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Resumo Dedicatoria "Os Lusiadas", e apreciaçao critica...................................., Notas de estudo de Literatura Ensino Médio

resumo da Dedicatoria em Os Lusiadas, e apreciação critica.

Tipologia: Notas de estudo

2023

Compartilhado em 16/10/2023

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Resumo Dedicatoria "Os Lusiadas", e apreciaçao critica.................................... e outras Notas de estudo em PDF para Literatura Ensino Médio, somente na Docsity! A DEDICATÓRIA DE OS LUSÍADAS: UMA QUESTÃO MAIOR THE DEDICATION OF THE LUSIADS: A LARGER ISSUE José Augusto Cardoso Bernardes Centro de Literatura Portuguesa Universidade de Coimbra Revista de Estudos Literários 10 (2020): 135-157. https://doi.org/10.14195/2183-847X_10_7 RESUMO Relacionada quase sempre com a dimensão fria e estereotipada do poema, a Dedicatória d’ Os Lusíadas acaba por ter uma importância central, con- dicionando a interpretação de toda a obra. Surpreende, desde logo, pela sua anormal extensão (13 estâncias). Ao fazer sobressair nela a fi gura do monarca providencial, o poeta convoca ainda uma presença que se prolonga até ao último verso. Neste sentido, é útil reler a generalidade dos episódios à luz da relação especial que o poeta quis manter com D. Sebastião, na sua dupla qualidade de destinatário e de herói de um futuro que se entreabre. No presente estudo, colocam-se à prova as possibilidades de leitura do epi- sódio de Inês de Castro, tal como é contado ao Rei D. Sebastião. Palavras-chave: narração, hermenêutica, Inês de Castro, Dedicatória ABSTRACT Almost always related to the poem’s cold and stereotyped dimension, the Dedication of The Lusiads is actually of central importance, conditioning the interpretation of the entire work. It appears to be rather unusual, at fi rst glance, because of its abnormal extension (13 stanzas). By highlighting the fi gure of the providential monarch, the poet also creates a presence that extends through to the very last verse. In this sense, it is useful to reread the Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 135 25/03/20 14:13 J O S É A U G U S T O C A R D O S O B E R N A R D E S 136 | general lines of the episodes in light of the special relationship that Camões wished to maintain with King Sebastian, in his dual capacity as recipient and hero of a future that was looming before him. In this study, we explore the different interpretations of the episode of Inês de Castro, as told to King Sebastian. Keywords: narration, hermeneutics, Inês de Castro, Dedication INTRODUÇÃO A presença de D. Sebastião n’ Os Lusíadas é avassaladora: ele não é apenas o dedicatário do poema, ele é o rei, o herói predestinado para quem a epopeia foi escrita, com quem o poeta fala, a quem aconselha, a quem interpela e para quem apela, ele é o herdeiro e a culminação da História do Povo português. (Vítor Aguiar e Silva, Dicionário de Luís de Camões p.129) Estas palavras, escritas por um dos maiores camonistas de sem- pre, chamam a atenção para uma evidência. De facto, ler a epopeia camoniana sem ter em conta a presença decisiva que nela tem a fi gura de D. Sebastião é ignorar aquele que é porventura o aspeto que mais determina o seu sentido global. Quando se diz que o poeta fala com o rei, aconselhando, interpelando e apelando, isso signifi ca que o canto camoniano deve ser entendido à luz desta interlocução que é, ao mesmo tempo, estética e histórica. É assim desde o primeiro verso; e é-o sobretudo a partir da Dedicatória que Camões quis integrar no poema, precedendo a narração. E, no entanto, este juízo não tem sido explorado em todas as suas consequências. A Dedicatória costuma ser vista como parte de um preâmbulo convencional que integra ainda a Proposição (1-3) e a Invocação (4-5). Em relação a estes dois subconjuntos não existe Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 136 25/03/20 14:13 A D E D I C AT Ó R I A D E O S L U S Í A D A S : U M A Q U E S T Ã O M A I O R | 139 didos fora da relação que constantemente se estabelece entre arte e circunstância. E se existe lugar onde esse vínculo se torna patente é exatamente na Dedicatória. A primeira