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Relações Dialógicas e Discurso Citado na Luta Estudantil: Poema 'Tecendo a Manhã' de João , Notas de estudo de História

Este documento analisa as relações dialógicas e o discurso citado, conceitos desenvolvidos por mikhail bakhtin e seu círculo, aplicados ao contexto da luta estudantil contra o regime militar no brasil em 1976. O estudo foca no poema 'tecendo a manhã' de joão cabral de melo neto, utilizado como tema referencial do grupo, e analisa as relações entre o poema, as imagens, atores sociais e ações relevantes desse evento. O objetivo é oferecer ferramentas para uma reflexão linguística sobre as relações observáveis entre discursos e eventos históricos.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Neymar
Neymar 🇧🇷

4.7

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Baixe Relações Dialógicas e Discurso Citado na Luta Estudantil: Poema 'Tecendo a Manhã' de João e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! RELAÇÕES DIALÓGICAS E DISCURSO CITADO: TECENDO UMA HISTÓRIA COM BAKHTIN E JOÃO CABRAL DE MELO NETO Nilzete Cruz Silva Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir a importância da abordagem discursiva ao se examinar a linguagem. Para isso, utilizam-se os conceitos de relações dialógicas e discurso citado, construídos por Bakhtin e seu Círculo, buscando analisar de que forma estes se fazem presentes nos discursos e como, através deles, os enunciados se reiteram, com o passar do tempo, renovando-se a cada contexto em que são lembrados, repetidos ou citados. Tendo como pano de fundo a luta dos estudantes de uma universidade contra o Regime Militar, sob o qual o Brasil ainda vivia no ano de 1976, analisa-se a relação entre o poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto – que foi usado como tema referencial do grupo na referida luta – e as imagens, atores sociais e ações relevantes desse evento. Assim, evidencia-se uma das muitas formas de atualização da linguagem, que ratificam o pensamento bakhtiniano de que a “palavra não tem princípio nem um fim”, ao contrário, ela se renova em cada enunciado, em cada momento, em cada sujeito histórico. O estudo desenvolvido visa a oferecer instrumentos para uma reflexão linguística que explicite relações observáveis entre discursos e eventos sócio-históricos. Palavras-chave: Linguagem; enunciado; relações dialógicas; discurso citado. INTRODUÇÂO Escrever sobre os conceitos de Bakhtin é escrever sobre linguagem enquanto o exercício da fala entre os indivíduos de uma sociedade, sobre discurso, mas é principalmente escrever sobre enunciados enquanto atos de fala. Dentre os vários conceitos trabalhados por Bakhtin, faremos uma análise, neste artigo, de relações dialógicas e discurso citado, cujas definições estão de acordo com os fatos acontecidos durante o processo de resgate das memórias de um contexto histórico a partir da audição do poema Tecendo a Manhã, como se ele fosse uma chave que, ao ser girada, abre uma porta que dá acesso a um mundo de lembranças. Essas lembranças estabelecem relações dialógicas entre passado e presente como se o tempo deixasse de existir e restasse apenas uma jovem de vinte anos participando de um movimento perigoso, porém excitante e cheio de aventuras. CONTANDO UMA HISTÓRIA Enquanto Saussure considerava a língua (os signos) como objeto da Linguística, Bakhtin considerava o enunciado como objeto a ser estudado pela Linguística, uma vez que a linguagem, para ele, está sempre em movimento, em transformação e não pode ser estudada por um sistema estático, imutável como é um sistema de uma língua, com seus signos e significados paralisados em um dicionário. O signo, como unidade básica da Língua, para Saussure, faz parte “de uma construção teórica, que dispensa os sujeitos reais do discurso” (RIBEIRO, 2006, p. 5). Já o enunciado, para Bakhtin, é a unidade básica da linguagem e para ser um enunciado ele deve se realizar historicamente. Ele “acontece em um determinado “inimigo” comum, utilizar-se de um discurso escrito em outro contexto, com outros sentidos, e em outra época, como se aquelas palavras tivessem sido escritas sob medida para dar vida aos propósitos daquele momento. Essa é a magia da renovação dos sentidos de palavras que não envelhecem, que não têm começo nem fim. A apropriação do poema de João Cabral, como um lema a ser lembrado em cada momento da luta pela democracia, representava a citação de um discurso repleto de autoridade e de sentidos do seu autor, e se constituíam em uma relação dialógica com os desejos dos estudantes naquele momento histórico. Nenhum estudante sabia em que circunstâncias aquele poema foi escrito: quando foi, qual a inspiração do autor nem os sentidos imaginados por ele. O que se tinha certeza é de que aquelas palavras foram escritas para todos que participavam daquele movimento, com um único sentido: os objetivos só seriam alcançados com a união de todos. A citação de um discurso, mesmo