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reflexões sobre os casos de suicídio entre os Guarani Kaiowá, Provas de História

Encantos, simpatias e feitiços: reflexões sobre os casos de suicídio ... Outro tipo de reza que acontece também é sarava – que é feita como simpatia, que é.

Tipologia: Provas

2023

Compartilhado em 16/01/2023

Jandiara62
Jandiara62 🇵🇹

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Baixe reflexões sobre os casos de suicídio entre os Guarani Kaiowá e outras Provas em PDF para História, somente na Docsity! REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 Encantos, simpatias e feitiços: reflexões sobre os casos de suicídio entre os Guarani Kaiowá e Karajá.1 Claudemiro Pereira Lescano Sofia Santos Scartezini2 Resumo Os casos de suicídio e algumas reflexões em torno destes acontecimentos dos pontos de vista Guarani Kaiowá e Karajá são o mote deste trabalho. Esta pesquisa é um esforço metodológico e teórico de discutir os casos alarmantes de suicídio nestas duas populações indígenas e também de fazê-lo a partir de referenciais diversificados. Trata-se de um exercício e de uma tentativa de autoria compartilhada, com as falhas e acertos que estão implícitos no ato. Mais que ambicionar uma dialogia compartilhada, uma vez que as etnografias aqui descritas não são coparticipantes, objetivamos visibilizar os alarmantes casos de suicídio nessas duas etnias indígenas brasileiras, que apresentam índices elevados deste tipo específico de morte. Palavras-Chaves: morte, suicídio indígena, Guarani Kaiowá, Karajá. Summary The cases of suicide and some reflections around these events from the Guarani Kaiowá and Karajá points of view are the motto of this work. This research is a methodological and theoretical effort to discuss the alarming cases of suicide in these two indigenous populations. It is an exercise and an attempt of shared authorship, with the hits and misses that are implicit in the act. Rather than aiming for a shared dialogue, since the ethnographies described here are not co-participants, we aim to show the alarming cases of suicide in these two indigenous brazilian ethnicities, which present high rates of this specific type of death. Keywords: death, indigenous suicide, Guarani Kaiowá, Karajá. 1 Enchantments, sympathies and spells: reflections on suicide cases between the Guarani Kaiowá and Karajá. 2 Claudemiro é doutorando em História na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados). E-mail: guaranilescano@gmail.com. Sofia é doutoranda em Antropologia Social na UnB (Universidade de Brasília). E- mail: sofiascart@gmail.com. 37 REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 Introdução A escrita, mesmo quando solitária, é uma tarefa artesanal em que as disputas de linguagem e representação estão presentes em cada etapa. Respeitando a diversidade de autoria, optamos por marcar o emissor através das marcas linguísticas que obedecem às perspectivas de cada autor. Um dos autores é Guarani Kaiowá, fala de sua etnia e de sua aldeia, e sua escrita marca essa autoridade. A outra autora também é facilmente percebida através do distanciamento linguístico, consequência de quando o ponto de vista é outro. Trata- se de um exercício de escrita dialógico – cabe aqui, alcançarmos a meta de comunicar algumas especificidades Guarani Kaiowá e Karajá sobre as mortes autoprovocadas. Superando as limitações intrínsecas a um estudo comparativo entre os grupos linguísticos Tupi-Guarani e Macro-Jê, este trabalho não se restringe a um estudo que objetiva meramente construir paralelos, mas em dar visibilidade a situação “epidêmica” dos casos de suicídio relacionada a essas duas populações e adentrar as especificidades que envolvem a questão. É comum os casos de suicídio aparecerem enquanto epidemia ou surtos nos estudos médicos, psicológicos, epidemiológicos e antropológicos que se dedicam ao assunto. “Epidemia” é definida como uma doença de caráter transitório que ataca simultaneamente um grande número de