dessas implicações resulta da sua inserção no discurso e na ação do poema. Não se trata de versos em que o autor se dirija a um mecenas, solicitando proteção direta ou indireta; tão pouco se trata de um simples encómio. Em boa verdade, a Dedicatória camoniana não só identifi ca um dedicatário como o transforma em narratário,3 isto é Camões coloca D. Sebastião dentro do poema, anunciando assim que tudo o que vai narrar lhe é destinado: os episó- dios que escolhe, a importância que lhes confere e ainda a dimensão pedagógica que lhes imprime. Estes atributos ganham ainda mais sentido quando lembramos o que acontece em casos análogos. No Sucesso do Segundo Cerco de Diu, poema épico da autoria de Jerónimo Corte-Real, publicado em 1574 (dois anos apenas depois da publica- ção de Os Lusíadas) existe também uma Dedicatória a D. Sebastião. Mas não pode comparar-se com aquela de que venho falando. Esta outra surge em forma de Prólogo, ocupando uma posição externa e desligada do que se conta no poema. Embora contendo um louvor ao monarca, o texto (em prosa) é bastante sucinto e estereotipado. A epopeia de Corte-Real integra apenas a Proposição e a Invocação. Nesta última, de resto, o poeta renuncia expressamente às musas pagãs, invocando o auxílio de Cristo.4 3 Sobre os efeitos de sentido que resultam da presença do narratário explícito, veja-se o extenso verbete correspondente que figura no Dicionário de Estudos Narrativos, de Carlos Reis. 4 Embora publicado em 1574, na mesma oficina em que tinha sido impressa a epopeia de Camões, parece fora de dúvida que o poema de Corte-Real circulava em forma manuscrita em data anterior. Para um exame das aproximações (analógicas e contrastivas) entre os poemas de Corte-Real e de Camões revelam-se decisivos os trabalhos que têm vindo a ser publicados por Hélio Alves. Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 139 25/03/20 14:13 J O S É A U G U S T O C A R D O S O B E R N A R D E S 140 | 2. AS TREZE ESTÂNCIAS DA DEDICATÓRIA 2.1. AFONSO HENRIQUES E D. SEBASTIÃO As três primeiras estâncias (6-8) cumprem, antes de tudo, o princí- pio da laudatio. Nelas sobressaem, com enfática clareza, a matriz e a vocação cruzadística de Portugal, envolvendo alusões ao jovem Rei como “novo temor da Maura lança”. A aparição de Cristo a Afonso Henriques é sugerida pelas cinco quinas de Portugal: nessa alusão se estabelece ainda o vaticínio de que D. Sebastião se converterá em “jugo e vitupério/do torpe ismaelita cavaleiro”.5 Fica assim claro, desde logo, o propósito de estabelecer uma ligação entre D. Sebastião e o Rei Fundador. Em resultado dessa comparação, o rei menino surge como construtor do Reino Novo, expressão que tantas vezes há de ser empregue não apenas para identifi car os territórios nascidos do processo de Expansão mas também para sinalizar uma reconver- são do Reino Antigo, nos planos político e axiológico. 2.2. O PRÉMIO JUSTO Nos versos seguintes, o poeta toma o monarca como destinatário ativo, recorrendo a formas verbais de caráter fático como “Inclinai” e “Ouvi”. O sujeito épico sente então necessidade de se apresentar ao destinatário. O traço pessoal que refere relaciona-se com o facto de o seu Canto ser impelido exclusivamente pelo “amor da Pátria/ não movido do prémio vil”. Certifi ca-se assim, de facto, a pureza e 5 Sobre a cronologia de composição do poema existe um conjunto de conjeturas e deduções de fundamento oscilante. Houve quem, como Costa Pimpão, tivesse defendido que a escrita do texto ocorreu à volta de 1554, aquando do nascimento de D. Sebastião, e há também quem, como Howens Post, sustente que a Dedicatória foi das últimas partes do poema a ser escrita, talvez mesmo depois de Camões ter regressado da Índia. O exame das diferentes posições foi já levado a cabo por Vítor Aguiar e Silva no excelente verbete sobre “Camões e D. Sebastião”, que escreveu para o Dicionário por si coordenado. Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 140 25/03/20 14:13 A D E D I C AT Ó R I A D E O S L U S Í A D A S : U M A Q U E S T Ã O M A I O R | 141 a elevação de tudo o que vai ser narrado, por oposição a práticas seguidas por escritores que reclamavam uma recompensa material.6 Camões aspira a um reconhecimento de outra natureza: aquele que lhe há de vir da fama, entidade que, de um modo direto ou indireto, vai ser sistematicamente associada ao verdadeiro triunfo. É esse o sentido da oposição que, na estância 10, se estabelece entre o “prémio vil” e o prémio justo: Que não é prémio vil ser conhecido Por um pregão do ninho seu paterno.7 Para que a moldura do poema fi que completa é ainda necessá- rio delimitar a natureza da matéria épica. Surge então o anúncio importante de que se tratará de matéria verídica. A ênfase colocada nessa escolha serve de contraposição a outros poemas que assenta- vam em “... vãs façanhas /fantásticas, fi ngidas, mentirosas”. A sua importância, porém, pode ser maior do que normalmente se assi- nala. Colocando D. Sebastião na senda de um passado factual (e não fantasioso), o poeta responsabiliza-o como continuador (ou “culmi- nação”, como refere Aguiar e Silva) desse mesmo passado. A mesma atenção deve ser conferida ao facto de se tratar de um passado inte- 6 Referindo-se, em geral, ao conjunto de epopeias italianas escritas entre finais do século XV e meados do século XVI (incluindo a Gerusaleme, de Torquato Tasso) Cristina Barbolani chega a falar de “literatura de encargo”: “Una de las características de estos poemas que, en certo modo, los podera alejar del gusto actual, es su calidad de produtos encomiásticos, realizados según indicaciones – más o menos precisas, y más o menos respectadas – del señor bajo cuya protección se encontraba el autor, a saber, del mecenas cuyo nombre aparece normalmente en la dedicatória inicial o protásis” (Barbolani, 2005: 13). 7 As citações do texto camoniano seguem a lição de Costa Pimpão. Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 141 25/03/20 14:13 J O S É A U G U S T O C A R D O S O B E R N A R D E S 144 | o poeta traz o passado ao presente e suscita a possibilidade de um futuro de plenitude: o tempo do império eterno e justo.11 Para além de oferecer o poema a uma fi gura concreta, a Dedicatória de Os Lusíadas resume alguns dos sentidos mais importantes que hão de repercutir-se no poema. A sua importância, contudo, não se limita aos signifi cados concretos que acabo de apontar. O seu eco chega ao último verso: aquele em que o poeta, depois de incitar D. Sebastião a uma nova partida, lhe vaticina uma “dita” superior à de Aquiles (X, 153). Nesse momento fi nal, o poeta retoma o tom profético que assinala as estâncias iniciais. Como se tudo o que se conta entre um e outro vaticínio devesse ser assumido como base e como resultado. O estudo desses efeitos pode e deve fazer-se de forma sistemática e abrangente. Cada episódio do poema, cada realce e também cada omissão surgem subordinados ao desígnio de tocar o destinatário eleito. Histórias compósitas como as que integram o episódio do Adamastor (incluindo a tentativa de dissuasão, as profecias de tra- gédia e os amores fracassados que acabam em castigo) ou quadros bélicos como Ourique, Salado e Aljubarrota são objeto de um trata- mento moral dirigido ao jovem rei. A ele se pede que tome “as rédeas do Reino”. Do mesmo modo que a ele se dirige a narrativa enca- deada dos reinados, destacando uns em detrimento de outros, tanto através do desenvolvimento que lhes é concedido, da intensidade dos factos narrados ou mesmo do grau de compromisso evidenciado pelo narrador na matéria narrada. 11 Esse mesmo tópico tinha surgido na profecia de Júpiter, em resposta às queixas de Vénus. Para tranquilizar a filha que protesta contra as constantes dificuldades levantadas por Baco, ao prosseguimento da viagem, o deus soberano vai enumerar um conjunto de conquistas no Oriente, conducentes a uma paz reconversora: “E de tudo enfim senhores/ Serão dadas na terra leis milhores” (II, 46). Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 144 25/03/20 14:13 A D E D I C AT Ó R I A D E O S L U S Í A D A S : U M A Q U E S T Ã O M A I O R | 145 3. O CASO DE INÊS DE CASTRO CONTADO A D. SEBASTIÃO 3.1. A FERMOSÍSSIMA MARIA E A BATALHA DO SALADO Situado na segunda metade da narração, que é cometida a Vasco da Gama em resposta às perguntas que lhe são dirigidas pelo rei de Melinde (III, 3), o episódio de Inês de Castro faz parte do bloco de 36 estâncias consagradas ao reinado de D. Afonso IV,12 ocupando exata- mente metade desse conjunto (118-135). Os outros dois subconjuntos que fazem parte do referido reinado são a súplica de Maria a seu pai (102-106) e a batalha do Salado (107-117). A contiguidade que se esta- belece entre os três núcleos obriga, desde logo, a uma leitura articulada dos acontecimentos que se relacionam com o reinado em questão. Tudo começa com a aparição de Maria nos paços de D. Afonso IV. A posição de fragilidade em que a rainha de Castela surge perante o pai e a súplica que lhe dirige são apresentados como causa e funda- mento da participação das armas portuguesas na batalha do Salado. O acolhimento de Afonso à referida súplica signifi ca também a rece- tividade do Rei (modelo e exemplo de cavaleiros) ao pedido de uma mulher que se encontra em risco de tudo perder: Rei, Reino e Ventura. Deste modo, a participação do monarca lusitano na batalha, primeiro contra a hoste dos granadinos e depois auxiliando diretamente Afonso XI, a quem cabe enfrentar os mauritanos, é narrado como um ato de generosidade e não de interesse próprio, fosse ele militar ou geoestra- tégico. Deste modo se prepara o surgimento do caso de Inês. 3.2. INÊS PERANTE CAVALEIROS Numa só estância passa-se de um assunto a outro, o que constitui caso único nos procedimentos de transição entre episódios camonia- 12 O número de estâncias que corresponde ao reinado de Afonso IV é apenas superado pela soma de 56 que são dedicadas a D. Afonso Henriques (III, 29-84 ). Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 145 25/03/20 14:13 J O S É A U G U S T O C A R D O S O B E R N A R D E S 146 | nos. Não estamos assim perante um processo de continuidade ética, como havia sucedido entre a súplica de D. Maria e o Salado. A ligação entre as estâncias consagradas à batalha e aquelas que contam a histó- ria de Inês efetua-se em registo de profundo contraste:13 Passada esta tão próspera vitória, Tornado Afonso à lusitana terra, A se lograr da paz com tanta glória Quanta soube ganhar na dura guerra, O caso triste e digno da memória Que do sepulcro os homens desenterra Aconteceu da mísera e mesquinha Que depois de morta foi Rainha. (118) Fica assim claro, desde o início, que a paz que Afonso IV tinha conseguido obter através de uma guerra justa sob o ponto de vista cavaleiresco, vai ser comprometida exatamente pela mesma via. O caso é classifi cado como “triste e digno de memória” e esta clas- sifi cação só pode ser entendida à luz dos critérios que antes tinham permitido enaltecer o feito do Salado. À lógica da cavalaria que se institui como horizonte de julgamento, o narrador sente ainda neces- sidade de associar uma lógica de outra natureza: a do Amor que, na estância 119, é descrito ou reconhecido como “áspero e tirano”. Tendo em consideração a coexistência de duas lógicas tão díspares, o narrador sinaliza a inocência da vítima. O Amor é assumido como entidade que agride uma mulher frágil. Destaca-se, sobretudo, que esta não tenha encontrado defesa em cavaleiros: 13 Sobre a sintaxe dos episódios camonianos, veja-se o importante ensaio de Aníbal Pinto de Castro que figura nas referências bibliográficas. Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 146 25/03/20 14:13 A D E D I C AT Ó R I A D E O S L U S Í A D A S : U M A Q U E S T Ã O M A I O R | 149 vai seguir-se é imputada aos dois agentes cruéis já antes nomeados: o destino e o povo, que encarna o interesse de Estado. 3.4. INÊS ASSASSINADA A execução de Inês é descrita na sua brutalidade contrastiva. Sobressai a frieza das espadas, remetendo não para uma execução simples e protocolar, perpetrada por um só carrasco, mas para um assassinato cometido por um coletivo de assassinos “férvidos e iro- sos”. Por outro lado, a insensibilidade de quem usa as ditas espadas colide com a delicadeza das partes do corpo por elas ofendidas (o “colo de alabastro”). O narrador formal (Vasco da Gama) é então relegado para segundo plano, dando lugar à irrupção do narrador autoral. Do mesmo modo, o narratário deixa de ser o Rei de Melinde e passa a ser ainda mais claramente D. Sebastião. Tudo se passa como se Camões, também ele cavaleiro, tivesse