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Guias e Dicas
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Identidade do Anjo no 'supplices' do Cânon Romano, Notas de estudo de História

Este artigo examina a interpretação do anjo na oração 'supplices' da primeira oração eucarística da santa missa, chamada cânon romano. A autoria explora as três admissíveis interpretações sobre a identidade do anjo: cristo, espírito santo ou um ser espiritual criado por deus. Além disso, o artigo apresenta as opiniões de alguns padres sobre a função dos anjos na santa missa.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Carioca85
Carioca85 🇧🇷

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Baixe Identidade do Anjo no 'supplices' do Cânon Romano e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! 111 O Anjo do ‘supplices’ do Cânon Romano Resumo Neste artigo o autor se propôs a examinar a identidade do anjo na oração do ‘supplices’ (‘Nós vos suplicamos’) na primeira Oração Eucarística da santa Missa, chamada ‘Cânon Romano’. A pergunta é se se trata de Cristo mesmo como ‘Mensageiro’ de Deus Pai que leva o sacrifício para o altar do céu, ou se trata-se de uma creatura espiritual, um anjo, que participa na celebração litúrgica da Igreja. O autor foi até as origens da liturgia cristã, olhando orações litúrgicas da anitgüidade, textos dos Padres da Igreja e outras influências possíveis no desenvolvimento da Oração Eucarística em Roma. O primeiro capítulo apresenta os fundamentos bíblicos, judaicos e patrísticos da participação dos anjos na liturgia. De- pois veremos textos litúrgicos das liturgias oriental e ocidental, nos quais se menciona a atuação dos anjos e as diversas funções deles na liturgia cristã. Por fim, será dada uma análise geral do texto e uma interpretação da oração do ‘supplices’. No segundo capítulo o autor apresenta um número de teólogos, especialmente da Idade Média, mas também de tempos moder- nos, que dão a sua interpretação sobre o anjo, para descobrir a tradição litúrgica. Vamos arriscar uma interpretação clara e unívoca da oração com a ajuda dos trabalhos destes teólogos. Em conclusão, o autor apresenta alguns textos oficiais do Magistério da Igreja, i.é, o ensinamento dos Papas, o catecismo, orações e instruções litúrgicas, para ver com mais clareza como esta oração geralmente foi compreendida na Igreja. Summary In this article the author proposes to examine the identity of the angel in the ‘supplices’ prayer in the first Eucharistic prayer of the Mass, called the ‘Roman Canon’. The question is: could it be Christ himself, as a ‘Messenger’ of God the Father, who is taking up the sacrifice to the heavenly altar, or is it a spiritual 112 creature of God, an angel, who is participating in the liturgical celebration of the Church? The author went back to the origins of christian liturgy, looking at ancient liturgical prayers, texts of the Church fathers and other possible influences for the development of the Roman Eucharis- tic prayer. In the first chapter, the biblical, jewish and patristic foundations for the participation of the angels in the liturgy are offered. Then the author presents some liturgical texts from eastern and western liturgies, in which are mentioned the participation of the angels and their different functions in the christian liturgy. Finally, a general text analysis and an interpretation of the ‘sup- plices’ prayer are given. In the second chapter the author presents a number of theo- logians, especially from the Middle-Ages, but also from modern times, who give their interpretation about that “angel”, in order to discover the liturgical tradition. We will attempt a more clear and univocal interpretation of the prayer, using the work of these theologians. In conclusion, the author looks at some official texts of the Magisterium of the Church, that is, papal teachings, the catechism, liturgical prayers and instructions, in order to see more clearly, how that prayer generally has been understood. * * * Introdução Na liturgia da Igreja os anjos participam como liturgos e servos, para formar com os homens uma só comunidade de culto para a glória de Deus1. Os textos litúrgicos frequentemente mencionam os anjos, especialmente em determinados momentos da celebração eucarística. A questão que queremos tratar é a seguinte: Quem é o anjo que aparece na oração do ‘supplices’ do Cânon Romano, que leva a oferenda até o altar do céu? O texto menciona um anjo que exerce uma função litúrgica no sacrifício eucarístico. O texto latino diz assim: “Supplices te rogamus, omnipotens Deus, iube haec perferri per manus sancti angeli tui, in sublime altare tuum, in conspectu divinae maiestatis tuae,…” 1 Cf. Concilio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 8. 115 No Antigo Testamento, os anjos, como representantes de Deus, aceitam o culto dos homens. Essa característica se modificará no Novo Testamento (cf. Ap 22,8). Com a construção do templo, os Querubins são representa- dos como servos do santuário e realizam uma função sacerdotal na liturgia do céu: no templo encontravam-se dois Querubins (cf. 1R 6,23-28) que cobriam a arca da aliança, e em todas as paredes do templo – dentro e fora – encontravam-se Querubins (cf. 1R 6,29). Eles são os portadores de Deus na teofania (cf. 2Sam 22,11; Sl 18,11) e revelam a sua presença. A presença dos anjos indica que o culto na terra está relacionado com o culto no céu. Deus tem a sua morada no céu, onde estão os anjos, mas agora Ele a erigiu também no meio dos homens. Na Sagrada Escritura, observamos o convite dos anjos ao louvor de Deus, e eles mesmos oferecem esse louvor (cf. Sl 19,1s; 97,7; 103,20; 148,2; Jó 38,7; Ne 9,6); os anjos celebram o culto celeste; e finalmente, assumem a função de adorar Deus e interceder pelos homens. Ainda na Bíblia, os anjos assumem outras características (cf. Ex 25,18-20.22; 1R 8,6s), formam o trono de Deus (cf. 1Sam 4,4; 2Sam 6,2; Sl 80,2; 99,1) e indicam a presença da glória do Senhor. Na visão de Isaías (cf. cap. 6), os Serafins estão colocados ao redor do trono de Yahveh como exército celeste. No livro de Ezequiel (1,10-11), quatro Querubins, semelhantes ao fogo, com rostos de homem, de leão, de boi e de águia conduzem o carro do trono da glória de Deus. Deus está presente na glória dos seus Querubins. Os anjos apresentam as intenções dos homens (cf. Tb 12,12.15), e intercedem por eles diante o juiz celeste: cf. Zac 1,11-13; Jó 5,1; 33,23; Zac 3 (Josué). É sobretudo no livro de Daniel que encontramos uma grande multidão de anjos; eles estão ao serviço de Deus (cf. Dan 7,10). b) A função litúrgica dos anjos no Novo Testamento A figura dos anjos no NT está relacionada com o culto divino. Assim, São Gabriel se manifesta junto ao altar (cf. Lc 1,11), onde Zacarias está oferecendo o sacrifício de incenso. Gabriel lhe comunica que sua oração foi ouvida. São Paulo menciona os anjos que observam os apóstolos nas suas atividades missionárias (cf. 1Cor 4,9). Do mesmo modo estão presentes nas reuniões litúrgicas dos cristãos (cf. 1Cor 11,10) e vigiam a observân- cia de certas normas litúrgicas. O louvor que os anjos oferecem a Deus é perfeito; por outro lado, o homem não é capaz de falar em “línguas 116 angélicas” (cf. 1Cor 13,1) sem um dom especial da graça. Também São Pedro fala dos anjos que se inclinam (paraku,yai 1Pd 1,12) das alturas dos céus para poder participar, como é seu desejo, nos mistérios que se realizam na terra. A Carta aos Hebreus, escrita provavelmente depois do ano 70, ou seja, depois da destruição do templo, apresenta os anjos como “espíritos litúrgicos” (cf. Hb 1,14). O autor quer introduzir os cristãos de Jerusalém numa nova situação, indicando-lhes que viver o cristianismo é possível também sem a existência de um templo terreno e sem o culto de animais sacrificados. Não é necessária a reconstrução do templo, porque a Antiga Aliança já passou. O autor quer mostrar que a Nova Aliança é superior: Chegastes ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celeste, e aos muitos milhares de anjos, à universal assembléia e igreja dos primogênitos que estão inscritos nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados (Hb 12,22-23). O culto da Igreja é definitivo; nele está presente o culto celeste que Jesus oferece ao Pai e no qual os anjos participam. O livro do Apocalipse amplia esta compreensão do culto cristão. Os anjos exercem serviços litúrgicos (cf. os sete espíritos que ardem diante do trono - Ap 4,5; os quatro seres vivos que aclamam “santo santo santo” - Ap 4,8; as vozes de muitos anjos, que cantam o louvor - Ap 5,11). Os anjos apresentam diante de Deus as orações dos homens e intercedem por eles (cf. “a fumaça do incenso subiu com as orações dos santos desde a mão do anjo até diante de Deus” Ap 8,4). c) Aspectos angelológicos da liturgia judaica Os termos expressos na oração do ‘supplices’, encontram seu funda- mento no Antigo Testamento e na tradição judaica. O judaísmo conhece a oração do ‘sanctus’, onde se menciona também os anjos. Seja na ora- ção privada ou litúrgica, deseja-se a união com os seres celestiais. Um exemplo disso se encontra nas duas bênçãos que precedem a ‘Shema’ (a oração ‘escuta, oh Israel’). O ‘sanctus’ está intercalado no final da primeira bênção, onde diz: Bendito seja o Senhor que criaste os Santos (= os anjos)… que plasmaste os ministros… nas regiões celestiais… realizando a tua santa vontade. Todos elogiam e glorificam e proclamam santo o nome do rei… e dizem com temor: Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos, toda a terra está 117 repleta da sua glória! E os Ofanim e os santos Hayyot… elogiando dizem: Bendita é a glória do Senhor… De maneira semelhante se pede a comunhão com os anjos na oração da ‘Tefilla’ para os dias festivos (as 18 bênçãos) e em outras orações judaicas. Kurt Hruby5 descreve as diversas funções dos anjos no culto judaico. Começando com a parte bíblica, examina a seguir a influência apocalíp- tica da angelologia judaica e passa a tratar os anjos segundo a tradição rabínica. Afirma a respeito da participação angélica no culto divino, que os conceitos angelológicos, contidos na literatura judaica do Talmud e da Haggada, foram introduzidos na liturgia. Aparecem diversas categorias de anjos que entoam hinos de louvor. Assumem, além disso, a função de ser portadores do carro de Deus, são aqueles que levam as orações diante do trono de Deus e intercedem pelos homens. Hruby mostra que os anjos estão colocados nas esferas celestiais, acolhendo as orações daqueles que estão reunidos na terra. Como anexo ao seu artigo, Hruby apresenta uma série de orações ju- daicas, onde aparecem os anjos. Entre estas, encontra-se uma ‘intenção’, segundo a qual o arcanjo São Miguel oferece o incenso sobre um altar celeste: Portas do Zevul (= o templo ou a morada celestial), onde está erigido um altar e onde Miguel, o príncipe dos anjos, oferece o incenso, como o fez uma vez o sacerdote ricamente vestido, abram-se diante das súplicas do céu aos que são dolorosamente oprimidos, para que sua oração seja levada Àquele que está sentado sobre o trono do templo celestial6. Outros estudos sobre a liturgia angélica, celebrada pelos Essênios de Qumrán, foram realizados por John Strugnell7 e Carol Newsom8. Strugnell estuda os textos litúrgicos que foram usados para a celebração sabática pelo grupo dos essênios, com o título “a liturgia angélica dos sábados”, e analisa uma oração, na qual se invoca um grupo de sete anjos, que oferecem a Deus o seu louvor. O termo referido como ‘príncipe’ indica 5 K. hruby, Les anges dans le culte juif: AA.VV. Saints et sainteté dans la liturgie, Roma 1987, 145-165; 305-323. 6 K. hruby, ibid. 321. 7 J. Strugnell, The angelic liturgy at Qumran - 4Q Serek Sirot Olat Hassabbat, 19 «Supplement to Vetus Testamentum» 7, Leiden 1960, 318-345. 8 C.A. newsom, Songs of the Sabbath Sacrifice, Atlanta - Georgia 1985. 