indivíduos em uma determinada localidade. O mesmo termo também pode ser entendido como um “surto periódico de uma doença infecciosa em uma determinada população e/ou região”. Epidemia, segundo a epidemiologia, pode ser uma doença, uma fatalidade ou uma diversidade de eventos, como dificuldades relacionadas à saúde mental como a depressão e problemas sociais como a violência e não apenas as doenças transmissíveis, por exemplo. O que se entende como epidemia é um aumento da ocorrência de um determinado evento na tendência atual comparada com uma tendência histórica. Por exemplo, uma morte por suicídio em uma comunidade indígena onde não havia nenhum registro pode ser considerada uma epidemia. Algo que foi erradicado em um determinado local, quando volta a ocorrer, também pode ser considerado uma epidemia. O aspecto local também é importante: o que é epidemia em um local não é necessariamente considerado epidemia em outra localidade, assim, não se trata da quantidade de casos, mas da tendência histórica de um determinado contexto comparada com a atual. E, de fato há uma situação epidêmica, em muitos contextos indígenas em relação aos casos de suicídio. Importante acentuar também as denominações que as mortes autoprovocadas assumem. Nos relatórios, e materiais oficiais que informam sobre as mortes por causas externas intencionais nota-se 38 REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 cometeu o ato. Ele afirma que a mulher não cuidava bem de seu esposo, seu sobrinho. Esta afirmação é de um importante xamã Karajá, que lamenta a morte do rapaz, mas também chama a atenção para as atitudes e faltas da esposa do rapaz, que “judiava, batia” em seu sobrinho. Debrucemo-nos então sobre o polêmico meio utilizado nesta morte voluntária: o enforcamento. Essa modalidade de suicídio, segundo relatos, foi inédita no contexto Karajá e desde então essa morte deu início a muitos outros óbitos da mesma modalidade. Schiel (2017) relata que houve um primo e amigo do rapaz que por solidariedade à dor do homem, que também era seu parceiro de dança nos rituais e festas, suicidou-se logo após o rapaz, utilizando o mesmo método. No entanto, se esta morte solidária foi também proposital – um suicídio –, o mesmo não se pode dizer de muitas outras mortes por enforcamento que seguiram. Ensejando o argumento de Nunes (2017), acredito que no caso Karajá não se trata meramente de um “suicídio solidário”, mas uma miríade de possibilidades que podem estar envolvidas, como a problemática em torno da proximidade temporal e espacial da morte – quanto mais próximo ao acontecimento mais perigoso ele é - ,trazendo a dificuldade de lidar com a lembrança dos parentes próximos sem que a vida seja colocada em risco, ou seja, trata-se propriamente da economia entre os mundos dos vivos e dos mortos. Os relatos de Nunes (2017) fornecidos pelo seu interlocutor e grande pajé curador Karajá revela que após a morte do rapaz que não se adaptou ao regime do casamento, outro pajé da mesma aldeia, feiticeiro, apoderou-se da corda utilizada e desenvolveu um feitiço que atacaria muitas outras vítimas e as levariam ao mesmo destino do rapaz, a morte por enforcamento. Este é um método muito eficaz para atingir os inimigos. O feiticeiro transformou a corda em uma “grande arma”. Dessa forma, os alvos do feitiço de enforcamento - bàtòtàka8 seriam as pessoas novas, sem filhos, assim como o rapaz. O feitiço foi passando de “mão em mão” e alcançou uma potência assustadora em diversas aldeias Karajá. Em relação às problemáticas que envolvem o matrimônio, sejam as brigas conjugais, as dificuldades com o regime monogâmico, a insatisfação em adaptar-se à nova aldeia e a vida de casado ou a dívida contraída pelo homem quando se casa, não seriam elas, um caminho apontado por minha etnografia. Em campo, conversei com diversos jovens insatisfeitos com o comportamento dos parceiros, com as exigências das sogras e sogros, com a contrariedade entre estar na aldeia ou estudar na cidade e manter casamento e filhos, enfim, daí surgem diversas questões. Contudo, não entendo que as mortes voluntárias possam ser, se 8 Nunes glosa o termo por “amarrar a garganta”. 