estudo dos dados do conhecimento. Para o entendimento adequado do trabalho do fenomenólogo, é importante examinar o sentido em que o termo “fenomenologia” é empregado. A palavra “fenômeno”, originalmente, tanto no sentido científico quanto no filosófico comum, tem relação com a palavra “aparência”18. Por isso o “fenômeno” é um “relativo”, pois é aquilo que “aparece” para o sujeito que o observa, ou seja, só existe na medida em que é observado na relação com o sujeito. Além disso, o termo “aparente” sofre influência do termo “ilusório”, “irreal”, o que vai afetar também o termo “fenômeno”, que ganha esse caráter de “ilusório”, “irreal”. É verdade que o fenômeno faz parte da realidade, mas é como se pertencesse a um nível inferior de real. As coisas são um absoluto, enquanto o fenômeno é um relativo — ao aparecer para o sujeito. Daí é que se firmou a tendência no espírito de considerar real apenas “a coisa em si” ou o “númeno”, cuja essência todavia é impenetrável. Para o sujeito só há o fenômeno. Na perspectiva fenomenológica a relação é invertida: o fenômeno é que é absoluto; as coisas, o mundo exterior, a árvore, a montanha, só têm existência relativa perante o fenômeno. Ao contrário da visão anterior, não é a representação subjetiva ou fenômeno que depende das coisas ou do objeto; são as coisas ou os objetos que dependem da representação ou do fenômeno. A consciência é a base essencial de todas as representações, quer sejam científicas, quer vulgares, da realidade conhecida como objetiva. A consciência é a condição necessária para a afirmação das coisas que são estranhas à consciência. Se pudéssemos remontar todos os conhecimentos das coisas ditas objetivas e fôssemos voltando de forma a decompô-los, chegaríamos na essência primeira, que é a consciência. Daí concluir-se que as coisas ou objetos só têm realidade a partir da consciência. Para a fenomenologia existe uma confusão, trazida pelo naturalismo, entre o físico e o psíquico. Este não é o conjunto de mecanismos cerebrais e nervosos, mas uma região que possui especificidade e peculiaridade; o psíquico é fenômeno, não é coisa. As coisas pertencem ao mundo físico, ao fato exterior, ao empírico e são governadas por relações causais e mecânicas. Já o fenômeno é a consciência, enquanto fluxo temporal de pelo caráter de ato da afiguração, articulam- -se numa consciência do objeto quadro, são os componentes genuínos dessa consciência. E aí eles não existem apenas fenomenal e intencionalmente (como conteúdos que aparecem e são meramente presumidos), mas existem efetivamente” (Investigações lógicas, in Os pensadores, cit., § 8º, p. 181, apêndice). A intencionalidade é, assim, um componente importantíssimo no entendimento da fenomenologia. Vejamos, por isso, uma completa explicação de Husserl: “Quando eu me represento o deus Júpiter, este deus é um objeto representado, ele está ‘presente de uma maneira imanente’ em meu ato, ele tem em si uma ‘existência mental’; quaisquer que sejam, por outro lado, as expressões que se possam empregar, uma interpretação estrita as revelaria como errôneas. Quando me represento o deus Júpiter, isto significa que tenho uma certa vivência da representação, que em minha consciência se efetua a representação do deus Júpiter. Esta vivência intencional pode ser decomposta, caso se queira, por uma análise descritiva e não se poderá naturalmente encontrar aí alguma coisa como o deus Júpiter: o objeto, ‘imanente’, ‘mental’, não pertence, portanto, ao que constitui, do ponto de vista descritivo (realmente), a vivência; por conseguinte, ele não é verdadeiramente, de modo algum, ‘imanente’, nem ‘mental’. Certamente não será extra mentem, ele absolutamente não existe. Mas isto não impede que esta representação do deus Júpiter seja efetivamente realizada, que ela seja uma vivência desta ou daquela espécie, uma disposição de espírito determinada de certa maneira que aquele que a experimenta em si mesmo pode dizer, justamente, que representa para si este rei mítico dos deuses, cuja fábula conta esta ou aquela coisa. Mas se, por outro lado, o objeto visado existe, a situação não muda necessariamente do ponto de vista fenomenológico. Para a consciência, o dado é essencialmente uma coisa igual ao objeto representado, mesmo que ele exista ou seja imaginado ou talvez mesmo absurdo. Minha representação de Júpiter não é diferente da de Bismarck, assim como a da torre de Babel não é diferente daquela catedral de Colônia e a de um polígono regular diferente daquela de um poliedro regular. Se isto a que se denomina conteúdos imanentes é antes de mais nada simples conteúdos intencionais (intencionados), então, em compensação, os conteúdos verdadeiramente imanentes que pertencem à composição real das vivências intencionais, não são intencionais: constituem o ato, tornam a intenção possível, enquanto pontos de apoio necessários, mas eles próprios não são intencionados, não são os objetos que são representados no ato. Não vejo sensações de cores, mas objetos coloridos; não ouço sensações auditivas, mas a melodia interpretada pela cantora etc. E o que é verdadeiro nas representações também o é nas outras vivências intencionais nelas fundadas. Representar um objeto, o castelo de Berlim, por exemplo, é, já o dissemos, uma espécie de disposição de espírito determinada descritivamente desta ou daquela maneira. Fazer um juízo sobre este castelo, sentir prazer com sua beleza arquitetônica ou ter o desejo de poder construí-lo etc. são vivências novas caracterizadas fenomenologicamente de uma maneira nova. Têm de comum o fato de serem modelos de intenção objetiva que não podemos exprimir de outro modo na linguagem normal, senão dizendo que o castelo é percebido, imaginado, representado em imagem, julgado, que ele é objeto desta alegria, daquele desejo etc.” (André Vergez e Denis Huisman, História dos filósofos ilustrada pelos textos, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1982, p. 379-80). Ilustremos o pensamento e a exposição de Husserl com outro exemplo: quando pensamos “cor vermelha”, sabemos por intuição o “sentido” de vermelho da cor, mas jamais podemos demonstrá-lo por palavras. Para um daltônico, a palavra “vermelho” não tem o mesmo sentido que os não daltônicos a ela atribuem, sendo impossível transmitir para o daltônico, de qualquer forma, seu “significado”. O daltônico jamais, em momento algum, entenderá o que vem a ser a cor vermelha, da maneira como os outros a identificam. O que seria do vermelho se todos fossem daltônicos? O “vermelho” simplesmente não existiria como o “sentimos vermelho”; seria outra coisa, que poderia até ter o mesmo “nome”, não importa. Por outro lado, se isso é já a prova da intencionalidade da consciência — consciência de algo, cuja essência é intuitiva —, há ainda outro exemplo relacionado à cor, que serve como prova. É outro fato bastante comum que ocorre na disputa entre duas pessoas sobre a “designação” do nome de uma cor: fulano olha para uma cor e diz: “é azul”; beltrano olha para a mesma cor e diz: “é verde”. Afinal, qual é a cor? Depende exclusivamente da consciência intencionada de cada qual, fulano ou beltrano. É a prova de que o “objeto em si”, por si só, nada significa, uma vez que só significa para a consciência, e no caso a solução será diferente para cada um. Fulano permanecerá “sentindo” (intencionando) azul e Beltrano “sentindo” (intencionando) verde. Nesse ponto, podemos, então, apresentar o método conhecido como “redução fenomenológica”, que tem, como dissemos, a pretensão de fixar para o investigador um ponto de partida indiscutível, tanto quanto os da matemática. É o que Husserl chama “princípio dos princípios”. Esse método pretende responder à angustiosa indagação inicial: “Se as coisas e o mundo existem em si independentemente de mim, e se, do meu lado, sou uma ‘ilha de consciência’ fechada sobre si mesma, como posso sair de mim e atingir, para lá de mim, algo que não seja eu? Não permaneceria o meu conhecimento sempre duvidoso porque, definitivamente, inverificável?”. Assim, tal como o fez Descartes, Husserl passou, então, a procurar uma realidade de que não se possa duvidar, ou uma evidência apodítica, isto é, aquilo que não se poderia rejeitar sem contradição. Investigando o senso comum, Husserl encontrou o mundo que para o leigo tem uma existência Daí surgiu a tese fenomenológica da “neutralização”; uma “neutralização” das evidências existenciais, destinando-se a redução a abrir a consciência para uma nova dimensão da experiência do mundo. Aqui chega-se, então, àquilo que Husserl chama “redução eidética”, redução que visa às essências. Como a consciência é consciência de alguma coisa e os objetos concretos do pensamento são postos entre parênteses, o fenomenólogo dirige sua atenção para as estruturas de seu pensamento e para as estruturas das coisas que pensa. Desviando-se das existências, ele visa às essências. Trata-se de determinar as formas gerais dos objetos, reduzindo-os enquanto dados da consciência à sua forma essencial. Para efetuar essa redução, não cabe recorrer a comparações de dados particulares ou de atos diferentes: é no indivíduo que se deve perceber o universal. Tomando determinado objeto, faz-se em imaginação que ele varie, sem, contudo, sair dos limites da espécie cuja essência se busca conhecer. Essa operação faz surgir seus caracteres essenciais. É por isso que Husserl — apresentando expressamente um paradoxo, mas contudo “estritamente verdadeiro” — diz que a “ficção” constitui o elemento vital da fenomenologia; “a ficção é a fonte em que se alimenta o conhecimento das ‘verdades eternas’ ”. Husserl “mostra” um caso “prático” para elucidar o processo da redução eidética: partindo do exemplo da percepção desta mesa, modifiquemos o objeto da percepção — a mesa — de maneira inteiramente livre, ao sabor de nossa fantasia, salvaguardando, todavia, o caráter de percepção de alguma coisa: não importa o quê, mas alguma coisa. Começamos por modificar arbitrariamente — em imaginação — sua forma, sua cor etc., não mantendo mais que o caráter de “apresentação perceptiva”. Em outras palavras, transformamos o fato dessa percepção, abstendo-nos de afirmar seu valor existencial, numa pura possibilidade entre outras perfeitamente arbitrárias, mas, seja como for, puras possibilidades de percepção. Transferimos de algum modo a percepção real para o reino das irrealidades, o reino dos “como se”, que nos brinda com as possibilidades “puras”, puras de tudo que as prenda a qualquer fato que seja. O tipo geral da percepção é, desse modo, elucidado na pureza ideal. Privado, destarte, de toda relação com o fato, ele se torna o eidos da percepção, cuja extensão “ideal” abraça todas as percepções idealmente possíveis como puros imaginários. As análises da percepção são, então, “análises essenciais”. Sartre, um entusiasta do método de Husserl, dá sua explicação sobre o significado da redução eidética: “A fenomenologia é uma descrição das estruturas da consciência transcendental fundada sobre a intuição das essências dessas estruturas. Naturalmente, essa descrição se opera no plano da reflexão. Ora, há um outro tipo de reflexão, a que é utilizada pelo fenomenólogo: esta procura apreender as essências. Isto é, ela começa por se colocar, logo de início, no terreno do universal. Certamente, opera com base em exemplos. Mas é de pouca importância que o fato individual que serve de suporte à essência seja real ou imaginário. O dado ‘exemplar’ seria uma pura ficção, pelo fato mesmo de que foi possível imaginá-lo; mas é preciso que realize em si a essência procurada, pois a essência é condição mesma de sua possibilidade” (A imaginação, in Os pensadores, cit., 1987, p. 97 — coleção). É preciso bem entender o sentido da palavra “objeto”. Ela tem o sentido de “objetivo”, que qualifica aquilo que é dado ao espírito e que se lhe impõe a título de representação. Ou, em outros termos, o fenomenólogo, quando analisa a essência dos objetos presentes à consciência, permanece na consciência. Assim se especificam progressivamente as estruturas da consciência e as essências dos objetos, que devem seu ser à consciência que deles adquirimos. Para concluirmos, podemos voltar à afirmação inicial — que não é unânime — de que a fenomenologia husserliana ultrapassa simultaneamente o realismo e o idealismo. Ela ultrapassa o idealismo na medida em que toda consciência visa a um objeto transcendente, isto é, exterior a ela; ultrapassa o realismo à proporção que toda significação remete a uma consciência transcendental, doadora de sentido. Até o sujeito conhecido pela introspecção é objeto para um Eu transcendental (nos dizeres de Vergez e Huisman, História dos filósofos ilustrada pelos textos, cit., p. 377). 