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A Violação do Dever de Obediência Militar e a Isenção de Responsabilidade Criminal na Colômbia, na Inglaterra e em Portugal, Trabalhos de Direito Comparativo e Política

Uma análise comparativa dos antecedentes históricos militares da Colômbia, Inglaterra e Portugal, com o objetivo de configurar a importância da atuação militar ao longo da história. O texto aborda a história militar da Colômbia, desde a luta pela independência até a recente guerra civil, e apresenta as instituições militares do país. Além disso, o documento também discute a história da Marinha Real e do Exército britânico, bem como a história militar de Portugal. O trabalho foi realizado por Carolina Carvalho, aluna de Direito Comparado, e apresentado como trabalho acadêmico.

Tipologia: Trabalhos

2023

À venda por 12/10/2023

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Baixe A Violação do Dever de Obediência Militar e a Isenção de Responsabilidade Criminal na Colômbia, na Inglaterra e em Portugal e outras Trabalhos em PDF para Direito Comparativo e Política, somente na Docsity! 1 Direito Comparado – Ano Letivo 2022/2023 A VIOLAÇÃO DO DEVER DE OBEDIÊNCIA MILITAR E A ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE CRIMINAL NA COLÔMBIA, NA INGLATERRA E EM PORTUGAL Carolina Carvalho, n.º 66460 Turma B, Subturma 12 2 DECLARAÇÃO DE ORIGINALIDADE: Eu, Carolina Carvalho, declaro que o presente trabalho foi realizado exclusivamente por mim e que qualquer opinião de outro(s) autor(es) está devidamente assinalada em formato de citação. Declaro igualmente que cumpri todas as regras científicas de autoria. 5 II. ANÁLISE COMPARATIVA 1. Antecedentes históricos militares2 1.1. Colômbia Durante cinquenta e dois anos, 1964 – 2016, a Colômbia viveu uma guerra civil que se caracterizava pela disputa entre o Governo, paramilitares de Direita, o Exército de Libertação Nacional, as Forças Armadas Revolucionárias, traficantes de droga e outros grupos de Esquerda. O referido conflito foi impulsionado por uma antiga disputa aguda em torno do poder entre o Partido Conservador e o Partido Liberal. 3 Contudo, a história militar da Colômbia remonta a tempos mais longínquos. Desde o século XIX, com a luta pela sua independência, 1810 – 1819, que os colombianos enfrentam uma panóplia de conflitos armados marcantes, por exemplo: a Guerra dos Mil Dias, estimulada mais uma vez pelo confronto entre liberais e conservadores. Todas as guerras civis que assinalam a história da Colômbia são fundadas por diferenças a nível político, ideológico e até religioso e situações de carência social para além disso, a guerra é vista como um meio para alcançar o poder político imensamente desejado. É necessário fazer uma ressalva dado o supracitado sobre a recente guerra civil, embora terminada, ainda surgem confrontos entre narcotraficantes e outros pequenos grupos políticos. Atualmente, a Colômbia está a sedimentar as suas estruturas políticas e sociais, no entanto, o ambiente que se vive ainda é instável e acentuado por alguma violência. Analisando, agora, as instituições militares: o Exército Nacional Colombiano integra a força terrestre e foi formado em 1819. O recrutamento é obrigatório dada a urgência de lutar nas guerrilhas dos narcotraficantes e nas de Esquerda sendo, para o 2 Analisar-se-á os antecedentes históricos militares da Colômbia, Inglaterra e Portugal no sentido de configurar a importância da atuação militar ao longo da História. Não se procederá ao enquadramento histórico do instituto do dever de obediência militar neste tópico, mas no 2 mediante a contextualização daquele dever ao se estabelecer pontos de contacto com a realidade atual. 3 Conflito armado interno despoletou oficialmente em 1964, embora já pautado por tensões subjacentes à disputa pelo poder referentes a 1948 quando os liberais se organizaram e associaram aos socialistas em oposição aos conservadores entrando numa guerra civil que durou cerca de 16 anos. No entanto, em 2016, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia celebraram um Acordo de Paz com o Governo abandonando, assim, o conflito e deixando de existir como organização paramilitar. 6 efeito, convocados os homens com dezoito anos para o cumprimento do serviço militar. A Força Aérea Colombiana, por sua vez, tem como objetivo garantir a defesa da soberania do país, controlar o espaço aéreo, defender a ordem constitucional e a integridade territorial. Este ramo de força, aumentou consideravelmente graças ao conflito armado com as Forças Armadas Revolucionárias, mantém operações de antiterrorismo e de desmantelamento do narcotráfico através de apoio aéreo aproximado e de técnicas de bombardeio estratégico. Por último, a Armada Nacional da Colômbia (ARC – Armada de la República de Colombia) que constitui o ramo naval das Forças Armadas, é responsável pelo controlo do mar e teve grande relevância no conflito com o Peru, em 1932, reaparecendo com mais pujança pela agregação da Escola de Marinheiros da Marinha (Escola de Grumetes) e a Escola de Oficiais da Marinha (Escola de Cadetes) na sua área.. 1.2. Inglaterra O mais antigo ramo das Forças Armadas britânicas é a Marinha Real, fundada no século XVI, cuja ao longo da História mostrou-se uma força bastante poderosa: com a Segunda Guerra Anglo-Holandesa foi criado o Regimento Marítimo de Infantaria do Duque de York e Albany, grande marco que contribuiu para formação da Marinha, de seguida, com a Guerra da Sucessão Espanhola já se verificava a existência de seis regimentos de fuzileiros navais e nessa época ocorreu uma conquista épica deste ramo com a captura em Gibraltar “Their most significant achievement was the capture of the mole during the assault on Gibraltar (sailors of the Royal Navy captured the Rock itself) and the subsequent defence of the fortress alongside the Dutch Marines in 1704”4; “They were among a brigade soldiers who successfully attacked Gibraltar, before holding its fortress under constant siege from the enemy.”5. Já no século XIX, com a Primeira Guerra Mundial, dois navios de fuzileiros reais desembarcaram, lutando