120 Tertuliano diz que seria muito irreverente sentar-se na igreja, “diante da face do Deus vivo, enquanto os anjos da oração estão ali de pé”17. Segundo Santo Ambrósio18, não há dúvida quanto ao fato de os anjos estarem presentes quando Cristo está presente e é imolado, referindo-se à celebração da missa. Teodoro de Mopsuestia apresenta os anjos como servidores que preparam os dons sobre o altar: “Vendo os diáconos que oferecem seu serviço no altar, nós contemplamos no espírito as potestades invisíveis em seu serviço, que assistem a esta liturgia inefável”19. Considera os diáconos representantes dos poderes invisíveis quando levam a hóstia para ser sacrificada, e diz ainda que são os anjos aqueles que colocam os dons sobre o altar para sua última consumação na Paixão. Teodoro vê a liturgia terrena como uma imitação da liturgia celeste. As duas liturgias se tornam uma só. Com respeito ao ‘triságio’, comenta Teodoro: “O sacerdote proclama que são os Serafins aqueles que fazem subir o louvor até Deus, como experimentou o profeta Isaías… Todos nós louvamos em união com os espíritos invisíveis”. Teodoro menciona também um paralelismo entre a liturgia terrena e a celeste: O sacerdote, por meio de sinais e símbolos... faz presente as realidades que se encontram no céu. É necessário que seu sacrifício seja imagem e semelhança do serviço que se realiza no céu. Se não tivéssemos a imagem das coisas celestes seria impossível ser sacerdote e exercer o ministério sacerdotal20. São João Crisóstomo21 (+ 407) refere-se aos anjos na missa na sua obra Sobre o sacerdócio. Também os menciona nas suas homilias. Assi- nalamos algumas de suas reflexões: Quando o sacerdote avança para o altar para oferecer a Deus o sacrifício incruento, anjos rodeiam o sacerdote; todo o santuário e o espaço que circunda o altar estão cheios de exércitos celestiais, em honra daquele que está sobre o altar... “Naquele momento vi de repente uma multidão de anjos – tanto quanto é possível ver anjos – vestidos de roupas resplandecentes, rodeando 17 Cf. In Luc., I,28: PL 2,623. 18 Cf. Comm. Luc. 1,12: PL 16,610. 19 Cf. Hom. Cat. XV,24. 20 Ibid. 21 Cf. Sobre o sacerdócio VI,4: PG 48,681. 121 o altar e, inclinando as cabeças, pareciam soldados formando-se na presença do rei”. E eu não tenho dificuldade em acreditá-lo. E outro me contou, já não como coisa sabida de terceiro, mas sim como lhe foi concedido ver e ouvir ele mesmo, como aos que estão para sair deste mundo, se com pura consciência tomaram parte nos mistérios da eucaristia, quando estão a ponto de expirar, os anjos lhes fazem a guarda por reverência daquele a quem receberam e os transladam da terra ao céu... cantamos com os Serafins que estão de pé, estendemos junto com eles as nossas asas22. E sobre a presença angélica: “Aqui está a mesa real; os anjos a servem; e o Senhor mesmo está presente”23. Desta maneira, nos é pedida uma pureza espiritual ao ir comungar: “Quanta pureza espiritual deverias ter ao comungar… se os anjos, contem- plando, temem a Deus e não se atrevem a olhar para o fulgor que se lhe emana, ao contrário de nós, que nos nutrimos com este sacramento!”24. Ou seja, segundo Crisóstomo, a liturgia terrena constitui uma espécie de reflexo visível e símbolo eficaz da liturgia celeste dos santos anjos. A unidade e harmonia das duas liturgias, a celeste e a terrestre, encontram sua principal expressão no prefácio da missa, quando a Igreja nos convida a nos unir com os Tronos e Dominações, os Querubins e Serafins, para cantar o louvor seráfico do ‘triságio’. São Gregório Magno (+ 604), que exerceu provavelmente uma forte influência na redação última do ‘supplices’ atual, explica nos seus Diá- logos: Qual fiel pode duvidar que, no mesmo momento da imolação, os céus se abrem à voz do sacerdote, que neste mistério de Jesus Cristo os coros angélicos estão ali presentes, que os seres superiores compartilham com os inferiores as suas prerrogativas, que os seres terrestres estão unidos com os celestes e que o visível forma uma só coisa com o invisível? 25 Por sua vez, o armênio Juan Mandakuni escreve num dos seus Dis- cursos: “Não sabes que no momento em que o Santíssimo Sacramento vem ao altar abrem-se os céus e Cristo desce; legiões de anjos voam do 22 Cf. Homilia in Serapion n.3: PG 56,138. 23 Cf. Homilia in Eph 1,3: PG 62,29. 24 Cf. In Mt. Hom. 82,4-5: PG 58,743. 25 Cf. Diálogos IV,58: PL 77,428ª. 122 céu à terra e rodeiam o altar onde está o Santíssimo Sacramento e todos ficam cheios do Espírito Santo?”26. 2) Os anjos na missa segundo Santo Tomás de Aquino Santo Tomás de Aquino, ao explicar as palavras de Jesus: ‘Seus anjos vêem continuamente o rosto de meu Pai que está nos céus’ (Mt 18,10), fala de uma só comunidade de anjos e homens (“una est societas ange- lorum et hominum”), formada de modo especial através da cooperação de anjos e homens27. O Catecismo (= Cat) 350, que cita Santo Tomás, lembra de tal colabo- ração: “Os anjos são criaturas espirituais que glorificam a Deus sem cessar e que servem ao seu plano salvífico com as outras criaturas: ‘Os anjos cooperam em toda obra boa que fazemos’”28. Esta cooperação realiza-se sobretudo na liturgia, e propriamente dentro da celebração da missa, porque ali os anjos e os homens participam de uma obra divina. Os anjos estão presentes nas diversas ações litúrgicas, porque acompanham Cristo: “Se os anjos estão presentes no cantar dos salmos, quanto mais estarão presentes na celebração da Eucaristia!”29, escreve o Doutor angélico, ao tratar dos “sacros mistérios”. Santo Tomás apresenta diversas razões por que os anjos nos acompa- nham na missa. Uma dela é devida à vitória de Cristo sobre seu inimigo: “Se os anjos assistiram o Senhor depois de suas tentações e vitória no deserto, muito mais lhe servirão depois de sua vitória definitiva, obtida no sacrifício da cruz, de modo incruento presente na Missa”.30 Os fiéis se encontram unidos intimamente com o sacerdote oferente e com o cordeiro sacrificado, porque Cristo e os cristãos formam uma unidade no Corpo Místico. Portanto, os fiéis estão unidos essencialmente ao sacrifício por um vínculo da graça. Assim, na Missa se realiza a obra da justificação e a mais perfeita ação de graças a Deus. Pela missa se constrói o Corpo místico de Cristo e se estabelece uma comunidade de 26 Cf. BKV, armenische Vaeter, II,226. 27 In Matthaeum, 18,10. 28 Cf. Suma teológica I,114,3 ad 3. 29 In 1 Cor 11,10. 30 Cf. In Matthaeum, 4,6. 125 2) As Constituições apostólicas Nas Constituições apostólicas encontramos uma versão muito antiga da oração eucarística (composta na Síria, por volta do ano 380, tendo como fonte várias versões antigas). Este texto menciona os anjos no prefácio na introdução ao ‘sanctus’. No número VIII,12,7 se faz menção ao título de Cristo-Mensageiro (Angelos) “o Filho, gerado antes dos tempos… Filho Unigênito, Verbo divino, Sabedoria vivente, Primogênito de toda criatura, Anjo do vosso grande conselho, vosso Sumo Sacerdote”35, certamente para exprimir que Cristo é o Enviado do Pai. No ‘post-sanctus’ (VIII,12,30), mais uma vez se faz menção dos anjos. No número 39 do mesmo capítulo, encontra-se a ‘epiclese sobre os co- municantes’. Depois da doxologia, apresenta-se as orações dos fiéis, onde aparece o ‘altar celeste’. No capítulo VIII,13,3, pede-se que Deus aceite os dons que são levados ao altar do céu (prosde,xhtai eivj to evpoura,nion autou qusiasth,rion). Interessante é a menção que se faz duas vezes de Cristo-Mensageiro. A primeira vez, em união com a geração do Filho de Deus e com referência a Is 9,6 (‘Anjo do grande conselho e sumo sacerdote’), e na segunda vez se fala do ‘servo Jesus, mensageiro (anjo) e príncipe, que adora o Pai’. Aqui, certamente se manifesta uma subordinação. 3) A liturgia de São Tiago Encontramos nesta oração eucarística a idéia epiclética, ou seja, o Espí- rito Santo santifica os dons eucarísticos que estão sobre o altar e santifica também os fiéis que participam da Eucaristia. Pede-se, portanto, ao Espí- rito Santo uma intervenção análoga a da encarnação do Verbo. Na oração podemos constatar que é o Espírito a santificar, consagrar, transformar e fazer com que Cristo esteja presente e conduza ao cumprimento sua obra salvífica. Depois se pede que a aceitação seja consumada sobre um altar celestial36. Os anjos são mencionados para introduzir o sanctus. 35 C. girAudo, ibid., 257. 36 Cf. F.E. brightmAn, ibid., I,50ss. 126 b) Textos litúrgicos da tradição ocidental 1) A Traditio Apostolica de Hipólito Na oração eucarística atribuída a Hipólito, encontramos o título an- gelos aplicado à pessoa de Jesus Cristo. Logo após o sanctus reza-se: “Damos-te graças, ó Deus, por vosso amado servo Jesus Cristo, que nos últimos tempos vós nos enviastes como salvador, redentor e mensageiro (a;ggeloj) da vossa vontade”37. Originalmente escrito em grego, é bem provável que tenha exercido influência para a redação das Constituições Apostólicas, apresentando o mesmo motivo. 2) O texto de Santo Ambrósio (+ 397) Uma interpretação do ‘Cânon Romano’, encontramos em De sacra- mentis, atribuído a Santo Ambrósio. De sacramentis não é propriamente um livro litúrgico, mas uma composição das catequeses mistagógicas do Santo. Entretanto, podemos presumir que na catequese se cita e transmite fielmente os textos litúrgicos. Portanto, damos a ela importante valor li- túrgico. O texto De sacramentis, une virtualmente o ‘Unde et memores’ e o ‘Supra quae’ do ‘Cânon Romano’, e diz: Ergo memores gloriosissimae eius passionis et ab inferis resurrectionis et in caelum ascensionis offerimus tibi hanc inmaculatam hostiam, ratio- nabilem hostiam, incruentam hostiam, hunc panem sanctum et calicem vitae aeternae. Et petimus et precamur, uti hanc oblationem suscipias in sublime altare tuum per manus angelorum tuorum, sicut suscipere dignatus est munera pueri tui iusti Abel et sacrificium patriarchae nostri Abrahae et quod tibi obtulit summus sacerdos Melchisedech38. Façamos a tradução portuguesa da segunda parte: “Pedimos e suplica- mos a vós que aceiteis esta oblação sobre o vosso altar celeste pelas mãos dos vossos anjos, da mesma forma que vos dignaste aceitar a oferenda do vosso justo servo Abel, o sacrifício de nosso patriarca Abraão e os dons que vos apresentou o sumo sacerdote Melquisedec”. A respeito da origem da liturgia ambrosiana, C. Callewaert se pergunta se ela terá sua origem no oriente siríaco, embora ela não possua a estru- tura de uma anáfora oriental. Tampouco foi redatada em Milão, visto que 37 C. girAudo, ibid., 271. 38 Ambrósio, De sacramentis, IV,6,27: PL 16,464. 127 possui muita semelhança com o ‘Cânon Romano’. Ao fazer a análise do texto, Callewaert conclui que o texto de De sacramentis deriva duma redação mais antiga do ‘Cânon Romano’. Possivelmente Santo Ambrósio fez uma tradução do grego, que era a língua litúrgica em uso, e que estava para ser adaptado ao latim no século IV. O importante nesta oração, para nossa interpretação, é que os anjos aparecem em plural. Alguns autores acreditam que Santo Ambrósio foi inspirado pela liturgia de São Marcos. 3) A liturgia mozárabe e galicana Não consideramos a liturgia mozárabe ou a liturgia galicana como fontes de inspiração para o ‘Cânon Romano’. Antes, cremos no contrário: a liturgia romana influenciou essas liturgias. Da mesma forma, as origens da liturgia mozárabe são anteriores à redação do texto de São Isidoro (+640), ou seja, houve influências mútuas com o Cânon Romano. Alguns autores contemplam uma possível influência de São Leão Magno. Mas não estamos em condições de reconstruir a história do texto mozárabe. Na liturgia galicana usa-se o ‘Cânon Romano’. Apresentar um quadro onde se veja claramente o desenvolvimento da história da liturgia hispânica é muito difícil, pois a maioria das suas fontes literárias é dos séculos VII e VIII. Entretanto, pela grande importância dada à participação dos anjos nestas liturgias, e pelas numerosas orações, encontramos um indício sobre como naquele tempo foi compreendido e interpretado o ‘anjo do supplices’. 