Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

O marxismo como pensamento crítico, Notas de estudo de Direito do Brasil

Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n.9. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001

Tipologia: Notas de estudo

2010
Em oferta
30 Pontos
Discount

Oferta por tempo limitado


Compartilhado em 10/07/2010

caetano-lobato-10
caetano-lobato-10 🇧🇷

5

(1)

1 documento

1 / 24

Toggle sidebar
Discount

Em oferta

Documentos relacionados


Pré-visualização parcial do texto

Baixe O marxismo como pensamento crítico e outras Notas de estudo em PDF para Direito do Brasil, somente na Docsity! O MARXISMO COMO PENSAMENTO CRÍTICO * JOÃO ANTÔNIO DE PAULA*** “El marxismo es un modo de pensar, una generalización que se deriva de un inmenso desarrollo histórico; y mientras esta fase un que estamos viviendo no haya quedado muy atrás, la doctrina puede resultar equivocada en cuanto a puntos de detalle o puntos secundarios, pero en su esencia nada la ha privado y parece que nada puede privarla, de su pertinencia, validez e importancia para el futuro”. Isaac Deutscher (El Marxismo de nuestro tiempo) Desde que surgiu como realidade dotada de certa especificidade, na segunda metade do século XIX, o marxismo vem sendo alvo de uma permanente atividade que busca contestá-lo. Ao longo deste mais de século a contestação ao marxismo assumiu diversos matizes e motivações. Se houve quem, contestando-o, reconheceu nele méritos e contribuições ao pensamento – como Schumpeter, houve também quem fizesse dele uma das raízes do maior mal contemporâneo – o totalitarismo – como Popper ou Aron ... Na verdade a história da contestação ao marxismo tem várias etapas e características, que, é claro, respondem e refletem as circunstâncias gerais do processo histórico, da luta de classes. Não é incomum que uma determinada perspectiva filosófica, uma teoria tendo se tornado clássica gere diversos tipos de desdobramentos e recepções do entusiasmo ao repúdio. É isto que a história da filosofia demonstra sobejamente. É isto que explica a permanente e diversificada visitação que se faz dos clássicos. Cada época, cada sociedade retoma e inventa seus antecedentes, suas referências de tal modo que se há um Hegel, baluarte da monarquia prussiana; há também Hegel crítico de todo o existente; um Hegel existencialista de Kojève; um Hegel marxizado de Lukács ... São vários, como são várias as * Publicado em: Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n.9. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001. ** Professor do CEDEPLAR/FACE/UFMG * 2 maneiras de se ver e apropriar-se de Pascal, de Descartes, de Vico, de Spinoza, de Kant, de Nietzsche. Veja-se, neste sentido, a bela, insuspeitada e instigante apresentação de Nietzsche que nos deu o marxista Henri Lefebvre. Para Lefebvre Nietzsche foi capaz de entender uma das duas grandes cisões que estão na base da alienação humana. Diz ele – “Nietzsche ha definido admirablemente un problema fundamental; la reconciliación del hombre con el mundo, la elevación de la natureza -, instinto y vida espontánea – al nivel del espiritu”. (LEFEBVRE, 1993, p. 173). Quanto à outra cisão decisiva - a do homem em relação aos outros homens – é equivocada a posição de Nietzsche, porque, diz Lefebvre – “Faltaba a Nietzsche, para analizar esta escisión, una teoria coherente de la “alienación”, y en particular una teoria de la intelectualidad como resultado de la diferenciación social y de la división del trabajo”. (LEFEBVRE, 1993, p. 174). Tão interessante quanto a apresentação que Lefebvre faz de Nietzsche é a motivação desse gesto intelectual cheio de significados; é que a primeira edição deste livro é de 1939, seu propósito básico é impedir a apropriação de Nietzsche pelo nazismo no momento mesmo em que este prepara a sua trágica aventura expansionista. Trata-se, neste sentido, de uma leitura que realiza o melhor da inteligência que é a sua capacidade de resistir ao obscurantismo. De resto este complexo encontro – uma leitura marxista compreensiva de Nietzsche – é, sobretudo, a explicitação do caráter historicamente condicionado das relações entre conhecimento e sociedade. Isto é, que as maneiras como autores, obras, idéias são recebidos e apropriados refletem, de alguma