na Europa e na Ásia simultaneamente, por outro lado, em 1918 foram anfitriões de um grande ataque a Zeebrugge onde destruíram imensas armas alemãs como resposta à recusa destes em conceder-lhes passagem pelo canal de Bruges. Muito mais tarde, quase um século depois, entre 2001 e 2014 encabeçaram uma operação de contrainsurgência de treze anos no Afeganistão. Em 2017, após a passagem do furacão IRMA, a Marinha viajou para Caribe 4 https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_the_Royal_Marines 5 https://www.royalnavy.mod.uk/news-and-latest-activity/features/royal-marines 7 ao intervir numa campanha de socorro internacional consertando escolas, hospitais e distribuindo alimentos pela população. Noutra perspetiva, o Exército britânico, encarregado de assegurar o cumprimento dos compromissos internacionais e de garantir a defesa nacional, não era mais do que um grupo de soldados domésticos do rei. Com a passagem do tempo, e a introdução do feudalismo, surgiram os cavaleiros e os seus auxiliares, a infantaria e os artesãos militares, os arqueiros evoluíram, e combateram na Guerra dos Cem Anos (1337 – 1453) e na Guerra das Rosas (1455 – 1485/87). Em 1645, ficou registada a existência do primeiro exército inglês permanente formado por Oliver Cromwell. Anos mais tarde, a Declaração de Direitos Inglesa, 1689, concedeu ao Parlamento o controlo do Exército que se mantém até aos dias de hoje, seguidamente, nos séculos XVIII e XIX, com o desenvolvimento do Império colonial britânico, o Exército cresceu consideravelmente, conquistou importância e combateu nas Guerras Napoleónicas, na Primeira Guerra Mundial e na Segunda Guerra Mundial e só no final desta última as tropas que se encontravam destacadas no exterior regressaram a casa a par da independência das colónias. O recrutamento deixou a sua vertente de obrigatoriedade e passou a ser voluntário. Por fim, relativamente à Força Aérea recue-se até 1918 quando aquela foi formada como um serviço autónomo e independente do Exército e da Marinha lutando oficialmente a partir do dia 1 de abril do respetivo ano com a fusão de duas forças: Royal Flying Corps e Royal Naval Air Service; a fim de reforçar a força aérea, ramo que teve muito impacto na Primeira Guerra Mundial e na interrupção da ofensiva de primavera do Exército Imperial Alemão6, ainda em 1918. A função assumida pela Força Aérea Real era patrulhar o Império britânico do ar. Prestou serviço no Afeganistão, Iraque, na Guerra das Malvinas, em Belize, na Guerra do Golfo e nos Balcãs, desenvolveu operações de bombardeio estratégico contra o inimigo, assim também como progrediu, relevantemente, ao acompanhar a evolução das tecnologias na época da Guerra Fria 1.3. Portugal O Exército Português configura o ramo terrestre das Forças Armadas. Em retrospetiva, com a Batalha de São Mamede, com a Reconquista, as sucessíveis batalhas 6 “série de ataques alemães ao longo da Frente Ocidental durante a Primeira Guerra Mundial, começando em 21 de março de 1918.” – Wikipédia: https://en.wikipedia.org/wiki/German_spring_offensive 10 inconstitucionalidade do Ato Legislativo pela sentença C-740 de 2013 da Corte e, por sua vez, o novo Projeto de Lei N.º 85 de 201311 estipula que a Justiça Criminal Militar não ouvirá crimes contra a Humanidade cometidos pela Força Pública, sendo essa competência atribuída exclusivamente às Cortes Marciais, Militares ou Policiais. Esclarecida a delimitação da competência das Cortes específicas para a feitura dos julgamentos desta natureza e em que termos se realizarão, importa colocar a questão sobre a qual assenta o motivo de realização do presente trabalho: 2.1.1. O QUE É O DEVER DE OBEDIÊNCIA MILITAR? A Corte colombiana na Sentença C-578 de 1995 afirma que a devida obediência é fundamental para a estrutura e organização hierárquica das Forças Armadas, porém, é o art. 91.º da Constituição Política de 1991 que consagra o princípio da devida obediência e a responsabilidade que decorre da execução de ordens violadoras das normas constitucionais: “En caso de infracción manifiesta de un precepto constitucional en detrimento de alguna persona, el mandato superior no exime de responsabilidad al agente que lo ejecuta. Los militares en servicio quedan exceptuados de esta disposición. Respecto de ellos, la responsabilidad recaerá únicamente en el superior que da la orden.”12 Perante o disposto, é possível proceder à interpretação de que se a ordem for ilegítima (porque não observa as formalidades legais ou porque viola os direitos humanos e não respeita o ordenamento jurídico-constitucional), o subordinado não é obrigado a obedecê- la, no entanto, caso o faça a responsabilidade recairá sobre o superior que expedir a ordem e o inferior hierárquico que a cumprir ou executar. Por outro lado, se o comando é legítimo implica o acatamento pelos subordinados de ordens emanadas pelos seus superiores e se o militar não o fizer ou impedir outro de o fazer incorre em insubordinação punível com três a seis anos de prisão13. Isto é a consistência da obediência militar. 11 A referência ao Projeto de Lei no Senado é feita pelo n.º 85 de 2013, mas na Câmara dos Deputados corresponde ao n.º 210 de 2014. 12 “Em caso de manifesta violação do preceito constitucional em prejuízo de uma pessoa, o mandato (ordem/comando) superior não exime de responsabilidade do agente que o executa. Os militares em serviço excetuados desta disposição, em relação a eles, a responsabilidade recairá sobre o superior que der a ordem”. 13 Artigo 93.º da Ley 1407 de 2010: “El que mediante actitudes violentas en relación con orden legítima del servicio emitida con las formalidades legales, la rechace, impida que otro la cumpla, o que el superior la imparta, o lo obligue a impartirla, incurrirá en prisión de tres (3) a seis (6) años.” 11 2.1.2. OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA Dada a complexidade deste princípio, veja-se a sentença C-570 de 2019 da Corte Constitucional onde um cidadão intentou uma ação de inconstitucionalidade do artigo 76.