sentido necessidade de intervir em defesa de Inês, suprindo a omissão dos cavaleiros do século XIV. Do mesmo modo, convoca o Rei ouvinte para corrigir a inclemência de Afonso IV. Quando nos últimos versos da estância 130 somos surpreendidos por essa mesma voz: Contra ũa dama, ó peitos carniceiros, Feros vos amostrais, e cavaleiros? Percebemos (ou confi rmamos) então que a essa mesma voz e não à voz delegada do capitão das naus tinha também cabido a introdução do episódio: Estavas linda Inês, posta em sossego, 3.5. OS EFEITOS DO ASSASSINATO É ainda essa voz que refere os efeitos da execução. É atingida a Natureza, confi dente do amor impossível de Inês. Tendo sido evo- Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 149 25/03/20 14:13 J O S É A U G U S T O C A R D O S O B E R N A R D E S 150 | cada no início, a substância natural chora agora a morte injusta, eternizando a memória da vítima (135). Nesse mesmo sentido, ganha relevo o famoso símile da fl or que feneceu. Inês morta é compa- rada a uma bonina precocemente cortada e maltratada por “lascivas mãos” (134). Mas é sobretudo reiterada a condenação do desrespeito pelos valores da cavalaria, cujo cumprimento estava confi ado ao Rei. A condenação havia sido anunciada desde o início do episódio: O caso triste e digno da memória Que do sepulcro os homens desenterra. (118) A verberação do sucedido vai ao ponto de o poeta envolver os próprios elementos naturais: Bem puderas, ó Sol, da vista destes Teus raios apartar aquele dia. (133) A morte de Inês, porém, não constitui o remate do episódio. À sua execução segue-se a narrativa da vingança de Pedro. Há pri- meiro o levantamento do príncipe contra o Rei. Mal alcança o governo, o novo monarca acorda com o soberano de Castela a extradição dos homicidas, a quem é aplicada pena cruel. O pacto que Augusto fi zera com Lépido e António é trazido à colação para signifi car a desmesura e para sublinhar que uma injustiça só pode gerar mais desconcertos. 4. ENSINAMENTOS E ADVERTÊNCIAS (SPECULUM PRINCEPS) Um episódio desta natureza parece reunir todos os requisitos para ser lido por si mesmo, sem necessidade de estabelecer nexos com outros episódios ou com o sentido geral do poema. A haver ligações, elas poderiam talvez ser efetuadas mais com a lírica e com a dimensão idioletal que nela se projeta. Tal como na lírica, encontramos no Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 150 25/03/20 14:13 A D E D I C AT Ó R I A D E O S L U S Í A D A S : U M A Q U E S T Ã O M A I O R | 151 episódio a visão fatídica do Amor, a omnipresença do Destino e a desculpabilização da Natureza, que surge como contraponto das con- veniências sociais.16 As estâncias em causa ganham contudo em ser lidas num âmbito global. Vimos já que o episódio faz sentido se for relacionado com os passos que integram a longa descrição do reinado de Afonso IV. Sem a precedência direta da batalha do Salado e dos fundamentos afetivos que a ela conduzem, a morte de Inês não teria o signifi cado que alcan- çou. Mas é manifesto que nele encontram eco outros passos da epopeia. Nele se pode ver, por exemplo, um contraponto do que tinha sucedido com uma outra súplica. Falo da apresentação voluntária de Egas Moniz ao Rei Afonso VII, de Leão (III, 38-41). Depois de ter empenhado a sua palavra junto do soberano envolvendo o com- portamento do seu príncipe, o cavaleiro e aio de Afonso Henriques surge na corte de Leão, “com seus fi lhos e mulher”, oferecendo-se como penhor de uma promessa não cumprida. O perdão que obtém só pode ser lido como referência de contraste relativamente ao desfe- cho do episódio de Inês.17 Mas o Rei vendo a estranha lealdade, Mais pôde, enfi m, que a ira a piedade. (41) 16 A correlação entre o tema da Natureza e a substância lírica do episódio tem sido consensualmente relevado pelos exegetas do episódio. No bem informado verbete que escreveu para o Dicionário de Luís de Camões, José Carlos Seabra Pereira chama a atenção para este vínculo, destacando ainda os efeitos de projeção que ele vai ter em futuros tratamentos literários do tema inesiano. O referido verbete contém ainda um vasto elenco bibliográfico sobre o episódio e a sua dimensão intertextual. 