maneira, os contextos histórico-culturais em que aquelas realidades intelectuais circulam. Não se tome isto como defesa da existência de relações diretas e unívocas entre pensamento e interesses materiais, entre conhecimento e sociedade, entre idéias e circuinscrição de classes, porque existe autonomia relativa e especificidade do pensado, e, sobretudo, porque o pensamento é sempre resultado de um conjunto complexo de mediações, mesmo quando ignoradas pelos seus titulares. Ao longo de sua história o marxismo enfrentará uma série de famílias de contestações, que são vocalizações, a cada momento, de certos interesses envolvidos na luta de classes. Estas contestações falam tanto sobre a dinâmica do momento social, da capacidade do marxismo de iluminá-lo, fornecendo-lhe instrumentos prático-analíticos, 5 A Revolução Russa, este acontecimento crucial do século XX, redefiniu inteiramente o lugar e o sentido do debate sobre o marxismo: Seu exemplo, seu prestígio, as esperanças e ações que ela mobilizou vão colocar o marxismo no centro da disputa político- cultural que vai marcar o século XX. A grande diferença, entre os dois períodos considerados até aqui, o anterior e o que decorre da Revolução Russa, é que nesta nova etapa o debate não se restringe ao questionamento da cientificidade do marxismo, trata-se a partir daí, de um questionamento global do marxismo na medida em que ele é a referência, real ou presumida, do movimento socialista em curso. Nesta nova etapa contesta-se o marxismo não por sua eventual inconsistência teórica, mas sobretudo, pelas implicações político-econômicas de movimentos e experiências que se reclamam-se marxistas. Deste modo o período que vai de 1917 a 1968, será marcado, no que interessa discutir aqui, por um combate ideológico generalizado, em que a luta contra o marxismo mobilizará todo o aparato ideológico burguês, em uma estratégia de guerra total, pela utilização de todo um arsenal – o controle dos meios de comunicação; o controle dos recursos para ensino e pesquisa; a imposição e controle da indústria cultural ... Nesta etapa a contestação ao marxismo vai perder certa atitude cavalheiresca, o respeito pelo oponente, e vai realizar-se, sobretudo, pelo ataque implacável, que não recua em seu intento, mesmo que para isto precise mistificar, falsificar, caluniar. É este o sentido da fúria anti-marxista de Popper, de Hayek, de Aron. Com este trio se está muito longe da elegância respeitosa da contestação do período anterior; é o tempo da contestação selvagem do marxismo – Marx visto como que precursor dos grandes males do século XX: do autoritarismo, do totalitarismo, do stalinismo, do Gulag, das grandes tragédias do século. Tão mais virulentas as contestações quanto mais se expande o prestígio e o reconhecimento do marxismo, quanto mais ele inspira movimentos revolucionários pelo mundo. Contudo, este período (1917-1968), se é de contestação exaltada do marxismo, é também marcado por outra estratégia de contestação. Mais sutil ela se expressará por uma difusa, e nunca explicitada, incorporação de certos temas da luta socialista num processo que tem como resultado a constituição do chamado Estado de Bem-estar. A emergência desta experiência de atendimento de certas demandas do movimento social é um resultado 6 importante da luta socialista que, neste sentido, sobretudo entre 1945-1980, conseguiu “civilizar” o capitalismo. Trata-se, no essencial, de uma mudança da velha prática de interdição de direitos sociais, que marcou o capitalismo durante seus primeiros tempos. Esta nova estratégia, não por acaso, produziu seus primeiros eventos na Alemanha, exatamente porque foi lá que o movimento operário-sindical mais se expandiu na segunda metade do século XIX. É assim, como tentativa de resposta às demandas do movimento operário que vai se constituir e generalizar-se o Estado de Bem-estar. Este processo, no plano político-ideológico, foi protagonizado pela social-democracia européia, que tendo ocupado por várias vezes e muito tempo vários governos, acreditou estar pavimentando o caminho para um certo socialismo, ao mesmo tempo que cancelava o marxismo revolucionário. O Estado de Bem-estar, que teve ampla vigência entre 1945 e 1980,sobretudo, se buscava neutralizar o marxismo era porque o marxismo