41 REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 o caso fosse de buscar razões, motivadas pelas dificuldades matrimoniais, não é o que demonstra a etnografia. A importância irrefutável que reconheço no caso narrado por Schiel (2017) está em dois fatores: na aparente consciência que o rapaz tinha em tirar sua vida e na inovação do jovem ao cessar sua vida a partir do enforcamento. A partir do uso dessa técnica específica, como narra Nunes (2017), a corda foi apropriada por um feiticeiro que passou a utilizá-la a fim de provocar novas vítimas. Mais a frente, voltaremos à análise do caso Karajá, antes, voltemo-nos aos casos Guarani Kaiowá. No contexto Guarani Kaiowá, também muito conhecido pelos altos índices de suicídio, os registros do Polo Base da SESAI-MS, que atende a 07 aldeias na região de Amambai- MS, também apontam taxas alarmantes de suicídio até o ano de 2015. Após este ano, os dados apontam para uma diminuição dos casos. De acordo com os dados fornecidos pela SESAI- MS, em 2015 ocorreram 16 suicídios. Já em 2016 foram registrados 03 casos. Em 2017, houve um novo aumento, em que se registrou 08 suicídios. E em 2018, já se têm o registro de 04 casos na região. Pensando ainda em uma economia das relações de parentesco, podemos nos aproximar também dos casos de morte por enforcamento que ocorre entre os Guarani e Kaiowá. Pimentel (2017) coloca em discussão se há correspondências entre o que os brasileiros chamam de suicídio e os casos de jejuvy (enforcamento) entre o Guarani. Pimentel aponta que: “As mortes por enforcamento (jejuvy) nesse povo têm uma característica que salta aos olhos: muitas vezes, chamam a atenção a decisão e a força com que o ato é executado. Frequentemente, os mortos são encontrados enforcados em árvores baixas, praticamente arrastando as pernas no chão – quando não com o próprio cinto no pescoço, ou peças de roupa, às vezes nos caibros do telhado de sua própria casa. Como se um sentimento extremamente forte os movesse...” (Pimentel, 2017:88). O autor aponta as múltiplas visões que pairam sobre o suicídio Guarani Kaiowá, desde o debate político local que formula “os Guarani e Kaiowá se matam para ir ao paraíso”, incluindo as ameaças de suicídio coletivo diante do abandono das políticas de estado até as mortes provocadas por decepções amorosas. Sobressai que tanto Pimentel quanto Lescano mobilizam suas etnografias para uma causa convergente: a dificuldade em se alcançar um estilo de vida adequado. Iniciaremos a discussão apresentando os ideais de bem viver e condutas que asseguram uma boa vida, seguido da exposição dos riscos que podem comprometer essa condição entre os povos Guarani Kaiowá. Teko marane’y: o bem viver Guarani Dentro do sistema cultural do povo Guarani Kaiowá há uma regra cultural considerada como teko marane’y. Trata-se do bem viver, aquilo que é bem cuidado que é protegido pela 42 REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 família, comportamento de alegria, de paz, que está direcionado ao Teko marangatu – sujeito que vive bem, que sabe as regras culturais, os cantos as rezas, o respeito, a reciprocidade e vive de acordo com a conduta estabelecida na cultura. Modo de viver bem - Teko marane’ȳ: É um sujeito que o pai e a mãe não amaldiçoaram, é pessoa muito correta, que não precisa de muito esforço para viver bem, tem a clareza de como viver, respeitar e sabe os momentos em que deve participar e também se distanciar, tem a percepção de que não está errando, tem a consciência limpa, não carrega a culpa em si, não tem maldição em seu entorno, sabe que não fez coisas ruins e tem fé, faz a reza, o canto – ñengara - o próprio modo de se apresentar perante Ñane Ramõi (Lescano, 2016:55). O contrário disso é o teko marã – modo de viver ruim que se manifesta na vida de uma pessoa por meio da maldição ou por ser amaldiçoado pelos pais, oheko me’e aquilo