º, n. º18 e 19 da Lei 1.862 de 201714 por violação da liberdade de consciência subjacente à obediência devida: 1. Para o autor, a jurisprudência constitucional tem demonstrado que a Constituição Política repudia os militares que obedeçam cegamente às ordens proferidas pelos seus subordinantes e que respeitante à liberdade de consciência considera-se que este direito é ignorado ao penalizar fortemente uma pessoa por exigir fundamentação da ordem a seguir com o intuito de não agir contra a sua consciência. Faz ainda menção que muitos militares foram condenados por cumprirem ordens que não deveriam ter cumprido e, posteriormente, não puderam invocar o princípio da obediência estabelecido na Constituição como forma de isenção de responsabilidade criminal; 2. A posição do Ministério da Defesa baseia-se no facto de uma decisão final adotada por um comandante ser precedida de um processo ordenado, estruturado, constante e estratégico de modo a não causar resultados inesperados que levem à assunção de responsabilidades desnecessárias; 3. Do ponto de vista das Forças Militares, devem ser decretadas exequíveis as normas que o autor suscitou a inconstitucionalidade por não serem contrárias à liberdade de consciência ou às regras constitucionais de responsabilidade disciplinar aplicáveis aos agentes militares; 4. Segundo o Instituto Colombiano de Direito Processual, as normas não devem ser interpretadas de forma radical como propõe o autor; 5. Para a Procuradora-Geral da Nação, as normas são exequíveis. Decisão da Corte: 14 Lei que estabelece as normas de conduta dos soldados. Ao abrigo do artigo 76.º, respeitante a falhas graves, os n.ºs 18 e 19 dispõem sobre o que constitui uma falha grave na disciplina militar: “a exigência de explicações ao superior hierárquico com base numa ordem, reconvenção ou observação, na execução de atividades militares; o incumprimento ou alteração, sem autorização, das ordens emanadas pelos superiores na execução de atividades militares.” 12 1. A impossibilidade de impugnação de ordens ilegítimas que violem os direitos humanos, o DIH ou o Direito Internacional dos Direitos Humanos é contrária à liberdade de consciência; 2. O princípio da devida obediência, art. 91.º da CP91, nunca pode ser entendido como um princípio de obediência cega. O preceito suscita dúvidas mediante uma leitura textual, mas por meio de uma interpretação sistemática do Código Disciplinar Militar é permitida a aplicação da norma jurídica de acordo com a Constituição face ao art. 76.º, n. º18 da Lei 1.862 de 2017. O legislador viola a liberdade de consciência com a norma do n.º 18 do art. 76.⁰ ao sancionar, disciplinarmente como falta gravíssima, um militar que pretenda uma explicação da ordem quando esta implica uma violação dos direitos humanos e uma infração do Direito Internacional Humanitário; 3. Quanto ao art. 76.º, n.º 19, a Corte considerou que o legislador não violou o princípio da devida obediência, ou seja, a norma proíbe que um subordinado questione o superior e exija do mesmo uma explicação sobre os fundamentos da ordem, por este proferida, no desenvolvimento das operações militares. Não se proíbe que o agente pergunte sobre o significado e o alcance da ordem porque não a compreendeu totalmente ou porque não tem capacidade para a cumprir. 2.1.3. OCORRÊNCIAS REAIS 2.1.3.1. RESPONSABILIDADE DO ESTADO? UM SONHO OU UMA REALIDADE? Será presumível que o Estado se responsabilize pela conduta ilícita dos agentes militares, estes na condição de seus funcionários e integradores da instituição estatal? É possível que o Estado seja responsabilizado tanto pela ação como pela conduta omissiva da Força Pública? Tem vindo a ser cada vez mais verificável a existência de muitos casos em que a justiça penal militar exonera a responsabilidade do Estado. Estas situações são recorrentes para o Sistema Interamericano dos Direitos Humanos, uma vez que a Colômbia não detém recursos ou a competência adequada para julgar cenários desta natureza. Examine-se a atrocidade dos seguintes casos: 15 i. O Estado colombiano deve pagar às vítimas US$20.000 e US$15.000 (2x)20 para ajudar nas despesas de saúde; ii. O Estado deve promover programas de educação sobre o respeito pelos direitos humanos dirigidos às Forças Armadas; iii. A Colômbia deve proceder a uma investigação para apurar responsabilidades. NOTA: Nos três casos, a Colômbia não cumpriu totalmente ou parcialmente o estipulado. A par das situações supracitadas, é relevante identificar o artigo 90.º da CP91 que estipula que o Estado responderá pelos danos ilícitos provocados pela ação ou omissão das autoridades públicas e que caso seja condenado à reparação patrimonial de um dos danos como consequência da conduta dolosa e grave do seu agente, o agente responde perante o Estado. Por sua vez, tendo por base os massacres anteriormente analisados onde há uma hipotética colaboração do poder público com os agressores/homicidas, a Carta de Londres de 194521 refere no seu artigo 8.º: “O facto de o arguido ter agido de acordo com instruções do seu Governo ou de um superior hierárquico não o isenta de responsabilidade.” Contudo, o Estatuto de Roma do Tribunal Internacional de 1998 dispõe no artigo 33.º, n. º1 que o sujeito em cumprimento de uma decisão proferida pelo Governo ou por um superior hierárquico, que seja militar ou civil, não fica exonerado a menos que estivesse obrigado por lei a cumprir ordens emanadas pelo Governo ou pelo respetivo superior hierárquico; não tinha conhecimento da ilegalidade da ordem e a mesma não era manifestamente ilícita. Deste modo, é possível dizer que a responsabilização do Estado diante deste tipo de condutas pelos agentes militares é uma realidade formal embora as reparações pelos danos possam ser consideradas ainda uma aspiração. 20 Correspondente a 18146,35€ + (13609,76€ x 2) = 45365,87€, atualmente (24.04.2023, 10h:36m – é necessário fazer uma ressalva para o momento preciso da consulta destes dados tendo em conta as constantes alterações da valoração da moeda). Para a observância das referências monetárias consultar: https://www.google.com/finance/quote/USD-EUR?sa=X&sqi=2&ved=2ahUKEwiwqv2vmsL- AhVfcfEDHTJiDNkQmY0JegQICBAd 21 Também referida como Carta do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, esta instância judicial responsável pelo julgamento dos crimes, enunciados no art. 6.