tinha ampla audiência, era referência importante tanto nos países centrais, quanto iluminava muito da luta anti- colonialista e anti-imperialista que eram travadas então. É esta acuidade, esta pertinência do marxismo, sua capacidade de contribuir para o enfrentamento das grandes questões do capitalismo, que está na base da frase de Sartre – “O marxismo é filosofia insuperável do nosso tempo” – que define o horizonte político-ideológico, que marcou o mundo da Revolução Russa até os eventos marcantes de 1968. Ao dizer isto não se está assumindo uma postura ufonista, senão que reconhecendo o quanto o marxismo foi a grande idéia- força que motivou tantas adesões quanto a contestação mais intransigente. O ano de 1968 representa uma mudança nesse quadro em dois sentidos básicos: 1) porque neste ano ocorreu o último grande lampejo de rebeldia do século XX, a última grande manifestação coletiva de inconformismo e mobilização de massas, que fez lembrar as grandes revoluções do século XIX – 1830, 1848, 1871; 2) porque neste ano ocorreu a definitiva demonstração da degeneração do regime soviético com a invasão à Techecoslováquia , que marca, simbolicamente, o fim de todas as esperanças quanto à regeneração daquela experiência socialista. Nesse como em todos os processos históricos o estabelecimento de uma periodização não pode ter a pretensão de ser absoluta. Na verdade certas tendências que marcaram fortemente o período 1917/68 prolongaram-se além daí como o comprova a 7 influência do marxismo sobre a luta do povo vietnamita, na descolonização de Angola e Moçambique, etc. De qualquer modo depois de um período, 1970-1980, em que a crise econômica capitalista interrompeu o longo ciclo expansivo do pós-guerra, 1945-70, o quadro político- ideológico sofrerá profunda alteração cujo sentido mais geral pode ser caracterizado como de definhamento dos projetos da social-democracia e da burocracia soviética, ao mesmo tempo que há recuperação da hegemonia norte-americana tornada potência única e incontrastável nos planos econômico, político e militar. Neste novo período, 1968-1991, o marxismo vai sofrer a mais pesada e ampla das contestações que se lhe impuseram. Esta nova investida vai se caracterizar pela tentativa de definitivo cancelamento do marxismo. Na nova ordem que se quer impor, o capitalismo globalitário, não há lugar para o dissenso, não há lugar para a alteridade. Só a conformidade, só a submissão ao pensamento dominante são consideradas ações racionais, legítimas. A crise e o patético desmoramento do regime soviético, de um lado, e de outro a surpreendente e longa exuberância do crescimento da economia americana, parecem as provas irrefutáveis da definitiva morte do marxismo, e mais do que ele, de todo projeto dissonante do ditado imperial capitalista. O impacto destes processos atingiu marxistas e não marxistas e foi enorme o impacto político-ideológico. Houve quem abandonasse o universo da cultura marxista, grandes nomes como Lúcio Colletti, como François Furet, porque finalmente teriam descoberto um – Colletti – o caráter metafísico-anti-científico do marxismo; o outro, Furet, porque, invocando Tocqueville, descobriu a irracionalidade e inutilidade da revolução. Ao lado destas deserções alardeadas com estrépito, o marxismo experimentou outras contestações que podem ser agrupadas em dois tipos: de um lado há os que como Habermas, Offe entendem superadas certas categorias marxistas – como as que decorrem da centralidade do trabalho – porque insubsistentes no capitalismo contemporâneo, que teria substituído o paradigma do trabalho pelo paradigma da comunicação; um outro tipo de contestação entende o marxismo definitivamente comprometido com a modernidade, no que esta teria de autoritária, dogmática, determinista, e que é a posição sintetizada por Lyotard. 