Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Revolução Estética de Jacques Ranciere, Notas de estudo de Estética

Texto em que o autor discute a relação entre estética e outras esferas da filosofia como a ética e a educação.

Tipologia: Notas de estudo

2019

Compartilhado em 04/08/2019

gean-b-de-moraes
gean-b-de-moraes 🇧🇷

3 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Revolução Estética de Jacques Ranciere e outras Notas de estudo em PDF para Estética, somente na Docsity! Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 1 A revolução estética e seus resultados Jacques Rancière NARRAtivAs de AutoNomiA e HeteRoNomiA Ao final da décima quinta de suas Cartas Sobre a Educação Estética do Homem, Schiller estabelece um paradoxo e faz uma promessa. Ele declara que “o ho- mem só é completamente humano quando brinca” e nos assegura que esse paradoxo é capaz “de suportar todo o edifício da arte do belo e da ainda mais difícil arte de viver”. Podemos reformular esse pensamento assim: existe uma experiência sensorial específica – a estética – que traz a promessa de um novo mundo da arte e de uma nova vida para indivíduos e a co- munidade. Há diferentes maneiras de chegar a um acordo com essa colocação e essa promessa. Pode-se dizer que elas definem virtualmente a “ilusão estéti- ca” como um dispositivo que serve meramente para mascarar o fato de que o julgamento estético é es- truturado na dominação de classes. Em minha visão, essa não é a abordagem mais produtiva. Pode-se di- Ranciere, Jacques, The Aesthetic Revolution and its Outcomes, In: New Left Review, NLR 14, Março-Abril 2002, pp. 133- 15, disponível em: http:// newleftreview. org/. Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 2 zer, ao contrário, que a colocação e a promessa eram apenas demasiado verdadeiras, e que nós vivencia- mos a realidade da “arte de viver” e da “brincadeira” tanto em tentativas totalitárias de tornar a comuni- dade uma obra de arte quanto na vida estetizada di- ária de uma sociedade liberal e seu entretenimento comercial. Caricatural como possa parecer, acredito que essa atitude é mais pertinente. O ponto é que nem a colocação nem a promessa foram ineficazes. Em jogo aqui não está a “influência” de um pensador, mas a eficácia de uma trama – uma que dá novo sig- nificado à divisão das formas de nossa experiência. Essa trama tomou forma em discursos teóricos e em atitudes práticas, na percepção individual e em instituições sociais – museus, bibliotecas, programas educacionais – e em invenções comerciais também. Meu objetivo é tentar entender o princípio de sua efi- cácia e de suas variadas e antitéticas mutações. Como pode a noção de “estética” como uma experiência específica levar de uma só vez à ideia de um mundo puro de arte e da auto exclusão da arte na vida, à tra- dição do radicalismo de vanguarda e à estetização da existência comum? De certo modo, o problema todo está em uma palavra muito pequena. Schiller diz que a experiência estética suporta o edifício da arte do belo e da arte de viver. Toda a questão da “política da estética” – em outras palavras, do regime estéti- co da arte – se volta para essa pequena conjunção. A experiência estética é eficaz na medida em que o é a experiência daquele e. Ela fundamenta a autonomia da arte na medida em que a conecta à esperança de “mudança de vida”. Os problemas seriam fáceis se pudéssemos simplesmente dizer – ingenuamente – Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 5 tonomia da razão livre subjugando a anarquia da sen- sação. É a suspensão desse tipo de autonomia. É uma autonomia estritamente relacionada a uma revogação de poder. O “aspecto livre” se coloca à nossa frente, intocável, inacessível ao nosso conhecimento, nossas intenções e desejos. O sujeito recebe a promessa da posse de um novo mundo por essa figura que ele não pode possuir de maneira alguma. A deusa e o espec- tador, o jogo livre e o aspecto livre, são pegos juntos em um sensorium específico, anulando as oposições entre atividade e passividade, vontade e resistência. A “autonomia da arte” e a “promessa da política” não