º/ c), contra a Humanidade: “Assassinato, exterminação, deportação, outros atos desumanos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra, ou perseguição política, racial ou religiosa.” 16 2.1.4. RESPONSABILIDADE PENAL MILITAR E CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO Observe-se a estrutura funcional da responsabilidade penal que se divide em dois institutos: (1) responsabilidade dos militares em todos os escalões pela prática de graves violações do DIH e crimes de guerra; (2) responsabilidade dos integrantes das Forças Armadas quanto às obrigações inerentes ao seu exercício e atividade, regulada pela justiça penal militar. Para melhor compreensão explica-se a segunda responsabilidade: a responsabilidade dos integrantes das Forças Armadas consiste na violação dos deveres e princípios constitucionais pelos subordinados quando não cumprem ou obedecem ao comando militar legítimo e legal emitido pelo superior hierárquico. 2.1.4.1. COERÇÃO, ERRO E MEDO INSUPERÁVEL O Código Penal/Lei 599 de 2000 da Colômbia, enumera nos seus artigos as mais variadas situações nas quais os membros das Forças Armadas são criminalmente responsáveis22, no entanto, releva o artigo 34.º, para efeitos de estudo da responsabilidade penal militar, que estipula os casos onde não se verifica a existência de responsabilidade penal: a conduta do militar é praticada em conformidade com uma ordem legítima de autoridade competente desde que expedida com as formalidades legais; a ação do agente é realizada sob coerção intransponível, erro ou o soldado moveu-se por um medo insuperável. Na presença dos requisitos anteriormente mencionados deve de existir isenção de responsabilidade: na primeira hipótese e terceira, por inibição da vontade e pela limitação à capacidade agir com liberdade e autonomia; no segundo caso, pela ausência de consciência da ilegalidade que está subjacente à sua conduta.23 2.2. Inglaterra A Lei das Forças Armadas de 200624 veio consolidar os três ramos de força militar, Exército, Marinha e Força Aérea numa só jurisdição a contrario do que se observava com 22 As referidas situações reportam à violação do DIH (Direito Internacional Humanitário) já tratado nas matérias anteriores. 23 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ; La obediencia debida y el nuevo código penal: consideraciones dogmáticas y político-criminales, Derecho PUCP, N. º46, 1992, pp.193 – 219. 24 Armed Forces Act 2006. 17 os “Army Act 1955”, “Air Force Act 1955” e “Naval Discipline Act 1957” onde se aplicava para cada ramo uma lei diferente com especificidades próprias. Além do mais, o diploma assenta em valores como ordem, disciplina e justiça e regula infrações, ofensas, crimes de guerra e a competência dos tribunais marciais e dos soldados, encontrando-se atualmente em vigor no Reino Unido. Repare-se que os Lordes que debateram a alteração do Anexo 2 (infrações graves) da Lei das Forças Armadas de 200625 concluíram que a vida militar é de natureza restrita, “uma sociedade muito fechada, embora importante, dentro das Forças Armadas” envolvida numa atmosfera exigente e disciplinar. 2.2.1. O QUE É O DEVER DE OBEDIÊNCIA MILITAR? Em pleno debate da Lei das Forças Armadas (Ordem 2021)26 refere-se que os agentes militares têm a obrigação primordial de obedecer a ordens legais do seu superior e essa obrigação define o dever de obediência militar. Desde logo, note-se a expressão: ordens legais; já que o Manual of the Law of Armed Conflict27 1981, §1, p. 38 refere: “O pessoal militar é obrigado a obedecer a comandos legais, mas não deve obedecer a comandos ilegais.” Na secção 12, parte 1, da Lei das Forças Armadas de 200628 estipula- se que um soldado incorre em desobediência quando não acata uma ordem legal intencional ou negligentemente. Por esta via conclui-se que os soldados devem obedecer às ordens emanadas pelo superior hierárquico desde que estejam em conformidade com a lei e caso se verifique o contrário, não as devem cumprir. 2.2.2. OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA Remontando à Lei do Serviço Militar de 1916, cuja introduziu o recrutamento obrigatório, aquela já dispunha de uma cláusula dirigida aos objetores de consciência, os quais estavam exonerados do serviço militar. Vislumbrando, por seu turno, a Lei do Serviço Nacional de 1948 que foi criada com o intuito de reforçar as Forças Armadas 25 Para consulta: https://hansard.parliament.uk/Lords/2018-01-22/debates/38BA24D8-696B-4449-8BFB- D96330C21E4D/ArmedForcesAct2006(AmendmentOfSchedule2)Order2017?highlight=armed%20forces %20act#contribution-D52932E5-CF71-4703-970E-E7A0428A162E 26 Disponível em: https://lordslibrary.parliament.uk/armed-forces-act-continuation-order-2021/ 27 Obra cujo objeto é o direito aplicável aos conflitos armados com referências ao Direito Internacional e ao Tribunal Penal Internacional. 28 Estão incluídas as alterações de 2009. 20 gravidade a outrem e que a prática do crime foi proporcional em relação o prejuízo que se pretendia evitar.32 2.2.4. OCORRÊNCIAS REAIS A 30 de janeiro de 1972, vários civis foram mortos e feridos pelo Exército britânico no designado, Domingo Sangrento. Este dia, numa região da Irlanda do Norte como parte do território do Reino Unido, seria marcado por manifestações pelos direitos civis, mas as forças britânicas efetuaram prisões sem causa justificativa acompanhadas de tortura com estratégias de simulação de afogamento, por exemplo, e com o clima de tensão a aumentar fatalmente, lançaram gás lacrimogénio, canhões de água, abriram fogo sobre a população vitimizando imensas pessoas. Na Câmara dos Comuns, as demais testemunhas afirmaram que as forças britânicas alvejaram pessoas desarmadas e feridas. Com o acontecimento, procedeu-se à criação de um tribunal para o efeito, mas o relatório deste concluiu que não se verificavam vestígios de explosivos nas roupas dos civis mortos, e que o Exército fez o que podia perante aquela manifestação ilegal, que as bombas sobre os cadáveres apareceram depois dos tiroteios, e o chumbo nas mãos das vítimas ficou provado pela atividade profissional de solda das mesmas, no entanto, o Governo esclareceu que todos as vítimas que morreram deveriam ser tratadas como inocentes de qualquer acusação. Hoje ainda estão a decorrer processos inacabados contra os soldados que contribuíram para o Domingo Sangrento. 