10 central. Diz ele – “Marx deve ser posto no mesmo pé que os demais fundadores da sociologia moderna, nomeadamente Max Weber e Durkhein”. (SANTOS, 1999, p. 33). Para Boaventura Marx ainda teria o que nos dizer pelo que sua obra ensina de leitura do real – “Marx ensinou-nos a ler o real existente segundo uma hermenêutica de suspeição e ensinou-nos a ler os sinais de futuro segundo uma hermenêutica de adesão. O primeiro ensinamento continua a ser preciso, o segundo tornou-se perigoso”(...) E conclui – “Em suma, a utopia de Marx é, em tudo, um produto da modernidade e, nesta medida, não é suficientemente radical para nos guiar num período de transição paradigmática”. (SANTOS, 1999, p. 43). A contestação a Marx é, então, de que seu pensamento seria insuficientemente radical e fortemente comprometido com a modernidade. Veremos o que isto pode significar. Mas antes disto registre-se que para Boaventura o mais problemático em Marx foi sua incapacidade de reconhecer a contradição ambiental. Diz ele – “A idéia de Marx de que a sociedade se transforma pelo desenvolvimento de contradições é essencial para compreender a sociedade contemporânea, e a análise que fez da contradição que assegura a exploração do trabalho nas sociedades capitalistas continua a ser genericamente válida. O que Marx não viu foi a articulação entre a exploração do trabalho e a destruição da natureza e, portanto, a articulação entre as contradições que produzem uma e outra”. (SANTOS, 1999, p. 44). Esta acusação da insensibilidade de Marx para a questão ambiental tem uma resposta significativa em artigo de John Bellamy Foster em que ele mostra que – “Embora não se concentrando em seus trabalhos, na crítica ecológica ao capitalismo – sem dúvida porque pensava que o capitalismo seria substituído por uma sociedade de produtores livremente associados muito antes desses problemas se tornarem realmente graves -, as alusões de Marx à sustentabilidade indicam que ele estava agudamente consciente das devastações ecológicas perpetuadas pelo sistema”. (FOSTER, 1999, p. 167). Ver Marx e Engels como impenitentes produtivistas, seduzidos pelo mito prometéico, deterministas “sans phrase” é ignorar que eles reconheceram um ponto fundamental – “que a sustentabilidade terá que estar no âmago da relação humana com a natureza em todas as futuras sociedades”. (FOSTER, 1999, pp. 168-169). 11 Assim invalide-se por insubisistente a recorrente acusação do unilateralismo produtivista de Marx, e reconheça-se que se é exagerado, e um tanto ridículo, vê-lo como um pioneiro ecologista, é de justiça vê-lo como pertinentemente consciente das contradições “ecológicas” decorrentes da produção material capitalista. O central da contestação pós-moderna ao marxismo é que ele seria de tal forma um produto de modernidade que a crise desta, sua virtual desaparição, teriam o efeito de cancelar sua capacidade heurística, sua pertinência política. Diz Boaventura – “Se para quase todos os cientistas sociais era claro que Marx se equivocara nas suas previsões acerca da evolução das sociedades capitalistas, o mais importante era, no entanto, reconhecer que estas sociedades se tinham transformado a tal ponto desde meados do século XIX que, qualquer que tivesse sido o mérito analítico de Marx no estudo da sociedade do seu tempo, as suas teorias só com profundas revisões teriam alguma utilidade analítica no presente. Cada um à sua maneira, Alain Touraine (1974) e Daniel Bell (1965; 1973) viram neste presente uma ruptura radical com o passado; designaram-no por sociedade pós-industrial, uma nova solidez que desfizera no ar tanto o capitalismo industrial, como a sua melhor consciência crítica, o marxismo” (SANTOS, 1999, p. 29). É a negação da frase famosa de Sartre pela invocação de que o marxismo não seria mais a filosofia insuperável do nosso tempo porque o nosso tempo teria sido superado, sendo hoje o tempo de pós-modernidade. A esta contestação epistemológica houve quem, como os pós-estruturalistas franceses, adicionasse a isto uma acusação política – o marxismo seria cúmplice, no mínimo, das grandes tragédias coletivas contemporâneas. Veja-se o que diz Huyssen – “a ilustração se identifica simplesmente com uma história de terror e encarceramento que vem desde os jacobinos, passando pelas metanarrativas de Hegel e Marx, até o Gulag soviético”. (PICÓ, 1988, p. 40). Este último juízo produziu prodígios; galvanizou uma estranhíssima aliança de que vão participar liberais exaltados – como Aron, Popper, Hayek; furibundos saudosistas do czarismo russo – como Solzhenitsin; ex-esquerdistas arrependidos como Furet. Um decreto tão peremptório se é eficaz, também pode levantar suspeitas, e é até possível que alguém, menos anestesiado pela avalanche condenatória, se lembre