2.3. A CIÊNCIA DO DIREITO É preciso ressaltar que existem até dúvidas sobre o caráter de cientificidade do Direito, diante de uma série de pressupostos de difícil avaliação. Contudo, fazendo-se uma leitura ampla dos comentadores, percebe-se claramente que, de um jeito ou de outro, todos, ou pelo menos a maioria, tratam o Direito como ciência, numa evidente manifestação de aceitação de seu caráter científico. Até se compreendem tantas dúvidas, uma vez que o Direito teve e ainda tem muitas escolas de pensamentos que propõem formas diferentes de investigação para sua ciência. A nós importa o fato de que existe uma Ciência do Direito, mesmo que com formas de pesquisas diversas. Como ramo de ciência humana, a Ciência do Direito tem como substrato de pesquisa o homem, em todos os aspectos valorativos de sua personalidade. Da mesma maneira, como não se compreende uma ciência humana que exclui de seu âmbito de pesquisa o ser humano, é inadmissível pensar uma Ciência do Direito que não tenha como fundamento e centro de suas atenções o homem. É colocado assim, como pressuposto, o homem e sua condição existencial como princípio de investigação. A Ciência do Direito deve, portanto, respeitar o homem na inteireza de sua dignidade e nos limites postos e reconhecidos universalmente como seus: a vida, a saúde, a honra, a intimidade, a educação, a liberdade etc.; bens essenciais e indisponíveis que, em conjunto com bens sociais como a verdade, o bem comum e a justiça, são norteadores de todo o prática. Contudo, tendo em vista as peculiaridades do objeto da Ciência do Direito, percebe-se que ela não tem de dar conta apenas das normas jurídicas e sua aplicação ou não, mas também tem de lidar com fatos sociais, aspectos sociológicos, econômicos, culturais e até climáticos, com diferenças regionais e territoriais, bem como com valores éticos e morais. Deve, ainda, investigar as causas de elaboração das normas jurídicas, em especial as leis, bem como sua adequação ao meio social. Todas essas normas e valores devem respeitar o homem em sua dignidade de ser humano, no meio social e na natureza em que vive. A Ciência do Direito em sua acepção mais ampla é uma ciência ética por excelência. 2.4. O OBJETO DA CIÊNCIA DO DIREITO. QUE É O DIREITO? Sob o aspecto etimológico é possível ligar o termo “direito”, dentre outros, a reto (do vocábulo em latim rectum), a mandar, ordenar (do latim jus, ligado na origem a jussum), ou ao termo “indicar” (do vocábulo grego diké). Observando o Direito à luz da realidade dos estudos jurídicos contemporâneos, pode-se vislumbrar que o termo “direito” comporta pelo menos as seguintes concepções: a de ciência, correspondente ao conjunto de regras próprias utilizadas pela Ciência do Direito; a de norma jurídica, como a Constituição e as demais leis e decretos, portarias etc.; a de poder ou prerrogativa, quando se diz que alguém tem a faculdade, o poder de exercer um direito; a de fato social, quando se verifica a existência de regras vivas existentes no meio social; e a de justiça, que surge quando se percebe que certa situação é direito porque é justa. A palavra “direito” é, assim, tida por uns como análoga, ou seja, seus sentidos guardam certa relação entre si; mas é apontada por outros como vaga e ambígua, visto que suas significações não são sempre claras, ou geram dúvida legítima e insolúvel ou, até mesmo, apresenta-se de forma paradoxal e contraditória. Assim é que, por exemplo, o termo “direito”, na frase “o trabalhador tem direito assegurado ao salário”, guarda certa aproximação, certa analogia, com o referido termo na expressão “não é de direito punir um inocente”. Na primeira assertiva a palavra “direito” refere-se à previsão legal estabelecida (a Consolidação das Leis do Trabalho — CLT — que garante o salário do trabalhador). Na segunda, aquela palavra refere-se à justiça — ou injustiça — de uma decisão judicial. De pronto percebe-se apenas nos dois simples exemplos que os próprios usos da palavra “direito” apontam um para o outro: direito aponta para justiça e esta para aquele. E é por isso que se diz que os termos são análogos. Contudo, há outros usos que se apresentam, como se disse, vagos, ambíguos, contraditórios. Com efeito, direito é um ideal sonhado por certa sociedade e simultaneamente um golpe que enterra esse ideal. É símbolo da ordem social e simultaneamente a bandeira da agitação (estudantil, dos trabalhadores em greve etc.). O Direito garante a privacidade e a intimidade e, também, ao mesmo tempo, a publicidade e a quebra da intimidade. Só por esses exemplos percebe-se o grau de dificuldade que é o manejar do conceito “direito”. Talvez por isso a chamada Ciência do Direito tenha acabado por privilegiar um dos sentidos, dentre os vários possíveis. Como, via de regra, as ciências em geral não têm muita dificuldade na descoberta e fixação de seus objetos — por exemplo, a medicina não tem dúvida de que deve estudar o corpo humano —, a Ciência do Direito pretende o mesmo. Dessa forma, optou por estudar um dos sentidos possíveis do termo “direito”: o de norma jurídica e, especialmente, o de norma jurídica escrita. Assim é que, na atualidade, os cursos de Direito estão voltados quase que totalmente para o estudo da norma jurídica escrita, com método tipicamente dogmático, conforme se demonstrará em item específico mais à frente (item 2.5). Mas não parece ter sido uma escolha muito feliz — ainda que se possa entendê-la —, uma vez que as dificuldades de fixação de sentido que o termo “direito” revela ao investigador, antes de serem um obstáculo, apontam para uma riqueza de significações que merecem estudo aprofundado. Contudo, ao invés de buscar superar o obstáculo, penetrando em sua complexidade fecunda, o cientista do Direito deu uma volta ao largo do problema e levou consigo o sentido mais