são contrapostas. A autonomia é a autonomia da ex- periência, não a da obra de arte. Colocando de modo diferente, a arte participa do sensorium da autonomia na medida em que não é uma obra de arte. Agora “não ser uma obra de arte” imediatamen- te adquire novo significado. O aspecto livre da está- tua é a aparência daquilo que não foi destinado a ser arte. Isso significa que é a aparência de uma forma de vida na qual arte não é arte. A “independência” da estátua grega torna-se a autossuficiência de uma vida coletiva que não se faz em esferas separadas de atividades, de uma comunidade onde arte e vida, arte e política e vida e política não estão separadas umas das outras. Assim supõe-se ter sido o povo grego cuja autonomia de vida é expressa na independência da estátua. A exatidão ou não dessa visão da Grécia an- tiga não está em questão aqui. O que está em jogo é a mudança na ideia de autonomia, como ela está ligada àquela de heteronomia. Primeiramente, a autonomia estava amarrada à “indisponibilidade” do objeto da experiência estética. Depois, ela se torna a autono- Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 6 mia de uma vida na qual a arte não tem uma existên- cia separada – na qual seus produtos são na verdade auto expressões de vida. O “aspecto livre” não é mais o encontro de uma heterogeneidade. Ele para de ser uma suspensão de oposições entre forma e matéria, entre atividade e passividade, e se torna o produto da mente humana que busca transformar a superfície das aparências sensoriais em um novo sensorium que é o espelho de sua própria atividade. As últimas cartas de Schiller revelam essa trama, conforme o homem pri- mitivo gradualmente aprende a lançar um olhar esté- tico sobre seus próprios braços e ferramentas ou sobre seu próprio corpo, a separar o prazer da aparência da funcionalidade dos objetos. O jogo estético se torna assim uma obra de estetização. A trama de um “jogo livre”, suspendendo o poder da forma ativa sobre a matéria passiva e prometendo um ainda desconhecido estado de igualdade, torna-se outra trama, na qual a forma subjuga a matéria, e o autodidatismo da huma- nidade é sua emancipação da materialidade, porque ele transforma o mundo em seu próprio sensorium. A cena original da estética revela então uma con- tradição que não é a oposição entre arte e política, arte e cultura popular ou arte e a estetização da vida. Todas essas oposições são componentes e interpre- tações de uma contradição mais básica. No regime estético da arte, a arte é arte na medida em que é algo além de arte. É sempre “estetizada”, o que quer dizer que é sempre colocada como uma “forma de vida”. A fórmula-chave do regime estético da arte é que a arte é uma forma autônoma de vida. Essa é uma fórmula, no entanto, que pode ser lida de duas maneiras di- ferentes: a autonomia pode ser enfatizada em detri- Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 7 mento da vida ou a vida em detrimento da autonomia – e essas linhas de interpretação podem ser opostas ou podem se cruzar. Essas oposições e intersecções podem ser regis- tradas como a interação entre três grandes cenários. Arte pode se tornar vida. Vida pode se tornar arte. Arte e vida podem trocar suas propriedades. Esses três cenários rendem três configurações da estéti- ca, narradas em três versões de temporalidade. De acordo com a lógica do e, cada um é também uma va- riante da política da estética, ou aquilo que devíamos chamar sua “metapolítica” – isto é, seu modo de pro- duzir sua própria política, propondo mudanças polí- ticas de seu espaço, reconfigurando a arte como uma questão política, ou se declarando política de fato. Constituindo o novo mundo coletivo O primeiro cenário é aquele em que “arte se torna vida”. Nesse esquema, a arte é tomada não somente como uma expressão da vida, mas como uma forma de seu autodidatismo. Isso significa que, para além de sua destruição do regime representacional, o regime estético da arte entra em acordo com o regime ético de imagens em uma relação de duas vertentes. Ele re- jeita sua divisão de tempos e espaços, situações e fun- ções. Mas