de perguntar-se se foi só esta a herança da ilustração, e, mais complexamente, indague sobre, 12 afinal, o que é específico da modernidade, e qual a relação do marxismo com esta tradição- paradigma. Boaventura tem posição precisa sobre o assunto. Ao contrário das diatribes pós- modernistas ele não vê o marxismo como linha auxiliar inspiradora dos grandes crimes stalinistas e das funestas ilusões do socialismo. Sua condenação do marxismo centra-se no seguinte – “Marx, acreditou, sem reservas, no desenvolvimento neutro e infinito das forças produtivas, no progresso como processo de racionalização científica e técnica da vida, na exploração sem limites da natureza para atender às necessidades de uma sociedade de abundância para todos”. (SANTOS, 1999, p. 43). Em outro trecho e mais genericamente ele vai dizer que – “A questão está, pois, em saber em que medida a alternativa de Marx, que é tão radicalmente anticapitalista quanto é moderna, pode contribuir para a construção de uma alternativa assumidamente pós- moderna”. (SANTOS, 1999, p. 36). Esta alternativa pós-moderna, defendida por Boaventura, que ele chama de “pós- modernismo inquietante ou de oposição”, para se contrapor ao “pós-modernismo reconfortante ou de celebração”(SANTOS, 1999, p.35), interroga o marxismo sobre três aspectos importantes. Diz ele – “Procurarei determinar a seguir o contributo de Marx nas seguintes três áreas temáticas: processos de determinação social e autonomia do político; ação coletiva e identidade; direção da transformação social”. (SANTOS, 1999, p.36). Com relação ao primeiro tema a resposta de Boaventura é que Marx padece de irreversível “reducionismo econômico”, o que não daria conta da realidade pós-moderna, que teria embaralhado o econômico, o político e o cultural – “cada vez mais, os fenômenos mais importantes são simultaneamente econômicos, políticos e culturais, nem que seja fácil ou adequado tentar destrinçar estas diferentes dimensões”. (SANTOS, 1999, p. 38). Sobre o segundo tema, o que discute a ação coletiva e a identidade, a posição de Boaventura busca superar certa perspectiva que vê o conceito marxista de classe social como tendo apenas determinação econômica, alargando-o pela incorporação de outras dimensões ao conceito de classe social – pela incorporação da discussão sobre a opressão sexual, pela incorporação de aspectos políticos, étnicos, religiosos ao conceito de classe social. Neste ponto registre-se que tal providência não é recente no marxismo, sendo o resultado das contribuições decisivas de Gramsci e Thompson. 15 se pela emergência do humanismo renascentista, mas só poderá consolidar-se quando o Estado vier garantir o indivíduo, sua segurança, sua vida, sua propriedade; a Racionalidade instrumental é a matriz da grande revolução da ciência moderna, mas é também a matriz sancionadora de uma nova ética, de uma ética de resultados; finalmente, o mercado generalizado, a transformação do trabalho e da natureza em mercadorias, são os instrumentos da dinamização da vida econômica, da ampliação da produção material. Deste conjunto de instituições é possível derivar-se uma imagem da modernidade que era e é a sua força – a promessa de uma sociabilidade enriquecida, de segurança e prosperidade, de saúde e bem-estar, de liberdade e justiça. São estes valores, estes atávicos desejos humanos, que estão na base da formidável adesão que a modernidade ensejou, a adesão das grandes maiorias como se viu em episódios emblemáticos como a Revolução Francesa, como nas grandes revoluções burguesas do século XIX. Contudo, se a modernidade é promessa emancipatória, desencadeou também a captura destas forças de emancipação ao ser transformada em território de um novo senhor – o capitalismo: senhor exigente, tendente ao exclusivismo, que empalmando o conjunto das instituições da modernidade hipertrofiou algumas – o mercado e o indivíduo transformados em religiões absolutistas; esgarçou e fragmentou outras, a cidade transformada em ruínas e interdições; amesquinhou outras, o Estado transformado em instrumento de garantia de privilégios ... É este o quadro que se apresenta no século XIX e que vai inspirar uma ampla e diversificada suspeição sobre a modernidade que resultará tanto em revolta individual contra a inautencidade do mundo, cujo