fácil de ser abordado. Com isso, o que era de humano a impregnar o Direito acabou congelando-se no conceito da norma jurídica escrita e perdendo-se no trabalho analítico do investigador. É preciso resgatar a magnificência da dignidade humana, que é o fundamento último que dá sustentação ao Direito, através da abertura das mentes que se dedicam ao estudo do Direito, o que passa, necessariamente, por uma avaliação sincera dos métodos da Ciência do Direito, dos institutos jurídicos existentes, das condições sociais reais nas quais o Direito está incluído, sobre as quais ele influi e das quais recebe influência. Enfim, é preciso pensar abertamente na função social do Direito e no papel social exercido pelos que o operam — todos: estudantes, professores, profissionais específicos: advogados, juízes, procuradores de justiça, delegados etc. E isso começa no estudante, que deve ser chamado a participar do debate, como aquele que está começando a pensar o Direito. 2.5. A CIÊNCIA DOGMÁTICA DO DIREITO 2.5.1. O termo “Ciência do Direito” Resta agora tratar o método ou métodos no Direito. Podemos aqui distinguir dois momentos importantes: um anterior à Ciência do Direito atual e outro relativo à investigação contemporânea. No primeiro caso, deve-se, inclusive, colocar como o faz o Prof. Tercio Sampaio Ferraz Jr. (A ciência do direito, cit., p. 18), que o próprio termo “ciência do direito” somente passou a ser utilizado a partir do século XIX, por invenção da Escola Histórica alemã. Claro que antes o A legislação seria elaborada num sistema normativo codificado, visando garantir os direitos subjetivos do homem, que, por sua vez, estavam pressupostos nas normas da natureza. Os códigos seriam a concretização dos ideais jusnaturalistas. Daí poder-se dizer que lei é direito, porquanto ela reflete racionalmente o Direito natural. Exegese, como se sabe, significa o comentário minucioso ou a interpretação de um texto ou palavra. A conhecida Escola da Exegese no Direito teve seu apogeu após a promulgação do famoso Código de Napoleão, em 1804. Esse código unificou o Direito Civil francês e, tido como a expressão mais completa do Direito, tornou-se marco importante para o surgimento da crença de que o Direito é o direito posto — a legislação. Esse Direito elaborado trazia também a grande vantagem da segurança e da certeza, já que tudo o que se buscava estava nos textos. Bastava interpretá-los. A interpretação jurídica dos textos de leis ganhou, então, absoluta relevância. E, como todo o Direito transformara-se no corpo escrito legislado, era ali mesmo que se buscariam as regras de interpretação capazes de solucionar os problemas que surgissem. A idolatria ao Código de Napoleão punha ao intérprete um limite claro: o exegeta devia entender os textos e nada mais e nesse trabalho tinha de descobrir a intenção (vontade) do legislador. A tese dos exegetas, da concentração da competência exclusiva para legislar no Legislativo, reduziu o direito à lei. E também reduziu a função do intérprete e do julgador a uma função mecânica, de lógica dedutiva. Sendo a lei a única fonte das decisões jurídicas, a resolução de um problema dar-se-ia, então, na conclusão de um silogismo, no qual a premissa maior seria a lei, a premissa menor seria o enunciado do fato concreto apresentado como problema a se solucionar, e a conclusão corresponderia à resolução do problema. A função judicial teria, assim, uma concepção mecânica, como um processo lógico-dedutivo de subsunção do fato concreto à determinação abstrata da lei. Mas a realidade do exegeta começou a apontar certos limites ainda não pensados, que precisaram de acomodação, o que foi feito nos moldes do pensamento empírico exegético. O exegeta, de início, atinha-se a uma interpretação literal do texto da lei, tentando extrair daí a vontade do legislador. Contudo, esse processo interpretativo mostrou-se insuficiente: nem tudo se podia resolver com a mera interpretação literal. Foi-se, então, às fontes dessa fonte fundamental — a lei. Para desvendar a vontade do legislador, passou-se a investigar os trabalhos legislativos preparatórios, os costumes anteriores, a tradição histórica, ou seja, para desvendar a vontade do legislador, o exegeta passou não apenas a conhecer a letra da lei, mas também a desvendar seu espírito. Surgiu aí a interpretação histórica, isto é, a possibilidade de investigar as circunstâncias que antecederam a criação da lei. Posteriormente, percebeu-se que as várias leis tinham de ser sistematizadas, porquanto cada uma delas tinha seu lugar próprio, dentro do sistema legislativo, com adequação e importância diferenciadas, sendo certo que, inclusive, algumas leis preponderavam sobre outras. A técnica adequada para realizar a exegese dessas leis, postas nessa variedade num sistema, é a da interpretação lógico-sistemática, que passou a ser utilizada. Esse positivismo legal, reduzindo todo direito à lei ou mais especificamente ao conjunto de leis, concebia, assim, um sistema jurídico fechado e completo, sem lacunas, e que seria capaz de solucionar todos os problemas apresentados. Dados esses pressupostos, passou-se a utilizar, também, o recurso à analogia, como alternativa para resolução de casos concretos aparentemente não previstos. Esse procedimento era não só interpretativo como mais propriamente integrativo, uma vez que conseguia suprir o titubeio do exegeta diante da aparente ausência de lei (lacuna). Dessa forma conseguia-se fechar o cerco novamente: o Direito estava representado pelo sistema legislativo, certo e completo (sobre as várias técnicas de interpretação e suas especificidades — interpretação literal, lógico-sistemática, o uso da analogia, as lacunas etc. —, ver o Cap. 6, infra, “A Interpretação Jurídica”). Contudo, observa-se que todos esses métodos dos exegetas visavam, como único fim, desvendar a vontade do legislador, que tinha de ser respeitada e resguardada. A Escola da Exegese exerceu poderosa influência não só na França mas também na Alemanha, Itália etc., espalhando-se por todo o mundo ocidental. Mesmo nos países da common law, como a Inglaterra, a Escola da Exegese acabou exercendo influência. Para os países dessa concepção, do