4) Os textos da tradição mozárabe da Espanha Encontramos uma série de analogias dos textos da liturgia mozárabe com o Cânon Romano. A estrutura do Cânon se caracteriza geralmente pelo ‘inlatio’ (prefácio) – ‘post-sanctus’, ‘adesto’ (a consagração) e o ‘post pridie’. Nesta liturgia, Jesus Cristo não aparece propriamente como anjo, mas a ação do anjo se mostra muito unida à ação de Cristo, como, por exemplo, quando se pede a transformação da eucaristia. Invoca-se a intervenção angélica para a mesma consagração: “Assisti, oh bom Jesus Pontífice, ao nosso meio, assim como estivestes no meio dos vossos discípulos, e 130 Aceitai as lágrimas da nossa conversão no vosso sacrifício agradável”. Se o anjo é capaz de abençoar e santificar, é porque participa do sacerdócio de Cristo; não de modo ministerial para administrar os sacramentos, mas sim, para oferecer-se e para servir. Encontramos um texto interessante na festa da Ascensão, onde se invoca ao Espírito Santo como “anjo do sacrifício” que apareceu a Manué (alusão a Jz 13,20), o pai do Sansão, e também com referência ao sacrifício do Elias (1R 18,38). A oração atribui o fogo ao Espírito Santo. O anjo – ou ‘os anjos’ – aparecem em diversos momentos na oração eucarística. Pode se pensar, à primeira vista, em interpretá-lo mesmo como Cristo, outras vezes se distingue claramente o anjo de Cristo, como, por exemplo, onde se diz: “Iesu, sanctifica… ut sanctificata summamus per manus sancti angeli tui”. Aqui claramente não há uma identidade, porque a oração se dirige a Cristo. Existem ainda outras orações semelhantes no Missal mozárabe, que mencionam os anjos. 3. Análise do texto do ‘Cânon Romano’ a) A história textual do ‘Cânon Romano’ (análise diacrônica) Considerando as orações do Cânon Romano, à primeira vista pode-se pensar que certas orações foram inseridas partindo de diversas fontes, porque algumas petições se repetem, como, por exemplo: “Nós vos pe- dimos de aceitar estes dons”, “estas ofertas, vos pedimos que as acolhais com benevolência” e “vos pedimos, oh Deus, de santificar estes dons”. Alguns estudiosos acreditam que certas orações vêm de Hipólito e outras vieram das liturgias orientais. 1) Estrutura e origem do ‘Cânon Romano’ Para analisar uma anáfora, é importante examinar a sua estrutura. Há diversas estruturas entre as diversas famílias litúrgicas. Um exemplo: inicia-se a narração da história da salvação até chegar ao seu cume, que é a consagração eucarística; seguem-se as preces e termina com a doxologia. Entre os textos das orações pode-se observar um desenvolvimento durante os séculos, entretanto, a estrutura em si normalmente fica a mesma. 131 Cesare Giraudo43 fez um estudo sobre a estrutura das orações euca- rísticas no oriente e ocidente, e distingue entre as anáforas de ‘dinâmica anamnética’ e de ‘dinâmica epiclética’. Na primeira, prevalece aquela parte que faz memória dos fatos da obra realizada por Deus, sendo que o relato da instituição – consagração – se encontra inserida nesta parte anamnética. Na segunda forma, a oração é antes um pedido que se dirige ao Pai como epiclese, e o relato da instituição se encontra inserida nesta parte epiclética. Ora, a estrutura do Cânon Romano é diferente daquela da Tradição apostólica. Assim, segundo sua estrutura, a Traditio apostolica e as Cons- tituições apostólicas se classificam como anáforas de dinâmica anam- nética, enquanto o Cânon Romano, a liturgia de São Marcos e etc. são anáforas de dinâmica epiclética. ‘Epiclética’ quer dizer que o relato da instituição está inserido – por isso se chama ‘embolismo’ – entre a primeira epiclese – sobre os dons eucarísticos – e a segunda epiclese – sobre os comunicantes. O lugar onde se encontra a oração do ‘supplices’ seria o lugar da segunda epiclese. A estrutura do Cânon Romano fica assim: 1) Prefácio; 2) Sanctus; 3) Pós-Sanctus; 4) Primeira Epiclese (invocação sobre os dons); 5) Relato de Instituição (Consagração); 6) Anamnese (Lembrança); 7) Segunda Epiclese (invocação sobre os comungantes); 8) Intercessões (vivos e defuntos); 9) Doxologia.44 Enquanto em estudos anteriores sobre a história do Cânon Romano, A. Baumstark e P. Drews pressupunham uma composição do Cânon Romano com diversos elementos oriundos inicialmente da Tradição apostólica, Luis Bouyer não aceita tal evolução. Ele escreve que é muito inverossímil que a liturgia de Hipólito pudesse ser a fonte para a liturgia romana, mesmo se se fizesse nela uma mudança total. Poderia aque- la ter sido a causa para gerar a liturgia romana atual? Ficaria ausente não somente sua estrutura, mas também expressões particulares, deslocamentos que viriam de corpos estranhos. Pelo menos a partir de São Gregório, o Cânon Romano é típico da liturgia romana. Se a liturgia romana tivesse sido, nos séculos II ou III, aquela de Hipólito, deveria ter acontecido uma 43 C. girAudo, Num só corpo. Tratado mistagógico sobre a eucaristia, São Paulo 2003. 44 Cf. C. girAudo, ibid., 252. 132 mudança muito radical… e isto numa igreja que mais que todas as outras se distinguiu pelo ser conservadora45. Embora não conheçamos completamente o Cânon Romano antes de São Gregório (Sacramentario Gelasiano n.715), temos pontos de referência a esse respeito. De Sacramentis data do século IV. Este texto mostra a estrutura do atual Cânon Romano, e, claramente se vê, não possui nada em comum com o texto de Hipólito. Supõe-se que Roma não tenha assumido o texto de Santo Ambrósio, antes, é mais provável que Ambrósio tenha recebido o texto de seu amigo, o Papa São Dâmaso, e seria, então, como que um reflexo da liturgia romana daquela época. Portanto devemos renunciar a tais teorias e idéias de deslocamento, metamorfose e composição da liturgia romana, como alguns estudiosos pensaram. Luis Bouyer considera a liturgia de Alexandria como verda- deira fonte para o Cânon Romano. Alexandria era uma metrópole muito unida a Roma, e talvez por isso o rito alexandrino apresente os mesmos elementos, embora numa ordem diversa. Não encontramos somente uma semelhança de estrutura, mas também das expressões usadas, de forma que a liturgia alexandrina se apresenta como um estado arcaico do Cânon Romano. Estamos de acordo com Bouyer quando afirma: Entre as formas solidamente testificadas da eucaristia romana e as da eu- caristia alexandrina, são muitas as analogias de conteúdo, de estrutura e até de semelhanças de expressão... Na liturgia grega, chamada de São Marcos, clássica durante muito tempo na Igreja de Alexandria, e da qual a liturgia copta, chamada de São Cirilo, não passa de uma tradução – da qual se compreende muito bem com quais procedimentos tivesse sido possível passar de um estado da Eucaristia, aquela do Egito…, cujos princípios se encontram em outras liturgias orientais; com estas se pode reconstruir da liturgia judaica46. Se o Cânon Romano tiver tal origem, pode-se pensar que o ‘anjo do supplices’ não provém da expressão “Jesus Cristo… mensageiro da sua vontade” de Hipólito, mas antes das expressões angélicas da liturgia de São Marcos. Bouyer segue comparando as duas liturgias parte por parte e escreve sobre a menção dos anjos: 45 L. bouyer, Eucaristía. Teología y espiritualidad de la oración eucarística, Barcelona 1969, 196-197. 46 L. bouyer, ibid., 200-201. 135 pelo papa Leão Magno (440-463) e também pelo papa São Gelásio (492- 496) até a reforma gregoriana do papa Gregório Magno (+ 604). Assim o confirmam vários autores. O ‘Cânon Romano’ se formou no fim do século IV, depois de a liturgia romana ter passado da língua grega à língua latina, o que provavelmente aconteceu sob o pontificado do papa Dâmaso (366-384). Desde o tempo de São Gregório Magno não foram feitas mais mudanças relevantes. 2) A natureza de uma epiclese Para antecipar o argumento de que possivelmente o anjo do ‘suppli- ces’ poderia ser o Espírito Santo, veremos aqui brevemente a natureza de uma epiclese. A palavra grega ‘epíklesis’ significa simplesmente ‘invocação’. In- voca-se a Deus para pedir-lhe que santifique ou transforme. Invoca-se a força transformadora do Espírito Santo, por exemplo, sobre a água batismal, sobre os santos óleos e sobre os dons eucarísticos. Em muitas anáforas eucarísticas (por exemplo, na oração eucarística de Serapión – 350), pode-se distinguir uma epiclese antes do relato da instituição para pedir a transformação dos dons eucarísticos de pão e vinho; e a epiclese depois da consagração, onde se pede a transformação e santificação dos fiéis – ou da Igreja como corpo místico –, para que ‘todos formemos um só corpo em Cristo’. No ‘Cânon Romano’ pede-se a transformação dos dons no ‘quam oblationem’, enquanto o sacerdote, com o gesto de estender as mãos sobre os dons, faz ênfase ao pedido da oração, para que Deus envie o seu Espírito sobre estes dons. A oração do ‘supplices’ tem certamente a característica da segunda epiclese. Seu caráter epiclético refere-se a uma forma de santificação, na qual se faz se pede a DEUS onipotente que a oferta da Igreja seja aceita (levada ao altar do céu), a graça de comungar dignamente o corpo e o sangue de Cristo, que a plenitude da bênção do céu chegue aos participantes (de modo que os fiéis sejam transformados) e, ainda, que o sacrifício da Igreja seja santificado e unido ao sacrifício de Cristo. Desta maneira, a Igreja reconhece a suprema soberania, trans- cendência e liberdade de Deus, que distribui seus dons segundo a sua infinita misericórdia. Assim se designa e explica a fórmula do ‘supplices’ como epiclese de comunhão: A primeira parte da oração insiste na idéia de oferecimento da vítima; a segunda, por sua vez, implora a ação de Deus para que a 136 comunhão seja eficaz para os que vão receber a vítima consagrada e oferecida. Podemos fazer a divisão do supplices seguindo o comentário de Fran- cisco Sánchez: “Consta de três partes, perfeitamente distribuídas, e de uma conclusão. A primeira parte começa por ‘supplices te rogamus’, a segunda pelo ‘ut quotquot’, e a terceira por ‘omni benedictione’”50. 1ª parte: a apresentação da oferenda, pelo anjo, diante do altar do • céu; 2ª parte: a participação, como comensais, no banquete eucarístico;• 3ª parte: o estar repletos de graça e de dons do céu.• B. Botte oferece uma divisão diferente. Embora não se mencione ex- plicitamente o Espírito Santo, nem por isso deixa de ser uma oração epi- clética, pois, comparando o ‘Cânon Romano’ com a anáfora de Hipólito, adverte-se que a epiclese da comunhão segue imediatamente à oblação. É verdade que a anáfora de Hipólito menciona expressamente o Espírito Santo, mas isto não impede que o ‘Cânon Romano’ concorde com ela no que é substancial: pedir que a comunhão seja salvificamente proveitosa para os fiéis, graças à ação divina. O gesto de inclinação profunda que acompanha o ‘supplices’ é muito antigo e reflete a atitude de profunda humildade que se adota ao oferecer a vítima. O sinal da cruz que o sacerdote traça sobre si mesmo introduziu-se ao final da Idade Média e quer sublinhar com uma ação exterior a súplica da bênção celeste. Ferdinand Probst escreve que não há dúvida da presença de uma epi- clese na tradição romana. Probst, ao estudar a questão, argumenta com o testemunho do Papa Gelásio quando escreve a Elpídio: “Deste modo, para a consagração dos divinos mistérios, vem invocado o Espírito celestial, para estar presente quando o sacerdote invocar sua presença”51. Também o Sacramentario Leoniano (ou Veronense) apresenta a epi- clese para a consagração dos dons eucarísticos, como mostram algumas orações. Sempre a Igreja foi consciente da necessidade da assistência do Espírito Santo para qualquer ato litúrgico. 50 F. sánchez AbellAn, ‘Canon romano’: fuentes y paralelos literários y comprobantes arqueológicos, Salamanca 1974, 124. 51 F. Probst, Die abendländische Messe vom fünften bis zum achten Jahrhundert, 1896, 179. 137 3) O ‘supplices’ nos antigos sacramentários O sacramentário mais antigo que se conhece, o Veronense (ou Leo- nianum, por causa do Papa Leão Magno - 440-461), com data entre os anos 558 e 590 e que precede a reforma gregoriana, não contêm o texto da anáfora do ‘Cânon Romano’. No período a seguir ao Papa Gregório Magno, no Sacramentario gela- siano antigo (entre 700-715), a oração do ‘supplices’ aparece pela primeira vez, embora com ligeiras variações: “Supplices te rogamus, omnipotens Deus, iube haec perferri per manus angeli tui in sublime altare tuum in conspectu Divine maiestatis tuae, ut quotquot ex hac altaris participatione sacrosanctum filii tui corpus et sanguinem sumpserimus, omni benedic- tione caelesti et gratia repleamur”. No sacramentário gregoriano-hadrianeo (entre 772-795) encontra-se também o atributo ‘santo’ no ‘per manus sancti angeli tui’. Do século VIII até os nossos dias, o texto do ‘supplices’, não foi mais modificado. O Missal tridentino – seja a edição típica do ano 1570 ou sua última edição, de 1962 – manteve o mesmo texto, bem como o Missal em uso, depois da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II – seja na sua primeira edição, de 1970 ou na terceira de 2002. A oração é acompanhada de vários gestos do sacerdote. No rito triden- tino, o sacerdote traçava também o sinal da cruz sobre o corpo e sangue e beijava o altar. Após a reforma do Concílio Vaticano II, permaneceu o gesto da inclinação profunda e o sinal da cruz do sacerdote sobre si mesmo. b) Análise sintática A seguir, consideraremos o significado dos diversos conceitos e a estru- tura gramatical que aparece na oração, para que possamos nos aproximar uma interpretação possível, já que um resultado definitivo ainda não possa ser formulado, tendo em conta os comentários e outros critérios. a) O termo ‘supplices’ aparece 74 vezes no Missale Romanum (= MR) de 2002, com os seguintes predicados: Te supplices exoramus pro…• supplices te, Domine, deprecamur, ut• supplices te rogamus, omnipotens Deus• supplices invocemus, ut• 140 a celebração da última ceia de Jesus (um fato histórico, do qual se faz • memória), o sacrifício cruento da cruz de Cristo,• o ‘cordeiro de Deus’, a humanidade de Cristo, • a intercessão, que Cristo glorioso oferece no céu,• a oração que a Igreja oferece, especialmente o ministro sacerdote como • sacrifício racional, as orações e sacrifícios dos fiéis presentes,• as orações dos defuntos e dos Santos no céu,• as próprias orações dos anjos que participam.