ele ratifica seu princípio básico: questões de arte são questões de educação. Como autodidatis- mo, a arte é a formação de um novo sensorium – um que significa, na realidade, um novo etos. Levado a um extremo, isso significa que o “autodidatismo esté- tico da humanidade” vai emoldurar novos etos coleti- vos. A política da estética se provou o caminho certo Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 10 pictóricas de seu dono. Ou podemos citar Mallarmé, um poeta frequentemente visto como a encarnação do purismo artístico. Aqueles que celebram sua frase “esse louco ato de escrever” como uma fórmula para a “intransitividade” do texto frequentemente se es- quecem do final de sua sentença, que dá ao poeta a tarefa de “recriar tudo, a partir de reminiscências, para mostrar que nós na verdade estamos no lugar que temos que estar”. A prática supostamente “pura” de escrever está ligada à necessidade de criar formas que participam de um reenquadramento geral da moradia humana, de modo que a produção do poeta é, ao mesmo tempo, comparada a cerimônias da vida coletiva, como os fogos do Dia da Bastilha, e a orna- mentos privados do ambiente doméstico. Não é coincidência que na Crítica da Faculdade do Juízo de Kant exemplos significativos de apreensão estética tenham sido tirados de pinturas decorativas que eram “belezas livres” na medida em que não re- presentavam um sujeito, mas simplesmente contribu- íam para a apreciação de um lugar de sociabilização. Sabemos o quanto as transformações da arte e sua visibilidade estiveram ligadas a controvérsias sobre o ornamento. Programas polêmicos para reduzir toda a ornamentação à funcionalidade, no estilo de Loos, ou para exaltar seu poder significante autônomo, ao modo de Riegl ou Worringer, baseavam-se no mesmo princípio básico: a arte é antes de tudo uma forma de habitar um mundo comum. É por isso que as mesmas discussões sobre o ornamento podiam apoiar ideias tanto de pintura abstrata quanto de design industrial. A noção de “arte se tornando vida” não abriga simples- mente projetos demiúrgicos de uma “nova vida”. Ela Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 11 também tece uma temporalidade comum de arte, que pode ser resumida em uma fórmula simples: uma vida nova precisa de uma arte nova. Arte “pura” e arte “en- gajada”, “belas” artes e artes “aplicadas”, também to- mam parte nessa temporalidade. É claro, elas a com- preendem e a executam de maneira muito diferente. Em 1897, quando Mallarmé escreveu o seu Un coup de dés, ele quis uma combinação de linhas e tamanho de caracteres na página que combinasse com a forma de sua ideia – a queda dos dados. Alguns anos depois, Pe- ter Behrens desenhou as luminárias e chaleiras, marca e catálogos da Companhia Elétrica Geral Alemã. O que eles têm em comum? A resposta, acredito, é certa concepção de design. O poeta quer substituir o objeto representacional da poesia pelo design de uma forma geral, para fazer o poema como uma coreografia ou o desdobrar de um leque. Ele chama essas formas gerais de “tipos”. O engenheiro designer quer criar objetos cuja forma seja adequada ao seu uso e anúncios que oferecem a informação exata sobre eles, sem ornamentos co- merciais. Ele também chama essas formas de “tipos”. Ele se considera um artista, na medida em que tenta criar uma cultura da vida cotidiana de acordo com o progresso da produção industrial e do design artísti- co, ao invés da rotina do comércio e do consumo da pequena burguesia. Seus tipos são símbolos da vida comum. Mas também o são os de Mallarmé. Eles fa- zem parte do processo de construção, acima do nível da economia monetária, uma economia simbólica que iria mostrar uma “justiça” ou “magnificência” coletiva, uma celebração da moradia humana subs- tituindo as cerimônias abandonadas da monarquia e Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 12 da religião. Longes um do outro como podem parecer um poeta simbolista e um engenheiro funcionalista, eles partilham a ideia de que formas de arte deveram ser maneiras de educação coletiva. Tanto a produção industrial quanto a criação artística