2.3. Portugal A Constituição da República Portuguesa33 no seu artigo 276.º, relativamente à defesa da pátria e serviço militar, dispõe que o serviço militar é alvo de regulação pela lei. Para além da estipulação dada pela CRP, os soldados estão sujeitos ao Estatuto dos Militares das Forças Armadas e têm como função assegurar a defesa nacional, isto é, 32 Para consulta: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/617132/ 20170523-Chapter_12-Defences_Mitigation_Criminal_responsibility-AL42-v1.pdf 33 Doravante, CRP. 21 “garantir a soberania do Estado, a independência nacional e a integridade territorial de Portugal, bem como assegurar a segurança das populações e a proteção dos valores fundamentais da ordem constitucional contra qualquer agressão ou ameaça externas.”34. Em conformidade, o art. 2.º a) e b) da Lei de Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar35 refere que a condição militar está subjugada ao interesse nacional e cabe-lhe a defesa da Pátria sacrificando a própria vida do agente caso seja necessário. A consequente dedicação ao interesse público centra-se na disciplina interna para a eficiência e agilidade que essa devoção exige e é imprescindível uma obediência uniforme dentro da unidade militar sendo as Forças Armadas uma estrutura hierarquizada onde se verifica a submissão dos escalões inferiores aos superiores. Agora estabelecido o primeiro contacto com a submissão será pertinente a pergunta: 2.3.1. O QUE É O DEVER DE OBEDIÊNCIA MILITAR? A obediência militar é um dever de forma a garantir que o subordinado exerça sempre as suas funções tendo em vista o interesse público. Associada a esta figura encontra-se a disciplina militar que é regulada no Regulamento de Disciplina Militar36 (RDM) e consiste na prontidão do agente em cumprir os seus deveres derivados tanto da CRP, leis e regulamentos militares como das ordens proferidas pelos superiores hierárquicos desde que tal não culmine na prática de um crime. Por sua vez, a violação do dever de obediência corresponde ao crime de insubordinação por desobediência, artigo 87.º do Código de Justiça Militar37. Relacionado com o dever em análise, está o dever de autoridade consagrado no art. 9.º, n. º1 da BGECM e no art. 13.º do Estatuto Militar das Forças Armadas, na medida em que, assenta na posição hierárquica que o agente militar ocupa, isto é, o superior tem 34 Artigo 1.º da Lei da Defesa Nacional. 35 Daqui em diante, BGECM. 36 Lei Orgânica n. º 2/2009 de 22 de julho. Artigo 12.º, n.ºs 1 e 2, a): “O dever de obediência consiste em cumprir, completa e prontamente, as ordens e instruções dimanadas de superior hierárquico, dadas em matéria de serviço, desde que o seu cumprimento não implique a prática de um crime.”; “Em cumprimento do dever de obediência incumbe ao militar, designadamente: a) Cumprir completa e prontamente as ordens e instruções dos seus superiores hierárquicos em matéria de serviço”. 37 A insubordinação por desobediência é punível com pena de prisão podendo variar a sua duração conforme a matéria em causa. Contudo, a pena mais gravosa tem o limite máximo de 25 anos se se tratar de recusa de combate em tempo de guerra, artigo 87.º, n. º1, a). 22 um dever de autoridade para com o subordinado, devendo o primeiro ter firmeza e ser exigente no cumprimento da ordem militar por si emanada e o último deve aceitá-la. 2.3.2. OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA O artigo 41.º. n.º 6 da Constituição da República Portuguesa consagra o direito à objeção de consciência e o seu artigo 276.º, n.º 4 faz menção aos objetores de consciência como aqueles que não prestam serviço (armado e não armado), mas serviço cívico com duração semelhante ao serviço militar38. Perante tais disposições, coloca-se a questão: em que consiste, em concreto, o conceito de objetor de consciência? “Consideram-se objetores de consciência os cidadãos convictos de que, por motivos de ordem religiosa, moral, humanística ou filosófica, lhes não é legítimo usar de meios violentos de qualquer natureza contra o seu semelhante, ainda que para fins de defesa nacional coletiva ou pessoal.”39 Estude-se, superficialmente, o Acórdão n.º 363/91 do Tribunal Constitucional40 para efeitos de explanação do direito à objeção de consciência: 1. O Presidente da República veio solicitar a fiscalização da constitucionalidade de algumas normas da Lei 7/92 de 12 de maio dado ter dúvidas quanto à violação do direito à objeção de consciência, nomeadamente, os artigos 13.º, n.ºs 1 e 2 (inabilidades) e o 14.º, n. º1, a) e b) (cessação da situação de objetor de consciência): a. Mediante a possibilidade de perda definitiva do respetivo direito como consequência da condenação da prática de determinados crimes e do crime de desobediência qualificada; 2. Algumas declarações de voto não aprovaram a tese vencedora do TC que decretou a constitucionalidade das normas em relação ao artigo 30.º, n. º4 da 38 A semelhança entre a duração do serviço cívico e do serviço militar opera para que não se recorra vulgarmente à objeção de consciência como forma de isentar o indivíduo do serviço militar meramente porque essa é a sua vontade; para limitar o recurso a esse instituto e para equiparar “os sacrifícios públicos impostos aos cidadãos.”, CANOTILHO, GOMES /MOREIRA, VITAL; Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 2007, p. 876. 39 Lei n.