• c) Perferri: A palavra é a forma do infinitivo passivo presente do verbo ‘perfero’, que se pode traduzir por: “que seja levado”. O termo latino ‘perfero’ pode significar ‘levar até a meta’. Não é somente um transportar físico, já que o verbo pode igualmente significar: anunciar, entregar ou executar. Aqui, o anjo leva o sacrifício com toda sua força verbal até a presença do Onipotente. À tradução literal poderia corresponder a pala- vra grega komi,zw que tem diversos sentidos, como o de transportar algo, ou cuidar, cultivar ou transformar algo. Em termos bíblicos, poderia se pensar em outra palavra grega: prosanaferon, que está em Tb 12,15, quando Rafael diz: “Eu sou Rafael, um dos sete santos anjos, os que levam as orações dos Santos, e que, entrando, estão diante da glória da santa majestade do Senhor”. Alguns códices dos LXX usam esta palavra em Tb 3,16; onde se diz que a oração foi escutada por Rafael (por Deus). Em Tb 12,12 se diz que o anjo levava a ‘memória da oração’ (prosh,gagon to. mnhmo,sunon th/j proseuch/j) de Tobit. Isto pode significar que os anjos recebem a oração dos homens, que unem à sua própria oração que apresentam diante de Deus. Trata-se da ‘memória’ daquilo que Tobit tinha pedido antes. O texto de Ap 8,3 é diferente, já que ao anjo “lhe deram muitos per- fumes, para que os oferecesse junto com as orações de todos os Santos, sobre o altar de ouro colocado diante do trono de Deus”. Por esse motivo não vemos o supplices como uma oração de incenso. ‘Levar um sacrifício’ não é o mesmo que ‘ser sacrifício’ ou ‘sacrifi- car-se’. Embora toda obra divina ‘ad extram’ se atribua às três pessoas divinas, o sacrificar refere-se ao Filho, o santificar ou o transformar se pode atribuir (apropriar) à pessoa do Espírito Santo. Os anjos, como 141 criaturas, não são agentes principais. A eles corresponde o colaborar, o que corresponde mais ao termo ‘levar’. d) per manus sancti angeli tui Normalmente, as pessoas trabalham usando suas mãos. Certamente se deve interpretar ‘as mãos’ do anjo de maneira metafórica. Pode-se pensar nas mãos de Cristo ou do sacerdote, entretanto, o anjo, como ser espiritual, de alguma maneira usa a sua capacidade agente para exercer a sua influência espiritual sobre o sacrifício. Algumas traduções oferecem o singular “pela mão”. Em latim en- contramos a preposição “per” com acusativo. A palavra “manus” é um acusativo plural (o dativo seria ‘manibus’), mas possui um sentido dum ablativo instrumental: ‘por meio das mãos’. No grego, onde não existe o ablativo, o instrumental é expresso pelo dativo. Segundo o sentido bíblico, em grego é usada a forma dativa sin- gular, por exemplo, em At 7,35: su.n ceiri. avgge,lou (pela mão do anjo). Também em Gal 3,19: diatagei.j diV avgge,lwn evn ceiri. mesi,tou, a ‘mão do mediador’ indica simplesmente o seu instrumento para a promulgação da lei. Angeli é a forma do genitivo singular de “angelus”. A palavra “anjo”, em seu significado de ‘mensageiro’, é uma palavra genérica e não se refere diretamente a uma pessoa determinada. Se o anjo fosse Cristo, seria de se esperar que fosse especificado por um atributo, por exemplo: “que o vosso ‘Enviado, o Filho’ leve isto (esta oferenda) para o altar celestial”, ou “que o vosso Mensageiro Jesus leve as nossas oferendas ao altar celestial”. A intervenção do anjo não pode ser tirada do seu contexto. Não é que o anjo, por si mesmo, se determine a fazer algo que corresponde a Deus, mas, por sua parte, Deus pode dispor uma das suas criaturas, para que leve as oferendas dos fiéis. A denominação anjo já indica que é enviado. A forma verbal do genitivo singular “angeli tui” pode-se traduzir “do teu anjo”, ou também se pode admitir a forma indeterminada “de um dos teus anjos”. e) In sublime altare tuo: no livro do Apocalipse aparece um altar no céu. Antes, entretanto, devemos considerar as diversas interpretações para, então, dar uma explicação. O adjetivo “sublime” realça o altar de Deus; indica a altura, idéia que encontramos na ‘majestade’ da frase seguinte. Não indica tanto uma superioridade material, mas moral e espiritual. Se 142 o Cânon fala que o anjo leva este sacrifício, isto não altera em nada o sacrifício de Cristo, mas simplesmente o transporta para onde está Deus com os anjos. Não é um transportar através do espaço físico. Poderia significar: que o faz para que os efeitos do sacrifício de Cristo se estendam sobre • o mundo dos anjos (porque eles desejam contemplar e conhecer mais o mistério de Cristo – cf. 1Tim 3,16 e 1Pd 1,12), que o faz para que os anjos mesmos participem mais plenamente no • sacrifício de Cristo, unindo-se eles mesmos ao sacrifício de Cristo. Deus Pai está presente no altar da terra como também no altar do céu, por isso não há necessidade de levar primeiro o sacrifício ao céu para poder apresentá-lo ao Pai. f) In conspectu divinae maiestatis tuae: Deus olha a oferenda da Igreja. Estamos diante de uma pessoa divina, personificada por um rosto, em harmonia com o conceito grego de pessoa, pro,swpon. O rosto é a parte mais espiritualizada do corpo humano, que foi escolhida para poder falar em uma forma antropológica de Deus. O termo “in conspectus” pode significar: à vista, diante os olhos, ao fazer-se visível, aparecer, olhar (espiritual), diante da face. g) Ut… ex-hac altare participatione: Os fiéis não recebem o corpo e o sangue de Cristo do ‘altar sublime’ no céu, mas sim do altar aqui embaixo na terra, indicado pelo pronome demonstrativo “hac”. Segundo o Cat 1383, o altar “representa os dois aspectos de um mesmo mistério: o altar do sacrifício e a mesa do Senhor, e isto, tanto mais porque o altar cristão é o símbolo do próprio Cristo”. h) Sacrosanctum corpus et sanguinem sumpseriums: refere-se à comunhão dos fiéis, embora indique também os efeitos escatológicos que este sacramento causará em nós, ou seja, a participação no banquete celestial. Na oração ‘unde et memores’ achamos abundância verbal para realçar as qualidades da hóstia: ‘puram, sanctam, immaculatam, … sanctam et immaculatam’. O ‘supplices’ reduz a um só adjetivo: “sacrosanctum”. i) Omni benedictione caelesti et gratia repleamur: O verbo repleto, com o sentido figurado e espiritual, é encontrado na tradição romana. O substantivo fala de uma bênção, sem especificar de quais bens se trata, embora o adjetivo ‘caelesti’ nos situe na esfera do espiritual e so- brenatural. 145 (do santuário), o povo está fora e ora com ele, e, para confirmar suas palavras, o povo responde com o Amém”.58 Concluindo, A. Sage59 assinala que, embora ao pronunciar as pala- vras da instituição, o sacrifício da Missa é aceito santo e agradável, esta aceitação se manifesta em nós quando a hóstia da nossa oblação aparece transfigurada pelo fogo do Espírito Santo, levada pelo ministério do anjo para o altar celestial, unido plenamente ao corpo e sangue vivificante de Cristo. Num outro texto, o bispo de Hipona fala sobre a participação dos anjos durante o sacrifício: “Os santos anjos não querem que nós sacrifiquemos a eles, mas Àquele do qual também eles conheceram ser sacrifício co- nosco… Porque juntos com eles formamos uma única cidade de Deus”60. Odo Casel, interpretando este texto, diz que os anjos participam da história da salvação; eles ficam a disposição de Deus e lhe servem na Igreja. Tam- bém eles se oferecem ao Pai por meio de Cristo, que é também o rei dos anjos. Eles são os grandes liturgos-diáconos na história da Salvação.61 A seguir, Casel apresenta outra citação de Santo Agostinho: “Quando sacrificamos, conhecemos que se deve o sacrifício visível não a outro que Àquele, cujo sacrifício invisível devemos ser nós em nossos corações. Então, segundo as suas possibilidades, nos favorecem, se regozijam co- nosco e nos ajudam os anjos e as virtudes superiores, mais poderosas em bondade e piedade”.62 Santo Agostinho distingue o sacrifício visível da Eucaristia e o sacrifí- cio invisível do coração, que somos nós mesmos. Celebra-se uma liturgia digna quando os dois estão unidos. Para esta finalidade, invocamos os santos anjos e os mencionamos na liturgia, já que participam do culto sa- grado como diáconos e a suas orações e seus cantos unimos os nossos. Concluindo, podemos atribuir a Santo Agostinho uma interpretação angelológica sobre a nossa questão, já que parece que ele conhece a oração do ‘supplices’ e tenta dar uma explicação sobre a participação dos anjos na Missa. 58 Cf. Contra Epist Parm II,14: PL 43,59. 59 A. sAge, Saint Augustine et la priere du cânon ‘supplices’, Revue dês études byz- antine 11, 1953, 265. 60 De civit Dei X,7. 61 O. cAsel, Das Mysterium der Ekklesia, Mainz 1961, 119. 62 De civit Dei X,19. 146 2. Interpretações do ‘supplices’ na Idade Média Apresentamos as opiniões de alguns autores medievais que em parte foram objeto de estudo do beneditino Bernardo Botte63. Trataremos de expô-las cronologicamente. Os estudos indicam que os primeiros intérpretes do Cânon da missa não se preocupavam muito com o ‘supplices’. Na exposição da missa de um autor desconhecido, por volta do século IX, aparece uma frase explicativa que, entretanto, não é mais clara que a própria oração: “Dignai-vos, oh Pai celeste, pedimos-vos humildemente, que a nossa oferta, que pode ser vista sobre este altar, seja levada pelas mãos do vosso santo anjo para aquele altar sublime, diante do qual está vossa divina majestade, que os nossos olhos não podem ver, por esta oferta não ser material, mas espiritual”64. Aqui, há a distinção de dois altares, um visível e o outro invisível. O autor toma a oração no seu sentido literal, sem se preocupar com a questão. Interpreta-a não como um pedido de consagração, mas sim como uma oração de oblação. Sobre a natureza e personalidade do anjo ele propõe o seguinte: “pede-se que o sacrifício, oferecido sobre o altar visível, consagrado pelas mãos do sacerdote, seja recebido pelo anjo que o assiste levado pelas suas santas mãos ao sublime altar de Deus, presença da paterna majestade, que nenhum olho viu e nenhum ouvido ouviu”. Trata-se, portanto, de um anjo que assiste ao sacrifício. Não se menciona nada de uma epiclese do Espírito Santo. O autor atribui a con- sagração à ação do Espírito Santo, mas a oração do ‘supplices’, ele a vê num sentido diferente. Rabano Mauro (+ 856), na sua obra Liber de sacris ordinibus, apre- senta esta mesma explicação. Mas, em discordância da anterior, ele consi- dera todo o Cânon como uma única epiclese. Sobre o ‘supplices’ faz uma exortação: “Pensemos o que é para nós este sacrifício, onde completando com o nosso sofrimento, o Filho unigênito é imitado. Qual fiel pode duvidar que na hora do sacrifício, à voz do sacerdote, os céus se abrem, os coros dos anjos assistem…”65. Esta ultima frase, que Rabano aplica para comentar o ‘supplices’, é copiada de São Gregório Magno, já citada. Provavelmente também Gregório a tinha considerado neste contexto. 63 B. botte, L´ange du sacrifice et l´épiclèse de la messe romaine au moyen age, em: Recherches de théologie ancienne et médiévale I, 1929, 285-308. 64 B. botte, L´ange du sacrifice, 287. 65 Cf. PL 96,1496. 