17 O ato de Egas Moniz volta a ser descrito no episódio das bandeiras, quando Paulo da Gama conta ao catual que vem às naus, passos da história de Portugal, a partir das figuras aí representadas (VIII, 13-15). A repetição do motivo certifica a importância que o poeta lhe atribui, servindo ao mesmo tempo para acentuar a lealdade do vassalo, o incumprimento de um Rei e a magnanimidade de outro. Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 151 25/03/20 14:13 J O S É A U G U S T O C A R D O S O B E R N A R D E S 154 | converte Camões numa espécie de profeta imponderado que afi - nal aponta ao jovem Rei o caminho da perdição.20 Em socorro de Camões, A. Sérgio evoca a importância da batalha de Lepanto, ocor- rida em 1571 para a dissipação do perigo otomano, argumentando que, quando a batalha ocorreu, já o poeta tinha confi ado o manuscrito aos prelos de António Gonçalves. E diz mais em abono de Camões: que se é verdade que ele incita à (re)conquista africana, nada indica que aprovasse o comando pessoal do Rei. Por sua vez, Maria Augusta Lima Cruz, a mais recente biógrafa de D. Sebastião, traça um con- vincente quadro integrador da situação do Reino, tendo em conta a instabilidade que se vivia nos territórios magrebinos, e destacando os interesses das coroas ibéricas na região. Desfaz-se assim um pouco a ideia, porventura excessiva, de que a jornada de 1578 foi completa- mente suicidária e destituída de sentido geoestratégico. Mas é preciso não cairmos no exagero oposto: se as circunstâncias tiveram peso na conceção da epopeia camoniana (bem mais do que os comentaristas dos séculos XIX e XX puderam admitir) também é verdade que, mesmo sob o efeito de um compromisso político evidente, Camões não deixa de ser um militante da poesia. Em sintonia com outros artistas do seu tempo, o autor de Os Lusíadas acreditou que a Arte tem, desde logo, o poder de revelar a realidade escondida; mas, para 20 A este nível, conserva atualidade o estudo já antigo que António Sérgio consagrou ao assunto. Em perspectivas diferentes, vejam-se ainda a biografia de Maria Augusta Lima Cruz e o verbete que Vítor Aguiar e Silva assinou no Dicionário de Luís de Camões, por si coordenado. Este camonista lembra, com oportunidade, a precedente referência a D. Sebastião na égloga “Que grande variedade vão fazendo“, alusiva à morte de D. João, pai de D. Sebastião (ocorrida em 1554) e parece dar crédito à informação de Manuel Severim de Faria, segundo a qual o poeta teria rasgado a continuação do seu poema épico, ao saber do desastre de Alcácer Quibir. Book Revista de Estudos Literarios 10.indb 154 25/03/20 14:13 A D E D I C AT Ó R I A D E O S L U S Í A D A S : U M A Q U E S T Ã O M A I O R | 155 além disso, a Arte (e, em particular, a poesia) deve conservar a aspi- ração de vir a alterá-la. É este porventura o cerne do espírito órfi co que percorre Os Lusíadas. Embora assentando numa narrativa e daí extraindo grande parte da sua força persuasiva, o poema de Camões reinventa a realidade do passado e procura transformar aquela que há de corres- ponder ao futuro. Parece ter sido esse o desígnio cimeiro do poeta e por isso se explica a urgência e a esperança que atravessam a epopeia. Muito provavelmente, o épico não conseguiu tocar o seu destinatário direto. De forma voluntária ou involuntária, porém, viria a ter um impacto ímpar nos portugueses de várias gerações. A pluralidade do herói, que se anuncia na Proposição, facilita o reconhecimento cole- tivo que, de algum modo ainda perdura. Por outro lado, vista na sua extensão e em todos os seus efeitos, a Dedicatória acabou por fi car associada ao sebastianismo e a tudo o que daí resulta em termos de esperança na Providência e de apelo a uma partida nova. REFERÊNCIAS Alves, Hélio (2010). “Teoría de la épica en el Renacimiento portugués”, in La teoria de la épica en el siglo XVI (España, Francia, Italia y Portugal). Madrid: Academía del Hispanismo. 137-169. Asensio, Eugenio (1974). “Inês de Castro: de la crónica al mito”, in Estudios Portugueses, Paris: Centre Culturel Portugais: 37-58. Barbolani, Cristina (2005). Poemas caballerescos italianos. Madrid: Editorial Síntesis. 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