exemplo maior é Nietzsche, quanto na revolta coletiva contra este mesmo mundo de alienação e opressão, cuja expressão maior é Marx. É um tempo de desencanto o século XIX. Max Weber, partindo de Marx e Nietzsche, vai sumarizar este desencanto na denúncia que fez das conseqüências da racionalização do mundo que ele vê como uma nova servidão, como jaula de aço, que aprisiona e interdita toda a possibilidade de vida autêntica. Se o diagnóstico sobre a modernidade de Weber é herdeiro do de Marx, em que a racionalização é pendant de alienação, suas propostas seguem Nietzche e só podem enxergar saída na recusa aristocrática do mundo. É este o sentido da obra de Weber, que Gabriel Cohn sintetizou magnificamente no título de seu livro – Crítica e Resignação (COHN, 1979). 16 Tempo de desconfianças com relação à modernidade, o século XIX contraporá ao exacerbado apego ao mais extremado das tendências modernas, como o positivismo, tendência igualmente extremada, simetricamente inversa, como se vê na explosão dos esoterismos de que é exemplo maior, a teosofia de Madame Blavatsky. O século XIX, é decisivamente, o auge da modernidade na medida em que é o século da plena vitória do capitalismo, da ordem burguesa, auge da modernidade e início da explicitação de suas contradições fundamentais. No centro destas contradições a luta entre o capital e o trabalho, em que o trabalho, herdeiro do melhor da tradição emancipatória, denunciará o capital como a nova forma do obscurantismo, como produtor da barbárie. Para o trabalho, para o movimento operário e sindical, para os partidos e movimentos socialistas, trata-se de afirmar os melhores valores da modernidade – a cidade como espaço da sociabilidade livre e generosa; o indivíduo como sujeito autônomo e criativo; o Estado como força que se realiza pela distribuição – dissolução do poder na sociedade; a racionalidade reconciliada com a natureza e com a alteridade; o bem-estar material resultado da produção colocada a serviço da reprodução ampliada da vida. Os que se reclamam pós-modernos, entendem que as formas degeneradas com que a modernidade se apresenta, desde o século XIX, são seus resultados necessários e inelutáveis, seu caminho natural, o qual deve ser radicalmente abandonado, porque definitivamente comprometido com o totalitarismo, com a barbárie. Neste processo de abandono há seletividade, nem tudo os pós-modernos abandonam. Se condenam Marx ao index dos modernistas emperdenidos, exaltam Nietzsche como infenso ao veneno moderno. Nietzsche, ao recusar o patrimônio da modernidade, ao ver todo o esforço ocidental, desde Platão, de civilizar-se, como decadência, estaria imune à contaminação da modernidade, às perigosas ilusões da modernidade. Na atitude dos pós-modernos há uma escolha radical: condenam a ilusão moderna em nome da mistificação nietzschana e sobre a existência de uma época de ouro, feita de beleza e força, imune à culpa e ao sofrimento. Esta escolha arbitrária e problemática feita pelos pós-modernos resulta afinal em não entender nem mesmo o fenômeno decisivo que reivindica – a crise da modernidade. Incapaz, de fato, de entender a natureza e os desdobramentos da crise da modernidade, os pós-modernos substituem a necessidade da intervenção crítica pela derrisão adesista, pela rendição entusiástica à ordem globalitária. (SANTOS, 2000) 17 O resultado disto é o completo esvaziamento de todos os conteúdos emancipatórios presentes nas instituições da modernidade: se a cidade foi destruída pela lógica capitalista da acumulação, abandone-se a cidade, e não o capitalismo; se a idéia de indivíduo, de sujeito autônomo, degenerou-se no capitalismo em individualismo, egoísmo e privatismo, recuse-se qualquer projeto de reconstituição de identidades coletivas; se o Estado sob o capitalismo e na experiência do socialismo de caserna, tornou-se opressivo, conivente ou instrumento de privilégios, sancione-se o Estado mínimo, o que só garante a propriedade privada; se a racionalidade instrumental mostrou-se instrumento de poder, rejeite-se qualquer forma de racionalidade, desconheça-se a existência de uma racionalidade emancipatória, não manipulatória; se o mercado é o grande vitorioso do momento acomode-se a ele, locupletemo-nos todos. Eis a plataforma de certa corrente pós-moderna. Contra isto, contra a barbárie da dominação capitalista contemporânea, e contra a crise político-cultural contemporânea, crise que tem resultado na referendação do capitalismo, mobilize-se, mais uma vez, a melhor arma do marxismo a arma da crítica. 