147 Para Amalário de Metz66 (+ 850), que interpreta a Missa dum modo alegórico, o ‘supplices’ é como um pedido de aceitação do sacrifício. O sacerdote pede que a presente oblação seja aceita. A Igreja crê que o sacrifício que foi levado pelas mãos dos anjos é apresentado diante do olhar de Deus e é ouvido aquilo que foi proferido pela boca humana. Floro de Lyón67 (+ 860) apresenta alguns exemplos bíblicos para de- monstrar a presença dos anjos no sacrifício. Diz que, na Eucaristia, Cristo é realmente assistido pelos anjos. Floro trata de explicar o ‘altar do céu’, e logo dá uma interpretação da oração. O altar sublime é, para ele, como um altar espiritual e inteligível, rodeado pelas criaturas racionais, os anjos e os homens. Ali se realiza a oração, a oblação e a sagrada consagração de um modo muito mais maravilhoso, seja pelo ministério dos anjos, seja pelas súplicas dos que ali oferecem diante do olhar da majestade divina, no momento da imolação. Floro não vê uma epiclese no ‘supplices’. Ao contrário de seu ad- versário Amalário, Floro afirma que os anjos rodeiam Jesus Cristo no momento da consagração. Não diz nada além disso, nem especifica qual seja sua ação. Com Pascasio Radberto68 (+ 859) muda o aspecto. Em primeiro lu- gar, ele fala da necessidade de uma purificação interior, para não receber indignamente o corpo de Cristo, que é levado para o altar do céu através da consagração. Aprofunda, além disso, a questão do modo da presença de Cristo na eucaristia. À pergunta sobre como as oferendas são levadas até o altar do céu que estão nas mãos do sacerdote, Pascasio responde: Compreende que isto se faz de modo espiritual, não é localmente nem materialmente levado à presença da divina Majestade. Portanto, reflete se algum corpo pode estar no alto, com a substância do pão e do vinho, que é eficazmente e totalmente transformado na carne e sangue de Cristo… Não penses que o altar, onde o supremo sacerdote Cristo assiste, seja diferente do teu próprio corpo, pelo qual tu ofereces a Deus Pai os votos e a fé dos fiéis; porque se o verdadeiro corpo de Cristo é tido como aquele altar no 66 AmAlArio de Metz, De ecclesiasticis officiis IV,35: PL 105,1142. 67 Floro de Lyon, De expositione missae: PL 119,59-60. 68 De Corpore et sanguine Domini, 8: PL 120,1286. 150 Encontramos uma série de autores muito criativos em produzir novas interpretações: Heriger de Lobbes (+ 1008) segue Pascasio e sublinha a unidade do corpo de Cristo. Repete o que já dizia São Gregório Magno: “Verdadeira e firmemente se deve acreditar que no mesmo momento da imolação, à voz do sacerdote, os céus se abrem e, pelo ministério dos anjos, é levado ao altar sublime o mesmo Cristo, pontífice e hóstia, para que, pelo contato com Ele, se façam todos um”.74 Um século depois aparece Odón de Cambrai (+ 1113), que, seguindo a linha de Pascasio, pronuncia-se contra uma transferência local, que Remigio tinha defendido: “Não é transferido de lugar para que do pão se faça carne; é transferido do altar para o céu, de modo que o pão seja unido a Deus. Pelo fato de Deus estar em todo lugar não é necessário que se faça uma mudança do lugar para que o pão feito carne seja unido a Deus”.75 A novidade é que Odón apresenta a idéia de que o sacerdote oferece os votos, os sacrifícios dos fiéis mediante o corpo de Cristo: Assim pedimos que por esta oportunidade de Cristo, sejam levados os nossos votos pelas mãos do anjo, para que os bons anjos profiram bons votos… O que é levar a hóstia ao altar celestial, senão colocar a ovelha sobre os ombros do Pastor? ... Diariamente o Verbo de Deus atrai a si os fiéis pela participação no seu sacrifício. O Verbo de Deus é o altar sublime ao qual oramos, pedindo que a hóstia seja levada à presença de Deus e que por ele sejamos introduzidos no céu”. A interpretação parece um pouco mística ao fazer uso da imagem do Bom Pastor, que introduz aos fiéis no céu durante a celebração dos santos mistérios. Pedro Lombardo76 (+ 1160) relaciona o ‘supplices’ com a consagração e aplica o texto para sustentar sua tese de nulidade da eucaristia cele- brada pelos hereges: “Neste caso, o anjo não vem, e tampouco se pode denominar missa. Pois, como este mistério é abusado pelos hereges, o anjo do céu não pode ser enviado para consagrar a oblação”. Mesmo que Lombardo esteja se referindo à consagração, parece que ele não relaciona o anjo com Cristo, porque continua explicando: “Quia sancti angeli, qui 74 De Corpore et Sanguine Domini: PL 139,187. 75 Expositio in canonem missae: PL 160,1066-1067. 76 Cf. IV Sent. d. XIII c. 1. 151 huius mysterii celebrationi assistunt, tunc non adsunt quando haereticus hoc mysterium temerare praesumunt”. O abade cisterciense Isaac de Stella (+ 1169) tem parecer diferente. Diz que o sacrifício chegará a sua consumação, apenas por meio do ‘supplices’: No primeiro grau, que corresponde ao sacrifício do altar do holocausto do templo antigo, oferecemos o pão e o vinho, com um coração contrito, como símbolo da própria vida; no segundo grau, que se compara ao sacrifício do incenso do altar de ouro, oferecemos o corpo e o sangue do Senhor; e, no terceiro grau, que corresponde ao santíssimo, une-se nosso sacrifício, por meio das mãos do anjo, ao de Cristo glorificado no céu e, desta maneira, o sacrifício chega à sua consumação77. A petição do sacerdote se refere ao fato de que pelas mãos invisíveis dos anjos, próprio do seu ministério, o sacrifício é levado ao céu para unir-se ao corpo de Cristo. Outros autores vêem no ato de transportar o sacrifício ao altar celestial um acontecimento real, pelo qual o sacrifício chega a sua consumação. Tal ação se pede mediante o ‘supplices’. Por influência da liturgia galicana, vários autores consideram esta oração como uma espécie de epiclese. Por esta razão, o anjo é considerado não um anjo criado, mas o mesmo Cristo que recebe nossas oferendas e as coloca sobre o altar celeste como “magni consilii angelus” (cf. Is 9,6). Este pensamento é repetido especialmente pelos exegetas do século XII. Surge esta nova interpretação: O anjo do sacrifício é o próprio Cristo. Ivo de Chartres (+ 1117) explica: “Quem é este anjo, senão o Anjo do grande conselho? Com as próprias mãos… mereceu ascender e levar ao altar sublime, que está à direita do Pai, para interceder sempre por nós”.78 Entretanto, permanece a questão de que a idéia de ‘Cristo-Mensageiro’ pudesse fazer desaparecer a idéia de Cristo-altar. Esta interpretação cris- tológica também é apresentada por Estevão d´Autun79 (+ 1136). Ele diz que não é Cristo quem ascende por meio de uma mudança de lugar, mas é a nossa devoção que é levada pelas mãos do santo anjo, que é o próprio 77 Cf. Epistola de officio Missae: PL 194,1894-1895. 78 Sermo V: PL 162,557. 79 Cf. Tractatus de sacramento altaris: PL 172,1298. 152 Filho. Se o mesmo Cristo for o anjo que leva as nossas orações, então conclui-se que já não se trata de uma consagração. Hugo de São Victor80 (+ 1141) considera que se trata do anjo cus- tódio do sacerdote: “pede-se pelas mãos do anjo, que evidentemente é seu custódio, … o sacrifício… entendemos que este coopera na nossa devoção. Coopera enquanto ora por nós e nos sugere bons pensamentos”. Mais tarde, Hugo não se mostra tão seguro e escreve: “Ou se pode trocar o singular pelo plural, anjo por anjos”, anexando o comentário de São Gregório Magno, que já citamos. Honório de Autun (+ 1150/60) escreve: Anjo significa mensageiro. Cristo mostrou-se o Anjo do grande conselho, quando o conselho do Pai, pelo Filho, anunciou a redenção deste mundo. O altar sublime na presença de Deus é Cristo à direita do Pai. Sobre este altar, a Igreja oferece as ofertas espirituais e Deus recebe os votos dos fiéis e os sacrifícios de justiça. Este anjo conduz aquele sacramento ao altar sublime, enquanto intercede por nós ante a face de Deus81. Também Sicard de Cremone (+ 1215) defende estas duas idéias: “Este é o anjo do grande conselho,... o altar do céu na presença de Deus é Cristo crucificado, sentado à direita do Pai. Depois, o anjo leva este sacramento até o altar do céu, diante da presença de Deus e, mostrando as feridas, intercede ao Pai por nós, que recebemos este sacramento”82. Honório diz o mesmo, acrescentando uma expressão do pseudo-Gregório: “O levar o corpo de Cristo deve ser entendido da seguinte forma: a igreja militante é associada à igreja triunfante”. Pedro de Poitiers (+ 1215) diz que o ‘haec’ não é somente a Eucaristia. Refere-se acima de tudo à Igreja: “O corpo, que é a Igreja, é levado até o altar celeste, ou seja, associa-se o corpo de Cristo à presença da divina majestade”83. Importante é a união entre o que está aqui embaixo com o que está lá no alto. A isto, Prevostino de Cremone acrescenta: “O milagre maior não é tanto o fato de seu corpo lhe ser associado, mas ser levado pelas próprias mãos de Cristo”. Prevostino rigorosamente prefere o sentido literal às interpretações complexas. Em vez de pôr Cristo no lugar do anjo prefere 80 Cf. De officiis ecclesiasticis, 1.II, c. 34: PL 177,432-433. 81 Gemma animae, I.I,106: PL 172,579. 82 Mitrale III,6: PL 213,132. 83 Líber Sententiarum V,12: PL 211,1251-1252. 155 ‘missa’, já que o sacerdote ‘envia’ a Deus suas orações com o anjo, assim como o povo as manda com o sacerdote...89. Resumimos aqui as diversas teorias dos autores medievais: pode significar: ‘haec’ - o corpo eucarístico de Cristo, - as orações dos fiéis oferecidas, - a união da igreja militante com a igreja triunfante - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Altar - Cristo mesmo sublime - a igreja triunfante - um altar espiritual - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - as mãos - Cristo mesmo do anjo - um anjo representante, - todos os anjos, - o anjo custódio do sacerdote - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ‘perferri’ - um movimento ou transporte local, - a transformação (espiritual) dos dons - união da Igreja ao corpo glorioso de Cristo É interessante constatar, que nenhum dos autores medievais considerou esse anjo como sendo o Espírito Santo. Mas, tendo em conta todas estas possibilidades, não chegamos a nenhuma conclusão satisfatória. O mesmo disse Botte, quando conclui o seu estudo sobre os autores medievais, afirmando que seria supérfluo continuar esta investigação. B. Botte se pergunta se na Idade Média existiu uma tradição que fizesse do ‘supplices’ uma epiclese. Não a encontramos. Pascasio Radberto apre- senta uma nova opinião que faz do ‘supplices’ uma consagração. Depois dele, Hériger será o primeiro a defender a mesma intuição. Será que Pascasio a recebeu de alguém? Imaginemos por um momento que Pascasio tenha tomado essa idéia de duas citações apócrifas: A pri- meira, atribuída a São Gregório Magno, aparece no final do século IX em Remigio de Auxerre – e que poderia bem ser de um contemporâneo 89 Summa theologicae III,83,4 ad 9. 156 de Pascasio ou de um dos seus partidários. A segunda surge apenas no século XII sob o ‘patrocínio’ de Santo Agostinho. Nada, entretanto, nos indica que Pascasio tenha conhecido estas obras. B. Botte pensa que a interpretação de Pascasio é original, ou seja, dele mesmo. No suposto que a tivesse recolhido de algum outro autor, isso não significa a existência de uma tradição, já que esta é um bem comum eclesiástico e não o resultado de algumas opiniões. Por isso podemos afirmar que tal tradição nunca existiu; não existe nenhum indício. A noção de epiclese presente entre os liturgistas contem- porâneos ou anteriores Pascasio não faz nunca referência ao ‘supplices’, mas sim a outras partes do Cânon. As interpretações comentam nada mais que o sentido literal da oração: a intervenção de ‘um anjo verdadeiro’ ou ‘dos anjos’. No século XII aparece a imagem de Cristo - Anjo do grande conselho, defendida pelos autores que não compartilham a idéia de Pascasio: alguns conservaram a idéia do Cristo-altar, mas nenhum toma o ‘supplices’ como um pedido de consagração. A noção de que Cristo é o anjo do grande conselho é muito interessante e antiga, mas não se pode introduzi-la no ‘supplices’ em nome da tradição. Resumindo, encontramos duas correntes: uma com a súplica de consa- gração e outra que vê Cristo no anjo. Nem de uma nem da outra se pode falar de tradição, muito menos combinar as duas posições, opinião que seja talvez da Idade Moderna ou Contemporânea, mas nunca apoiada antes do século XIII. 3. Interpretações modernas (século XX) Entre um grande número de autores do final do século XIX e início do século XX (A. Baumstark, J. Brinktrine, H. Lietzman, F. Probst, R. Buchwald, N. Gihr, etc.), apresentamos dois que interpretam o ‘supplices’ de uma maneira pneumatológica. a) Interpretação pneumatológica Os autores L. A. Hoppe e Paul Cagin, afirmam que o anjo do ‘supplices’ é o próprio Espírito Santo. Hoppe e Cagin consideram toda a oração como uma epiclese. Portanto, para eles o anjo é o Espírito Santo, segundo os textos paralelos na antífona in fractione como Cagin cita: “Envia o teu anjo, Senhor, para que se digne santificar o teu corpo e teu sangue”. 