º 7/92 de 12 de maio. 40 Daqui em diante, TC. 25 poderá ser considerada se o sujeito agir com erro mesmo sem ter repudiado a ordem emanada. Segundo o Professor GERMANO MARQUES DA SILVA, “nas relações de hierarquia é razoável que o funcionário confie no seu superior hierárquico, que as ordens que recebe são legítimas, que não conduzem à prática de crimes e por isso que se lhe desculpe o afrouxamento da sindicância da ordem do superior. Mas se nas circunstâncias concretas do facto for evidente a ilegalidade da ordem para o funcionário então já não há desculpa alguma.”46, ou seja, o subordinado insere-se numa estrutura totalmente organizada e hierarquizada e parte do pressuposto que o comando do seu superior é legítimo, tendo este competência, legitimidade e autoridade para a emanação de ordens conformes à lei e à CRP, e ao atuar de forma ilícita pelo desconhecimento, mas não sendo a ordem ilegal não fará sentido esperar do soldado outra conduta que não corresponda ao seu dever de obediência. 2.3.4. OCORRÊNCIAS REAIS No passado mês de março do presente ano, treze militares recusaram embarcar num navio da Marinha Portuguesa designado por NRP Mondego, pela falta de condições de segurança que o mesmo apresentava, entre as quais, a inoperacionalidade de um dos motores e de um gerador de energia elétrica. A Marinha veio a confirmar que este tipo de embarcações está apta para operar em condições degradantes dada a robustez dos seus sistemas e por seu turno, enquanto chefe da Armada, o Almirante Gouveia e Melo considerou a situação dotada de gravidade desmedida no sentido de ser impensável perdoar atos de indisciplina militar independentemente do estado físico e psicológico dos militares, por isso, estes devem ser punidos. É certo, que os agentes já foram substituídos na Marinha, no entanto, o advogado de defesa, Paulo Graça, veio corroborar um ponto que é muito relevante na nossa opinião e por isso, concordamos com ele: “há limites [às ordens] porque não há direito sem limite”, ou seja, na relação entre os militares e o dever de obediência as ordens podem vir a ser suscitadas, no sentido de, legal e legitimamente à luz da CRP, serem inexequíveis (e por isso serem desobedecidas) quando está em causa a ofensa de um preceito constitucional de grande valor jurídico. Neste caso, para nós, estariam em confronto o 46 DA SILVA, GERMANO MARQUES; Direito Penal Português: Teoria do crime, 2.ªedição, Lisboa: Universidade Católica Editora, p.292. 26 direito à segurança regulado no artigo 27.º, n. º1 da CRP e no artigo 6.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia47 enquanto direito e garantia a ser assegurada, o direito à integridade pessoal, artigo 3.º da CDFUE e artigo 25.º da CRP e o princípio da dignidade humana expresso no art. 1.º da CRP e da CDFUE. Recorde-se que o conflito de deveres é um mecanismo de exclusão de responsabilidade no ordenamento português, em concreto, estaria de um lado o dever de obediência e no outro polo, o dever de “guardar e fazer guardar a Constituição e a lei”48 e de “cumprir rigorosamente as normas de segurança militar.”49 Posteriormente, os agentes não chegaram a ser constituídos como arguidos e as audições na primeira fase do processo judicial foram canceladas. 3. PERCEÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA FACE AO DEVER DE OBEDIÊNCIA MILITAR 3.1. Colômbia Tendo por base a sentença C-578 de 1995 da Corte Constitucional, o direito constitucional colombiano repudia a obediência absoluta ao comando do militar em hierarquia superior relativamente ao subordinado e reconhece o agente militar como ser humano consciente e dotado de livre-arbítrio, capacitado para discernir se deve adotar uma conduta intransigente emanada pelo militar superior na hierarquia funcional ou se adequa o seu comportamento de acordo com a moralidade. A instância, na sentença, concluí que a devida obediência não deve ser pensada como forma de fundamentar uma conduta irracional quando o conteúdo da ordem é manifestamente criminoso e notório ao agente que o executa. Por seu turno, a Corte Suprema da Colômbia, em 2012, refere que o dever de obediência militar não constitui escusa de responsabilidade quando se verifica a violação do DIH50. Contudo, em 2016, a Corte Constitucional51 afirma que os militares têm o 47 CDFUE. 48 Artigo 11.º, n.º 2 do Estatuto dos Militares das Forças Armadas. 49 Artigo 11.º, n.º 3, d) do Estatuto dos Militares das Forças Armadas. 50 A par, veja-se o julgamento de 8 de fevereiro de 2017, Processo n. º46893, da Corte Suprema de Justiça – Sala de Cassação Peal, referente ao alcance da devida obediência decreta que o agente militar que segue ordens que violam os direitos humanos é responsável pelos crimes cometidos contra a Humanidade. 51 Sentença T-582 de 2016. 27 direito de desobedecer às ordens dos seus superiores quando estas se demonstrem incompatíveis com a jurisdição militar e conflituam com o direito constitucional desde que a faculdade de desobediência não revista a forma de objeto nas mãos do subordinado para recusar todas as ordens do superior sem fundamentação legal. Já em 2017 no Acórdão T-152, a Corte esclarece que para a devida obediência se constituir como escusa de responsabilidade ter-se-ão de observar dois requisitos: 1. O cumprimento do comando militar implica o desconhecimento do direito internacional militar; 2. O superior não era competente para proferir a ordem militar em causa. Conclui-se, que os militares subordinados podem recusar o cumprimento da ordem quando se verifique a necessidade de preservar os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana fazendo jus ao respeito pela ordem jurídica do Estado de Direito concretizadora desses mesmos direitos. 3.1.1. CONSIDERAÇÕES DOUTRINÁRIAS A devida obediência sofreu transformações quanto ao seu âmbito de justificação e de aplicação tendo por base manifestações concretas, segundo HERNÁNDEZ SUÁREZ- LLANOS 52: 1. O reconhecimento da consciência subjetiva do agente militar como ser humano; 2. A valorização reforçada dos direitos humanos na ordem jurídica do Estado de Direito; 3. A adoção de protocolos pela disciplina militar e a conformação da atividade militar com a existência do Direito Internacional Humanitário. Quanto ao primeiro ponto, o autor refere que há uma necessidade existencial de promoção de projetos coletivos que estejam relacionados à dignidade humana, garantia dos direitos e à prevenção de certas práticas cruéis e ofensivas. Face ao segundo fator, releva-se para a sujeição de todas as instituições, consagradas na ordem constitucional, ao Direito Internacional especialmente aos direitos do Homem. Por fim, a disciplina 52 HERNÁNDEZ SUÁREZ-LLANOS; A vueltas con la obediencia debida: ¿mandatos antijurídicos obligatorios?, Revista jurídica Universidad Autónoma de Madrid, 2010, pp. 145 – 170. 