sistema anglo-americano, a lei tem importância secundária (importância atenuada nos Estados Unidos, fundada com base numa Constituição Federal escrita — já vigente há mais de 220 anos — e que dá preferência à lei em vários campos), sendo o direito aquele declarado pelo juiz (judge made law), e influindo daí como fonte para o intérprete, no conhecido precedente judicial (case law). Nessa concepção, diz-se que o direito se desenvolve lentamente, conforme a evolução social e as necessidades do povo. A lei, criada só excepcionalmente para tentar resolver conflito insuperável entre precedentes judiciais regionais ou estaduais, por isso, tem de ser interpretada restritivamente. O pensamento exegético entrou aí para apresentar como absoluto o velho direito, petrificando- o, tentando impedir que o juiz trouxesse qualquer inovação e que o interpretasse com flexibilidade, como da mesma forma o legislador não poderia fazer leis, alterando-o. 2.5.3.2. A Escola Histórica Foram os alemães Gustavo Hugo, Puchta e, especialmente, Savigny, este como seu grande vistas a orientar a ação dos outros. Claro que o estudo do Direito empreendido pelas escolas não é tão somente dogmático, uma vez que há investigações em áreas específicas ou mesmo em certas cadeiras que têm cunho filosófico ou se apresentam como teoria no sentido zetético (para usar aqui a proposta e os ensinamentos do Prof. Tercio Sampaio Ferraz Jr., em seu Introdução ao estudo do direito , São Paulo, Atlas, 1988). No primeiro caso, o conhecimento estudado, por ser filosófico, está livre de qualquer dogmatismo. Ou melhor, “pode” estar livre, porque didaticamente é possível se dogmatizar até um pensamento dito filosófico, que desta forma perde seu caráter. E isso, infelizmente, se dá, geralmente no fenômeno típico de ocultação de uma prescrição — ordem — que vige por trás de uma linguagem — aparentemente — descritiva do mestre. Mas, em sendo de fato um conhecimento filosófico, esse está sempre aberto. A investigação de enfoque zetético tem função especulativa, levantando questões que podem ir em direção ao infinito, suspendendo o juízo e deixando em aberto as respostas ao problema levantado. O enfoque zetético relativamente às doutrinas e opiniões põe-nas em dúvida, desintegrando-as. A linguagem do trabalho zetético é caracterizada pelo uso descritivo, já que sua preocupação é descrever algo. É o uso do verbo “ser”: que é algo? Contudo, tem de se colocar o fato, que em nível quantitativo é inquestionável — em nível qualitativo estamos tentando demonstrar. Ei-lo: a grande parte ou a quase totalidade das investigações nas escolas de Direito — tanto em quantidade de matérias e cadeiras quanto em quantidade de horas de estudo — é elaborada de maneira dogmática. Isso faz, inclusive, com que se possa desprezar — um grave erro, diga-se desde já — as outras investigações que não têm caráter dogmático. É verdade que o desprezo tem outra razão de ser, como veremos: é o relacionado à eficiência do pensamento dogmático em oposição à não utilidade imediata das demais formas de investigação. A dogmática caracteriza-se por pretender impor-se de cima para baixo, do mestre ao aluno. Ela vai doutrinando e ensinando, de forma impositiva. O enfoque dogmático se finda em opiniões, dentre as quais algumas são ressalvadas como melhores ou como as corretas. As questões que ela levanta nunca são deixadas em aberto, já que buscam sempre um resultado. A investigação dogmática parte do pressuposto da existência da resposta ao problema dado, resposta esta que será encontrada. 2.5.4.2. A instrumentalização A linguagem do enfoque dogmático é caracterizada pelo uso prescritivo, já que sua função é diretiva, orientando a ação: ela diz o que “deve ser” algo. É aqui, no uso da linguagem, que reside um dos grandes elementos da inconscientização e da manipulação possível, estabelecido pela dogmática: por vezes ela, à guisa de se utilizar de linguagem descritiva, dá uma ordem oculta. Isto é, a doutrina dogmática diz que está descrevendo um objeto — o que é algo —, quando na verdade está prescrevendo determinada ordem ao estudioso, estabelecendo como deve ser o objeto. Esse é um fenômeno de ocultação, a que se dá o nome de criptonormativo, e que é uma característica importante da Ciência Dogmática do Direito: aquilo que acaba apresentando-se como um saber é, na realidade — por causa do processo da ocultação —, um comando, uma ordem; portanto, mais ato de poder — como imposição de um comportamento — do que verificação científica, de descoberta do saber. Claro que aí está o caráter educativo e evidentemente impositivo da dogmática jurídica. É sempre muito difícil sair da moldura por ela desenhada. Acresça-se a tudo o que já se disse outro elemento que colabora para a ocultação da prescrição e que vai acabar fazendo com que o próprio cientista dogmático do Direito não se aperceba, muitas vezes, do caráter prescritivo de seus ensinamentos; é quase uma sutileza, mas de resultados muito eficazes. É o relacionado ao necessário uso simultâneo, na Ciência Dogmática do Direito, de linguagem diretiva com linguagem descritiva. O enfoque primordial da dogmática é lançar direções para o agir; prescrever condutas, portanto. Mas, no estabelecimento de sua linguagem, ela utiliza-se de uma série de descrições geralmente ligadas a conceitos jurídicos previamente estabelecidos: por exemplo, o que é uma hipoteca; o que é um recurso; o que é um contrato de adesão etc.; ou ligadas a conceitos naturais, da linguagem comum: por exemplo, o que é dia, o que é homem ou mulher etc. Ora, isso vai acabar permitindo que o cientista dogmático — e depois até seu próprio objeto de investigação, a norma jurídica escrita — manipule a consciência do destinatário de seus ensinamentos, ocultando uma ordem por detrás de uma linguagem descritiva. Afinal, uma hipoteca somente pode ser aquilo que a norma jurídica e a Ciência do Direito dizem que é; portanto, deve ser assim. Se não o for, não é hipoteca. Ela é mais fruto de um comando — ou seja, resultado do cumprimento de uma ordem — que um fato de ser, que pode ser descrito. É claro que a linguagem descritiva no caso da hipoteca é usada: diz-se que a