que foi feito para ser assim. O teko marã – que produz o teko royrõ. Modo de viver ruim - Teko royrõ: É um sentimento de angústia e limitação que vai se criando no sujeito, sente-se preocupado e culpado, gerando um comportamento estranho na pessoa, que pensa apenas em querer morrer, por ser desrespeitado, por não ser ouvido, não realizar o que deseja. Esse sentimento é mais forte nas mulheres, que sempre precisam ter um cuidado especial para não chegar a essa situação, que leva ao suicídio (Lescano, 2016:58). O teko royrõ é um encanto que pode ocorrer nas pessoas ou a família inteira ou mesmo a uma região da aldeia, e ela é provocada por meio de canto, considerado como moha’y araguaju e kotyhu. Uma reza muito forte que leva ao suicídio, o enforcamento. É um tipo de reza que deixa as pessoas muito tristes e com vontade de ir embora e de querer ficar só. Ela é feita para causar malefícios na vida de pessoas e para maldades. Kotyhu é um canto de encanto muito bonito, se for cantado, no lugar onde a pessoa que cantou, tem que ser cantada outra reza para desfazer o encanto, que é o ombopiroy. Pois se deixar o canto no lugar, as pessoas que passam e que participaram desse canto correm o risco de ficar muito triste, o que também leva ao suicídio. Assim como a reza cantada, também pode ser desfeita para curar o lugar, as pessoas e as famílias. Quem pode desfazer o encanto é a própria pessoa que fez e também o rezador mais respeitado que canta e que protege o povo na aldeia, que pode curar também, assim ele pode desfazer o encanto e curar a vítima. Outra reza muito forte é chamada de moha’y, essa causa doença prolongada e que judia a pessoa e leva inevitavelmente a óbito. Essa reza que causa doença não pode ser descoberta no hospital. É o tipo de reza que não leva ao enforcamento ou suicídio e sim à morte da pessoa por doenças incuráveis. O sintoma é dor intensa com horário definido, a vítima vê cachorros e sonha constantemente com a pessoa que está fazendo o encanto. As pessoas que fazem isso são repudiadas na comunidade e pelos rezadores, porque se torna uma ameaça para a comunidade. Moha’y é feita e cantada para atingir a pessoa, seu corpo. 43 REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 desmaiada. A hàri (pajé), sua filha, veio correndo. Os cachorros estavam muito agitados e latindo muito alto. As filhas de lahi vieram logo após, gritando e chorando. Era espírito ruim. Um feiticeiro da aldeia de Macaúba se transformou em cachorro e veio para atacar a casa. Ele queria entrar, Celina disse que primeiro viu um só, mas depois vieram muitos, uns cinco, e também vinha um tori11 bem baixinho de óculos. Vieram todos em cima dela e ela desmaiou. Estava passando muito mal e a hàri, veio no exato momento do ocorrido, pois viu tudo de sua casa, o que foi possível pela sua condição de pajé, já que os outros não conseguem ver. Há dois tipos de hàri, hàri luahi-dŷŷdu, que são pajés curandeiros e hàri rubo- dŷŷdu, que são pajés feiticeiros. Neste caso, a filha de Celina, que operou o tratamento curativo na mãe enfeitiçada, era hàri luahi- dŷŷdu e o feiticeiro da aldeia de cima, hàri rubo- dŷŷdu. Muitos estavam desconfiados de quem se tratava, mas sabiam do perigo de falar seu nome ou ir atrás em busca de satisfação. O hàri Cleber Kaxuera, em reunião entre os pajés Karajá,12 explicita que há uma importante diferença entre o “pajé do bem” e o “pajé do mal”: O pajé do mal não é tão poderoso quanto o pajé do bem, porque o pajé do mal aprende com outro pajé do mal, na terra mesmo. E o pajé do bem aprende com os espíritos que protegem as matas, os rios e as serras. Quem tem um coração ruim não pode passar no teste de um grande pajé curador. Se a pessoa é do bem, só com o olhar pode combater o mal. Nunes (2016) aponta como é corrente nas falas das pessoas a presença do feitiço como origem dos suicídios, e mais especificamente no caso dos enforcamentos, algo anteriormente incomum aos Karajá, e que tem ocorrido com muita frequência, como vimos. Mesmo pessoas que