30 2. O dever de lealdade violado por “A” “constitui uma das faces do dever de obediência sendo essencial à coesão e eficácia das FFAA visto ser através dele que se reforçam os laços de confiança e respeito indispensáveis à cadeia militar, dever esse que também se materializa, como se estabelece no art. 16.º/2/c) do RDM (…) através da informação aos seus superiores hierárquicos acerca de qualquer assunto de serviço. No caso, a decisão impugnada entendeu que o dever especial de lealdade foi violado porquanto na frequência de um curso de formação para ingresso no quadro permanente, com uma componente física altamente exigente, [a Autora] não informou, como lhe era devido, os seus superiores hierárquicos sobre o seu estado de gravidez, constituindo um desvio inaceitável às regras éticas, morais e estatutárias que regem a Instituição militar.”; 3. À luz do art. 23.º, n. º2 do Regulamento de Disciplina Militar, o soldado tem o dever de não praticar, tanto no serviço como fora dele, atos contrários à “moral pública, ao brio, ao decoro militar e às práticas sociais.”; 4. O militar deve ser totalmente submisso e só em circunstâncias extremamente excecionais lhe é legítimo violar o dever de obediência; 5. “Com a sua conduta, a Arguida não cumpriu o dever geral que incumbe aos militares consagrado no n. º1 do artigo 11.º do RDM, porquanto a sua atuação ofende grosseiramente os mais elementares princípios de direito penal e direito disciplinar militar (ética, honra, dignidade e bons costumes), revela falta de idoneidade moral e afeta gravemente o decoro militar e o prestígio das Forças Armadas.”. Da síntese do acórdão supra, é possível entender que a disciplina militar é algo intrínseco na estrutura das Forças Armadas e que as ações da Arguida são manifestamente contrárias a esse valor. Repare-se que no decorrer do acórdão, “A” escondeu o seu estado de gravidez ao frequentar um curso, com elevado grau de exigência física, que lhe permitia o ingresso no quadro permanente cujo era o seu sonho. Ao final do dia, derivado dos seus esforços físicos, acabou por dar à luz um feto que alega ter sido expelido morto, entretanto, colocou-o num saco de plástico alternando o seu esconderijo entre a bagageira do seu carro e uma gaveta da camarata onde se encontrava. Perante os factos, o Tribunal veio a considerar que a conduta da Arguida é cruel, desumana e intolerável em prol do seu sonho não obedecendo à lei e à disciplina militar, isto é, existe claramente uma 31 violação do dever de lealdade subjacente ao dever de obediência, “A lealdade e obediência são as mais importantes virtudes militares” 58, e a Autora “jamais equacionou o mal causado ou a causar ao feto e à ordem jurídica.”. Como se verificou, o dever de obediência, de lealdade e a disciplina militar são deveres de natureza pessoal, ou seja, vinculados ao estatuto/ posição subjetiva de militar e não deveres funcionais inerentes à própria instituição onde o “sujeito está empregado” ou aquele enquanto funcionário do Estado. É entendível que os deveres impostos aos militares, por meio de um regime disciplinar próprio, são especiais não sendo exigíveis a mais nenhum funcionário: “permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida; sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra; Os militares gozam de todos os direitos e liberdades reconhecidos aos demais cidadãos, estando o exercício de alguns desses direitos e liberdades sujeito às restrições constitucionalmente previstas, com o âmbito pessoal e material que consta da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas.”59 Atente-se, agora, à relevância textual do Acórdão de 07.03.2013 do Tribunal Central Administrativo Sul, processo n.º 08946/12: 1. “A obediência a ordens superiores não exime o militar de responsabilidade pela violação de alguns direitos fundamentais consagrados na Constituição e na lei (…) o militar deve ser estrutural e intrinsecamente disciplinado isso não o impede de em certas circunstâncias poder ser desobediente.”; 2. O Regulamento Geral do Serviço nas Unidades do Exército faz menção à subordinação e respeito dos militares para com os seus superiores e à obediência imediata destes às ordens no sentido de alcançar o objetivo pretendido; 60 58 Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, 08946/12, 07.03.2013. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/71f0f8f33319cad080257b2e0058c395 ?OpenDocument 59 Arts. 2.º/ b), c) e 7.º da BGECM. 60 Art. 1.º, n.º 2: “A disciplina deve encaminhar todas as vontades para o fim comum e fazê-las obedecer ao menor impulso do comando; coordenando os esforços de cada um, assegura às unidades a sua principal força e a sua melhor garantia de bom êxito. Manifesta-se pela subordinação de posto para posto, pelo respeito para com os superiores hierárquicos, pela obediência confiante e imediata às suas ordens, pela vontade sincera e manifesta de se alcançar o fim que se deseja e pela consciente aceitação dos princípios enunciados nos regulamentos que pautam a atividade militar.” 32 3. “A compressão de direitos dos militares é constitucionalmente justificada pelos especiais estatuto e deveres que constitucional e legalmente estão atribuídos às FFAA, que justificam a restrição de alguns direitos dos militares em homenagem a superiores interesses coletivos, que impõem uma maior rigidez nas relações hierárquicas, na disciplina e na obediência pronta e total.”