linguagem do cientista do Direito descreve (um “ser”) a linguagem da norma jurídica (um “dever-ser”). Este é o fator que ajuda a reforçar a ocultação do comando: de fato é possível usar a linguagem de uma forma (descritiva) e ocultar a outra (prescritiva), intencionalmente ou não. De fato, como essa forma de investigar, de impor e de se impor ocorre de maneira perene e progressiva, iniciando-se a partir das concepções do século XIX — com pressupostos e experiências advindas dos séculos anteriores, que lhe preparou o terreno — e firmando-se neste século, timidamente no início, vindo a fortificar-se notadamente após o embate da Segunda Guerra Mundial, vai havendo um processo de inconscientização do próprio investigador, que, de comportamentos desejados. Com isso o jurista tornou-se, além de sistematizador e intérprete, conselheiro, na medida em que, examinando as opções e oportunidades, passou a apontar quais os melhores caminhos a seguir. O jurista começou, portanto, a calcular ações, para descobrir quais as mais adequadas. E seu cálculo é fundado no binômio econômico do custo/benefício: a busca do maior benefício alcançável, com o menor custo possível. O adágio “mais vale um mau acordo que uma boa demanda” reflete bem a incorporação desse cálculo de custo/benefício no pensamento jurídico. A Ciência Dogmática do Direito compõe-se de doutrinas. Pretendem elas explicar as normas jurídicas e os problemas possíveis, e formam, de fato, um complexo argumentativo que se apresenta como orientações, recomendações e exortações. O aconselhamento, por essas fórmulas, quer influir no comportamento do destinatário, tendo em vista pôr um fim a possíveis conflitos, por meio de uma decisão. As orientações oferecem esquemas e modelos, pretendendo iluminar o pensamento daquele que vai tomar a decisão. As recomendações oferecem elementos de cautela, fornecendo fatos atuais e históricos, oriundos das experiências comprovadas, e que são transformados em regras técnicas do tipo “se queres x, deves fazer z”. As exortações apelam para sentimentos e valores sociais tais como o necessário respeito à justiça, ao bem comum, ao interesse público etc. Assim, pode-se dizer que a Ciência Dogmática do Direito cumpre as funções típicas de uma tecnologia. Seu pensamento é conceitual e vinculado ao direito posto — normas jurídicas escritas. Com isso, pode instrumentalizar-se a serviço da ação sobre a sociedade. A Dogmática Jurídica funciona, então, simultaneamente como agente pedagógico junto aos estudiosos do Direito em geral — estudantes universitários, advogados, juízes etc. — e como agente social ao criar uma “realidade” consensual a respeito do Direito. Essa “realidade” consensual é estabelecida na medida em que os conteúdos de suas doutrinas restringem o campo em que a resolução dos problemas deve dar-se. Nesse campo delimitado faz- se um corte, privilegiando as resoluções consideradas relevantes, desviando a atenção das demais. Nesses termos, o pensamento tecnológico molda um sistema fechado, dentro do qual cria as condições para a decisão de conflitos juridicamente definidos, não aceitando a problematização de seus próprios pressupostos — premissas e conceitos básicos que têm de ser aceitos, como ponto de partida. 2.5.4.4. Solução e decisão Vimos que, à luz da possibilidade de formulação de uma ciência qualquer, a pretensão do cientista é submeter o objeto de investigação a método, para com isso obter o conhecimento científico. Este se traduziria por um conjunto de proposições, cujos enunciados têm por características serem verdadeiros. Pode-se dizer que um dos trabalhos efetivos do cientista consiste em submeter problemas surgidos ou criados a hipóteses, para solucioná-los. Feita a investigação, se a solução do problema foi encontrada, a hipótese transforma-se em lei. Por exemplo, ao problema “paralisia infantil” buscou-se a solução, uma vacina. Esta, ao ser descoberta por Sabin — a vacina Sabin que impede a paralisia —, representou a solução procurada para o problema existente. A pesquisa científica cessou aí. Encontrou-se a verdade buscada. Compreende-se, assim, por que é que se diz que a ciência busca uma eficiência. É que a ciência está em larga medida preocupada com a utilidade de suas investigações. Pretende ser eficiente, encontrando soluções para todos os problemas (promessa jamais cumprida, nem de longe!). Este modelo de ciência, e especialmente de cientista, digamos assim, romântico, que almejava o bem da humanidade praticamente deixou de existir a partir da segunda metade do século XX. A característica marcante da ciência avançada da sociedade do pós--Segunda Guerra Mundial, que acabou por solidificar o modo de produção capitalista de massa e que é concentrada basicamente no cálculo de custo-benefício, cuja pretensão primeira (fundamento) e última (objetivo) é o lucro, eliminou as chances de uma ciência humanística. Os cientistas, em larga medida, são empregados de grandes corporações ou recebem subsídios de governos, mas as pesquisas desenvolvidas estão voltadas para o mercado. Se não há mercado, dificilmente se descobre algo novo. Quem duvidar assista ao filme O óleo de Lourenzo (Direção de George Miller, de 1992 e disponível em vídeo), no qual é retratado em caso verídico o funcionamento da pesquisa científica nos Estados Unidos e no resto do mundo. Pode-se, portanto, afirmar que solução, verdade e eficiência aproximam-se. De qualquer forma, ainda que a posição do cientista pareça de certo modo arrogante, porquanto ele pretende a tudo explicar, sua maneira de buscar soluções para certos problemas permite, em algumas áreas do saber, que ele se apresente com certa humildade diante do desafio trazido pela natureza. Por exemplo, na área das Ciências Médicas e Biológicas, diante do problema da AIDS, o cientista pode afirmar que, “no atual quadro de desenvolvimento de nossas pesquisas científicas, ainda não temos a solução para o problema”, isto é, não foi descoberta ainda a cura da doença. Tudo se passa muito diferente, quando se trata da Ciência Dogmática do Direito contemporâneo. Os princípios dogmáticos estabelecidos têm um fim previamente definido: a necessidade de obter, de qualquer