estão compro- metidas em fazer algo a mais do que fazem – criar não apena objetos, mas um sensorium, uma nova di- visão do perceptível. Concebendo a vida da arte Esse é o primeiro cenário. O segundo é o esquema de “vida que se torna arte” ou a “vida da arte”. A esse cenário pode-se dar o título de um livro do historia- dor de arte francês Elie Faure, O Espírito das For- mas: a vida da arte como o desenvolvimento de uma série de formas nas quais a vida se torna arte. Essa é de fato a trama do museu, concebido não como um edifício e uma instituição, mas como uma maneira de tornar a “vida da arte” visível e inteligível. Sabe- mos que o nascimento de tais museus por volta de 1800 causa disputas amargas. Seus oponentes argu- mentavam que as obras de arte não deveriam ser ar- rancadas de seus ambientes, o solo físico e espiritual que as gerou. Vez ou outra essa polêmica é revivida nos dias de hoje: o museu é proclamado um mauso- léu dedicado à contemplação de ícones mortos, se- parados da vida da arte. Outros sustentam que, ao contrário, museus têm que ser espaços vazios para que espectadores possam ser confrontados com a arte em si, sem a distração da contínua culturaliza- ção e historicialização da arte. Ambos, em minha visão, estão errados. Não existe Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 15 Quando a arte não é mais que arte, ela desaparece. Quando o conteúdo do pensamento é claro para ele mesmo e quando nenhuma matéria a ele resiste, esse sucesso significa o fim da arte. Quando o artista faz o que quer, Hegel coloca, ele retrocede a apenas colo- car no papel ou na tela uma marca. A trama do assim chamado “fim da arte” não é sim- plesmente uma teorização pessoal de Hegel. Ela se une à trama da vida da arte como “o espírito das formas”. Esse espírito é o “sensível heterogêneo”, a identidade de arte e não arte. A trama diz que quando a arte para de ser não arte, também não é mais arte. Poesia é po- esia, diz Hegel, enquanto a prosa for confundida com poesia. Quando a prosa é somente prosa, não há mais o sensível heterogêneo. As afirmações e guarnições da vida coletiva são somente as afirmações e guarnições da vida coletiva. Assim a fórmula da arte que se torna vida é invalidada: uma vida nova não precisa de uma arte nova. Ao contrário, a especificidade da nova vida é que ela não precisa de arte. Toda a história das formas de arte e da política da estética no regime estético da arte poderia ser colocada como o conflito dessas duas fórmulas: uma vida nova precisa de uma arte nova; a vida nova não precisa de arte. Metamorfoses da loja de antiguidades Nessa perspectiva, o problema-chave é como re- avaliar o “sensível heterogêneo”. Isso se refere não somente a artistas, mas à precisa ideia de uma vida nova. Toda a questão do “fetichismo da mercadoria” deve, penso eu, ser reconsiderada a partir desse ponto de vista: Marx precisa provar que a mercadoria tem Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 16 um segredo, que codifica um ponto de heterogeneida- de na vida cotidiana. A revolução é possível porque a mercadoria, como Juno Ludovisi, tem natureza du- pla – é uma obra de arte que escapa quando tentamos nos apropriar dela. A razão é que a trama do “fim da arte” determina uma configuração de modernidade como uma nova divisão do perceptível, sem ponto de heterogeneidade. Nessa divisão, a racionalização das diferentes esferas de atividade se torna uma resposta tanto para as antigas ordens hierárquicas quanto para a “revolução estética”. Todo o lema da política do re- gime estético, então, pode ser escrito assim: deixe-nos salvar o “sensível heterogêneo”. Há duas maneiras de salvá-la, cada uma envolven- do uma política específica, com sua própria ligação en- tre autonomia e heteronomia. A primeira é o cenário de “arte e vida trocando suas propriedades”, próprio do que podemos chamar, em um sentido amplo, de poética romântica. Pensa-se frequentemente que a poética romântica envolveu uma sacralização da arte e do artista, mas essa é uma visão parcial. O princí- pio do “Romantismo” é antes ser encontrado em uma multiplicação das