já tendo se passado muito tempo, cujos sentidos são renovados, mostra a beleza da linguagem que quebra as barreiras do tempo e do espaço para se tornar nova, atual e revigorada pela força das relações dinâmicas e interativas que se formam entre discurso citado e o contexto narrativo que se forma a partir dessa citação. No capitulo nove da obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, intitulado “O discurso de outrem,” Bakhtin inicia afirmando que o discurso citado é “o discurso no discurso, a enunciação na enunciação”, mas também é “um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (2004, p. 144). Parece confuso à primeira vista para os iniciantes em Bakhtin, mas ao se pensar em um discurso citado, como o poema Tecendo a Manhã, utilizado em 1976, podemos perceber que ao ser “tomado” pelos estudantes, com um fim específico, ele se tornou um discurso dos estudantes, mas é o discurso de João Cabral de Melo Neto, autor original, primeiro. E a enunciação desse autor original torna-se a enunciação dos estudantes no milagre das relações dialógicas. RELAÇÕES DIALÓGICAS A respeito das relações dialógicas, Faraco (2009) nos esclarece que Bakhtin as entendia com sendo extralinguísticas, mas ele não se apartou do campo do discurso. Isso é tão verdadeiro que em um trecho de Estética da Criação Verbal ele diz: “A linguagem vive na comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem” (BAKHTIN, 2004, p.183). Para ele as relações lógicas só se transformam em dialógicas quando elas passam a existir enquanto discurso, ou seja, tornam-se um enunciado, com um autor, cuja posição foi expressa nesse enunciado, determinando a posição social do sujeito enunciador; só dessa forma poder-se-á responder, isto é, “fazer réplicas ao dito... dar acolhida fervorosa à palavra do outro, confirmá-la...buscar-lhe um sentido profundo, ampliá-la” (FARACO, 2009, p. 66). Percebemos então que as relações dialógicas são relações de sentido entre enunciados. A partir dessa exposição, podemos compreender porque o poema Tecendo a Manhã, um enunciado de João Cabral, tornou-se uma enunciação dos estudantes, com um sentido perfeito para o contexto ideológico em que foi utilizado em 1976. O discurso de Cabral, escrito em 1966, estabelecia relações dialógicas com um grupo de pessoas dez anos depois de escrito em outro contexto e talvez para outros fins, mas seu sentido correspondia ao sentido dado pelos estudantes em 1976. Era o mesmo dizer. Ao se referir ao texto “O problema do texto”, Faraco comenta que foi nele que Bakhtin caracterizou relações dialógicas, como “relações de sentido que se estabelecem entre enunciados, tendo como referência o todo da interação verbal e não apenas o evento da interação face a face” (FARACO, 2009, p. 65). Para Bakhtin se dois ou mais enunciados se aproximam no que diz respeito ao sentido, então eles certamente estabelecerão relações dialógicas. Faraco ainda complementa que “Mesmo enunciados separados um do outro no tempo e no espaço e que nada sabem um do outro, se confrontados no plano do sentido, revelarão relações dialógicas” (idem). As relações dialógicas podem ocorrer não só entre enunciados completos, mas entre qualquer parte de um enunciado, mesmo que em uma só palavra, desde que esta represente uma posição, um enunciado de outra pessoa; que nela seja ouvida a voz de outro. No caso do poema em questão, as relações dialógicas aconteciam entre um discurso integral. CONTEXTO HISTÓRICO Para quem não viveu ou não compreendeu o Regime Militar sob o qual o Brasil viveu entre os anos de 1964 a 1979, vai aqui uma contextualização necessária. A década de 60 do século XX foi marcada por acontecimentos extraordinários que transformaram os destinos da humanidade, de forma tão decisiva que alguns representaram não passos, mas saltos evolutivos ao encontro de benefícios para o homem. O primeiro computador eletrônico (O RAMA F 303) foi lançado no início da década e nos dias de hoje é difícil existir uma atividade ou uma pessoa que não esteja de alguma forma, direta ou indiretamente “ligado”, conectado a um deles. Em 1961, o primeiro homem entra no espaço e, em 1969, ele pisa na lua e retorna a Terra, vivo. Em 1967 é realizado, na África do Sul, o primeiro transplante de coração no ser humano e o mesmo ocorre no Brasil em 1968. No Brasil, um divisor de águas que afetaria todas as áreas de desenvolvimento foi o golpe de Estado que atingiu o governo brasileiro em Março de 1964, quando os militares assumiram o poder após uma série de acontecimentos que começaram com a renúncia do presidente da Republica eleito, Jânio Quadros e culminaram amizade e união parecer mais real e onde o sentido do poema soava como verdade em cada coração. Cada um daqueles estudantes acreditava que, como dizia o poema, um galo só não teceria uma manhã, ou seja, uma pessoa só, não conseguiria derrotar a ditadura. Era preciso a união de todos. Aquele poema foi gravado a fogo na memória de cada um deles, pelo menos durante