jeito, uma decisão que ponha termo ao problema jurídico. Esse problema jurídico a ser terminado pela decisão pode tanto ser um conflito, isto é, disputa de pessoas em torno de um direito (por exemplo, uma ação de despejo por falta de pagamento), como um problema particular diante do direito, isto é, incerteza de como agir diante de certas Mas, quando se trata de um caso concreto — uma ação judicial, um processo administrativo —, no qual se busca a resolução para um problema, a decisão opera um corte similar ao da história, já que interrompe a investigação e faz com que se percam as outras alternativas, que só podem ser retomadas em outros novos — ou velhos — casos semelhantes. Aliás, nesse sentido, no que diz respeito ao processo judicial, o princípio — e a norma correspondente — da coisa julgada torna a decisão definitiva (sobre o conceito de coisa julgada, ver Cap. 5, infra). Por isso, pode-se dizer que a Ciência Dogmática do Direito não busca a verdade — ainda que trabalhe com o conceito de evidência e com os critérios relativos a ele. E, pelo fato de se constatar que suas proposições são reflexo da opinião, vão dizer alguns que a Dogmática Jurídica não é ciência, uma vez que não se consegue obter critérios capazes de universalizarem-se nem de serem tratados como verdadeiros. O que se tem é uma enormidade de opiniões diversas, que são tão numerosas quanto o número de cientistas que estão opinando. Realmente, aquilo que o pensamento jurídico costuma chamar de ciência do direito em larga medida não passa de argumento falacioso para garantir a posição de quem fala, no momento em que fala, como se ele estivesse utilizando uma linguagem científica19. Uma escola de direito não é uma casa de ciência. É uma instituição que ensina técnicas de interpretação de textos — e também de fatos e valores — e oferece ao estudante um arsenal retórico com que ele tem de lidar para agir como estudante, e, depois, como profissional. É verdade que se pode, apesar de tudo, afirmar a existência de verdades conhecíveis e consenso entre os estudiosos, características que são também encontráveis no âmbito das ciências. Todavia, isto não basta para fundar uma ciência. Faltam os métodos capazes de propiciar a busca de soluções para os problemas existentes, algo não verificável. No máximo, como dito acima, cabe afirmar a existência de uma ciência dogmática. Não mais que isso. Quando um estudante de direito é levado a acreditar que ele se tornou um cientista jurídico — quando recebe seu diploma, que lhe confere o grau e a capacidade de discernir sobre os temas do direito —, isso quer dizer apenas que ele é capaz de dominar o mínimo exigido da linguagem jurídica, que lhe permite articular frases coerentes sintonizadas com o mínimo consenso exigido para sua atividade. Pensamos num exemplo. Digamos que seja colocado no centro do gramado de um estádio de futebol ao nível do mar um balde com água sobre um fogareiro aceso. Nas arquibancadas estão três mil físicos graduados — cientistas, portanto. A eles é entregue uma pergunta “A água do balde está fervendo. Qual é a temperatura?: a) 80 graus celsius; b) 100 graus celsius; c) 70 graus celsius”. A resposta só pode ser uma, a da letra “b”, e respondida igualmente por todos. Se algum dos físicos apontar outra resposta, errou, pois não seguiu os preceitos de seu âmbito de atuação científica. Isto é possível na área jurídica? Quando fazemos esse tipo de pergunta em sala de aula, os alunos são tentados a responder “Não. Na área do Direito, não dá”. Mas é uma resposta precipitada, porque também no campo do Direito existe o certo e o errado. Aliás, tem de ser assim. Caso contrário ninguém poderia avaliar o conhecimento jurídico e ninguém poderia ser avaliado. É preciso mesmo que haja consenso relativamente ao mínimo linguístico do campo jurídico. É necessário que a leitura de certas proposições jurídicas seja feita na certeza do sentido único, sob pena de se tornar impossível qualquer forma de comunicação, quer seja científica ou comum20. Assim, por exemplo, se colocarmos naquele mesmo estádio de esportes três mil bacharéis em direito e perguntarmos a eles qual o prazo para apresentação do recurso civil de apelação, a resposta não puder ser 10 ou 8 dias. Somente pode ser 15 dias. Ou ainda, se perguntarmos a eles se a lei ordinária tem hierarquia superior ou inferior à Constituição Federal, a resposta tem de ser inferior, e assim por diante, numa gama grande de exemplos. No entanto, insistimos: esse conhecimento mínimo e necessário dá a ilusão de uma ciência, mas não transforma a escola de Direito numa ciência que busca a verdade como o fazem as ciências da natureza ou mesmo as ciências matemáticas. A escola de Direito forma técnicos capazes de ler, interpretar e entender as normas jurídicas editadas pelo poder existente — democrático, autoritário etc.; sendo que no Brasil essas normas jurídicas são quase totalmente escritas, com exceção das normas advindas do costume jurídico permitidas pelo sistema escrito21. Nesse aprendizado, o estudante e futuro profissional torna-se apto a utilizar as técnicas apreendidas na Ciência Dogmática do Direito. Passa a possuir habilidades de um técnico cumpridor de regras de interpretação, que explica e aplica as normas jurídicas postas e vigentes. Logo, o problema é mais o critério para se classificar algum conhecimento como científico. Claro que, no que diz respeito ao critério da verdade, a Dogmática Jurídica não se enquadraria; mas, se escolhermos outro, como a linguagem própria, a sistematização, os métodos de investigação e as regras de interpretação, podemos qualificá-la de ciência dogmática. De qualquer maneira, é preciso, ainda, lembrar que mesmo na questão da opinião e sua enorme diversidade é possível obter consenso relativamente a vários temas, que podem, posteriormente, solidificar-se em dogmas, entrando novamente na circularidade do pensamento jurídico dogmático. Com efeito, diante de um problema jurídico pode ocorrer que: a) as opiniões divirjam inicialmente e, posteriormente, caminhem para uma concordância geral, ou permaneçam sempre divergentes; b) as opiniões surjam já como consenso. Após o surgimento delas socialmente como um grande acordo e permanecendo por longo tempo dessa forma, na qual se afirmem reiteradamente, podem transformar-se em dogmas — convertidas em normas jurídicas ou não. ao ponto de partida. Além disso, ele não consegue tomar consciência do todo orgânico que o controla e o torna prisioneiro dos critérios rígidos da especialização a que foi submetido. Com isso, de forma, também, não consciente, não consegue ele perceber seu verdadeiro papel social, que deveria ser crítico e transformador, tornando-se apenas um repetidor mecânico das fórmulas propostas e impostas. Por isso, nunca é demais repetir, a Ciência do Direito necessita de um arejamento capaz de fazer não com que a eficiência seja diminuída, mas com que a consciência do investigador seja ampliada. 