. Examinando o ponto 1 respeitante à obediência em relação a ordens superiores, o Tribunal admite que é possível violar esse dever em casos muito excecionais por nós já retratados: quando o comando do superior hierárquico constitui a prática de um crime existindo atenuantes ou causas de justificação de responsabilidade criminal. Tendo em vista o [acórdão] anteriormente aludido, importa referir a jurisprudência do Tribunal Constitucional que entende a importância da hierarquia e disciplina na estrutura militar como meios garantidores da eficiência e eficácia tanto da defesa nacional como das Forças Armadas. III. SÍNTESE COMPARATIVA E GRELHA COMPARATIVA Revelando para o facto da Colômbia e de Portugal serem integrantes da família jurídica romano-germânica verificam-se semelhanças ao nível dos institutos jurídicos. Ora, ambos apesar de terem legislação especial que regula a matéria militar em causa, têm uma maior consagração da mesma nas suas Constituições, veja-se o direito à objeção de consciência estipulado como um direito fundamental no ordenamento constitucional. Em contrapartida, no ordenamento inglês (família jurídica Common Law) a inexistência de Constituição escrita é observável, uma vez que tanto o dever de obediência militar como a posição de objetor de consciência ou os meios de responsabilidade criminal são regulados por leis avulsas e próprias para cada assunto, por outro lado, o fenómeno do Brexit veio desencadear a possibilidade de derrogação da CEDH e a criação de leis mais rígidas e exigentes relativas à responsabilização das Forças Armadas por infrações por si cometidas. No entanto, tanto na Inglaterra como em Portugal não existe a obrigatoriedade de recrutamento como na Colômbia como forma de garantir a segurança perante o ambiente de instabilidade política e social que se vive; outro aspeto relevante entre os ordenamentos inglês e colombiano é o facto de existirem decisões que reconhecem a responsabilidade penal do Estado embora em termos formais, visto que não se verificam 35 Meios de mitigação ou de exoneração da responsabilidade criminal Coação, erro e medo insuperável. Ausência de mens rea como elemento factual, erro de facto, coação, estado de necessidade e quando o indivíduo não sabia que a ordem era ilegal. Conflito de deveres de natureza igual ou superior, obediência indevida desculpante e erro. Responsabilização do Estado Verifica-se a responsabilidade do Estado nas decisões da Corte Interamericana dos Direitos Humanos e dos seus militares, em termos formais. Não é observável e muitos dos processos contra os soldados não têm efetividade jurídica, havendo uma desvalorização do comportamento lesivo destes. Não se confirma. Aplicabilidade das Convenções Internacionais às graves infrações cometidas pelos militares, como crimes de guerra Verifica-se a aplicabilidade da Convenção Americana de Direitos Humanos, de disposições da Constituição Política e da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Possibilidade de derrogação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; Aplicabilidade do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Aplicabilidade de todos os compromissos e convenções internacionais das quais Portugal ratificou. 36 IV. BIBLIOGRAFIA CÁRDENAS CUBIDES, JAIME; El Fuero Militar: Justicia Interamericana y Operaciones para el Mantenimiento de la Paz, Helver Martín Alvarado, MSc. Editor, Bogotá, 2017. FIDELL R, EUGENE; Military Justice: A Very Short Introduction, Oxford University Press, 2016. FRENCH, DAVID; Military Identities: The Regimental System, the British Army, and the British People, C. 1870 – 2000, Oxford University Press. GOMES, CANOTILHO/MOREIRA, VITAL; Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 2007, pp. 875 e 76. HERNÁNDEZ SUÁREZ-LLANOS; A vueltas con la obediencia debida: ¿mandatos antijurídicos obligatorios?, Revista jurídica Universidad Autónoma de Madrid, 2010, pp.145 – 170. SILVA, GERMANO MARQUES; Direito Penal Português: Teoria do crime, 2.ª Edição, Lisboa: Universidade Católica Editora, p. 292. ZÚÑIA RODRÍGUEZ; La obediencia debida y el nuevo código penal: consideraciones dogmáticas y político-criminales, Derecho PUCP, N.º 46, 1992, pp. 193 – 219. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, 00001/14.1BPRT, 10.03.2022. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/c995e32f2484bd698 025880c0056071b?OpenDocumentm Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, 08946/12, 07.03.2013. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/71f0f8f33319cad080 257b2e0058c395?OpenDocument Acórdão n.º 363/91 do Tribunal Constitucional, Processo: n.º 351/91, 03.09.1991. Consultar: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19910363.html#_edn1 37 Acórdão n.º 229/2012 do Tribunal Constitucional, Processo: n.º 82/10, 23.05.2012. Consultar em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120229.html Armed Forces Act 197. Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1971/33/contents Army Act 1955: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1955/18/pdfs/ukpga_19550018_en.pdf Armed Forces Act 2006. Consultar em: https://hansard.parliament.uk/Lords/2018-01- 22/debates/38BA24D8-696B-4449-8BFB- D96330C21E4D/ArmedForcesAct2006(AmendmentOfSchedule2)Order2017?highlight =armed%20forces%20act#contribution-D52932E5-CF71-4703-970E-E7A0428A162E Armed Forces Act (Order 2021). Consultar em: https://lordslibrary.parliament.uk/armed- forces-act-continuation-order-2021/ Armed Forces Bill, 31.10.2006. Observável em: https://hansard.parliament.uk/Lords/2006-10- 31/debates/06103159000012/ArmedForcesBill?highlight=armed%20forces%20act#cont ribution-06103159000143 “British Soldiers above the Criminal Law.” Disponível em: https://blogs.kent.ac.uk/criminaljusticenotes/2020/10/01/british-soldiers-above-the- criminal-law/ Conscientious Objection in the UK Armed Forces. Consultar: https://www.parliament.uk/globalassets/documents/joint-committees/human- rights/Briefing_from_Forces_Watch_Conscientious_objection.pdf Constituição Política de 1991 da Colômbia. Consultar: https://siteal.iiep.unesco.org/pt/bdnp/193/constitucion-politica-republica-colombia “Defences, mitigation and criminal responsability”. Disponível em: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment _data/file/617132/20170523-Chapter_12- Defences_Mitigation_Criminal_responsibility-AL42-v1.pdf Ficha Técnica: Massacre de Mapiripán Vs. Colômbia – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em:
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