temporalidades da arte que torna suas fronteiras permeáveis. Multiplicar suas linhas de temporalidade significa complicar e em última instân- cia acabar com os cenários simples da arte se tornan- do vida ou da vida se tornando arte, do “fim” da arte; e substituí-los por cenários de latência e atualização. Esse é o peso da ideia de Schlegel de “poesia univer- sal progressiva”. Não significa uma marcha direta em direção ao progresso. Ao contrário, “romantizar” os trabalhos do passado significa tomá-los como elemen- tos metamórficos, dormindo e acordando, suscetíveis Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 17 a diferentes atualizações, de acordo com novas linhas de temporalidade. Os trabalhos do passado podem ser considerados formas para novos conteúdos ou mate- rial cru para novas formações. Podem ser revistos, en- quadrados novamente, lidos de novo, refeitos. É assim que museus exorcizaram a trama rígida do “espírito das formas” que leva ao “fim das artes”, e ajudaram a conceber novas visibilidades da arte, levando a novas práticas. Rupturas artísticas tornaram-se possíveis, também, porque o museu ofereceu uma multiplicação das temporalidades, permitindo, por exemplo, que Manet se tornasse um pintor da vida moderna repin- tando Velásquez e Titian. Atualmente, essa multitemporalidade significa também uma permeabilidade das fronteiras da arte. Uma questão de arte acaba sendo um tipo de status metamórfico. As obras do passado podem adormecer e parar de ser arte, podem ser despertadas e adqui- rir uma nova vida de maneiras variadas. Eles assim o fazem por um continuum de formas metamórfi- cas. De acordo com a mesma lógica, objetos comuns podem ultrapassar a fronteira e entrar na esfera da combinação artística. Podem fazê-lo mais facilmente na medida em que o artístico e o histórico estão ago- ra ligados, tanto que cada objeto pode ser tirado de sua condição de uso comum e ser visto como um cor- po poético usando as características de sua história. Dessa maneira, o argumento do “fim da arte” pode ser invertido. No ano em que Hegel morreu, Balzac pu- blicou seu romance La Peau de chagrin. No começo do romance, o herói Raphael entra no salão de uma grande loja de antiguidades onde estátuas e pinturas antigas estão misturadas a móveis, instrumentos e Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 20 de tornar a sociedade consciente de seus próprios se- gredos através do abandono do rumoroso palco das reivindicações e doutrinas políticas e do aprofunda- mento no íntimo social para revelar os enigmas e fan- tasias escondidos na realidade íntima da vida coti- diana. É no despertar dessa poética que a mercadoria pode ser considerada uma alucinação: uma coisa que parece banal à primeira vista, mas que de perto se revela um tecido de hieróglifos e um quebra-cabeça de trocadilhos teológicos. Reduplicação Infinita? A análise de Marx da mercadoria faz parte da tra- ma romântica que nega o “fim da arte” como a homo- geneização do mundo sensível. Podemos dizer que a mercadoria marxista sai da loja balzaquiana. É por isso que o fetichismo da mercadoria permitiu que Benjamin contasse a estrutura das imagens de Bau- delaire através da topografia das arcadas parisienses e o caráter do flâneur. Pois Baudelaire demorou-se não tanto nas arcadas em si, mas na trama da loja enquanto um novo sensorium, enquanto um lugar de troca entre a vida cotidiana e a esfera da arte. O explicans e o explicandum fazem parte da mesma trama poética. É por isso que eles se encaixam tão bem; bem demais, talvez. Esse é mais amplamente o caso do discurso da Kulturkritikin em suas diver- sas formas – um discurso que passa por falar a ver- dade sobre a arte, sobre as ilusões da estética e sua base social, sobre a dependência da arte da cultura comum e da mercantilização. Mas os próprios proce- dimentos pelos quais ela tenta revelar o que a arte e Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 21 a estética realmente são foram primeiramente conce- bidos no domínio da estética. Eles são componentes do mesmo poema. A crítica da cultura pode ser vis- ta com a face epistemológica