3. O Marxismo como arma crítica Não é difícil encontrar na obra de Marx diversos momentos e passagens em que há explícita adesão à perspectiva determinista, unilateral, justificando certo juízo condenatório que se faz dele. De outro lado será também fácil encontrar ali momentos e passagens que, também explicitamente, assumem perspectiva aberta, não determinística, que reafirma a centralidade que a história, como projeto, como possibilidade, como luta de classes, tem naquela obra. Daniel Bensaid, em livro recente, sintetizou esta questão chamando a atenção para a existência de uma tensão, no interior da obra de Marx, entre a ciência alemã e a ciência inglesa (BENSAID, 1999, p. 284). Isto é, uma ciência positiva e determinística (inglesa por assim dizer) em contraponto à complexa trama discursiva e conceitual que marca, por exemplo, a crítica de Goethe à teoria das cores de Newton. Hoje, sabemos que Goethe não tinha razão contra Newton, contudo, o equívoco de Goethe não o impediu de desenvolver não uma teoria física de cores, como ele pretendia, mas uma teoria psicológica das cores, isto é, de desenvolver uma teoria sobre a percepção 20 possibilidade de sua integral negação. Neste universo a crítica não é uma operação externa ao objeto, mas a explicitação necessária de seus constituintes. Em Marx, a crítica tem uma dupla origem. Deriva, em primeiro lugar, de Vico e da tese de que só conhecemos o que fazemos e que este exercício de construção é praxis, é intervenção sobre o mundo, intervenção crítica. A segunda matriz do sentido de crítica em Marx é herança hegeliana, que Marx transforma assim: 1) o mundo não se revela imediata e transparentemente, isto é, a essência do mundo está ocultada pela interposição da alienação; 2) a intervenção capaz de desvelar esta aparência do mundo, de superar a sua alienação, é a praxis, a intervenção crítico-prática que se realiza pela explicitação das mediações que compõem a realidade, tomada como totalidade. Neste sentido é felicíssima a tese de Gramsci que vê o marxismo como filosofia da praxis, isto é, filosofia crítica. Se várias são as possibilidades de compreensão da obra Marx insista-se na centralidade do caminho crítico como a expressão definidora da sua obra: da crítica da religião à crítica da filosofia; da crítica da filosofia à crítica do estado; da crítica ao estado à crítica da sociedade; da crítica da sociedade à crítica da economia; da crítica da economia à crítica da economia política. Trajetória complexa, de nenhum modo linear ou evolucionista, trajetória crítica em que a superação dos vários momentos parciais é sempre totalizante. Lembre-se a obra de Marx e seus objetos: sua tese de doutoramento, em 1841, é um exercício de crítica das filosofias de Demócrito e Epicuro; de 1843 é Para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel; de 1844 é a Sobre a Questão Judáica, que é crítica ao filósofo Bruno Bauer; também de 1844 é a Introdução à crítica da Filosofia do Direito; de 1845 é a Sagrada Família, cujo subtítulo é A crítica da crítica crítica ... ; de 1845 As teses, críticas sobre Feurbach; de 1846 A Ideologia Alemã, crítica aos hegelianos de esquerda; de 1847 é a Miséria da Filosofia, crítica a Proudhon; de 1848 o Manifesto Comunista que é crítica do capitalismo e de grupos socialistas; de 1850 é Luta de classes na França; De 1852, a crítica do golpe de estado de Luís Bonaparte; de 1857/1859 os textos dos Grundrisse, e de Para a crítica da Economia Política; de 1862/63 A história crítica da teoria da mais valia; de 1867 a publicação de O capital, Crítica da Economia Política; de 1875; Crítica do Programa de Gotha; de 1880 As Notas (crítica) sobre o Tratado de Adolf Wagner ... 