157 Hoppe se refere a um texto da liturgia mozárabe, que finaliza assim: “faça aceitável as nossas ofertas... e possa distribuir para nós os dons eucarísticos santificados”90. Além disso, Hoppe apresenta outro texto do Missal gótico, que se refere à bênção da fonte da água do batismo: “Desça sobre esta fonte o Espírito Santo, o Anjo da verdade”. Entretanto, o texto da oração tem pouca força convincente para susten- tar a opinião de que o nosso anjo seja o Espírito Santo. Os manuscritos da Idade Média não apresentam esse tipo de relação: “Emitte angelum tuum” – e – “Emitte Spiritum Sanctum tuum”. Não se apresenta nenhuma prova da teoria destes autores que identifique “Angelus” com “o Spiritus” ou vice-versa. B. Botte considera somente a segunda parte ou a parte final do ‘sup- plices’ como uma epiclese: - ‘supplices’… é uma formula de post-comunhão própria do Grego-• riano, - iube… tuae, é a que corresponde a fórmula do • De sacramentis, - Ut quotquot ex-hac altaris…: a terceira é uma epiclese.• Nesse ponto, não entraremos em mais detalhes. b) Interpretação cristológica M. de la Taille e J. Barbel se mostram em favor duma interpretação cristológica. 1) Maurice de la Taille A primeira versão da sua obra foi publicada em francês no ano de 1921. Na versão inglesa da mesma obra “Mystery of Faith” (1930), De la Taille escreve que não podemos excluir os anjos da missa pelos muitos teste- munhos que sobre eles encontramos, especialmente na liturgia oriental. Além disso, se os Padres falam de um ‘anjo do batismo’ e de um ‘anjo da penitência’, por que não pensar também num ‘anjo da eucaristia’? Não obstante, Da Taille vê um problema em relação à transubstancia- ção, que seria o sentido da ação do anjo (ação esta que uma criatura não é capaz fazer). Não se trata de um movimento local, mas espiritual, que 90 Missal Mozárabe, Postpridie do 5º Domingo de Páscoa, PL 85,590. 160 possibilitar interpretação. Deste modo, assinala algumas interpretações possíveis feitas da oração do ‘supplices’: Pode ser uma oração de obla- ção; é o Espírito Santo, segundo Hope e Cagin; a oração é uma epiclese; o anjo é Cristo para De la Taille, enquanto a oração é uma súplica de consagração. Botte responde a esta pluralidade de opiniões raciocinando do seguinte modo: A primeira falha é simplificar a questão. Há que respeitar a intenção • e o sentido que o autor quis dar à oração que compôs. Seria uma metodologia desacertada atribuir ‘a priori’ a esta oração um sentido determinado e depois estabelecer uma argumentação sem que exista alguma tradição clara. Tomemos um exemplo: estabeleço a hipótese de que o anjo é Cristo como uma idéia original e depois ofereço uma série de argumentos em favor de tal hipótese. Outro equívoco é exagerar a síntese doutrinal. Pode-se falar de uma • tradição quando se encontra uma tradição uniforme e o mesmo pen- samento entre diversos grupos e tempos. Uma tradição não se faz de algumas opiniões esporádicas. Não encontramos na Sagrada Escritura nem na Tradição nenhum indício • que leve a identificar o anjo com o Espírito Santo. Substituir mera- mente a palavra ‘anjo’ ou ‘espírito’ por Espírito Santo não significa que assim o seja. O mesmo raciocínio serve para os que identificam o anjo com Cristo. • Encontra-se a denominação Cristo-Mensageiro nos primeiros séculos do cristianismo, mas isso não justifica aplicá-la para a oração do ‘su- pplices’. Aqueles que consideram o ‘supplices’• como uma súplica de consagra- ção, deveriam apresentar argumentos convincentes. Idéias estranhas necessitam explicação, ao contrário das coisas evidentes, que nem sempre tem essa necessidade. Botte faz um percurso histórico que permite aproximar-se das fontes da oração do ‘supplices’. Inicia-o com a oração de Santo Ambrósio e com comentários de outros autores. Considera-a como uma forma arcaica à qual São Leão Magno fez adicionar as palavras “sanctum sacrificium, immaculatam hostiam”. Logo Botte compara o texto de De sacramentis com a liturgia de São Marcos e de São Basílio. A idéia do altar celestial está presente já no Antigo Testamento. Finalmente, afirma que o ‘supplices’ é um pedido de aceitação pelo ministério dos anjos. Embora se encontrem dificuldades na reconstrução do texto durante os séculos V a VII, Botte 161 apresenta alguns textos paralelos da liturgia galicana e mozárabe, com alusões à presença dos anjos na Missa, para impugnar as teses de Hoppe e Cagin, como já o indicamos anteriormente. Como conclusão B. Botte assinala argumentos contra outras interpre- tações, que resumimos da seguinte maneira: O texto da obra a) De sacramentis, que apresenta a forma mais antiga desta oração, dá uma interpretação clara à qual não se pode contradizer. Uma comparação do ‘supplices’ com as orações sacrificais das b) liturgias orientais confirma a dedução de que provém de De sa- cramentis. Existem outros textos litúrgicos que apresentam um anjo na ce-c) lebração eucarística, que não é a Palavra e tampouco o Espírito Santo. A interpretação de ‘Cristo-Mensageiro’ é da Idade Média, e os d) autores mais antigos não compreendem o ‘supplices’ como um pedido de consagração. 4. Depois de 1950 Consultamos quatro manuais de teologia litúrgica sobre nosso assunto. Os quatro autores se inclinam à interpretação de que o ‘anjo do supplices’ é um espírito criado. Apresentamos aqui alguns argumentos das obras de M. Righetti, J.A. Jungmann, C. Vaggagini, e G.A. Martimort. Encontra- mos entre eles conclusões semelhantes entre si sobre a interpretação da nossa oração. Concordam com o estudo de B. Botte e consideram o anjo uma criatura, interpretando a oração no sentido literal. M. Righetti92 (pp 335-338) apresenta uma série de textos dos Padres que fazem referência ao anjo. Escreve no número 241 que a oração se refere a todas as oblações dos santos e membros da Igreja em união com Cristo e depois cita argumentos e interpretações de vários Padres da Igreja. Righetti está consciente da possibilidade de outras interpretações e apresenta três delas: o anjo é o Espírito Santo, ou é Cristo ou ainda o anjo do Apocalipse. A seguir, considera o texto de Santo Ambrósio como 92 Manuale di storia liturgica. III: L´Eucarestia Sacrifício e sacramento, Milano 1949. 162 a versão mais antiga do ‘supplices’ e, para confirmá-lo, refere-se a uma obra artística de são Vitale de Ravena. Em vez de falar de uma epiclese, Righetti se inclina de dar à oração certo valor anamnético. Ele deduz que o anjo faz referência a passagens do Antigo Testamento quando diz: “Assim como no Antigo Testamento, o anjo ofereceu a DEUS, do mesmo modo, pelo ministério dos anjos, oferece-se o sacrifício de Cristo”. Entretanto, isto é uma interpretação pessoal de Righetti. Em si, a oração não menciona especificamente um fato concreto, por isso não podemos falar de um “anámnesis” que lembra a um fato passado, mas se trata de uma petição real e atual a Deus. J.A. Jungmann93, na sua obra Missarum sollemnia, começa a expli- cação do ‘supplices’ com o anjo de Ap 8,3-5, que oferece sobre o altar do céu o incenso junto com as orações dos fiéis. Considera-o uma imagem para um processo espiritual, que serve como um “marco” (Rahmen) para o oferecimento de nosso sacrifício e como uma petição para ser aceito definitivamente. Jungmann compara o modo como se apresenta a imagem do anjo e do altar celeste com as liturgias orientais, que não têm dificuldade em usar símbolos para descrever realidades espirituais. A seguir, apresenta alguns autores medievais e contrapõe algumas considerações sobre a identidade do anjo. Apresenta esta mesma questão, tratada por autores do século XIX e XX, entre eles: De la Taille, Barbel, Hoppe e Botte. Enfim chega à conclusão que o mais próprio seria entender a oração em seu sentido literal e admitir a participação dos anjos na liturgia (p. 291). Isto corresponde à lógica da ordem da obra da salvação, à qual também os anjos servem como liturgos. Nas páginas 292-295 Jungmann discute a segunda parte da oração e seu sentido epiclético. Comenta não somente o sentido da oração, mas também os gestos do sacerdote. O teólogo beneditino Cipriano Vaggagini, no seu Manual de teologia litúrgica, dedicou um capítulo – o de número XII – à participação dos anjos na liturgia e faz menção do anjo do sacrifício. Escreve: “A idéia da íntima compenetração entre o mundo humano e o mundo angélico, nada tem de extraordinário e aparece longamente suposta e atuada na liturgia… No tocante à Missa, a tradição litúrgica e a patrística puseram em relevo 93 Missarum Sollemnia II: Opfermesse, Wien 1958. 165 Sobre a identidade do anjo, Heiming segue o estudo de B. Botte. A interpretação de Cristo como ‘anjo do grande conselho’, não pode ser aplicada para o ‘supplices’, porque não existe uma tradição anterior à Idade Média. Como exemplo, cita uma oração do ‘asperges’ do Gelasiano (século VIII) onde diz: “Exaudi nos, Domine, sanctae Pater, omnipotens aeterne Deus, et mittere dignare angelum tuum sanctum de caelis, qui custodiat, foveat, protegat, visitet, et defendat omnes habitantes… Per Dominum”. Aqui se pede ao Pai que envie um anjo em nome de Cristo, e por isso conclui que o anjo não pode ser Cristo. O argumento que Heiming nos apresenta é o seguinte: “Angelum tuum sanctum” se deveria traduzir corretamente com “um dos vossos santos anjos”. Ele argumenta isso com a sintática hebraica: O termo ‘Malak Yahveh’ pode ser traduzido tranquilamente por ‘um anjo do Senhor’ ao invés de ‘o anjo do Senhor’. Quando no hebraico não há artigo, o sentido é indeterminado e se traduz normalmente por “um” anjo. Então, se que- remos traduzir o “per manus angeli tui” do hebraico, a tradução correta seria “pela mão (ou mediação, ou também liturgia/serviço) de um dos vossos anjos”. O nosso autor não fornece mais explicações. No entanto, argumentar com a língua hebraica, somente teria sentido se o conceito realmente se originasse da cultura hebraica. Heiming provavelmente considera que o ‘anjo do supplices’ tem o seu fundamento no “Malak Yahveh” do Antigo Testamento. Neste caso deveríamos resolver primeiro a questão daquela interpretação. Entre as várias teorias sobre o ‘Malak’ encontramos também a ‘teoria do Logos’, uma idéia que já apareceu em Filó de Alexandria, que considera as teofanias ou ‘angelofanias’ do AT como manifestações do mesmo ‘Logos’. Também isto pode ter sido a origem para toda a questão do “Christus Angelos” nos primeiros séculos da nossa era e na luta contra o gnosticismo. Odilo Heiming conclui: Enquanto Santo Ambrósio fala em plural, isto significa que ele não pensa em um anjo determinado e muito menos em Cristo. O mesmo afirma o texto da liturgia de São Marcos, onde se diz: dia thj avrcaggelikh/j leitourgi,aj. Se o autor do ‘supplices’ usasse tal texto como modelo, como este de Ambrósio ou de São Marcos, seria absolutamente claro que originalmente se pensou num serviço angélico e não em uma mediação de Cristo. Considerando o serviço dos anjos em conjunto com todos os outros textos da missa, que falam da presença dos anjos, também se deve considerar necessariamente o personagem do ‘supplices’ como um verdadeiro anjo que exerce seu serviço. Ou seja, 166 devemos ler o ‘supplices’ junto com os outros textos litúrgicos da grande entrada (na liturgia ortodoxa) e junto com aqueles que falam dos anjos no final do prefácio para introduzir o ‘sanctus’. O Padre William Wagner, na sua tese doutoral A missão dos anjos na economia da salvação, apresentada na Universidade de Santo Tomás (Angelicum), em Roma no ano de 1984, inclui também aspectos litúrgicos sobre a presença e a ação dos anjos na administração dos sacramentos. Após ter tratado algumas questões angelológicas fundamentais, como, por exemplo, o problema do ‘Malak Yahveh’, argumenta com a angelologia de Santo Tomás de Aquino para demonstrar a múltipla participação dos anjos na vida da Igreja. Entrando na questão do ‘anjo do supplices’, Wagner faz referência ao artigo de O. Heiming, e continua este pensamento ocupando-se com o conteúdo do ‘haec’ ,ou seja, a questão sobre o que o anjo está levando. Em seguida, apresenta um parágrafo sobre o tema da colaboração entre o anjo e o sacerdote. Sobre o pensamento de Heiming, Wagner escreve: Não é questão de uma transferência local das espécies consagradas; o minis- tério dos anjos se realiza numa ordem espiritual, inclusive o “altar celeste” é um símbolo espiritual. Tampouco pode ser uma questão de sacrifício, pois se trata do sacrifício de Cristo, que, tendo valor infinito, nada lhe pode ser acrescentado. Mas, enquanto se refere ao nosso sacrifício, precisa ser aceito por Deus. O “nobis quoque peccatoribus” dá um testemunho amplo desta necessidade. E é exatamente a este respeito que o sacerdote pede a mediação do anjo, para que, através dele, este sacrifício, que é também o nosso, chegue a ser aceitável por Deus. Neste contexto geral, Santo Tomás escreve que o sacerdote, através do anjo, envia as orações a Deus, igualmente como o povo as envia através do sacerdote97. A finalidade do ministério angélico se faz evidente no texto mesmo da oração: “Oh, Deus, ordena que este sacrifício seja levado… para que sejamos repletos de graças e bênçãos”. Agora o corpo e o sangue euca- rísticos de Cristo, como cada sacramento, produzem a graça eficazmente, dada à disposição apropriada do recipiente. Estando acima dos outros sacramentos, a eucaristia possui também a dimensão de ser um sacrifício; antes de ser recebida por nós, as nossas ofertas devem ser purificadas e aceitas por Deus. 97 The mission of the holy Angels in the economy of salvation, Fátima 1984, 381. 167 Nesta mediação ascendente encontramos o ministério do anjo. O anjo, que é perfeito em santidade, leva os nossos sacrifícios a Deus. Contudo, nosso sacrifício é encontrado digno por Deus na medida em que somos dignos de receber o sacramento. E aqui está o ministério implícito do anjo. Os sacramentos produzem eficazmente a graça naqueles que não põem obstáculo. Neste sentido, escreve Wagner, o anjo tem o ministério de dispor as mentes e os corações dos fiéis para a vinda de Cristo com a mediação de graças atuais. Nisto, o anjo executa uma missão em relação ao indivíduo em cada sacramento. Exatamente o motivo de ele ter sido enviado no início da história salvífica, que Santo Tomás sintetizou da seguinte maneira: “De fato, todas as aparições do Antigo Testamento foram ordenadas àquela aparição, a saber, do Filho de Deus na carne, ou seja, todo o ministério angélico é subordinado a Cristo e se ordena a preparar o homem para a vinda do Verbo encarnado. E é esta missão que se pede para completar hierarquicamente no ‘supplices te rogamus’”. W. Wagner apresenta depois um parágrafo sobre a relação entre anjos e sacerdote, o qual é, para nós, particularmente importante para explicar a função do anjo no ‘supplices’. Escreve: O “supplices te rogamus” aproxima intimamente os ministérios dos sacer- dotes e dos anjos. Os dois ministérios não idênticos atuam de um modo complementar na economia da salvação. Quando vários autores atribuem uma função “sacerdotal” aos anjos (particularmente em base da atividade bíblica dos anjos), a finalidade é a de estipular a função sagrada e mediadora que os anjos executam. Chama-se “sacerdotal” devido a certa semelhança com a função mediadora do sacerdote e também por necessidade de um termo apropriado. Wagner apresenta depois uma série de exemplos para sustentar sua argumentação. Os trechos bíblicos apropriados para falar da função “sacer- dotal” dos anjos são Is 6,6-7 e Zac 3,1-5 do Antigo Testamento e as funções litúrgicas dos anjos no Apocalipse, particularmente o oferecimento das orações dos Santos com as taças de ouro de incenso nos capítulos cinco e oito. Estes últimos textos constituem um protótipo para as orações de incenso nas várias liturgias e inclusive para o ‘supplices te rogamus’. Em relação à função sacerdotal do anjo, para Wagner é importante não confundir os conceitos. Não é tarefa fácil demonstrar teologicamente a complementaridade entre a função do anjo e do sacerdote. O que se quer demonstrar é que na intercessão angélica suplicante no ‘supplices te rogamus’ e em outras orações litúrgicas, o sacerdote está justapondo 170 Entretanto, é muito provável que o autor do ‘supplices’ conhecesse a oração dos anjos no plural, assim como aparece na liturgia de Alexandria. Se o autor tivesse querido identificar o anjo com o Filho de Deus ou com o Espírito Santo, ter especificado para evitar mal-entendidos. Não é que pretendamos atribuir ao autor uma intenção determinada ao redigir a oração, mas afirmar que o anjo é Cristo ou o Espírito Santo sem dar maiores explicações não seria uma metodologia teológica séria, mas uma idéia a priori. Não nos consta uma tradição litúrgica, onde o redator tenha seguido outra interpretação. Portanto, podemos concluir que o redator do ‘supplices’ interpretava literalmente a oração, ou seja, ele define o ‘anjo’ como uma criatura espiritual. 2. O ‘anjo’ pode ser Cristo? O texto de Is 9,6 oferece um argumento bíblico a favor do título ‘Anjo • do grande conselho’. O texto masorético usa a palavra #[eAy al,P, (pele ioez), que quer dizer ‘conselheiro maravilhoso’. No AT, os anjos são considerados ‘conselheiros’ ou chamados ‘o conselho de Deus’ (cf. Jo 15,8). Os LXX traduzem mega,lhj boulh/j a;ggeloj que indica o ‘anjo por excelência’. Os Padres da Igreja atribuem a Cristo o título ‘• aggeloj’. Mas aqueles que mencionam ‘Cristo-Angelos’, não o entendem no mesmo sentido. Os gnósticos negavam a divindade de Cristo e atribuíam-lhe uma na- tureza angélica. Os apologetas defendiam que Cristo é anjo segundo sua função, mas não segundo sua essência. Tal idéia surgiu pela ne- cessidade de lutar contra as heresias e não tanto como uma invocação litúrgica. São Justino chama ‘Angelos’ a Cristo por outras razões que Orígenes. O Novo Testamento, com poucas exceções, entende a expressão ‘anjo’ • como um ser espiritual e nunca o aplica a Cristo. Entre os textos litúrgicos encontramos o título Cristo-Mensageiro na • Traditio apostólica de Santo Hipólito e nas Constituições apostólicas, que já mencionamos acima. Assim diz a Traditio apostólica: “O vosso amado servo Jesus Cristo, que nos últimos tempos enviastes a nós como Salvador, Redentor e Enviado (Anjo, Mensageiro) da vossa vontade”. Nas Constituições apostólicas se invoca a Cristo como “Verbo Divino, Primogênito e Anjo do grande conselho” e, “vosso santo servo Jesus Cristo, vosso Enviado (Anjo) e Príncipe do vosso exército e vosso Sumo sacerdote eterno”. A respeito desta tipologia angélica de Jesus 171 Cristo, C. Giraudo comenta que isso “é fortemente influenciado de um subordinacionismo pré-niceno”. Portanto, tal título perdeu a sua importância depois de Nicéia. O anjo do ‘Cânon Romano’ não traz nenhuma especificação, de forma que se o anjo do ‘supplices’ fosse Cristo, seria o único caso em que essa interpretação seria seguida. Em nenhuma outra oração encontramos a atribuição de Cristo como anjo sem ulteriores explicações. A liturgia mozárabe que, em certo sentido, consideramos como uma • interpretação do ‘Cânon Romano’, não conhece tal interpretação. Os autores medievais, que interpretam o anjo como Cristo, não seguem • nenhuma tradição, como opina B Botte. De la Taille e Barbel, apresentam argumentos pouco sólidos sobre o • título Cristo-Mensageiro e admitem que o assunto não é claro. Josef Barbel apóia-se sobre as interpretações dos primeiros séculos que dão a Cristo o título de anjo. Mas, temos dificuldade em encontrar tal tradição litúrgica. Talvez a última redação seja de São Gregório Magno ou de outro autor. A pergunta é por que um autor do século VII oferece uma idéia sem dar maiores explicações? São Gregório sabia que as seitas gnósticas do século II manipularam o texto do Isaías 9,6, atribuindo a Cristo uma natureza angélica. O próprio São Gregório esclarece que a palavra “anjo” não significa a natureza, mas o ofício de mensageiro (cf. Oficio das Leituras, 29 de setembro). É possível que o ‘anjo do supplices’ queira indicar somente a função de mensageiro ou intermediário, e que o autor não queria indicar nada mais, por isso a interpretação ficou de certo modo ambígua. Tampouco aceitamos as razões de De la Taille ou de Pascasio Rad- berto, que fazem da oração uma súplica a Deus para consagrar os dons eucarísticos. E isso, porque segundo o ‘Cânon Romano’, nesse momento já estão consagrados e foram adorados pelos fiéis durante a elevação da consagração. Se o ‘supplices’ fosse uma súplica de consagração, seu lugar deveria estar antes da consagração e não depois, que é como encontramos na liturgia mozárabe. Nas liturgias orientais, o ‘sanctus’ é introduzido pela invocação dos anjos e em seguida se pede a aceitação, mas não é mencionado que um anjo leva os dons até o altar celeste. As razões por que tantos pensaram em Cristo podem ser várias. Pos- sivelmente alguns consideraram a Traditio apostolica, atribuída a Santo Hipólito, como uma forma primitiva da liturgia romana. Concordamos com Louis Bouyer, que demonstrou que não era assim, e, portanto, a 172 expressão “Cristo, o vosso enviado” de Hipólito não serviria como fonte para o Cânon Romano. Não negamos a Cristo o título de ‘Angelos’, como mensageiro de Deus Pai e mediador da Nova Aliança, mas não nos parece que este seja o sen- tido da oração. Também não negamos que Cristo é o centro do sacrifício e atua como Sumo e eterno sacerdote celeste no sacrifício eucarístico, porque é o Enviado (o Anjo) do Pai por excelência. A ação do mensageiro divino é diferente da ação de um mensageiro criado. O ator principal para toda ação litúrgica sempre é Cristo. Portanto, um anjo é sempre causa instrumental e secundária. A celebração litúrgica é sempre cooperação, entre Cristo e a sua esposa, a Igreja, entre Cristo e os homens, entre Cristo e os anjos, também entre homens e anjos. Por esta razão não podemos nunca separar ou excluir Cristo totalmente da ação do anjo. Talvez seja por isso, que Santo Tomás de Aquino admita como segunda opção a possibilidade de ver no ‘anjo do supplices’ o próprio Cristo. Ou pode haver outras razões. Possivelmente o Santo não conhecia todas as interpretações precedentes e por isso quis deixar aberta a questão. Botte pensa que ele tenha sido influenciado pela opinião de outros autores contemporâneos. Não podemos descartar esta idéia do Cristo-mensajeiro, mas, afirmar-lo terminantemente não podemos aceitar. Seria necessário explicar o seu sentido. Assim como a Palavra de Deus admite diversos significados, assim pode-se fazer também com um texto litúrgico. A ciência da exegese bíblica admite diversas interpretações dos textos bíblicos, segundo os diversos sentidos: literal, moral, tipológico, etc. Não pretendemos tratar os textos litúrgicos com os mesmos critérios que os textos bíblicos, porque na ciência litúrgica se trata de encontrar uma tradição. Mas, em se tratando das mesmas orações que durante séculos ou milênios se mencionaram no culto da Igreja, podemos considerá-las certamente como textos inspirados. Portanto, não conta somente a in- tenção do redator ao compor a oração, mas, como no caso da inspiração bíblica, o próprio autor nem sempre teve consciência do alcance e da profundidade do texto. Digamos que o ‘anjo do supplices’ se pode referir a Cristo quando se entende como o sacrifício (haec), a oferta que Cristo faz de si mesmo ao Pai. Certas ações (por exemplo, a de transformar os dons eucarísticos) 175 Em segundo lugar, apoiamo-nos no Catecismo da Igreja Católica. Na primeira edição do Cat, do ano 1992, se lê, sob o título Os anjos na vida da Igreja99: Na sua liturgia, a Igreja se une aos anjos para adorar o Deus três vezes santo (cf. MR, “sanctus”); invoca a sua assistência (assim no “supplices te rogamus…” - “Te rogamos…” - do ‘‘Cânon Romano’’, ou no “In paradisum deducant te angeli...” (“Ao paraíso te levem os anjos...”) da liturgia dos defuntos, ou também no “Hino querúbico” da liturgia bizantina). Na versão definitiva do Catecismo de 1997 se eliminou a menção do ‘supplices’ neste numero 335, e agora diz somente: (assim no “In paradisum…”). O cardeal Vicente Fagiolo publicou um artigo sobre as mudanças que foram feitas nesta edição latina do Catecismo. Embora mencione o número, não dá nenhuma explicação sobre a mudança feita. Pode-se deduzir, de uma explicação paralela sobre a mudança do número Cat 57, que a eliminação da expressão “custódia dos anjos”, ocorreu não por ser considerada errada, mas sim inadequada. Talvez não seja muito apropriado usar o exemplo do ‘supplices’, para falar sobre “os anjos na vida da Igreja”, e, talvez por isso o inciso tenha sido eliminado. Mas a razão mais verdadeira deve ser a de que a Igreja ainda não se tenha pronunciado definitivamente sobre a questão da iden- tidade do anjo. Se se conservar o texto de 1992, fica claro que se trata de um ser espiritual criado, ou seja, um anjo criado por Deus. Deste modo, não se pode afirmar que o termo ‘anjo’ se refira a Cristo ou ao Espírito Santo. Mas, embora se tenha eliminado a referência citada na primeira versão de 1992, ela constitui um ensino válido da fé católica sobre esta interpretação. O tema do ‘supplices’ indicado em outro número do Catecismo lembra que o altar significa Cristo. No Cat, no número 1383 diz: O altar, em torno do qual a Igreja está reunida na celebração da Eucaristia, representa os dois aspectos de um mesmo mistério: o altar do sacrifício e a mesa do Senhor, e isto tanto mais porque o altar cristão é o símbolo do próprio Cristo, presente no meio da assembléia de seus fiéis, ao mesmo tempo como vítima oferecida por nossa reconciliação e como alimento celeste que se dá a nós. “Com efeito, que é o altar de Cristo senão a imagem do corpo do Cristo?”, diz Santo Ambrósio (sacr. 5,7), e em outro lugar: “O altar representa o corpo (de Cristo), e o corpo de Cristo está sobre o altar” (sacr. 4,7). A liturgia exprime esta unidade do sacrifício e da comunhão em 99 No 335. 