2.6. VERDADE E OPINIÃO NA CIÊNCIA DOGMÁTICA DO DIREITO O intuito deste item não é propriamente estabelecer uma ampla teoria capaz de propor a necessidade de se separar claramente a verdade da opinião no âmbito da Ciência Dogmática do Direito. O que se pretende é apenas trabalhar com algumas evidências e certas proposições tidas como consensuais na comunidade jurídica e a partir disso, quiçá, lançar sementes capazes de propiciar um debate saudável em torno do assunto. Mas, desde já, diga-se: o tema é fundamental para o estudo do Direito e não tem merecido a devida atenção. Vamos começar colocando um aspecto relevante que atinge diretamente os alunos (e os professores). Existe sim um conhecimento científico do Direito que gera segurança suficiente para que se possa distinguir o certo do errado ou o falso do verdadeiro. Se assim não fosse, como é que o professor iria avaliar o aluno, aprovando-o ou reprovando-o? Todas as avaliações que são feitas para que se possa aferir o conhecimento do aluno levam (só podem levar) em consideração um conhecimento prévio e objetivo que seja capaz de servir de parâmetro para elas. E tanto faz o método utilizado: pode ser prova escrita discursiva, perguntas para obtenção de respostas, prova oral, testes, monografias, elaboração de peças processuais etc. Em qualquer um desses casos o pressuposto é de que existe uma verdade aceita, pois é nela que se baseia o avaliar para dizer se o aluno acertou ou errou. Note-se que, inclusive, na área jurídica, quando o estudante já se tornou bacharel, os vários concursos que se lhe apresentam têm exatamente as mesmas características. É assim no concurso da Ordem dos Advogados, para o ingresso na magistratura estadual ou federal, nas várias procuradorias, no Ministério Público etc. É fato que, por vezes, critica-se a subjetividade das avaliações, isto é, a forma subjetiva com que o avaliador elabora seu trabalho. Todavia, essa crítica — que pode ou não ser válida —, por sua vez, pressupõe que se possam fazer avaliações objetivas. Caso contrário, não seria possível construir a hipótese da crítica. Logo, há sempre condições de que sejam feitas avaliações objetivas, fundadas, assim, na ideia de verdade. Realmente, se o professor perguntar para um quintoanista qual o prazo para interpor o recurso de apelação no processo civil e ele não responder 15 dias, evidentemente estará errado. Então, existe verdade no conhecimento jurídico. Mas como distingui-la da opinião? Com efeito, há um amplo ceticismo na doutrina quanto à possibilidade de se produzir um conhecimento jurídico verdadeiro. Em nosso modo de ver, essa resistência pode ser derrubada. Tem-se dito que o Direito é composto de um conjunto de opiniões. Existe também uma conhecida frase popular que reflete essa forma de pensar: em cada cabeça uma sentença. Tudo como se de fato cada um, cada jurista, cada estudante, cada aplicador do Direito, pudesse pensar o que quisesse do fenômeno jurídico. Os fatos, porém, mostram que o conhecimento jurídico está longe de ser assim. Coloquemos o ponto fulcral: o problema é antigo e remonta aos gregos, na suposta separação entre “doxa” (opinião) e “episteme” (conhecimento). Sem querer entrar na discussão lógica e semiótica que esses termos e seus usos envolvem, temos que dizer apenas que no Direito há uma convivência entre os dois. Não é um paradoxo, mas algo explicável: de um lado ninguém duvida que no Direito há opiniões divergentes a respeito de um mesmo objeto, qualquer que seja ele: norma, fato, valor, lide, problema etc. Porém, de outro, todos partem de verdades aceitas e sabidas: da própria linguagem básica utilizada por aqueles que estudam, ensinam e aplicam o Direito, bem como de certas normas representadas por essa linguagem. Como sair disso? A “episteme”, isto é, o conhecimento, está fundada na verdade. Ora, a verdade nessa hipótese é tautológica: aquilo que é aceito como tal. Ou, em outros termos, a verdade e o conhecimento por ela gerado estão assentados no consenso daqueles que os produzem (a verdade e o conhecimento). Esse consenso nasce no próprio seio da comunidade científica, e esta constrói seu conhecimento no embate — no sentido de troca de ideias e informações — com a área técnico- operacional: decisões judiciais, petições, pareceres, atos administrativos etc. Isso tudo a partir das normas jurídicas. Percebe-se, pela própria maneira de apresentar-se a produção do conhecimento científico, uma circularidade na produção. É mais do que isso; é uma circularidade complexa que envolve todos, simultaneamente. Não há nem uma cronologia, nem um ponto final. Ou, em outros termos, mesmo tendo-se iniciado um novo sistema constitucional — por exemplo, no Brasil, com a Constituição Federal de 1988 —, o marco inicial do conhecimento jurídico já vinha de antes. Vários conceitos tratados na Carta Magna já eram não só conhecidos, como esse conhecimento prévio passou a servir de elemento para o discurso do intérprete da Constituição. Da mesma maneira, a decisão em última instância do Supremo Tribunal Federal pode não ser o fim da discussão, já que a lei que a embasou pode mudar, e o próprio Supremo pode modificar sua posição. É algo muito complexo, o que nos levaria à inclinação pela tese de que tudo não passa de opinião. Porém, apesar disso, nasce desse entrelaçar de elementos um conhecimento jurídico
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