os anos de universidade. Para alguns como esta autora, ele ficou gravado para sempre, uma vez que passados trinta e seis anos, onde quer que ele seja visto ou ouvido, todas as lembranças ligadas àquele período histórico se materializam na existência presente, com todas as cores, sabores, emoções e sensações. Era como se o tempo abrisse suas fronteiras e passado e presente perdessem suas características, colocando-a de novo naquela mesa de bar, lendo aqueles versos em uma parede branca, envolta em uma penumbra de fim de tarde, tornando-a novamente parte de um universo, cuja dimensão de perigo, ameaça de prisão e tortura não passavam pela cabeça. Por que aquele poema fazia tanto sentido para aquelas pessoas? Em primeiro lugar, todos aqueles estudantes, que participavam do movimento, se consideravam inteligentes, politizados, bem informados e engajados em uma luta contra o regime político: atividades que envolviam coragem, comprometimento, desejo de liberdade e principalmente conhecimento do contexto que envolvia risco de vida, e mesmo assim se entregar à luta. Então, participar era para poucos e esses poucos se sentiam os eleitos, os heróis. A vanguarda. Era o idealismo próprio da juventude; era a ilusão de mudar o mundo em que só um jovem pode acreditar. Em segundo lugar, toda aquela intelectualidade entendia de arte, de música, de literatura, inclusive de poesia. Os autores mais admirados deveriam ser de vanguarda: novos, diferentes, transgressores, ou pelo menos que tivessem o protesto como bandeira. Vários artistas eram admirados, imitados e seus trabalhos falados, contados, expostos. Cada área da cultura possuía ídolos aclamados pelo movimento, todos comprometidos com a nova ordem de, explicita ou muito mais implicitamente, lutar contra a ditadura militar. Chico Buarque era o grande ídolo juntamente com os tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil que faziam shows no campus universitário. Então, João Cabral de Melo Neto, com sua poesia concreta e realista, também se tornou uma referência. E por último, o poema Tecendo a Manhã é liricamente um chamado à união de muitos para um objetivo comum. Em seus versos, fica claro que se quisermos uma manhã, depois de uma longa noite, muitos galos terão que cantar, juntos, até o resplandecer do sol. Para quem entendia a luta contra a ditadura, que almejava um dia acordar em uma democracia, aquele poema era um hino; uma promessa de que bastaria a união de todos para chegarmos lá. Era a metáfora perfeita em uma época em que falar por metáfora era a forma mais segura de se manifestar contra o Regime sem correr maiores riscos. Isso acontecia na música, na poesia, no teatro e na literatura. O poema Tecendo a Manhã, segundo o critico Dudu Oliveira (2010). ”faz parte de um conjunto de meta poemas lançado em 1966 que consolidariam a abordagem lógica da preciosa poesia de Cabral”. Esse crítico ainda acrescenta a forma lógica, objetiva, voltada para a realidade dos objetos e dos fatos sociais, como características da obra de Cabral: “Essas características levaram a crítica a ver na obra de João Cabral uma „ruptura com o lirismo‟ ou a considerar sua expressão poética como „antilírica‟. Não devemos, entretanto, supor que essa relação do poeta com o mundo concreto, objetivo, produza apenas textos descritivos. Na verdade, suas descrições ora acabam adquirindo valor simbólico, ora acabam denunciando a critica social que o poeta pretende levar efeito” (idem). DISCURSO CITADO Cabral era, então, o poeta do movimento estudantil em 1976 e seu poema Tecendo a Manhã seu discurso, suas palavras, que tomadas pelos estudantes, transformaram-se em seu próprio discurso, em suas próprias palavras, que os mantinham unidos e motivados. O tema do discurso de Cabral se tornou o tema do discurso dos estudantes. É o pensamento de Bakhtin se comprovando na prática das relações dialógicas. Bakhtin afirma que: [...] quando passa a unidade estrutural do discurso narrativo, no qual se integra por si, a enunciação citada passa a constituir ao mesmo tempo um tema do discurso narrativo. Faz parte integrante de sua unidade temática, na qualidade de enunciação citada, uma enunciação com seu próprio tema: o tema então torna-se o tema de um tema (2004, p. 144). Para Bakhtin, o falante, ao utilizar um discurso de outrem, ele sabe que é de outro, com uma existência autônoma, mas mesmo assim ele se torna um discurso dentro de um novo contexto narrativo. Em relação ao poema de Cabral, todos os estudantes sabiam que aqueles versos pertenciam a um autor específico, mas dentro daquele contexto das reuniões de final de tarde, naquele bar tão conhecido, aquelas palavras se tornavam palavras dos nossos líderes. Eram eles falando para nós; era a recepção ativa do discurso citado. Bakhtin explica de que forma realizamos essa recepção em nossa consciência e como nos deixamos influenciar pelas palavras de um narrador de um discurso citado:
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