176 muitas orações. Assim, a Igreja de Roma ora em sua anáfora: Supplices te rogamus... Nossa observação aqui é: Se o altar for Cristo, o anjo do ‘supplices’, que leva a oferta para o altar celestial, não pode ser ao mesmo tempo Cristo. Também o número 1402 do Cat fala do ‘supplices’, com relação a epiclese: “Se a Eucaristia é o memorial da Páscoa do Senhor, se por nossa comunhão ao altar somos repletos ‘de todas as graças e bênçãos do céu’ (MR, ‘Cânon Romano’ 96: ‘supplices te rogamus’), a Eucaristia é também a antecipação da glória celeste.” Este numero se refere à terceira parte do ‘supplices’, que chamamos epiclese, e nos explica que as graças que vêm da Eucaristia têm um efeito escatológico. b) O que dizem os textos litúrgicos? 1) A missa votiva dos santos anjos Uma interpretação angelológica do ‘supplices’ é encontrada na tradução italiana e na espanhola de Espanha do Missal Romano depois da reforma do Concílio Vaticano II. Na oração “super oblata” da ‘missa votiva aos santos anjos’ se reza o seguinte na tradução espanhola: “Oferecemo-vos, Senhor, este sacrifício de louvor e vos suplicamos humildemente, que, levado a vossa presença pelas mãos dos anjos, seja recebido com bon- dade ... e nos sirva para nossa salvação”. A tradução do texto italiano é semelhante: “Acolhe, Senhor, a oferenda da vossa Igreja, faz que pelas mãos dos vossos anjos seja levada até vossa presença e se transforme para todos os homens em fonte de perdão e salvação”. Estas traduções têm um valor interpretativo, já que se trata de uma oração litúrgica aprovada pelas conferências episcopais italiana e espanhola, e pela Congregação para o Culto Divino, embora a tradução não exprima exatamente o que vem no texto latino: “Hóstias tibi, Domine laudis offerimus, suppliciter deprecantes, ut easdem, angélico ministerio in conspectum tuae maies- tatis delatas”. As expressões “suppliciter deprecantes” e “in conspectum tuae maiestatis”, aludem à oração do ‘supplices’. Mais claramente o as- sinala o texto italiano e o Missal espanhol, que mencionam “as mãos” dos anjos. Constatamos que a terminologia usada se origina na oração do ‘supplices’, e neste sentido, um texto litúrgico apóia a interpretação angelológica do ‘supplices’. 177 2) A liturgia das Horas Outros dois textos reforçam nosso tema. Encontramo-los nas preces das vésperas da festa dos três arcanjos de 29 de setembro: Ut per manus angelórum sicut fumus arómatum, - oratiónes nostrae coram te ascendant. Te rogamus, audi nos. Ut per manus ángeli tui, in sublime altare tuum, - oblationes nostrae deferantur. Te rogamus, audi nos. A primeira petição alude ao Anjo do incenso (cf. Ap 8,3-5), que oferece as orações dos fiéis. A segunda súplica usa a terminologia do ‘supplices’; por isso, também podemos aceitá-la como uma interpretação do anjo do ‘supplices’ que levará as oblações dos fiéis. Segundo esta interpretação, não se trata da eucaristia nem da oferenda do próprio Cristo, mas sim das ofertas dos fiéis. Entende-se que o anjo do ‘supplices’ não leva as espécies eucarísticas, mas sim as nossas oferendas em união com a ofe- renda de Cristo. c) O que diz o Diretório sobre a piedade popular e a liturgia? Esta instrução da Congregação romana para o Culto Divino explica no número 215: A Igreja, que em seus inícios foi protegida e defendida pelo ministério dos anjos (cf. At 5,17-20; 12,6-11) e continuamente experimenta sua “ajuda misteriosa e poderosa”, invoca estes espíritos celestes e pede com confiança a sua intercessão… na celebração dos mistérios divinos, associa-se ao canto dos anjos para proclamar a glória de Deus, três vezes santo (cf. Is 6,3), e invoca a sua assistência para que a oferenda eucarística “seja levada à sua presença até o altar do céu”. 5. Podemos determinar quem é o anjo do ‘supplices’? Posto que consideramos o ‘anjo do supplices’ como uma criatura es- piritual, fica a pergunta se podemos também determinar sua pessoa. Al- guns autores não aceitam dar um nome, seja Miguel, Gabriel ou de outra figura angélica, quando se trata de identificar o anjo do ‘supplices’, mas, consideramos o nome como indicação do ofício do anjo. A tradição judaica invoca Miguel como Sumo Sacerdote celeste e a Igreja lhe reza nos seus textos litúrgicos. A Igreja invoca São Miguel na versão antiga do Confiteor e na oração da benção do incenso. Também no formulário da antiga Missa tridentina, do 24 de março, relaciona-se 180 características cristológicas (cf. Ap 10,1 etc.). Aparece a mesma dificul- dade ao fazer a distinção entre o divino e a criatura, como já encontramos no Antigo Testamento: O anjo está muito perto de Deus, porque “o seu nome está nele” (Ex 23,20), e para nos, seres humanos, é difícil reconhecer os limites da capacidade angelical. Acreditamos que o nosso ‘anjo’ está ao serviço de Cristo para unir o seu próprio sacrifício, os sacrifícios dos fiéis e os de toda a Igreja ao sacrifício de Cristo. Cristo, Sumo Sacerdote e Enviado do Pai, é o Cor- deiro sacrificado que se oferece continuamente pela sua Igreja diante da Divina Majestade, aquele que está sentado sobre o trono; sem seu oferecimento não terá valor salvífico nenhum outro sacrifício. Pois bem, como se trata exclusivamente de “levar” o sacrifício, acreditamos que se trata de uma ação que não necessariamente requer a intervenção divina do Filho de Deus. A Igreja não se pronunciou expressamente sobre a questão, portanto, tampouco nós pretendemos apresentar uma solução definitiva; somente contribuímos com nossos argumentos. Inclinamo-nos para a interpretação angelológica porque consideramos as palavras ‘o vosso santo anjo’ como um terminus tecnicus para indicar uma criatura espiritual. Uma das intenções deste trabalho foi a de poder contribuir para que haja um maior amor à liturgia, especialmente entre os sacerdotes no seu papel de celebrante. De modo que a presença e participação dos anjos no culto da Igreja possa ser uma ajuda para os sacerdotes crescerem no respeito e na devoção para com a celebração dos santos mistérios e igualmente na observância das prescrições dos livros litúrgicos. Por isso, a relação que existe entre o culto da Igreja na terra e a liturgia no céu pode favorecer uma maior consciência de que a celebração do sa- cerdote sobre o altar terrestre está em estreita conexão com a celebração de Cristo Sumo Sacerdote e o culto dos anjos no céu. Cornelius Pfeifer ORC 181 Introdução ........................................................................................ 112 I. Origem e história do texto litúrgico e suas variantes ................ 113 2. Funções litúrgicas dos anjos ...................................................... 113 a) Os anjos como liturgos no Antigo Testamento ...................... 114 b) A função litúrgica dos anjos no Novo Testamento ................ 115 c) Aspectos angelológicos da liturgia judaica ............................ 116 d) Os anjos no culto segundo a doutrina dos escritores eclesiásticos ........................................................................... 119 1) Testemunhos do tempo patrístico ...................................... 119 2) Os anjos na missa segundo Santo Tomás de Aquino.........122 2. Textos litúrgicos das anáforas eucarísticas ................................123 a) Textos das liturgias orientais .................................................123 1) A liturgia de São Marcos ..................................................124 2) As Constituições apostólicas .............................................125 3) A liturgia de São Tiago ......................................................125 b) Textos litúrgicos da tradição ocidental ..................................126 1) A Traditio Apostolica de Hipólito ....................................126 2) O texto de Santo Ambrósio (+ 397) ..................................126 3) A liturgia mozárabe e galicana ..........................................127 4) Os textos da tradição mozárabe da Espanha .....................127 3. Análise do texto do ‘Cânon Romano’ ........................................130 a) A história textual do ‘Cânon Romano’ (análise diacrônica) ..130 1) Estrutura e origem do ‘Cânon Romano’ ............................130 2) A natureza de uma epiclese ...............................................135 3) O ‘supplices’ nos antigos sacramentários ..........................137 b) Análise sintática .....................................................................137 c) Primeira conclusão ................................................................143 II. As interpretações do anjo do ‘supplices’ ao longo da história ..143 1. A época patrística .......................................................................143 2. Interpretações do ‘supplices’ na Idade Média ............................146 Índice 182 3. Interpretações modernas (século XX) ........................................156 a) Interpretação pneumatológica ................................................156 b) Interpretação cristológica ......................................................157 1) Maurice de la Taille ..........................................................157 2) Josef Barbel .......................................................................158 c) Interpretação angelológica .....................................................159 4. Depois de 1950 ..........................................................................161 5. Conclusão do segundo capítulo ..............................................168 III. Interpretação integrativa: Quem é o anjo? .............................169 1. A intenção do autor (último redator) do ‘supplices’...................169 2. O ‘anjo’ pode ser Cristo? ...........................................................170 3. A possibilidade de uma interpretação pneumatológica: O anjo pode ser o Espírito Santo?..............................................173 4. O ‘anjo’ é um espírito criado? ....................................................174 a) O que diz o Magistério da Igreja? .........................................174 b) O que dizem os textos litúrgicos? ..........................................176 1) A missa votiva dos santos anjos ........................................176 2) A liturgia das Horas ...........................................................177 c) O que diz o Diretório sobre a piedade popular e a liturgia? ..177 5. Podemos determinar quem é o anjo do ‘supplices’? ..................177 Conclusão: ........................................................................................178 Índice .................................................................................................181
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