apontam para alguma outra possível causa em geral também confirmam a existência desse feitiço chamado bàtòtàka (fala feminina) ou bàtòtàà (fala masculina), expressão glosada por “amarrar a garganta” (Nunes, 2016:683). Embora os efeitos comuns causados pelos feitiços sejam dores pelo corpo, no caso deste feitiço, ele causa uma mudança de comportamento repentina do enfeitiçado, que passa do estado de regularidade para um estado em que é comum a ameaça de sua própria vida. Outros sintomas comuns são pensamentos que invadem a cabeça do doente, que escuta vozes que o incita a se enforcar. O feiticeiro faz o feitiço (um objeto no qual ele incorpora uma série de substâncias destinadas a produzir efeitos específicos) e, em geral, enterra-o perto 11 Tori é o termo em inyrabé (glosado como: língua iny, sendo iny o mesmo que “gente” e a autodenominação Karajá) para “não indígena”. 12 Em 2015, ocorreu o I Encontro de Pajés Karajá, junto ao I Seminário Municipal dos Povos Indígenas e Saúde Mental, promovido pelo DSEI/Araguaia, em São Félix do Araguaia. Um dos principais objetivos do evento foi promover o diálogo sobre saúde indígena e os avultados casos de suicídio 46 REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 da casa da pessoa que deseja atingir. Depois, à distância, ele o “benze”, enviando uma ou várias entidades que se introduzem no corpo da vítima, provocando uma transformação radical dos afetos: o alegre se torna triste, o calmo e mensurado se converte em rude e agressivo, alguém que está bem passa a pensar em se matar. (Nunes, 2016:683). Em campo, constatei que muitas pessoas que cometem tal ato, segundo os interlocutores, não teriam motivo algum para fazê-lo, tratando muitas vezes de uma quebra. Para aqueles que se enforcaram vítima do feitiço bàtòtàka, sem um motivo aparente, que estavam com a “vida boa”, como me foi relatado sobre diversos casos, parece haver, para os próprios Karajá, uma incoerência tanto no cessar a própria vida quanto em relegar-se a um destino tão inóspito, e o é, pois para os Karajá, o suicídio reserva ao morto o pior dos destinos pós-morte. Assim, há ainda mais pistas que nos levam à reflexão de que casos de suicídio como esse só poderiam ser compreendidos, ou só fariam sentido, enquanto feitiço. Outro fator, segundo Nunes, que aponta para a evidência de que a feitiçaria seria uma causalidade efetiva, é o fato de que as pessoas se enforcam em um apoio relativamente baixo, em que os pés alcançam o chão, e mesmo assim, elas se deixam enforcar. Muitos do que o fizeram e foram impedidos relataram que não sentiram dor ao se enforcar e que um espírito os puxavam para baixo. É comum naqueles que estão enfeitiçados os relatos de que não sentem dor e que sentem que seu corpo foi “invadido”. Logo, somos levados a conclusão de que para os Karajá, os casos de enforcamentos seriam, em sua maioria, homicídios e não suicídios. A cura para o transtorno que é causado é a intervenção imediata de um pajé curandeiro, cujos trabalhos são caros e poucas famílias conseguem pagar. Além desta questão, são comuns as falas em aldeias Karajá, como em Ibutuna, de que são cada vez mais raros os hàri luahi- dŷŷdu, gerando um desequilíbrio entre os feiticeiros que são muitos e os curandeiros que se refreiam. Entretanto, este não é o único caso de feitiço que alcançou proporções coletivas entre os Karajá: nos anos 1980, ocorreram muitos casos de afogamento e também uma sucessão de desequilíbrios que acometia os jovens e os levava a queimar as casas e a ameaçar e tentar matar pessoas. A razão pela qual os pajés curandeiros não dizimam esses feitiços costuma ser o medo, pois os feiticeiros são jovens que não possuem o conhecimento xamânico adequado e o usam de forma irresponsável, e o feitiço torna-se descontrolado, “passando de mão em mão”, além de ameaças contra sua família e o próprio curandeiro pelos feiticeiros. 47 REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 Este tipo específico de feitiço está amplamente espalhado, como uma epidemia, sendo muito difícil combatê-lo. É comum que nas aldeias Karajá se encontrem significativos números de hàri e mais ainda de potenciais hàri. A reputação dos hàri é baseada na situação de instabilidade daqueles que os cercam: ao mesmo tempo em que sua imagem é relacionada a de uma pessoa com poderes curativos e que possui uma comunicação efetiva com os planos e espíritos, a desconfiança sobre seus poderes que também podem adquirir um objetivo que cause malefício está sempre presente. O que diferencia o “curador”, benigno, ohutibedu, do oworuwedu, maligno, “dono da magia/feitiço” (ou òwòrudu, “o que conhece magia”), termos glosados por Toral (1992), é o fim a que destina seu conhecimento. Os que se dedicam a curar, prestando serviços publicamente para a comunidade, se contrapõem aos que utilizam seu conhecimento de maneira secreta, visando a satisfação de desejos particulares. Dessa forma, mesmo os hàri com fama consagrada de “curadores” confessam adquirir conhecimentos com perigosos hàri, vivos e mortos, muitos deles com reputação consolidada de “trabalhadores da morte”. Toral (1992) cita um exemplo do hàri Ijetura, da aldeia Fontoura, que era visto como um curador respeitado, mas que afirmava abertamente sua relação com Warikirina, um hàri conhecido por seus malefícios. Ijetura afirmava que Warikirina se comprazia em fazer as pessoas definharem e morrerem. Dessa forma, a figura do hàri dificilmente é estabilizada em um polo que poderá ser exclusivamente de benfeitorias ou malfeitorias, é sempre posta em dúvida, são pessoas com quem se deve ter cautela e um bom relacionamento, pois o risco de feitiço existe a todo o momento. É comum em Ibutuna ouvir relatos de pessoas que narram situações que podem ser interpretadas como uma proto-iniciação xamânica. Em muitos desses relatos ouvi que eles se recusaram a se tornar um hàri: “não queriam de forma alguma, lutaram contra”. Estes relatos vão aparentemente na direção contrária do que narra Toral (1992), de que ser um pajé é uma necessidade sentida por todos os homens, pois representa a possibilidade de defender a si mesmo e a sua família. No entanto, apesar dos relatos de recusa à transformação xamânica, há também uma performance de disfarce, enganação e até mesmo um receio de ser acusado de feiticeiro. As denúncias de feitiçaria são associadas muitas vezes a pessoas que estão em recusa ou com algum tipo de dificuldade nas relações de parentesco e cuidado: pessoas que perderam a família ou que estão alheias a seus familiares, homens violentos, que foram abandonados por suas esposas, bêbados, pessoas que sofrem de doenças crônicas, velhos caquéticos, misantropos, pessoas com problemas de ordem neurológica como epilepsia (Toral, 48 REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 corresponda aos dois modelos aqui propostos. A discussão sobre os casos de suicídio indígena tem por objetivo demonstrar que este é um campo merecedor da atenção antropológica. E isso é devido às especificidades de cada caso, que revelam como as particularidades indígenas tem muito a acrescentar ao debate sobre as mortes autoprovocadas. Considerações Finais Através de uma exposição geral dos casos de morte por suicídio entre os povos Guarani Kaiowá e Karajá, objetivamos mostrar a relevância em voltar à atenção a estes acontecimentos. Embora a literatura sobre a morte seja um tema clássico e já muito trabalhado, quando a realidade de pesquisa nos aponta um caminho, é preciso persegui-lo, com a perspectiva de que possa nos levar a novas possibilidades interpretativas e que possam contribuir com os diálogos da disciplina de modo geral. Sobretudo, acreditamos na relevância em dar visibilidade aos casos como forma de denúncia, mas também na tentativa de compreender algo sobre esses fenômenos muitas vezes compreendidos como meramente subjetivos e, de certo modo, obscuros e inacessíveis. Embora não adentremos aqui as discussões das escatologias Guarani Kaiowá e Karajá, em torno da especificidade das mortes autoprovocadas, consideramos a importância também da discussão sobre tais questões. Procuramos passar por algumas questões que julgamos pertinentes a sofisticação da visão sobre o suicídio, objetivando superar as explicações superficiais e muitas vezes mal-intencionadas que circulam para justificar os casos dessas mortes entre populações indígenas. No caso Guarani, o jejuvy pode ser entendido como um ato que envolve o coletivo, mas ainda assim individual, íntimo que pode ser glosado por “aperto na garganta”, “sufoco” contrário ao que se pode chamar de ayvu, aquilo que constitui a pessoa, cuja morada é a garganta. Dessa forma, a fala é um dos atributos do ayvu, a alma, ou alma-palavra. E é isto que os matam, invertendo seu fluxo (FOTI, 2004:57). O feitiço bàtòtàká, Karajá, também cessa a vida pela garganta, mas como apontam os interlocutores, possui uma causa externa. Estendendo as reflexões a um grupo da família tupi- guarani, os Araweté, Viveiros de Castro (1986) demonstra que a morte é um fenômeno que possui sua origem necessariamente em uma externalidade. Para tanto, são comuns as práticas de abstinência para a prevenção de doenças: restrição alimentar, grupos de resguardo que se abstêm reciprocamente. As doenças são definidas como “coisa-dor” (Idem, 1986:471). A especificidade Araweté pode acrescer perspectivas ao entendimento das causas mortis Karajá. 51 REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 Viveiros de Castro (1986) afirma, ainda, que não há mortes por doença, que esta pode ser uma causa eficiente que gera muitas mortes, mas não uma causa final. Pensando nas mortes entre os Karajá, associadas à feitiçaria, o que é produzido na vítima, a doença que pode levar ao suicídio, poderia também ser compreendida como uma causa eficiente e o feitiço, que tira a pessoa do estado de vivente, como a causa final. Sendo assim, debruçamo-nos sobre essas questões a fim de ampliar as reflexões sobre o tema. Entendemos que é fundamental dar visibilidade as questões em torno dos casos de suicídio nos contextos indígenas. Isso se faz ainda mais necessário em um cenário político onde os direitos indígenas à terra e condições dignas de vida estão sob forte ameaça, aumentando ainda mais os riscos já tão conhecidos que pesam sobre as vidas destes povos. Referências BENITES, Eliel. 2018. Kokue: O Sistema de produção Guarani Kaiowa. Dourados. 14 p. Artigo em (Doutorando em Geografia) na Universidade Federal de Grande Dourados – UFGD. COELHO DE SOUZA, M. 2001. Nós os vivos: "construção do parentesco" e "construção da pessoa" entre alguns Jê. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 46, pp. 69-96. FOTI, M. V. 2004. A morte por jejuvy entre os Guarani do sudoeste brasileiro. Revista de Estudos e Pesquisas, 1(2), 45-72. LESCANO, Claudemiro Pereira.2016. Tavyterã reko rokyta: Os pilares da educação Guarani Kaiowá nos processos próprios de ensino e aprendizagem. Campo Grande.108 p. Dissertação (mestrado em educação) Universidade Católica Dom Bosco. NUNES, E. S. 2012. Lembrar dos vivos, esquecer dos mortos: parentesco e memória entre os Karajá de Buridina (Aruanã – GO). Em. PIMENTA, J.; SMILJANIC, M. I. (Orgs.). Etnologia indígena e indigenismo. Brasília: Positiva. pp. 185-207. ____________. 2017. Karajá/Javaé: Nó na garganta. In: Beto Ricardo e Fany Ricardo. (Org.). Povos Indígenas no Brasil 2011-2016. 1ed. São Paulo: Instituto Socioambiental. PEREIRA, Levi Marques.2006. Assentamentos e formas organizacionais dos Kaiowá. Mato Grosso do Sul, Tellus, ano 06. 52 REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(2), 2018 PIMENTEL, Spency K. 2017. Contra o que protesta o kaiowa que vai à forca? uma reflexão etnográfica sobre percepções não indígenas frente a intenções e sentimentos indígenas. Em: Lorena Campo Aráuz; Miguel Aparício. (Org.). Etnografías del Suicídio en América del Sur. 1ed.Quito: Abya Ayala/UPS/Neai, 2017, v. , p. 285-314. SESAI. Saúde Indígena: um direito constitucional, 2018.Brasília-DF. ______. 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