da poética romântica, a racionalização de sua maneira de intercambiar os signos da arte e os signos da vida. A Kulturkritikin quer lançar sobre a produção da poética romântica o olhar da razão desencantada. No entanto, esse pró- prio desencantamento faz parte do reencantamento romântico que aumentou ad infinitum o sensorium da arte como a área de atuação de objetos em desuso que codificam uma cultura, estendendo também ao infinito a esfera das fantasias a serem decifradas e es- tabelecendo os procedimentos dessa decodificação. Assim a poética romântica resiste à entropia do “fim da arte” e sua “desestetização”. Mas seus pró- prios procedimentos de reestetização são ameaçados por outro tipo de entropia. São colocados em peri- go por seu próprio sucesso. O perigo nesse caso não é que tudo se torne prosaico. É que tudo se torne artístico – que o processo de troca, de atravessar a fronteira, alcance um ponto em que o limite se tor- ne completamente distorcido, em que nada, por mais prosaico que seja, escape do domínio da arte. É isso que acontece quando mostras de arte nos apresen- tam meras imitações de objetos de consumo e víde- os comerciais, rotulando-os como tal, pressupondo que esses artefatos ofereçam uma crítica radical da mercantilização pelo simples fato de serem a cópia exata de mercadorias. A indiscernibilidade passa a ser a indiscernibilidade do discurso crítico, conde- nada ou a participar da rotulagem ou a denunciá-la ad infinitum afirmando que o sensorium da arte e o Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 22 sensorium da vida cotidiana não são nada mais que a eterna reprodução do “espetáculo” no qual a domina- ção é tanto refletida quanto negada. Essa denúncia logo se torna parte do jogo. Um caso interessante desse discurso duplo é uma mos- tra recente primeiramente apresentada nos Esta- dos Unidos como Let’s Entertain e depois na Fran- ça como Beyond the Spectacle. A mostra parisiense jogou em três níveis: primeiro, a provocação do pop contra a alta cultura; segundo, a crítica do entrete- nimento como espetáculo de Guy Debord, exprimin- do o triunfo da alienação; terceiro, a identificação de “entretenimento” com o conceito debordiano de “jogo” como o antídoto para “apresentação”. O en- contro de jogo livre e apresentação livre foi reduzido a uma confrontação entre uma mesa de bilhar, uma mesa de pebolim e um carrossel, e os bustos neoclás- sicos de Jeff Koons e sua esposa. Entropias da vanguarda Essas conclusões levam à segunda resposta ao di- lema da desestetização da arte – o caminho alterna- tivo que reafirma o poder do “sensível heterogêneo”. Ele é o exato oposto do primeiro: mantém que o beco sem saída da arte está na distorção romântica de suas fronteiras e coloca a necessidade da separação da arte das formas de estetização da vida comum. A colocação pode ser feita somente por causa da arte em si, mas também pode ser feita por causa do poder emancipa- tório da arte. Nos dois casos, é a mesma afirmação bá- sica: a percepção deve ser separada. O primeiro ma- nifesto contra o kitsch, muito antes da existência da Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 25 para a construção perfeita de Schönberg. Para que a arte de vanguarda permaneça fiel à promessa da cena estética, ela deve destacar mais e mais o poder da he- teronomia que sustenta sua autonomia. Derrota da imaginação? Essa necessidade oculta leva a outro tipo de en- tropia, que torna a tarefa da arte de vanguarda au- tônoma análoga àquela de dar testemunho da he- teronomia absoluta. Essa entropia é exemplificada perfeitamente pela “estética do sublime” de Jean- -François Lyotard. À primeira vista, essa é uma radi- calização da dialética da arte de vanguarda que cami- nha para a inversão de sua lógica. A vanguarda deve para sempre desenhar a linha divisória que separa arte de cultura mercadológica, registrar intermina- velmente a ligação da arte ao “sensível heterogêneo”. Mas ela deve fazê-lo com o objetivo de invalidar para sempre a “trapaça” da própria promessa estética, de denunciar tanto as promessas do vanguardismo re- volucionário quanto