21 A obra de Marx é uma permanente reflexão crítica, sobre diversos aspectos da realidade social, crítica radical do existente, crítica como a intervenção possível num mundo que só é apreensível, e transformável, por meio de praxis, da permanente suspeição, que buscando construir o mundo como liberdade, tem que fazê-lo pela construção da autonomia do social, pela radical distribuição do poder, da riqueza, da informação. Falou-se aqui que a caminhada da obra de Marx como esforço crítico não é evolucionista, no sentido de que a primeira crítica – a crítica da religião – empreendida por Marx seja inferior à crítica da economia política, que é o último termo daquela caminhada por Marx, neste sentido, deve ser visto como um hegeliano conseqüente que ao conceito de evolução contrapõe o trabalho do conceito, a superação, a aufhebung, que significa um permanente movimento de totalização em que se conserva do que foi ultrapassado os elementos universais. Assim a crítica da filosofia, que se segue à crítica da religião, pressupõe a crítica da religião, na medida em que a religião é capítulo subsumido da filosofia, que a abarca e a universaliza. Do mesmo modo a passagem da crítica da filosofia à crítica do estado, da política como exercício do poder, é também crítica da religião e da filosofia. Neste mesmo sentido a crítica da sociedade civil, que se segue à crítica do estado, tem que ser, ao mesmo tempo, crítica da religião, da filosofia e do estado. Finalmente a crítica da sociedade civil que se expressa como crítica da economia política, que é a anatomia da sociedade civil, é síntese das críticas anteriores. Em cada um destes momentos críticos há uma categoria sintética expressiva: na crítica da religião é a alienação religiosa; na crítica da filosofia é a alienação filosófica; na crítica do estado é a propriedade privada; na crítica da sociedade civil é o trabalho alienado; na crítica da economia política é o capital. Neste sentido a crítica ao capital é a crítica à totalização das dimensões problemáticas do ser social no capitalismo. Isto é, a crítica ao capital é a crítica à totalidade contraditória chamada capitalismo, não havendo aí qualquer reducionismo, qualquer economicismo, na medida em que o capital é essencialmente a forma mais desdobrada, metamorfoseada do conteúdo contraditório da realidade capitalista. Deste modo a condenação que se faz de Marx por seu unilateralismo, por seu economicismo, decorre, sobretudo, da incompreensão sobre a estruturação conceitual em Marx. 22 Para melhor visualização da questão tome-se o diagrama abaixo que esquematiza a trajetória – diálogo de Marx com as ciências sociais e suas categorias. Realização Crítica da Economia Política Acumulação (capital) Desigualdade Marx Posição Economia Política Trocas (valor) Igualdade Ricardo Petty Pressuposição Estado Propriedade privada Poder Locke Hobbes No diagrama explicita-se que se o ponto de partida imediato, o posto, no capitalismo é a troca, a igualdade formal dos possuidores de mercadorias, o plano em que pontificou a economia política clássica, de Petty a Ricardo; este plano tem uma dimensão pressuposta, que é o que garante a propriedade privada, a validade dos contratos, pressuposto de toda troca, que é o estado, realidade teorizada pelos contratualistas de Hobbes a Locke; finalmente, também está contido no diagrama a idéia de que o plano da troca, da igualdade formal entre os possuidores de mercadorias, tem um pressuposto no estado, na realização dos direitos individuais, na garantia da propriedade privada, e sua efetiva materialização se dá como explicitação da desigualdade, como reino da acumulação e do capital, como fenômeno disruptivo, como realização do capital como relação social, como poder de comando sobre o trabalho, como valor que se autovaloriza, que é o que Marx identificou como característico do capitalismo. Trata-se, neste sentido, de ver na obra de Marx uma síntese crítica da totalidade da realidade social, síntese que em seus próprios termos não pode acomodar-se, que só pode realizar-se como crítica sistemática do existente. Daí que qualquer tentativa de interromper a caminhada crítica pela adesão a qualquer de seus momentos parciais seja contraditória com o essencial do projeto de Marx, que deve ser visto como realização efetiva do contido no Fausto de Goethe, quando Mefistófeles diz que “tudo o que existe merece perecer”. Esta frase, sobre o papel decisivo da negatividade, impõe uma conclusão essencial – a de que o marxismo está condenado à crítica, à suspeição, que ele é incompatível com
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved