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Resumo: Parte de uma pesquisa maior sobre o documentário, Notas de aula de Artes

filme 33 (2004), de Kiko Goifman, ou nos filmes de Coutinho em que o dispositivo funciona como aquilo que possibilita os encontros, uma entrada em certo ...

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Amanda_90
Amanda_90 🇧🇷

4.6

(82)

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Baixe Resumo: Parte de uma pesquisa maior sobre o documentário e outras Notas de aula em PDF para Artes, somente na Docsity! 68 E X T R E M I D A D E S – E X P E R I M E N T O S C R Í T I C O S Resumo: Parte de uma pesquisa maior sobre o documentário contemporâneo brasileiro, o presente estudo é um experimento crítico que utiliza a abordagem das extremidades de Christine Mello como possibilidade de leitura para os documentários do início do século XXI que usam os dispositivos como estratégias narrativas, conforme proposto por Cezar Migliorin. Como forma de exemplificar esta leitura, abordaremos o trabalho Rua de mão dupla (2002), de Cao Guimarães. Palavras-chave: Cinema. Documentário. Dispositivo. Abordagem das extremidades. 69 O D O C U M E N T Á R I O E O D I S P O S I T I V O N A S E X T R E M I D A D E S D O V Í D E O: E S T U D O S E M C A O G U I M A R Ã E S Fel ipe Ferreira Neves EMERGÊNCIA DOS DOCUMENTÁRIOS-DISPOSITIVO No decorrer dos anos 2000, foi possível constatar um crescente número de documentários que utilizam a noção de dispositivo em seu processo criativo, e que se aproximam e se intercruzam com diferentes campos, como cinema de ficção, artes visuais, plataformas on-line e programas de televisão (realities shows). Pensar de que forma as novas tecnologias do audiovisual são organizadas em dispositivos de criação é pensar também o estatuto da imagem contemporânea, a possibilidade e o sentido da produção de novas imagens. [...] colocando-o em diálogo com o Reality Show, Big Brother, com a história do documentário moderno e com o presente das imagens. (MIGLIORIN, 2005, p. 6). Trabalhos como os de Cao Guimarães (Belo Horizonte, MG, 1965), realizador que tem uma trajetória oriunda das artes visuais, fotografia e videoarte, exemplificam bem os diálogos mantidos entre a arte contemporânea e o documentário. Suas obras discutem a composição da imagem e a busca por uma plasticidade: Os filmes de Cao Guimarães expressam de forma exemplar um cruzamento e uma circulação cada vez mais intensos entre documentário e arte contemporânea, domínios até pouco tempo distantes e mesmo hostis entre si. Cineastas que trabalham prioritariamente no documentário criam instalações para serem expostas em museus e galerias ao mesmo tempo em que artistas expandem suas criações para o campo das imagens documentais. (LINS, 2007, p. 62). 72 E X T R E M I D A D E S – E X P E R I M E N T O S C R Í T I C O S Em seu livro O documentário de Eduardo Coutinho: televisão cinema e vídeo, a autora relata trecho de conversa com o diretor, em que ele afirma: “Filmar dez anos, filmar só gente de costas, enfim, pode ser um dispositivo ruim, mas é o que importa em um documentário”. (2004, p. 101). Para o diretor, a criação do dispositivo é mais importante que o próprio tema, assim como a produção de um roteiro do documentário. Esse pequeno trecho da fala de Coutinho indica não somente a influência das ideias de Comolli, mas também a mesma concepção de dispositivo posteriormente trabalhada por Migliorin. Uma característica dos documentários que se baseiam no conceito de dispositivo é a criação de situações que preexistem ao filme, como propõe Migliorin (2005, p. 149): “O que está para ser documentado é uma contingência, ou seja, algo que pode ou não ocorrer. O que o filme - -dispositivo se propõe a fazer é criar mecanismos para eventualmente captar o que é contingente”, o que não está pronto no mundo para ser filmado. O dispositivo é um artifício que sempre deixa às claras para o espectador as circunstâncias dessa construção; no entanto, somente a criação de um dispositivo não garante que o filme possa existir. Apesar de o dispositivo definir uma metodologia, um artifício para que o filme exista, uma arbitrariedade que pode ser mais ou menos sutil, não se trata de trocar um roteiro por outro, de naturalizar o artifício propositor. Trata-se de viver a experiência, de abrir-se para o acaso, para a incerteza da imanência dos acontecimentos que podem criar rupturas na roteirização da vida. Cada dispositivo tem uma forma distinta de funcionamento, que não se realizará de modo igual em diferentes trabalhos; pressupõe-se, assim, que não se trata de algo estrutural ao cinema. A criação de um dispositivo é realizada em cada filme, obtendo sempre efeitos diversos. Ele pode dar-se, por exemplo, na forma lúdica de brincadeira ou jogo, como no filme Acidente 73 F E LI P E F E R R E I R A N E V E S (2005), de Cao Guimarães, ou em forma de busca, como no filme 33 (2004), de Kiko Goifman, ou nos filmes de Coutinho em que o dispositivo funciona como aquilo que possibilita os encontros, uma entrada em certo universo a ser explorado. Assim, o dispositivo, traçando uma rota de fuga do que é autêntico e espontâneo, pode ser, por exemplo, um jogo proposto pelo cineasta, como em “Rua de Mão Dupla”, que retira os personagens de seus cotidianos criando uma situação nova, na qual o filme se dá; ou uma brincadeira com as palavras, como em “Acidente”, em que um poema criado pelos documentaristas gera um roteiro de viagem e filmagem. (RUIZ, 2009, p. 27). Mas não é sem luta que os dispositivos mantêm seu funcionamento. Consuelo Lins, ao analisar Santo Forte (1999), aponta uma passagem do filme em que o dispositivo de Coutinho – filmar apenas pessoas selecionadas em pesquisa prévia – teria sido ultrapassado ao incorporar o depoimento de Elizabeth, a filha de Dona Thereza, uma das entrevistadas: Ao inserir a sequência no documentário, Coutinho expõe a fragilidade e a contingência do seu dispositivo, sob o risco constante de se desfazer diante de novos elementos do real. Mostra ao mesmo tempo o quanto um filme tem a ganhar ao se manter disponível em relação ao acaso. O mundo decididamente não cabe nos procedimentos de filmagem que inventamos. Ele felizmente “esperneia”, diz Comolli. (2004, p. 115). Ao apontar como fragilidade do dispositivo a incorporação do depoimento, Lins vai ao encontro da definição de dispositivo como apenas as regras elaboradas para o filme acontecer. O entendimento que se faz aqui é o da concepção de dispositivo como um campo de tensão que se abre para o acaso, capaz de criar e incorporar fissuras e rupturas. Existem diferentes graus de comprometimento por meio dos quais o realizador pode interagir a partir do dispositivo, estabelecendo uma relação direta com a estrutura narrativa do filme, podendo ou não gerar um filme-dispositivo. Os filmes - -dispositivo, segundo Migliorin, são obras inteiramente estruturadas 74 E X T R E M I D A D E S – E X P E R I M E N T O S C R Í T I C O S em função do dispositivo. O documentário é resultado do que acontece ao longo de sua produção, e não de algo preexistente. Portanto, nem todas as obras que se utilizam de dispositivo geram filmes-dispositivo. Para Migliorin, os filmes de Coutinho não se configuram como tal; eles são documentários que se utilizam de dispositivo, que optam por outras estratégias narrativas, enfatizando a relação de entrevista e outras formas de relações. Além da obra de Coutinho, duas outras são responsáveis diretamente pelo aumento do debate sobre dispositivo: Um passaporte húngaro (Un passaport hungrois, 2003), de Sandra Kogut, e 33 (2004), de Kiko Goifman. Ambos os trabalhos são resultantes de dispositivos fortemente temporais, que, apesar de diferentes entre si, partem de projetos muito pessoais. Um passaporte húngaro é uma produção francesa de uma realizadora brasileira, que busca obter a nacionalidade e o passaporte húngaros (país de origem de seus avós) na França. O tempo que levará para a obtenção de tais documentos é o tempo da produção do filme. A obra 33 aborda o aniversário de 33 anos do realizador Kiko Goifman, um filho adotivo que define o prazo de 33 dias como sendo o tempo limite para encontrar sua desconhecida mãe biológica. Optando por uma estética de filme de detetives do gênero noir, Goifman relaciona a dimensão propositiva do filme com uma dimensão estética. Conforme destaca Consuelo Lins, “neles o motivo de realização do documentário deixa de ser a alteridade clássica, para se relacionar a aspectos da experiência, da vida pessoal e da subjetividade dos próprios realizadores, que interagem com personagens e situações como protagonistas de um processo de busca pessoal”. (2009, p. 168). Jean-Claude Bernardet, juntamente com os realizadores, cria a expressão “documentário de busca”, a fim de designar o tipo de projeto desses filmes. O autor relata as conversas travadas com eles em um seminário no capítulo O documentário de busca; 33 e Passaporte Húngaro: No 33, Kiko deixa muito claro que o risco [...] era que o projeto pudesse prejudicar as boas relações que ele mantém com a sua mãe [...]. No caso de Sandra o maior risco [...] era que a burocracia húngara lhe mandasse renunciar à sua nacionalidade brasileira. (2005, p. 149). 77 F E LI P E F E R R E I R A N E V E S Mello a partir do procedimento de contaminação. Nele, o vídeo se potencializa como linguagem quando está em contato com outra. Verifica-se a ampliação de seus diálogos, construindo um discurso híbrido no qual o código videográfico afeta a linguagem em diálogo: É a lógica do vídeo +, ou o vídeo que soma seus sentidos aos sentidos de outras linguagens (como no videoclipe, na videodança, no videoteatro, na videoperformance, na videocarta, na videopoesia, na videoinstalação e nas intervenções midiáticas no espaço público) de tal forma que uma linguagem não pode mais ser lida dissociada da outra. (p. 137). Exemplos do processo de contaminação são os documentários, como os de Coraci Ruiz, que utilizam videocartas como forma de dispositivo. Nessas formas, percebe-se não somente a contaminação da linguagem do vídeo com a linguagem da carta, como também aspectos do documentário com a linguagem da videocarta. Diretamente ligado à transformação da produção, à distribuição e à recepção do vídeo na era digital, o procedimento de compartilhamento faz circular nas redes interativas os formatos audiovisuais que se reconfiguram em outra linguagem. Essa ocorrência se observa quando as páginas da internet descentralizam o código de um determinado vídeo, o qual passa a fazer parte de uma lógica de rede e de banco de dados em ambientes virtuais. Uma mudança do formato off-line para o on-line. O compartilhamento de vídeo representa sua passagem de uma narrativa acabada para a construção dinâmica e interativa da narrativa. Esse compartilhamento marca a confluência do vídeo com o hipertexto e com as redes de comunicação. Tal fenômeno de ressignificação da linguagem é encontrado, por exemplo, nos circuitos das web-câmeras, que são concebidos como instrumentos de acesso indiscriminado a informações audiovisuais. (p. 196). Contudo, o procedimento de compartilhamento também apresenta traços dos procedimentos anteriormente observados, na medida em que a mudança de formato 78 E X T R E M I D A D E S – E X P E R I M E N T O S C R Í T I C O S caracteriza uma desconstrução/reconstrução, e o hibridismo entre as linguagens, uma contaminação. Apesar do procedimento de compartilhamento se referir mais diretamente à forma de distribuição dos vídeos em redes digitais, pode-se pensar em documentários que compartilham imagens e experiências dos seus participantes, como o caso de videocartas ou de outras imagens produzidas pelos próprios participantes, como procedimentos de compartilhamento de autoria. RUA DE MÃO DUPLA Rua de mão dupla (2002), de Cao Guimarães, é um documentário concebido como uma videoinstalação, produzida para a 25ª Bienal de São Paulo, com o título de Iconografias metropolitanas. O trabalho é resultado da trajetória do artista, simbolizando suas ligações com as artes visuais, fotografia, videoarte e cinema. A proposta (o dispositivo) é uma experiência com seis pessoas desconhecidas, que, separadas em duplas, trocam de casa por 24 horas e, com uma câmera digital, registram a tentativa de descobrir quem mora ali, convivendo com os objetos domésticos que não lhes pertencem. Após esse período de tempo, os participantes dão um depoimento para o realizador, relatando a experiência de passar uma noite na casa, e de como imaginam ser esse outro que habita aquele espaço. Esse dispositivo criado pelo realizador é enunciado no filme em cartela de texto (lettering, Figura 1): “Eliane Lacerda e Rafael Soares trocam de casa durante 24 horas, cada um com uma câmera de vídeo. Eles não se conheciam”. Esse procedimento também é utilizado para outras duas duplas: “Paulo Dimas e Mauro Nevenschwander, Eliane Marta e Roberto Soares. Todos os participantes da experiência são da classe média de Belo Horizonte e moram sozinhos”. Uma certa lógica de contraponto, pensada a partir das ocupações dos participantes, mais técnicas ou mais artísticas (objetivas ou subjetivas), é o que 79 F E LI P E F E R R E I R A N E V E S parece determinar as duplas. Em ordem de aparição: um produtor musical e uma oficial de justiça, um engenheiro e um arquiteto, um poeta e uma escritora. O diretor define a ordem das duplas no filme e mantém a cronologia do material filmado, mas reduz seu tempo, organizando o total de 1h15min do filme em três blocos de 20, 25 e 30 minutos. Após o aparecimento da cartela, a tela se divide em duas partes, permitindo, simultaneamente, que sejam vistas as imagens e ouvidos os sons produzidos individualmente pelos participantes (Figura 2). O vídeo tem características amadoras (imagens tremidas, produzidas de forma automática, sem controle de foco ou luz), o que não poderia ser diferente, já que os participantes não têm domínio técnico da atividade. Apesar disso, todos encontram uma maneira subjetiva de gravar, imprimindo suas singularidades. Rafael é o único a se colocar na imagem, gravando seu reflexo no espelho com a câmera na mão (Figura 3), ou colocando-a em um suporte, a fim de se filmar sentado no sofá, lendo o jornal ou deitado na cama tentando dormir. Ele também atende a uma ligação, dizendo estar participando de um projeto, e informa seu número de telefone, caso o interlocutor queira encontrar a outra participante. Eliane brinca com o zoom in e o zoom out até encontrar um enquadramento para cada objeto, como se estivesse catalogando-os, não deixando nada para trás e demonstrando um desejo de totalidade que explicasse esse outro. 82 E X T R E M I D A D E S – E X P E R I M E N T O S C R Í T I C O S Figura 1: Frame de Rua de mão dupla. (Fonte: Rua de mão dupla) Figura 2: Frame de Rua de mão dupla. (Fonte: Rua de mão dupla) 83 F E LI P E F E R R E I R A N E V E S Figura 7: Variação mais aproximada em que a desfiguração se torna aparente (P3) (Fonte: frame do filme Abril Despedaçado) Figura 3: Frame de Rua de mão dupla. (Fonte: Rua de mão dupla) Figura 4: Frame de Rua de mão dupla. (Fonte: Rua de mão dupla) 84 E X T R E M I D A D E S – E X P E R I M E N T O S C R Í T I C O S Nos depoimentos, é possível notar dois processos que se relacionam: uma irritação crescente na fala sobre o outro e uma negação das particularidades encontradas nos vestígios do outro, sendo que ambas operam como uma forma de se autodefinir. Rafael afirma: “Eu não teria um oitavo de coisas que ela tem na casa dela. [...] A gente tem muitas coisas diferentes. [...] Acho que somos pessoas muito diferentes, uma para um lado, outra pro outro. Principalmente o modo de vida”. A maior parte das falas dos participantes constitui-se como interpretações de coisas que não se encaixaram em seu sistema de valores, em sua forma de ver o mundo, muitas vezes expondo seus interesses e preconceitos. O caso de Paulo e Mauro é emblemático, e chega até a ser cômico devido ao contraponto de suas profissões. Paulo, o engenheiro/construtor, repete as reclamações sobre o edifício em que o arquiteto mora (obra de Niemeyer): “O ambiente onde esta pessoa vive, um ambiente bem diferente do normal, um prédio todo torto, cheio de curvas, as paredes são tortas. Enfim, é um negócio meio doido que a gente não... Eu pelo menos não estou acostumado com este tipo de edificação”. Sobre o lado pessoal, Paulo afirma: “Me pareceu uma pessoa muito solitária, acho que tem seis travesseiros na cama, representa a falta de... uma pessoa ali; vamos colocar travesseiro e dormir abraçado”; a tensão aumenta quando ele enfatiza: “outra coisa que me chama atenção é não ter vestígio feminino na casa”. Na fala de Mauro, o arquiteto, também é possível verificar a necessidade de afirmação de gênero quando ele menciona, algumas vezes, o caráter “macho” de Paulo: “Esta pessoa é um homem grande, macho. Por religião, desde criança ele torce para o glorioso Clube Atlético Mineiro”. A questão de classe também aparece: “O lugar está meio vazio e este lugar aqui é um bairro classe média, um prédio classe média, de revestimento classe média de média”. Há um aumento de sinceridade, como também de hostilidade em cada novo depoimento, chegando a Eliane Marta, a escritora, Rua de mão dupla é um exemplo de filme em que o dispositivo permanece presente na montagem, como uma escritura potencializada pelo acaso. As relações entre as imagens não estão dadas, e o realizador faz a montagem marcando sua presen­ ça após ter se retirado, fazendo a manutenção do funcionamento do seu dispositivo 88 E X T R E M I D A D E S – E X P E R I M E N T O S C R Í T I C O S “questiona a forma do documentário, tira a familiaridade dos outros modos”. (p. 177). Faz parte do dispositivo revelar as estratégias utilizadas, deixando claro para os participantes e espectadores seu caráter de artifício. Mesmo assim, os dois conceitos parecem insuficientes para esclarecer as estratégias de realização de documentários que, como Rua de mão dupla, utilizam dispositivos. Christine Mello, ao analisar o mesmo trabalho em sua versão como instalação, relaciona Rua de mão dupla com a obra de Maurício Dias e Walter Riedweg, e comenta sobre o procedimento de contaminação que se dá entre as linguagens do vídeo e da instalação. Podemos também afirmar que, concebida inicialmente como videoinstalação, a obra tem em sua formatação como documentário características de contaminação entre as linguagens da videoinstalação e do documentário, que compartilharam o mesmo processo de criação, assim reafirmando a condição de extremidade. O procedimento de contaminação não é o único que se pode identificar na obra. O de compartilhamento pode ser verificado tanto no compartilhamento das imagens produzidas pelo outro, como na própria experiência vivida. A qualidade dessas obras encontra-se no modo como fazem o público compartilhar e viver nelas tais experiências oferecidas. É a própria experiência como proposição de arte. Esses trabalhos deflagram e permitem ao público viver o seu processo de criação. Tais práticas processam muito mais sua estética em termos de obra inacabada do que acabada, pois importa menos o sentido final depositado no trabalho e mais a qualidade com que é empreendida a vivência dos sentidos no interior dele. (2008, p. 189). A proposta de solicitar aos participantes que falem sobre outros – e não de si próprios –, apesar de parecer um gesto pequeno, representa uma mudança significativa na tradição do documentário, que tem no procedimento de “dar voz ao outro” um parâmetro para suas produções. Ao falar de pessoas 89 F E LI P E F E R R E I R A N E V E S desconhecidas e filmar suas casas, os participantes acabam por revelar seus interesses e preconceitos pessoais de forma singular. Isso é possível a partir de um efeito de “desprogramação” realizado pelo dispositivo, que, relacionando elementos distintos, cria possibilidade para o surgimento daquilo que está além do previsto. A ideia de uma rua de mão dupla – na qual os participantes, ao construírem o outro, construam a si próprios, em processos variados e simultâneos que transcendem os próprios limites do filme – cria acontecimentos no mundo e condições para uma potência criativa do acaso, deslocando a noção clássica de autoria. Rua de mão dupla não é apenas um documentário que usa o dispositivo como uma de suas estratégias; mais que isso, é exemplar daquilo que Migliorin aponta como sendo um filme - -dispositivo. Nele, toda a narrativa é estruturada pelo dispositivo, que se estende até a montagem, atingindo o momento em que o realizador se presentifica, fazendo a manutenção de seu funcionamento, respeitando as lacunas criadas pelo dispositivo que se propõe a gravar aquilo que não existia antes dele, e só é possível por causa dele. CONSIDERAÇÕES FINAIS O dispositivo na produção audiovisual é um artifício que define espaço, tempo, participantes e regras como elementos que se relacionam em uma experiência fílmica. Essa proposição cria um campo de tensões que atua de duas formas complementares, quais sejam: a primeira, de extremo controle, limites e regras; a segunda, de abertura, relacionada às ações dos participantes. O realizador, como parte do dispositivo e participante da experiência, tem a possibilidade de movimentos de retiradas e reaproximações. O conceito de dispositivo é desenvolvido, com suas particularidades, por teóricos como Jean-Claude Bernardet, Consuelo Lins e Cezar Migliorin. Por meio deste estudo que aqui desenvolvemos, é possível ir ao encontro de diversas formulações 92 E X T R E M I D A D E S – E X P E R I M E N T O S C R Í T I C O S Os dispositivos podem dar-se de diferentes formas em cada documentário: em forma de videocartas, nos trabalhos de Coraci Ruiz; de poemas, em Acidente; ou como um jogo, em Rua de mão dupla, ambos de Cao Guimarães; em forma de busca pessoal, como nos filmes 33, de Kiko Goifman, e Um passaporte húngaro, de Sandra Kogut; ou, ainda, como forma de potencializar os encontros nos filmes de Coutinho. Esses desdobramentos são possíveis por causa das diferentes camadas que o dispositivo possibilita. Os filmes que operam a partir do funcionamento do dispositivo durante todas as etapas de realização, mantendo a metaestabilidade, são filmes-dispositivos, consoante a definição de Migliorin (2005, 2008). Obras como a de Eduardo Coutinho não poderiam ser vistas como tal. Porém, o alcance da experiência de individuação dos participantes, assim como o potencial de abertura para possíveis acontecimentos, não são exclusividades dos filmes-dispositivos. Para encerrar, é importante frisar que o campo do documentário só tem a ganhar ao utilizar a potência do dispositivo como criador de experiências e como um sistema de escritura autoimposto, a fim de permitir relacionamentos improváveis entre os elementos que o compõem, possibilitando a emergência de acontecimentos, em uma abertura para o espaço vivido e como uma nova forma de se relacionar com a linguagem em suas extremidades. 93 F E LI P E F E R R E I R A N E V E S REFERÊNCIAS BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. _________. Caminhos de Kiarostami. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. _________. O documentário de busca; 33 e Passaporte húngaro. In: MOURÃO, Dora; e LABAKI, Amir. (Org.) O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. 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