a entropia da estetização mer- cadológica. À vanguarda é dado o dever paradoxal de testemunhar a imemorial dependência do pen- samento humano que faz de qualquer promessa de emancipação uma decepção. Essa demonstração toma a forma de uma releitura radical da Crítica da Faculdade do Juízo de Kant, de uma ressignificação do sensorium estético que se co- loca como uma negação implícita da visão de Schiller, um tipo de cena contra originária. Todo o “dever” da arte moderna é deduzido por Lyotard a partir da aná- lise kantiana do sublime como uma experiência radi- Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 26 cal de discordância na qual o poder sintético da ima- ginação é derrotado pela experiência de um infinito que estabelece uma lacuna entre o sensível e o super- sensível. Na análise de Lyotard, isso define o espaço da arte moderna como a manifestação daquilo que não é representável, da “perda de uma relação sólida entre o sensível e o inteligível”. É uma afirmação pa- radoxal: primeiramente, porque o sublime para Kant não define o espaço da arte, mas marca a transição da experiência estética para a ética; segundo, porque a experiência de desarmonia entre razão e imaginação tende para a descoberta de uma harmonia maior – a auto percepção do sujeito como membro do mundo supersensível da razão e da liberdade. Lyotard quer opor a lacuna kantiana do sublime à estetização hegeliana. Mas ele tem que emprestar de Hegel seu conceito do sublime enquanto impossibili- dade de adequação entre pensamento e sua apresen- tação sensível. Ele tem que emprestar da trama do “espírito das formas” o princípio de uma contra cons- trução da cena originária para permitir uma contra leitura da trama da “vida das formas”. É claro que essa confusão não é uma interpretação errada casu- al. É uma forma de bloquear o caminho originário da estética à política, de impor na mesma encruzilha- da um desvio de sentido único que leva da estética à ética. Desta forma, a oposição do regime estético da arte ao regime representacional pode ser atribuí- da à oposição pura da arte do irrepresentável à arte da representação. Obras de arte “modernas” devem então se tornar testemunhas éticas do irrepresentá- vel. Estritamente falando, no entanto, é no regime representacional que se podem encontrar assuntos Projeto Revoluções - A revolução estética e seus resultados - Jacques Rancière 27 irrepresentáveis, ou seja, aqueles para os quais forma e matéria não podem ser ajustadas de maneira algu- ma. A “perda de uma relação estável” entre o sensível e o inteligível não é a perda do poder de relacionar, é a multiplicação de suas formas. No regime estético da arte, nada é “irrepresentável”. Muito tem sido escrito no sentido de que o Holo- causto é irrepresentável, de que permite apenas seu testemunho e não arte. Mas a afirmação é refutada pelo trabalho das testemunhas. Por exemplo, a escri- ta paratática de Primo Levi ou Robert Antelme tem sido tomada como o modo absoluto de testemunho da experiência nazista de desumanização. Mas esse estilo paratático, composto de uma concatenação de pequenas percepções e sensações, foi uma das prin- cipais características da revolução literária do século XIX. As notas curtas no começo do livro de Antelme L’Espèce humaine descrevendo as latrinas e colocan- do a cena do acampamento em Buchenwald, seguem o mesmo padrão da descrição do pátio da fazenda de Emma Bovary. Do mesmo modo, o filme Shoah de Claude Lanzmann tem sido visto como testemunho do irrepresentável. Mas o que Lanzmann contrapõe à trama representacional da série de televisão ame- ricana O Holocausto é outra trama cinematográfi- ca – a narrativa de uma investigação em curso que reconstrói um passado enigmático ou apagado que pode ser rastreado até o Rosebud de Orson Welles em Cidadão Kane. O argumento do “irrepresentável” não combina com a experiência da prática artística. Ao invés disso, supre o desejo de algo irrepresentá- vel, algo indisponível, a fim de inscrever na prática da arte a necessidade do desvio ético. A ética do irre-
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved