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Guias e Dicas
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Sobre a Velha República, Resumos de História

Coronelismo na Velha República

Tipologia: Resumos

2021

Compartilhado em 01/06/2021

lucas.gtr
lucas.gtr 🇧🇷

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Baixe Sobre a Velha República e outras Resumos em PDF para História, somente na Docsity! MARIA LUCINETE FORTUNATO O CORONELISMO E A IMAGEM DO CORONEL: DE SÍMBOLO A SIMULACRO DO PODER LOCAL UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL CAMPINAS - SP 2000 Í GmiISAEA É BEMOTRCA canvas MARIA LUCINETE FORTUNATO O CORONELISMO E A IMAGEM DO CORONEL: DE SÍMBOLO A SIMELACRO DO PODER LOCAL Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, em cumprimento às exigências para a obtenção do titulo de Doutor em História, sob a orientação da professora Dra. Maria Stella Martins Bresciani Este exemplar corresponde à redação final da tese defendida e aprovada pela comissão julgadora em £j yf/ Depo ço Profa/Dra. Maria Stelia Martins Bresciani (Oriesitadora) , f EN a E PEA Prof Dr. Durval Muniz de Albuquerque Fúnior , (membro) Prof Dr. Italo Preco ronca N (membro) , . | e dA 8 Figaro fo SA fr End Profa. Dra. Márcia Regina Capelari Naxéra (membro) RUNHO - 2000 | preso, Capítulo TH: O deslocamento de coronelismo do âmbito nacional para o regional: especificidades e continuidades......... 3.1. Um exemplo do coronelismo do Sul: a relação coronel/partido/Estado......... 3.2. O coronelismo nos “estados mais atrasados”: a relação coronel/Estado sem intermediação partidária.............s 3.2.1. O coronelismo na Bahia: dois tipos de coronelismos e sete tipos de coronéis... 3.2.2. O coronelismo no Ceará: violência e persuasão............ siemens 3.2.3 O coronelismo na Paraíba: um exemplo da perpetuação da força do parentesco na politica nacional... Capítulo IV: A imagem de coronel: de símbolo a simulacro do poder local... 41. O coronel como simboio do coronelismo............c iii 4.1.1 A construção da imagem do coronel como simbolo do poder local no romance de 1930 no Nordeste... senna a) José Lins do Rego....... b) Jorge Amado. 4.2 A imagem do coronel como simulacro do poder local nos textos literários de Dias Gomes... ease Considerações Finais Bibliografia... aeee tina aaateraeaas ass eeeeranias 105 «IS ..F22 «133 158 149 .151 igt 214 AGRADECIMENTOS No caminho percorrido até a realização deste trabalho recebemos uma contribuição inestimável de amigos, parentes c instituições. Em primeiro lugar gostaríamos de agradecer aus colegas do Departamento de Ciências Sociais e do Centro de Formação de Professores da UFPB (campus V) por terem compreendido a necessidade da pesquisa nos liberando para cursar o doutorado. Destacamos também as pessoas que fazem a PRPG e a CAPES pela concessão da bolsa que nos facilitou viagens e compra de material de trabalho. Ao lado destes, estendemos nossos agradecimentos a todos que integram a coordenação de pós-graduação do IFCH — UNICAMP, sempre dispostos ao atendimento de que precisamos solicitar. Registramos, no campo da discussão acadêmica, os nossos agradecimentos a todos os professores do curso de Doutorado em História Social da UNICAMP, em especial aos professores Dr. Edgar Saivadori de Decca e Dr. Ítalo Arnaldo Tronca que aceitaram a tarefa de discutir, no exame de qualificação, o presente trabalho. A contribuição de ambos pela sugestão de leituras e pela indicação de lacunas importantes, foi significativa para a finalização deste estudo. Agradecemos, com especial gratidão, aos amigos Fábio Henrique Lopes € Paulo César Longarini pela gentileza, prestimosidade e simpática acolhida durante todo este percurso. Gratidão que se estende a toda nossa família pelo carinho, atenção e compreensão, sempre - especialmente a Lourdes Fortunato (mãe) e a Lucinalva (irmã) -, aos colegas de curso, e aos amigos Elizabeth, Ana Cristina, Mariana, Maria do Carmo, Edmilsom, Carmita, Ivete, Márcia, Alderi, Hozanete, Heleonita, Glória, Marilene, Roberval, Silvana, e Silvia Cristina, pela ajuda e amizade sincera. O nosso particular reconhecimento à professora Maria Stella Martins Bresciani, orientadora e amiga, pelas recomendações e críticas, e, sobretudo, pela compreensão e atenção. Sua contribuição foi relevante em todos os sentidos, principalmente pela sinceridade na concordância e honestidade nas divergências. Reconhecimento que se estende ao professor Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior (UFPB — Campus 1), com cujo afeto e desprendimento constante pudemos contar sempre. Sua contribuição foi imprescindível para o caminho a escolher e pelas indicações valiosas de leitura. Seu carinho e atenção em todos os momentos dificeis foi inigualável. Finalmente, agradecemos a todos que direta ou indiretamente contribuiram para a efetivação deste estudo. INTRODUÇÃO No nosso trabalho de mestrado! estudamos a organização da política no município de Catolé do Rocha, no sertão paraibano, onde as relações de poder, no que concerne ao exercício do denominado poder local, têm sido analisadas como “tradicionais” e/ou “coronelísticas”. Nosso objetivo, naquele momento, foi o de tentar perceber como os agricultores. através de suas formulações discursivas, compreendiam as relações de poder; como eles as vivenciavam quotidianamente e até que ponto eles desenvolviam estratégias e resistências, frente às relações de poder por eles vivenciadas. Também questionávamos como foi possível que, na cena política, aqueles agricultores tenham sido suprimidos em nome da legitimação de “poder político dos ditos coronéis”. Ao longo daquele estudo, percebemos que a idéia de passividade e subordinação dos agricultores frente ao exercício do poder foi mediada por um saber constituído socialmente a partir do que é dizível das relações de poder, ou da identidade de dominado, construída com base nos significados e interesses dos chefes políticos locais (os chamados coronéis) e das relações que se estabeleceriam entre estes e o Estado, * Maria Lucinere Fortunato. “Da Consideração ao Ganho: redefinições das relações de poder no discurso “camponês” (O caso de Catolé do Rocha)”. Dissertação de Mestrado de Sociologia - UFPB, Campus H — Campina Grande, PB, dezembro de 1993. sem considerar os significados e valores das demais forças envolvidas no jogo da política. Chamou-nos a atenção a constatação de que, nos discursos dos agricultores de Catolé do Rocha, a questão da dominação, para os que são configurados como dominados, coloca-se como algo muito complexo e não deve ser considerada apenas a partir do que é dizivei das relações de poder, ou da identidade de dominado construída pelos que se pretendem dominantes. Analisando os discursos dos agricultores no que diz respeito à sua relação: com “os ricos”, com os “seus iguais”, com o “gaverno”, com o sindicato, com os políticos (situacionistas e de oposição), com a Igreja, com a família e com a terra, encontramos ambigiidades e contradições Estas ambiguidades e contradições denunciam a assimilação de um saber dominante que associa pobreza à fraqueza e riqueza a poder, e, simultaneamente, a percepção de uma oposição estabelecida socialmente e a necessidade de confronto, sobretudo no que diz respeito ao acesso à terra. Neste sentido, um ponto importante da nossa abordagem foi a análise da idéia de “coronelismo” e da imagem do “coronel”. O conceito de coronelismo e a imagem do coronel, criados para designar o domínio do “poder local” pelas elites políticas brasileiras e legitimados continuamente como um saber dominante e imutável adquiriram uma positividade que perpassa os diversos discursos sobre o exercicio do “poder local” no Brasil. Nos discursos daqueles agricultores, porém, a positividade desta idéia surge de uma forma ambígua nem sempre correspondendo a uma visão do poder que se pauta no binômio dominação submissão, de maneira hierárquica e a-histórica. “o Eles falam também de relações de poder não institucionais das quais fazem parte e influem no seu exercício efetivo; falam de confrontos e divergências de interesses sociais e políticos nas suas relações quotidianas. Colocam em suspeição a idéia de que os agricultores não participam do exercício do poder senão como “paus mandados”. Percebemos, por meio dos discursos que analisamos, que a idéia de “coronelismo” não perpassa a mecânica sutil e microscópica do poder, ou a forma como ele se exerce concretamente com suas especificidades, seus diversos dispositivos, suas técnicas e táticas em todo o corpo social. O poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social Ele produz e é produzido permanentemente nas relações sociais. como defende Michel Foucault. A partir desta compreensão, algumas questões nos foram impostas: Como foi possível que o conceito de coronelismo e a imagem do coronel a ele vinculada tenham conseguido legitimar uma imagem unitária e monolítica de poder? Que condições históricas possibilitaram tal construção? Estas questões nos forneceram a idéia inicial do presente trabalho, que foi a de analisar as elaborações discursivas dos historiadores « cientistas sociais acerca do “poder tocai”, a fim de apreendermos como e sob que condições históricas se deu a construção da imagem do coronel e do imaginário do coronelismo enquanto categoria explicativa das relações de poder, e como tem sido tematizada e legitimada a relação entre poder e f. Michel Foucault, “A microfisica do poder”. Org. e tradução de Roberto Machado. — %. edição: Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. enunciados que permitiram que estes discursos tenham surgido e funcionado, assumindo a importância que têm em nossas práticas culturais. Não pretendemos, com este estudo, levantar alternativas frente aos discursos acadêmicos e literários que analisaremos, nem projetar alternativas futuras em relação aos seus efeitos de poder e de saber. O que pretendemos é problematizar e ressaltar o estatuto de verdade que estes discursos conseguem imprimir culturalmente. Investigaremos, pois, neste trabalho a construção e a institucionalização da imagem do coronel e do conceito de coronelismo, considerando esse conceito, as imagens e os enunciados sobre os quais ele se apóia. Analisaremos também, a reelaboração sucessiva da imagem do coronel e de todo o imaginário relativo a essa forma de exercicio da política que se denominou de coronelismo, após os anos trinta deste século. Trata-se de analisar 2 história do conceito de coronelismo e da imagem do coronel tendo como fontes para esta abordagem os discursos dos estudiosos do poder local (cientistas sociais, cientistas políticos, antropólogos e historiadores) e alguns discursos literários que abordam esta questão. Partimos do princípio de que estes discursos são produções de poder e de saber que se expandem por toda a sociedade intervindo materialmente, criando acontecimentos, imagens e referenciais de comportamento Num primeiro momento, o nosso objetivo é verificar as estratégias discursivas que configuraram o coronel como um icone do atraso, bem como, o coronelismo como uma forma não moderna de fazer política pautada em relações pessoais e clientelísticas. Num segundo momento, observar a reconstrução de um lugar para o coronel, bem como a explicação para a perpetuação do coronelismo nos discursos acadêmicos sobre as décadas de 1930 e seguintes, na medida em que foram ocorrendo mudanças na cena política com o advento da “modernidade” e o deslocamento das relações pessoais para as relações mediadas pelos meios de comunicação. Na primeiro capítulo, abordaremos a construção do conceito de coronelismo na literatura acadêmica, e como este é definido nos diversos discursos que o elaboram, a fim de verificarmos quais os tipos de práticas políticas que foram transformadas, nesses discursos, em práticas que validam e recobrem, uma visibilidade e uma dizibilidade sobre o poder, sob a égide desse conceito Interessa-nos, nesse momento, verificar quais são os tipos de adequação formuladas entre os parâmetros teóricos do “coronelismo” e a análise dos jogos da política. E, também, como esse conceito recobre diferentes práticas políticas e se apresenta de forma diversa nos vários discursos, no que diz respeito a sua origem, suas caracteristicas, seus fundamentos € o seu declínio. No segundo capítulo, a fim de entendermos a operacionalidade do conceito de coronelisma, faremos uma genealegia da sua construção e da sua institucionalização como uma forma de poder específica, apontando as condições de possibilidade da emergência histórica do conceito de coronelismo, e analisando a sua ordenação como uma construção estratégica e como ação política; e não, como simples atualização de uma existência material, nem como explicação de uma realidade objetiva Compreendemos que as propostas políticas que se institucionalizaram como dominantes nas décadas de 1920 e de 1930 possibilitaram a criação e a legitimação do conceito de coronelismo. Por isso, primeiramente, faremos uma análise das fontes, das idéias políticas e dos enunciados sobre os quais se basearam os autores que elaboraram o referido conceito. Em segundo lugar, verificaremos, nesses discursos, que tipo de saber é legitimado como uma forma de ver e dizer o poder; até que ponto tal saber torna-se marco para se pensar como se processam e se perpetuam as “relações de poder”, possibilitando que o conceito de coronelismo seja instituído como uma “verdade”, desclassificando outras possíveis formas de abordagem das relações de poder que se exerceram no Brasil. Na terceiro capítulo, analisaremos como são conferidas uma legitimidade e uma continuidade à imagem do coronel e ao conceito de coronelismo nos discursos dos estudiosos que analisam as relações ditas coronelísticas, sob prismas “regionais”, por meio de uma dada espacialidade. Para tanto, abordaremos alguns “estudos de caso” que fazem uso do conceito de coronelismo para caracterizar as relações de poder nos estados do Rio Grande do Sul, da Bahia, do Ceará e da Paraíba. CAPÍTULO I A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE CORONELISMO NA LITERATURA ACADÊMICA O conceito de coronelismo está presente num grande número de obras escritas por historiadores, juristas e cientistas sociais, entendido como forma de exercício do “poder local”, relacionado com outras instâncias do poder constituído, quais sejam, a estadual e a federal. Encarado como sistema político, clientelismo e/ou mandonismo local, o coronelismo teve como período de maior vitalidade, segundo os estudiosos dessa temática, o periodo que abrange a chamada Primeira República (1989-1930)* * É consenso entre os autores que abordam o “fenômeno do Coronelismo” a idéia de que o maior fortalecimento e à institucionalização do coronelismo se deu no período que compreende a chamada “Primeira República”, “República Velha” e/ou “República dos Coronéis” ( 1889-1930). 12 A construção do conceito de coronelismo na literatura especializada é bastante complexa, pois os textos que trabalham com este enunciado o véem de forma diferenciada: uns o reforçam, outros o reelaboram. Considerando que o conceito de coronelismo continua sendo utilizado na atualidade, nossa proposta é investigar as abordagens de alguns estudiosos do poder local, a fim de apreendermos como nos seus discursos tem sido tematizada a relação entre “poder” e “Estado”, e a utilização que fazem do enunciado do coronelismo para definir o “sistema político”, o “clientelismo” ou o “mandonismo”, ao longo da História do “Brasil República” * Interessa-nos, neste momento, verificar como o conceito de coronelismo tem sido trabalhado na literatura acadêmica especializada, quais são os tipos de adequação formuladas entre os parâmetros teóricos do coronelismo e a análise dos jogos da política, como o “fenômeno do coronelismo” recobre diferentes práticas políticas e é, ao mesmo tempo, operacional (possui validade). Enfim, cabe o questionamento: como foi possível que as relações de poder fossem recobertas de tal forma pelo enunciado do coronelismo, dando-lhe uma validade discursiva, uma validade operacional? É esta a questão que * Autores como Victor Nunes Leul: “Coranetismo. Enxada e Voio: o município e o regime representalivo no Brasil”. 4º ed. São Paulo: Ala - Ômega, 1978. O 1948; Raymundo Faoro: “Os Donos do Pader”. Porio Alegre: ed. Globo, 1977; Maria Isawa P. Queiroz: “O Coronelismo Numa Interpretação Sociológica”. In. História Geral da Civilização Brasileira, Tono IH, o Brasil Republicano Livro 1 - Estrutura de Poder e Economia (1898 - 1930). FAUSTO (Org) S. Paulo: DIFEL, 1977; e Ibarê Dantas: “As Mutações da Coronelismo”, In. Relações de trabalho e relações de poder: mudanças e permanências”. Fortaleza: UFC/NEPS, 1986; entre outros, referem-se ao coronelismo como fenômeno típico da chamada “República Velha” brasileira, porém todos admitem: que o coronelismo sobreviveu de alguma forma à essa “Primeira República”. No Dicionário histórico-hiagrájico brasileiro. (v. 2. Rio De Janeiro: FGV, 1983), Pp 932 essa tese é claramente defendida nos seguintes termos: “Visto como a evolução do mandonismo, o estudo do coronelismo passa a ser a história da formação da cidadania. Não há nada de errado nisto é é uma história que pode ser feita. Mas fica-se na impossibilidade de precisar as fases do processo, e mesmo o seu ponto final, de vez que algum tipo de clientelismo, de controle eleitoral através da distribuição de bens públicos ou privados, dificilmente deixará de existir em um país que se caracteriza peia pobreza da população e pela escassez de empregos” (p. 932). valida a importância da análise das abordagens acadêmicas sobre o tema coronelismo que agora pretendemos fazer. Um primeiro ponto a considerar, nesse trabalho, é que a vasta bibliografia a respeito do coronelismo engloba obras de caráter geral, isto é, o enunciado do coronelismo tem sido interpretado de maneira ampla, englobando todo o país; e obras de caráter jocal, sobretudo as mais recentes, analisando-o sob a prisma regional. Contudo, os autores que trabalham com o coronelismo enquanto um mando pessoal exercido por determinados “coronéis” num lugar especifico também elaboram sua definição conceitual. Objetivamos, pois, observar as definições conceituais do coronelismo com base nos autores que analisam esta temática - sem considerar se a abordagem é de caráter geral ou regional -, destacando na construção do citado conceito a faceta descritiva que dá visibilidade à figura do coronel veiculada nesses discursos, sobretudo no que diz respeito à origem do coronelismo, suas caracteristicas, seus fundamentos, sua conceituação, seu declnio. Assim, interessa-nos perceber os diferentes textos e imagens produzidos sobre o coronelismo e sobre o coronel. Em que medida eles aparecem como uma homogeneidade, alcançam um nível consensual e se tornam “grandes verdades”, com caracteristicas identitérias que legitimam e perpetuam as relações de poder que as instituíram, visto que em cada discurso aparece um diagnóstico a respeito das causas, das características e das reelaborações do coronelismo. Até que ponto existem certos deslocamentos nestes discursos que podem fazê-los surgir como múltiplos? 16 federal) que determinará a emergência dos coronéis como verdadeiros chefes de clas? cujo controle é total em seu município ou zona. Maria de Lourdes M. Janotti” também afirma que as raízes do coronelismo só foram sedimentadas no Império, através do autoritarismo local e da força eleitoral que os coronéis possuíam devido à fraqueza da estrutura administrativa do Estado - que usava o exército e a força das milícias particulares - no caso a Guarda Nacional - para manter a ordem escravocrata e a identidade territorial. De acordo com essa posição, com a República, o que se verifica é uma ampliação da papel do coronel na nova estrutura política, porque, €..) permanecendo o Brasil como um país essencialmente agrário. a centralização existente no Regime Monárquico continuou sob nova roupagem. agora estadualista, dirigida pela burguesia rural e financeira. À República, assina, atendeu à uma nova repartição do poder, onde permaneceram as antigas eligarquias e se introduziram as novas, representadas, em São Paulo. pela composição entre os antigos proprietários de terra, banqueiros e comissários de café ”* Nesse sentido, Janotti concorda com Faoro quando faz menção à “coloração estadualista” assumida pelo coronelismo na Primeira República, na qual o poder privado '2 É importante observarmos que há. nessa construção discursiva, a elaboração do conceito de coronelismo vinculado a um conceito de clã que, segundo Carone, engloba não apenas os laços consangitíneos de parentesco, mas também, os laços de dependência material e moral. Sobre o conceito de Clã para a sociedade brasileira ver também: Maria Isaura P. Queiroz: “O mandonismo local na vida política brasileira”, S. Paulo”: Alfa e Ômega, 1976, p. 18); Francisco José de Oliveira Viana: “Iastiruições Políticas Brasileiras”, 3º ed. Rio de Janeiro: Record, 1974 (2 vol), Eul-Soo Pang: “Coronelismo e oligarquias (1889-1943); A Bahia na Primeira República Brasileira”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 23-24), e, Linda Lewin: “Potítica e Parentela na Paraíba: Um estudo de caso da oligarquia de base familiar”. Tradução de André Villalobos. - Rio de Janeiro; Record, 1993, p. 11. CE Maria de Lourdes M. Janotfi: “O coronelismo, uma política de compromissos”. In Coleção Tudo é História. No. 13 São Paulo: Brasiliense, 7º. edição, 1989. !º Janott, Maria de Lourdes M. op. cit 1989, p.33. 1 do coronel continuou a ser “desmesurado”, pois o Estado, em busca da centralização, viu-se obrigado a ceder mais uma vez ao poder local, atribuindo novos encargos aos coronéis que, com a extensão do voto, eram obrigados a submeter o poder que haviam herdado das estruturas do mandonismo aos poderes superiores dos chefes da política estadual Hã. ainda, em aíguns textos, a afirmação de que o coronelismo se inicia na colônia, e não na Primeira República, como aponta Leal, ou no Império, como localizam Fagro, Carone e Janotti, entre outros. Para Marcel Bursztyn", por exemplo, na colônia, quando se opera uma transferência das prerrogativas do Estado para o poder local, em troca do reconhecimento da soberania da coroa, manifesta no pagamento de impostos, verifica-se a presença de relações coronelísticas. Durame o Império, o poder locaí também colabora no projeto de unidade/unificação do pais e, em troca, o Estado transfere para ele os poderes militares e subsídios indiretos. Na Primeira República, o Estado se omite diante da supremacia do coronel; já a partir do governo Vargas, a intervenção estatal é intensificada, muito embora se dê através da intermediação da figura do coronel! Eul-Soo Pang”, assim como Bursztyn, pensando a “raiz” ou “origem primária” CE Marcel Bursziyn, “O poder dos donos: Planejamento e Clentelismo no Nordeste”, ? Edição, Petrópolis: Vozes, 1985. “Idem. p I7a21, ** CE Pang. Passim. do coronelismo brasileiro, afirma que esta se encontra no período colonial, e que o termo coronel advém de um posto militar das milícias coloniais. Entretanto, Pang defende que essa forma de poder político foi instituida entre 1850 e 1950, tendo como período de amadurecimento a Primeira República. Para Pang, o coronelismo não tem relação com o papel dos comandantes da Guarda Nacional, mas com os aspectos sócio-políticos do monopólio do poder por parte das classes dominantes e auxiliares, nos regimes Monárquico e Republicano no Brasil. Pang encontra as origens do coronelismo na base patriarcal da sociedade brasileira e na estrutura econômica dos engenhos de açúear e das fazendas de gado do séc. XVI, quando se verificou a transformação do poder privado em poder público. Segundo Pang, o sistema de supremacia política de um só homem, cujo poder se baseava no status social e econômico privilegiado, é o antecedente colonial do coronelismo nos séculos XIX e XX. Já Robinson Cavalcanti!º, estudando a relação entre força armada regular e poder local e procurando descobrir as origens da coronelismo, afirma que o coronelismo seria uma manifestação particular da poder local, principalmente durante a Primeira República, [que] permanece oindo com muitos aspecios a serem expiorados, notadameme suas origens, inclusive em sua dimensão institucional? ' CE Robinson Cavalcanti, “A Origem do Coronelismo: força emmada e poder local no Estado Parrimonial”. Recife. UFPE, Ed Universitária, 1984, 189 Pp “Idem, p 18 21 sustenta a tese de que o coronel é um dos principais personagens da história política brasileira, e que foi através dele que o nosso sistema político foi construído. Gualberto afirma que o comportamento do colonizador marcou fortemente a sociedade brasileira, sobretudo no que diz respeito à mestiçagem biológica, à falta de interação inter-racial em nível social, ao sincretismo religioso € à idéia do trabalho como obrigação dolorosa ou algo a ser evitado”. No entanto, acredita que o nascimento de uma verdadeira vida social no Brasil sô pode ser pensado se considerarmos os eixos em torno dos quais a vida econômica e social se estruturou no mundo colonial: a estrutura agrária baseada em grandes latifúndios, totalmente ligada à escravidão e à economia mercantil européia; o sincretismo cultural e religioso; a mestiçagem: a ausência de limites entre o público e o privado; e o papel central do “pai” na cultura portuguesa e no Brasil Colônia.” Segundo Guaiberio, o coronelismo surge a partir do momento em que o Brasil começa a ser colonizado, e não após a “morte” da Guarda Nacional, como afirma Cavalcanti. Gualberto não desconsidera a importância da Guarda Nacional durante o Império: Durante o império, a Guarda Nacional estruturou o poder local, ampliando o poder dos latifundiários, (...) nos processos eleitorais seus oficiais eram eleitos para os cargos mais importantes (...j, Uma vez consolidados como núcleo central do poder o coronel iria ainda mois longe. Ele se transformaria na própria representação do poder, e não mais no intermediário da * João gualberto faz essa afirmação com base na pensamento de Sérgio Buarque de Holanda em “Raizes do Brasil" (1984), onde este autor afirma que a ociosidade digna era excelente para um bom português ou espanhol. Sinônimo de felicidade. 2 Cf João Gualberto. op. cit. p. 31. Essa posição também é defendida por Caio Prado Jr: “História Econômica do Brasil” São Paulo: Brasiliense, 1986; e por Gilberto Freyre, “Casa Grande e Senzala”. (1933) corte ou do imperador. Isto se daria com o fim do Império e a prociamação da República ”* O latifundiário, “pai simbólico do coronel republicano” era, pois, para Gualberto, o personagem central engendrado por esse processo histórico “centinuo”, no qual a privatização da autoridade pública agrega solidariedades que se ampliam do nível local para o nível nacional, e o poder privado se configura como “a própria representação do pader”. Dessa forma, o coronelismo seria um elemento da construção do Estado Brasileiro, a qual se daria no jogo de constituição da “Nação” através de um pacto elitista que não permite a participação popular, nem tampouco uma vida verdadeiramente democrática. Em outras palavras, para Gualberto: A história brasileira construiu o coronel como uma instituição de dominação, o que foi aceito pela maioria dos dominados, em função de um conjunto de fatores, em parte reais: interesses econômicos, proteção, violência e em parte imaginários: dilatação do imaginário da família das relações de clientela. Os fatores reais e imaginários e sua articulação foram construídos durante séculos De acordo com esta concepção, o coronelismo pode ser considerado como base dos nossos usos e costumes políticos através da articulação de fatores “reais”? e “imaginários” construídos durante séculos. Se para Gualberto o coronelismo surge a partir da colonização e as práticas coronelísticas acompanham toda a História do Brasil, Leal nos lembra que a ascensão do João Gualberto, Op. cit. 1985, op. cit. p. 50. 28 Idem p 82. coronelismo, no final do Império e início da República, coincide com a decadência econômica dos coranéis. Por isso, o pacto implícito de “apoio nacional x autonomia loca?” se dá de acordo com a dependência dos coronéis em relação aos poderes regional e central. Assim, a idéia do coronelismo parece ser construida, ora a partir da própria decadência dos “coronéis” que, segundo estes autores, caracterizam-no, ora como algo que sempre esteve presente na “vida política brasileira”. Como vimos, cada texto define um momento de origem para o coronelismo. Ora ele surge na Colônia, ora no Império, ora com a Proclamação da República. Em todos estes discursos, porém, percebe-se que o objetivo é pensar o coronelismo e a imagem do coronel em suas dimensões estruturais, como elementos que definem a economia e a política do país, tendo como perspectiva uma explicação do processo de desenvolvimento deste fenômeno e as suas reelaborações ao longo da história do Brasil, sobretudo durante a chamada “República Velha”. Esses discursos, embora divergentes quanto à localização temporal da origem do fenômeno coronelismo, possibilitam que este conceito seja remetido a uma realidade que possui características genéricas essenciais. Ao mesmo tempo, organizam um modo de inteligibilidade dessa “realidade” que se pretende fechado, objetivando instituir uma forma linear e continua de ver e dizer as relações de poder e tendendo a valorizar a hierarquia social e escamotear as diferenças. Acreditamos que a criação do conceito de coronelismo tem um compromisso político de produzir uma realidade e criar um olhar que leve a sociedade a ver as relações de dominação como sendo naturalmente dadas pela riqueza. Nesse caso, as 26 A essência (..) do compromisso coronelista - salvo situações especiais que não constituem regra - consiste no seguinte: da barte dos chefes locais governistas, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual. carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assumos relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar”? Esse sistema, cuja base se encontraria na propriedade fundiária, na falta de autonomia municipal e na função eleitoral do coronel, delegaria poder aos “coronéis” através dos serviços e benfeitorias prestados a nível local que, por sua vez, poderiam abranger desde os favores particulares até as obras de cunho assistencialista. De acordo com o discurso de Leal, as relações entre o coronel e sua clientela se estabeleciam por meio da liderança e do poder do coronel, que era dono dos meios de produção e, por isso, dominava social e culturalmente a sua clientela pobre dependente e ignorante que nem sequer tinha acesso aos meios de informação. Tudo isso, porém, estaria consubstanciado na prática política eleitoral, de acordo com as relações entre o “poder local”, o “poder estadual” e o “poder federal”. Leai caracteriza o coronelismo a partir da idéia de uma interdependência entre as três esferas de poder - a local, a estadual e a federal. Contudo, existe, no seu discurso, uma exaltação indireta ao Estado enquanto eixo do poder, tendo em vista que, nesse caso. a posição de quem ocupa o “poder local” deve estar sempre ligada a quem “domina” nas outras duas esferas. *º Idem p. 49-50 27 Além disso, este autor defende que a falta de autonomia municipal age de maneira ambígua: se por um lado enfraquece o papel do poder público e permite a hipertrofia do poder privado - ao ponto de os coronéis exercerem funções que correspondem ao Estado, tais como: justiça, assistência e proteção - por outro, é também um mecanismo de subordinação do coronel ao governo estadual. Temos, aí, uma versão globalizante e estrutural do fenômeno coronelismo, cujo mecanismo - eixo aparece como sendo o sistema de reciprocidade, fundamentado na necessidade de reconhecimento mútuo entre o coronel e os governes estadual e federal das suas respectivas lideranças políticas. Um outro fundamento do coronelismo é buscado na idéia de patrimonialismo do Estado brasileiro. Segundo Faora, que representa muito bem esta linha de interpretação, Fora da ordem feudal, os estamentos cresceram e se tornaram visíveis, sem a quebra - o que espantaria Max Weber - da ordem patrimonicl. À consolidação de beneficios econômicos e de cargos tornou menos dependentes certos setores, que. ao mesmo tempo que recebiam delegações do poder público, procuravam inflnenciá-lo e dirigilo. Um bando do estamento. o bando conservador, derivava seu poder do Estado. traficando com valores móveis. O ouiro bando, o liberal, murave-se, quando podia, na fazenda agricola capaz de dar a sonhada independência a seu titular. Há subordinada ao estamento não uma classe. mas uma situação de classe incapaz de se expandir. Todos os gatos se tornam pardos, apesar das distinções. com a ascensão do poder politico. Fora do poder, o conservador namora a ideologia liberal. No poder, o liberal manifesta-se com a abalável fé dos convertidos” A presença do patrimonialismo se prova, segundo Faoro, pela história, uma história que começa em Portugal e ainda está em curso e que redefine a visão do Estado *º Raymundo Faoro, op. cit. 1977. p. 26 patrimonialísta presente nos escritos de Max Weber sobre o poder, na qual o liberalismo ea burocratização não seriam características do tipo patrimonialista Portanto, Faoro, ao investigar os “donos do poder”, remonta à história da formação do Estado brasileiro - muito embora localize 0 surgimento do sistema coronelista no Império - e afirma que o “coronelismo” presidiu o deslocamento do eixo político decisório do “Centro” para os “Estados”, legitimando-se, na “Primeira República” (1889-1930), através da política dos governadores. Assim, o coronelismo surge como uma ramificação do poder central, eixo em torno do quai giram as relações de poder. De acordo com Faocro, As formações sociais são, para a estrutura patrimonial estamental pontos de apoio móveis, valorizados aqueles que mais a sustentam, sobretudo capazes de fornecer-lhes os recursos financeiros para a expansão - do que entre as classes, se alie às de caráter especulativo, lucrativo e não proprietário. O predomínio dos interesses estatais, capazes de conduzir e deformar a sociedade - realidade desconhecida na evolução angloamericana - condiciona o funcionamento das constituições, em regra escritos semânticos ou nominais sem correspondência com o mundo que rege. O conteúdo do Estudo molda q fisionomia do chefe de guverno, gerado e limitado pelo quadro que o cerca” Esse discurso, centrado na idéia de construção do Estado Patrimonialista, organiza e encerra um certo modo de inteligibilidade das relações e do exercício de poder que se legitimam de maneira institucional e hierárquica Dessa forma, o coronelismo se apresenta como peça-chave de um jogo de poder que legitima, em última X C£. Raymundo Faoro. “A Aventura Liberal muma ordem patximonialisto”. In Revista da USP, p. 25. * Raymundo Faoro, op. cit. 1979, p. 739. 31 poder e assume conotação de posse; já o carisma é a condição sine qua non de sua existência. O coronelismo é caracterizado por esse discurso como uma estrutura de clientela política, como mandonismo, e a barganha, o carisma e a parentela são apontados como seus principais elementos. Esses elementos, no nosso ponto de vista, são importantes para se entender o jogo político porque possibilitam uma visualização da rede de reciprocidades, de deveres e de direitos que, nesse contexto, se institucionalizam Portanto, Queiroz, em sua perspectiva sociológica, embora reconheça a importância da legitimação do Estado através das relações coronelistas, apresenta novos elementos para à análise do “fenômeno coronelismo”, quando afirma que: Á liderança coronelista que era sempre uma liderança econômica e uma liderança de parentela, assumia além de tudo um aspecto nitidamente carismático (..) o chefe por excelência era aquele que apresentasse as qualidades indispensáveis (..) aquela inexplicável qualidade que despertava a adesão afetiva e entusiástica dos homens, levando-os espontaneamente à obediência ** Assim, Queiroz relativiza a importância da propriedade fundiária e assevera que o coronelismo tem como base o poder político do coronel que advém das relações de solidariedade vertical e horizontal no seio da parentela ” Segundo essa autora, é na parentela, como grupo, que se apresentam interligados o aspecto político, o econômico e 35 Maria Isaura Pereira de Queiroz. op. cit. 1977, p. 177-178. * Por parentela brasileira, Queiroz entende “um grupo de parentesco de sangue formado por várias famílias nucleares « algumas famílias grandes (isto é, que ultrapassam o grupo pai-mãe-filhos), vivendo cada qual em sua moradia, regra geral economicamente independentes(...) Além de grupo econômico, era também a parentela um grupo político, cuja solidariedade interna garantia a solidariedade dos membros para com os chefes(...) Como grupo, apresentava pois a parentela três aspectos interligados - o político, o econômico e o de parentesco (...)”. CE. Queiroz, op. cit. 1977. p. 165e 167 32 o de parentesco, e que se desenvolve a reciprocidade que se estenderá ao setor político. No seio desse sistema de parentela, à solidariedade interna é reforçada à medida que ocorrem as oposições e as disputas entre parentelas, pois solidariedade e conflito surgem, na sociedade brasileira coronelistica, como duas faces da mesma moeda, sobretudo durante a República. Não obstante, Queiroz interpreta o carisma, a barganha e a parentela a partir de significados e valores dominantes que se apresentam de forma institucional e hierárquica. Neste sentido, as parentelas se baseariam, em última instância, no poder aquisitivo dos chefes e na sua força eleitoral, a barganha se constituiria, por sua vez, como elemento da relação entre os coronéis e os poderes estadual e federal, e não como um elemento exercitado nas múltiplas relações de poder exercidas social e culturalmente; e o carisma se apresentaria como uma “inexplicável” qualidade natural dos chefes políticos, capaz de despertar “nos homens” uma obediência expontânea, De acordo com Queiroz, os afilhados de determinado coronel também assumiam os aliados ou inimigos deste, e os homens do coronelismo passaram a se definir em termos de posse em relação uns aos outros ** Portanto, Queiroz, buscando no jogo político determinados elementos que possam dar uma existência objetiva ao chamado coronelismo, exclui, desses elementos, possíveis divergências de explicação: a própria barganha é apontada como possibilidade política devido ao carisma do coronel e não como resultado de um embate na composição das forças socio-politicas; também são eliminados do engendramento das * C£ Queiroz. op. cit 1977, p. 177-178. práticas coronelisticas possíveis acontecimentos e/ou certas idéias surgidas no processo de lutas políticas. De acordo com os discursos de Faoro e Queiroz, a legitimidade do coronelismo é vista como uma questão de status ou de honra social. Um outro exemplo dessa linha de abordagem é o estudo de Pang, no qual este autor defende que, (.) 0 coronelismo é um exercicio do poder monopolizante por um coronel cuja legitimidade e aceitação se baseiam em seu status, de senhor absoluto, e nele se fortalecem, como elemento dominante nas instituições sociais. econômicas e políticas, tais como as que prevaleceram durante um periodo de transição de uma nação rural e agrária para uma nação industrial. Os anos limites desta fase são 1850-1950" Para Pang, a principal função do coronelismo seria a hábil utilização do poder privado acumulado pelo patriarca de um clã ou de uma família extensa, visto ser a formação política brasileira essencialmente patrimonialista Pang, como Queiroz, parte do pressuposto de que o fundamento da política brasileira é o sistema familiar e, embora reconhecendo que o coronel é, acima de tudo, um político individualista, autônomo, tico e às vezes bem protegido de interferências externas, também não considera a propriedade fundiária como elemento primordial do poder coronelista. Com a finalidade de construir uma tipologia “simples” e “descritiva” das oligarquias no Brasil, Pang introduz, ainda, o termo familiocracia, significando a predominância de uma família na política local ou municipal. Numa análise “mais * Pang, Eul-Soo. op. cit. 1979, p. 20 36 reforça a idéia de que a liderança do coronel significa domínio, e o desrespeito à regra de colocar-se à serviço do governo através dessa manipulação de votos pode levar, também, à quebra do seu status e prestígio. Nesse caso, é importante que 0 coronel seja situacionista, pois o Estado é uma das poucas fontes de privilégio, a única capaz de conceder aos coronéis uma autonomia extra-legal. Apesar de diferenciar o exercício do poder do coronel e do oligarca, Carone afirma que o último é um coronel como ouiro qualquer - ou um representante dele - que se mantém pela liderança, pelo autoritarismo e pelos favores que concede a seus aliados. Favores que não procedem somente dos seus bens pessoais, mas também do uso das rendas e poder do Estado, para uma política individual Neste sentido, as características identificadoras do coronelismo estão, sobretudo, na autonomia municipal que permite às câmaras o controle total das rendas e verbas, a nomeação dos chefes de polícia e o domínio dos cargos judiciários. Carone, em sua conceituação do coronelismo, além de considerar o “prestígio” ou à honra social dos coronéis como elementos de grande importância para a análise do poder local, vincula os conceitos “coronelismo” e “oligarquia”, apontando as diferenças existentes entre os dois e atribuindo ao primeiro um caráter mais particular e ao segundo um caráter mais geral Assim, o coroneliamo é visto como legitimação da autonomia de grapos políticos e sociais nos Estados, em decorrência da fraqueza dos poderes centrais. Quanto às oligarquias, Carone afirma que, no Brasil, juntou-se ao sentido primitivo da palavra oligarquia - govemo em que a autoridade está nas mãos de poucas pessoas - um conceito mais específico: o de governo baseado na estrutura familiar patriarcal. Para ele, a origem das oligarquias advém, em parte, do Império, e estas, como o coronelismo, adquirem maior estabilidade na Primeira República. No que diz respeito aos conflitos entre coronéis e o governo, o coronel se afirma, segundo Carone, como entidade jurídica autônoma, pois ele é quem estabelece leis, nomina delegados, juizes, etc. Para este autor, os conflitos entre coronéis e governo estadual são importantes porque envolvem o poder de decisão do governo federal. Já os conflitos entre coronéis são considerados apenas como disputas pelo predomínio pessoal, sem maiores consequências. Portanto, podemos afirmar que Carone também utiliza como elementos explicativos do “sistema político oligárquico-coronelista” a ausência do Estado, no que diz respeito ao exercício do poder, sobrerudo a nível local, e o atraso sócio-econômico no contexto de um processo centralizador. Dessa forma, mantém-se na mesma linha interpretativa de Faoro e identifica “coronelismo” e “oligarquias” como problemas do federalismo, situando-os como uma das consequências fundamentais do desequilíbrio entre centralismo e federalismo. Um certo reforço a esse esquema de anátise das práticas políticas chamadas coronelistas pode ser vislumbrado, ainda, no estudo de Bursztyn?, que identifica a lógica atual da ação do Estado na região nordeste através da evolução histórica das relações entre o poder local e o poder centrai, e afirma haver uma legitimação recíproca * Cf Marcel Bursziyn. op. cit 1985. 38 entre os níveis local e central do poder, de forma que o coronel aparece como um mediador entre o Estado e o povo; mediação essa, que vai passando cada vez mais às mãos dos funcionários do Estado, transformando o exercício da política em profissão - “forma de sobrevivência dos coronéis”. Para Bursztyn, Apesar da crescente importância da centralização, onde alguns poucos tornaram-se realmente. donos do poder, ainda persiste o peso político representado localmente pelo poder dos donos.“ De acordo com esse discurso, a centralização suposta na “modernização conservadora” é possível devido à apropriação do poder político pelos que possuem o poder econômico. Notadamente, a concepção de Bursztyn é a de que, se antes de 1930,0 Estado era autoritário por omissão, após esse período, tornou-se autoritário ativo; mesmo assim, não implementou uma transformação das suas relações com os grupos locais. Embora Bursztyn não descarte a importância da estrutura fundiária como base do coronelismo, a explicação do coronelismo elaborada por ele se situa no âmbito da ação do Estado, posto que o paternalismo estatal é considerado por este autor como um mecanismo ideológico e social fundamental para contrabalançar o autoritarismo tanto do Estado quanto do pairiareg local. No caso da sociedade local. o paternalismo funciona como instrumento essencial para o esquema de iegitimação dos coronéis.” A idéia de continuidade das relações coronelisticas durante toda a história do ** Idem. p. 20. “ idem. Ibdem. p. 20. 41 Brasil: na primeira fase, que se estende de 1900 a 1930, o coronel assegura seu poder devido à capacidade de controlar e impor a coerção através da propriedade da terra e do uso das milícias particulares, na segunda fase, que vai de 1930 a 1945, o processo de centralização autoritária e burocratização da sociedade política - desencadeado com a Revolução de 1930 - considera e reconhece a “honra” do coronel que, a partir de então, tem como fundamento do seu poder o prestígio social - e aqui o autor se posiciona da mesma forma que Faoro. À terceira fase ocorre a partir de 1945 e vai até o golpe de 1964, estando marcada pela mercantilização do voto advinda da ampliação dos direitos políticos e civis e pela influência das massas urbanas no jogo político. Nesse periodo, os coronéis são revalorizados através de seus colégios e cabos eleitorais, embora nas regiões mais industrializadas suas bases tendam ao enfraquecimento e à erosão; com q golpe de 1964 há uma recuperação, ainda que parcial, do poder dos coronéis, devido à própria necessidade de legitimação do Estado autoritário, que é feita exatamente pelo voto dos “currais eleitorais”, Subsiste, portanto, através de: diferentes táticas, o clientelismo e a manipulação da assistência social do Estado por parte do coronel em traca do controle do eleitorado” Embora afirme que a complexidade do coronelismo só pode ser apreendida através da recuperação de sua historicidade, a qual engloba elementos particulares (econômicas, políticos € ideológicos) e se constitui culturalmente, Dantas apresenta uma conceituação para o “fenômeno do coronelismo”. Uma forma de representação politica exercida por determinados proprietários sobre os trabalhadores rurais, ao “9 Idem p. 377-378, az tempo em que se impõem como intermediários entre as massas do campo e as oligarquias estaduais, tendo como objetivo a manutenção da estrutura de dominação. *º De acordo com essa concepção, o coronelismo é entendido como um conjunto de práticas de dominação política que se institui como resultado das lutas estabelecidas entre as “classes sociais”, e que se marca por fases sucessivas caracterizadas por elementos constantes e por traços mutáveis nas suas relações com o Estado. No entanto, as lutas entre as “classes sociais” não são enfocadas por este autor. Dessas lutas ele considera apenas o “resultado”, ou seja, a “dominação política” exercida pelos ditos coronéis e a relação destes com o Estado. Assim, q “coronelismo” é visto como um tipo de poder dominante que ao mesmo em tempo em que molda o Estado aos seus interesses, também se adapta às suas transformações. Percebe-se, então, que o poder é visto, também nesse discurso, sobretudo nessa última fase, como algo que, apesar de se constituir como dominação privada, se encontra centralizado e localizado no Estado. Dessa forma, reduz-se à política, e se apresenta como estrutura e não como relação, como tradição e não como um fluxo permanente de luta no qual as forças envolvidas não obedecem à uma destinação ou a uma mecânica, mas ao acaso da própria luta. Janotti, ao tratar o corenelismo como uma política de compromissos, não foge à regra no que diz respeito ao entendimento das práticas coronelísticas como práticas que se encontram estruturadas no sistema eleitoral. Para ela, o coronelismo também se expressa num encadeamento rigido de tráfico de influências em que se concatena uma *º Idem. Iodem. p. 310-321 43 pirâmide de compromissos recíprocos entre o eleitorado, o coronel, o poder municipal, o poder estadual e o poder federal. Fanotti busca, como Leal, demonstrar a importância do município na trama política da Primeira República, não no que diz respeito à autonomia municipal, mas no que diz respeito à legitimação política das oligarquias estaduais. Tal legitimação seria conseguida através do controle do eleitorado municipal por parte dos “coronéis”, com o chamado “voto de porteira fechada” ou “voto de cabresto”*!, pois era este controle que possibilitava o reconhecimento da autoridade política dos coronéis sobre os municipios por parte do poder estadual. Resgatando, também, as posições de Queiroz, Janofti acrescenta, ainda, que para o estudo do coronelismo é necessário que se apreenda a importância das inúmeras implicações presentes no processo histórico de formação da sociedade brasileira, e não apenas os aspectos políticos da dominação de classe. No entanto, diferentemente de Queiroz, Janotti não coloca na parentela e no carisma os fundamentos do coronelismo. Para ela, Os coronéis podem ser vistos como representantes da oligarquia agricola-mercantil que controla o poder público e orienta suas F As expressões “voto de cabresto” e “voto de porteira fechada” têm sido bastame utilizadas para afirmar que os coronéis “arrebanhavam” eleitores que votavam em quem eles ordenassem, sem o mínimo critério político-partidário ou, como afirmam os marxistas, sem consciência política, de maneira alienada. Contudo, alguns autores - como, por exemplo, Lena Castelo Branco em seu estudo: Arraiai e Corongis p. 118. (s/d) - afirmam que o “voto de cabresto” não é dado de forma inconsciente, mas. pelo contrário, resulta de uma delerminação do eleitor de utilizar seu voto de maneira que redunde em maior benefício para si mesmo. Ver também sobre “voto de cabresto” César Barreira. “Trilhas e atalhos do Poder: conflitos sociais no sertão”, Rio de Janeiro:Ed Rio Fundo, 1992, p. 170. 46 Entendemos que ao pensar as relações de poder - bem como a própria história - enquanto uma “construção imaginária” que se tornou dominante, João Gualberto, como os demais autores que abordamos, parece não dar importância aos elementos da trama histórica e/ou do jogo político que foram desqualificados ou desconsiderados para dar vida a essa possibilidade”, elementos estes que apontam para novas possibilidades históricas, para a dispersão e complexidade presentes na história, e que são desconsiderados em favor de outros elementos que se pretendem “verdadeiros” e se tornam dominantes como “representantes” de uma pretensa “realidade concreta”. Conclui-se daí que os discursos acadêmicos que têm como proposta definir o conceito de coronelismo se configuram como práticas discursivas sobre o passado. Práticas estas imbuídas de um saber que seleciona como elementos privilegiados para desvendar “os fatos” ou o “real” as relações hierárquicas e institucionais exercidas entre as elites sociais e entre estas e o Estado. Só assim, o coronelismo, conceito elaborado numa dada época, recobre e significa práticas e personagens que se manifestam durante toda a história do Brasil, inclusive nos dias atuais. * Exemplos da desqualificação de práticas e propostas políticas por parte dos discursos acadêmicos que versam sobre a organização da política no Brasil podem ser encontrados nos estudos sobre a “Revolução de 19307 de Edgar S. de Decca — “930: O silêncio dos Vencidos”. 5 ed., São Paulo: Brasiliense, 1992 — e Carlos Alberto Vesentini — “A teia do fato”. São Paulo HUCITEC. História SociaVUSP, 1997. Nestes estudos. De Decca e Vesentini apontam a anulação e a exclusão das propostas específicas de BOC, do PD edos Tenentes no movimento de constituição da memória do vencedor acerca da “Revolução de 19307, e a conseqlente perda do conjunto do processo político ocorrido naquele contexto, impedindo 2 completa percepção do movimento político. Cf. também o texto desses dois autores “4 Revolução do vencedor” in, Ciência e cultura - SBPC, Vol. 29, nº. 01, Janeiro de 1997. P 253 32. 47 Nesses discursos, o coronelismo é visto, pois, ora como um produto da concentração da terra, considerando-se uma vinculação entre o econômico e o politico, ora como um fenômeno que ocorre muito mais no plano político, sem uma vinculação estrutural com o latifúndio como prioridade para a sua existência. Portanto, o coronelismo é apresentado como justaposição entre formas velhas e novas de estruturação econômica e/ou política. No entanto, é possível apontar a existência de divergências também no que diz respeito à explicação dos elementos fundamentais do fenômeno coronelista e à base do poder do coronel, sobretudo quando se trata da elaboração do conceito. Vejamos como a análise do “poder local” elaborada nesses discursos fala, simultaneamente, tanto das suas mudanças quanto das suas redefinições , sob a égide de um mesmo conceito: o de coronelismo, legitimando-o como as próprias práticas políticas que ele tenta caracterizar. 13, AS DIVERSAS CONCEPÇÕES ACERCA DO DECLÍNIO DO CORONELISMO De acordo com a abordagem de Leal, só uma transformação radical da estrutura agrária extirparia definitivamente as práticas políticas coronelísticas da vida do pais. 48 Para Leal, embora o coronelismo, enquanto sistema político, tenha morrido em 1930 - com a produção industrial, a crise do café, o aumento da população e do eleitorado urbano, e com a expansão dos meios de comunicação e transporte - sobreviveram, a ele, os coronéis e a prática do mandonismo. Outros fatores de superação do coronelismo apontados pelo autor são: o aperfeiçoamento dos meios eleitorais e à vitalização do municipio presentes na Constituição de 1946, bem como o desenvolvimento industrial do país. Para Faoro, só a presença do Estado institucionalizando as relações sociais teria a capacidade de dissolver a personificação do poder do coronel, pois o coronelismo não é, senão, um mecanismo de legitimação do Estado republicano no sistema eleitoral. Essa visão, como demonstramos acima, parte da idéia de que a sociedade se constitui da universalidade das vontades e de que o poder se localiza no aparelho de Estado, gerando efeitos centralizadores ligados às instituições e fortalecendo os dotes e qualidades pessoais que, no caso dos coronéis, expandem as relações de compadrio. Queiroz, apesar de trabalhar a fiindamentação e as características do coronelismo de acordo com concepção de Faoro, muda a sua linha de abordagem quando investiga a decadência do coronelismo, e não mais considera como prioritários os aspectos mais internos à sociedade local. Para ela, o que vai contribuir para um desdobramento e diluição do poder coronelista são os processos globais da sociedade, tais como: crescimento demográfico, industrialização, urbanização e maior divisão social do 51 acumilação. Seguindo esse mesmo raciocínio, Pang afirma que a modificação e não o declínio do coronelismo deveria ser o tema da história politica depois de 1930, ou seja, ele admite que a Revolução de 1930 teve um papel modernizador no sistema coronelista, integrando-o na política nacional. Entretanto, defende que se as transformações econômicas e sociais das décadas de 1930 e 1940 acrescentaram uma nova dimensão ao coronelismo, depois de 1945 o poder do coronel foi minado progressivamente com o sistema do voto secreto, a proliferação dos partidos políticos, a consegiente multiplicação do faccionismo « o poder de expansão dos governos estaduais e federal. Não obstante, Pang ainda afirma que “novos coronéis” continuam na cena política da segunda e terceira geração posteriores aos “coronéis tradicionais” da Primeira República - em seu maior número, funcionários públicos e/ou profissionais liberais. Na concepção deste autor, o coronelismo chegou ao ocaso, mas não desapareceu de todo, embora pareça caminhar para 0 fim. O “novo” coronelismo só se configura claramente na década de 1970 quando o planejamento estatal atinge o setor rural e os “novos coronéis” são transmutados em objeto de ação estratégica do Estado. A descrição do “novo coronelismo” se destoca, mais uma vez, das relações de produção para o âmbito da ação do Estado: Em certa época a violência e os favores políticos serviam aos coronéis como meios complementares de expandirem seu poder e obterem votos. O Estado, e às vezes o governo federal, recorriam a táficas igualmente nefandas para controlar os coronéis, mas esse tempo acabou. O Estado adotou uma tática mais sofisticada para dominor o interior, principalmente o Nordeste: o desenvolvimento econômico através das instituições regidas pelo Estado. tais como a SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste). e investidores privados de São Paulo e de países estrangeiros.” Portanto, a tese de Pang é a de que só com o desenvolvimento e a modernização é que uma nova elite social emergirá; e os “coronéis”, assim como os “cangaceiros” e os “fanáticos”, passarão à história como “relíquias da Primeira República”. Essa posição não é aceita por Janotti, pois esta autora afirma que, Autores insistiram no ocaso do coronelismo. talvez por não terem se detido na observação dos seus novos compromissos. Após a Revolução de Trinta modificações são registradas nas relações coronelísticas, mas não a ponto de determinar sua extinção. Não há dúvida que Getúlio Vargas se valeu dos coronéis do sertão, dos estancieiros gaúchos e mesmo dos Jazendeiros paulistas para tomar o poder e nele se manter. O mesmo poder-se-ia dizer de todos os governos da República. até hoje. O coronelismo demonstra, portanto ter uma estrutura bastante plástica, adapiondo-se a sucessivos momentos históricos * Janotti defende que, com a Revolução de 1930, ocorre apenas um nevo pacto social em que as oligarquias não estão ausentes; e mesmo depois, no Estado Novo, o poder local não se enfraquece, ele se mantém sob nova roupagem. De acordo com esse discurso, é a própria estrutura do coronelismo que é “plástica” Para Janotti, após 1945 o crescimento da classe média e do proletariado urbano, o desenvolvimento da industrialização, as conquistas trabalhistas, e a proliferação partidária, entre outros, criam novos comportamentos políticos e exigem novas É Eul Soa-Pang, op. cit. 1979, p. 235. * Maria de Lourdes M. Janotti. op. cit 1989, p. 80, Esta mesma posição foi defendida por Janotti Im “9 Coroneiismo ainda é uma questão historiográfica?”, na Mesa Redonda: “Questões Interpretativas da República: Coronelismo, Revolução e Populismo”, no Encontro Nacional da ANPUH, Belo Horizonte, 1997 -mimeo, p. 10. 53 “acomodações”. Mesmo que haja um certo traço de paralelismo entre a figura do coronel e os chefes populistas “ambos utilizam na conquista do eleitorado o empreguismo, o favoritismo, a barganha eleitoral, o compadrio e a violência”. * Ela advoga que é bastante discutível falar-se em fim do coronelismo ainda que seja em um Estado de economia capitalista, mesmo nos dias atuais, pois podemos encontrar, ainda hoje, nos noticiários da imprensa, por exemplo, diversas manifestações da violência coronelistica. Esta é, no nosso ponto de vista, a principal tese do estudo de Janotti: o fato de que o coronelismo tem demonstrado, ao longo dos séculos, e até hoje, a sua afirmação na história da sociedade brasileira, por possuir uma estrutura “bastante plástica”, capaz de adaptar-se a diferentes momentos históricos. De acordo com esse discurso, mesmo quando as práticas políticas se alteram, elas perenizam a imagem do coronel, num movimento continuista, sem rupturas. Essa concepção nos permite demarcar o funcionamento do discurso acadêmico como um exercício de poder permeado por técnicas e estratégias que possuem efeitos produtivos. É a partir do entendimento de que as relações coronetísticas perpassam toda a história do Brasil que o conceito de coronelismo influencia as práticas políticas e culturais exercidas quotidianamente. Como afirma Foucault, “(...) o exercício do poder, produz realidade, produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que se originam dele só podem ter se originado nessa produção“ s Maria de Lourdes M. Janofti. op. cit. 1989, p. 82. * Michel Foucault. “Vigiar e Punir”, Petrópolis: Vozes, 1977, pin 56 Mas, a ideia do coronel como simulacro ou como um “Fantasma” é interessante, pois nos permite perceber que o percurso seguido pelo conceito de coronelismo - quer seja desde a colônia, desde o Império, ou desde a Primeira República e até 1930, 1950, 1945, 1964 ou até os dias atuais - pode não corresponder às relações quotidianas de poder por não conseguir dar conta das mesmas. Com base na observação de Queiroz de que as transformações do coronelismo sempre se fizeram através de acomodações que foram incorporando as novidades, Maria Antonia Alonso de Andrade” reafirma a idéia do desaparecimento progressivo e irregular do coronelismo, de acordo com as regiões, estados e municípios. Neste sentido, ela postula que, Em 1930 o coronelismo é liquidado como sistema de poder e govemo, porém não acaba o poder dos coronéis, nem desaparecem as oligarquias que permaneceram como classes dominantes nas suas áreas de influência...) Os coronéis e ligarquias, sobreviventes a extinção do sistema coronelista, íêm conseguido se acomodar a estes agentes da decadência [refere-se aos processos de urbanização e industrialização e as consegientes polarização do trabalhador rural, a facilidade de acesso aos meios de comunicação e ao voto secreto], que minam o seu poder nas próprias áreas de influência, seja no âmbito local, estadual ou regional “ Portanto, a presença dos coronéis na vida politica do pais, com a preservação do mandonismo local, é apontada por Andrade como reflexo das relações sócio-econômicas da Região - nesse caso ela se refere à Região Nordeste - onde a estrutura agrária baseada na grande propriedade permanece intocada E a partir dessa concepção que o Nordeste * Maria Atonia Alonso de Andrade. “Neo-coronelismo e Perspectivas Eleitorais na Nova República” João Pessoa, Textos UFPB - NDHIR nº. 12, 1985, “Idem p7e9. 57 vai surgindo como /ocus privilegiado para a perpetuação da idéia e do uso do conceito de coronelismo. Baseada na teoria gramsciana, Andrade faz uma análise comparativa dos vários conceitos de “coronelismo” encontrados na historiografia. Depois de analisar os textos já citados nesse trabalho - como os estudos de Leal, Queiroz, Faoro, Pang, Bursztyn, etc. -, ela constrói o conceito de neo-coronelismo correspondente ao surgimento de um novo e determinado relacionamento Estado - Região, decorrente de sucessivas mudanças históricas. Andrade concorda com Leal quando define o coronelismo como o sistema político típico da Primeira República, dominado por uma relação de compromisso entre o poder privado decadente e o poder público fortalecido. Ela entende que a característica essencial do coronelismo seria a fusão do público com o privado, dentro de uma determinada correlação de forças, em que o poder privado dos coronéis entraria de forma subalterna, porém imprescindível no sistema político. Entretanto, também considera que o coronelismo nos Estados Nordestinos, e na Paraíba em particular, possui estruturas de poder oligárquicas do tipo familístico, que ultrapassam essa periodização. Andrade, assim como Faoro e Dantas, afirma que no pós-1930, durante o Estado Novo, quando os coronéis perderam seu poderio militar, eles foram mantidos no “bloco de poder” devido ao seu prestígio social. A importância qualitativa e quantitativa do voto cresceria, sobretudo, com a normalização político-institucional, após 1945, por meio da instauração do voto secreto e da justiça eleitoral. Para ela, até o presente 58 momento, as elites políticas têm sido habilidosas em manipular € reverter em seu favor todos os instrumentos financeiros que o Estado pós-64 implantou.“ É com base nessas prerrogativas que a citada autora presentifica o neo-coronel: O novo nee-coromei é um misto de modemo empresário e de coronel. Como empresário modernizou-se ou soube fazer uso dos instrumentos creditícios e financeiros oferecidos pelo govemo. Conservou porém velhos traços do antigo coronel no que se refere às suas práticas políticas(..) O neo-coronel é uma espécie política resistente, porque depurada. Usufui não raramente de uma velha tradição política familiar e, através de uma bem montada rede de composições políticas, elege representantes de seus interesses nos niveis municipal, estadual e federal, º Por essa citação se percebe que a figura do neo-coronel é uma figura ambivalente: por um lado, temos no neo-coronel um moderno empresário que sabe utilizar os instrumentos creditícios e financeiros oferecidos pelo govemo e, por outro lado, a capacidade desse neo-coronel de manter os velhos traços do antigo coronei no que se refere às suas práticas políticas, levam-nos a crer que as relações de poder permanecem imutáveis apesar de assimilarem novos elementos. Portanto, também hã, nessa concepção, uma elasticidade do conceito de coronel, e porque não do próprio coronelismo? Pois, o neo-coronelismo, segundo a autora, é também tipicamente govermista: As eleições de 1982 no Nordeste evidenciaram as características do novo pacto elitista que chamamos de neo- coronelismo, tipico de período pós-64 e caracterizado pela interdependência entre o bloco regional nordestino e o poder central. O neo-coronelismo, como o velho coronelismo, também & Andrade, Maria Atonia Alonso de. cp. cit. 1985. p. 15. “Idem. p 16-17 61 A valorização de papel do Estado na busca do desenvolvimento e da justiça social, segundo Gualberto, possibilitou um elo de ligação entre a “direita” e a “esquerda”. Elo que acabou conduzindo à formação de uma tecnocracia muito presente entre nós. No entanto, ele defende que as raizes do populismo, assim como da tecnocracia, já estavam plantadas no imaginário social brasileiro, no qual “a presença do coronelismo emprenhou os novos personagens, permitindo uma modernização sempre parcial. Um presente preso ao passado e uma enorme incapacidade de provocar rupturas”. * Portanto, as análises da questão do “poder local” versam, simultaneamente, tanto sobre mudanças quanto redefinições, retirando destas as especificidades que acabam aparecendo no mesmo campo institucional e servindo para perpetuar determinadas formas de dominação, e para criar um lugar a partir do qual a história deve ser vista e dita. Evidentemente, nesses discursos, mesmo quando é demonstrado que as práticas coronelísticas se alteram, o coronel continua possuindo uma certa perenidade.” Nos conceitos mais elásticos, centrados no controle de votos, podemos verificar reconceituações e/ou diferentes versões do coronelismo que são imutáveis no que é essencial, embora se apresentem como novas nos aspectos formais ou secundários. Diante do exposto, podemos afirmar que nos discursos que priorizam a É Cf João Gualberto. op. cit. 1995, p. 98. * Esse entendimento pode ser exemplificado pelo citado texto de Maria Antonia A Andrade (1985). 62 propriedade da terra e as relações de trabalho não assalariadas como base do fenômeno coronelismo, este não deixaria de existir na ausência de eleições, pois o controle sobre o voto seria apenas uma consequência não essencial do mesmo. Nem se extinguiria sem que o país atingisse, de todo, o capitalismo — o que estaria ainda por acontecer devido a nossa formação histórico-social, tradicionalista e conservadora. Já para os que situam as bases do poder coronelístico não apenas na propriedade da terra, mas na propriedade de quaisquer outros bens de fortuna ou de prestigio que possibilitem o controle de votos, há uma maior flexibilidade na compreensão do fenômeno, com a idéia de sua perpetuação de forma indefinida através da posse e controle dos “currais eleitorais”. Em todos estes discursos, a hierarquia social é abordada como um marco para a organização do poder e o conceito de coronelismo como um exercício de dominação que perpassa as práticas políticas e culturais. Assim, este conceito, ora é legitimado como uma forma de exercicio personalizado do poder, que assumiria uma face pejorativa e se apresentaria como apropriação dos coronéis. Ora, como relações que se estabelecem entre os políticos locais das “Tegiões” consideradas “mais atrasadas” e o Estado. Neste último caso, O poder se configuraria como relação institucional, pois o Estado assumiria 0 papel de tutor no processo de modernização daquelas “regiões”. Ao que parece, o conceito de coronelismo, construído por meio desses diversos discursos, com toda a ordenação estratégica posterior que acabamos de apontar, 63 instituiu-se como ação politica e não como simples atualização de uma existência material, ou como explicação de uma assim denominada “realidade objetiva” Compreendemos que o conceito de coronelismo e a imagem do coronel são investidos de efeitos produtivos, de um poder que se mantém e é aceito, porque permeia as relações sócio-culturais, forma saber e também produz discursos. Consideramos, pois, que uma série de práticas políticas foram validadas pela elaboração do conceito de coronelismo e pela imagem do coronel, e que, este conceito e esta imagem, apesar de se configurarem como produto de uma multiplicidade discursiva, instituem e perpetuam culturalmente uma forma de ver e dizer as relações de pader, ao tempo em que produzem subjetividades. s6 conceito tem sido trabalhado na literatura acadêmica. Tomaremos o conceito, as imagens e enunciados nos quais ele se apoia como uma tentativa de construção de uma certa visibilidade e dizibilidade das relações de poder, pois a construção desse conceito é, também, a produção de um saber que se encontra recoberto por relações de poder. Portanto, queremos chegar às idéias políticas que se encontravam em ascensão no momento histórico em que foram construídos o conceito de coronelismo e uma imagem para o coronel, pois acreditamos que aí vamos encontrar toda a força da operacionalidade desse conceito enquanto um marco para se pensar como se processam e se perpetuam as relações de poder no Brasil. Entendemos que as propostas políticas que se institucionalizaram como dominantes no final da década de 1920 e durante à década de 1930 possibilitaram a criação e instituição do conceito de coronelismo de uma certa forma, desclassificando outras possíveis formas de abordagem das relações de poder exercidas na “Primeira República”. 2.1, A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA “REPÚBLICA DOS CORONÉIS”: CRÍTICAS E PROPOSTAS DE REFORMULAÇÃO Considerando-se que o conceito de coronelismo foi construído a partir das idéias e críticas em relação às práticas políticas da Primeira República, bem como a partir da construção da imagem do coronei, julgamos necessário investigar como os estudiosos s7 contemporâneos desse “Regime” elaboraram idéias e críticas em relação aos seus fundamentos. O primeiro ponto a considerar é que, de forma quase consensual, os intelectuais das três primeiras décadas do século XX consideravam que o federalismo, o presidencialismo e a ampliação do sistema representativo, os três grandes eixos da Primeira República, serviram apenas como álibi para justificar as desigualdades sociais e organizar o poder de acordo com os interesses privados das “oligarquias”, sob a máscara da democracia. Por mais diversificadas que fossem as propostas de organização política para o país, nas três primeiras décadas deste século, as críticas ao “regime federalista, liberal e oligárquico” instaurado na Primeira República, e os debates em torno de temas como nação, industrialização, revolução, entre outros, tomaram forma nos discursos dos intelectuais e políticos brasileiros, sobretudo a partir da década de 1910. No eurso da primeira década do século XX, Alberto Torres, por exemplo, analisou o Brasil como um país desorganizado, sem consciência nacional, que sob um liberalismo simplista se caracterizava pela delimitação de poderes excessivos às unidades regionais, por um composto de oligarquias e por uma multiplicidade de “Estados no Estado”. Ao analisar a organização política da primeira República Torres afirma que A base de nossas organizações partidárias é a politiquice local. Sobre a influência dos corrilhos eleitorais das aldeias ergue-se a pirâmide das coligações transitórias de imeresses políticos - mais fracos ne representação dos Estados, dependentes des 68 estreitos interesses políticos locais; tênues no governo da União, subordinado ao arbitrio e capricho dos governadores. (..) Consiitucionalmente, os Estados são muito mais fortes do que a nação; e quando o governo da União intervém na política estadual. ou exerçe pressão sobre os Estados, não significa isto sendo que, reconhecendo essa supremacia, o poder federal procura conquistar a força do poder local f..) Sociedade, nação e pátria são idéias eleganies, abstrações de luxo intelectual no meio dos governantes e da burguesia letrada e econômica; o povo só tem realidade efetiva na retórica dos discursos políticos e no uso material de um direito de voto que os dominantes dirigem com a pressão da influência e do dinheiro. (...) A política precisa reconquistar a sua força e o seu prestígio. fazendo reconhecer-se como órgão ceniral de todas as Junções sociais, destinado a coordená-las e barmonizá-las - a regê-las - estendendo a sua ação sobre todas as esferas da afividade, como instrumento de proteção, de equilíbrio e de cultura” Torres pensa uma continuidade ou persistência da “politiquice local” e demarca uma distância entre o “povo” e a “palítica”. Quando ele afirma que a politica precisa conquistar a sua força e o seu prestígio, está se referindo à administração pública, que na sua compreensão, deve ser bem gerenciada para bem prover a todos, e não apenas às camadas governantes. De acordo com Torres, no Brasil, a organização da política se encontra separada da vida social, os estados possuem mais autonomia do que precisariam e o govemno não considera os fatos e os homens, se preocupa apenas com divergências e enredos pessoais. Para ele, a vida mental do Brasil gira em torno de dois centros, o mundo intelectual e o mundo dos governantes, e não passa de uma pálida imitação cênica dos “Alberto Torres. “A Organização Nacional 4º, ed. São Paulo: Ed Nacional; Brasília: Ed. UNB, 1982, O 1914. p. 68,125.172 el73 na uma estrutura clânica que advém das características de ocupação do seu território, a grande propriedade fundiária e sua auto-suficiência. Para Viana, os clãs se formavam per laços de parentesco e dependência, em decorrência da manifesta disparidade entre a expansão colonizadora e a expansão do poder público, desde a época da colonização. De acordo com esse autor, a sociedade brasileira seria uma sociedade marcada pelo patriarcalismo, e o fundamento do espírito patriarcal advinha, portanto, da formação “rural” brasileira. Nesse sentido, ele afirma que » q O nosso clã rural não possui a forte organização, o possante enquadramento do ciã europeu atual, ou do céltico na antigitidade. O seu caráter é mais patriarcal que guerreiro, mais defensivo que agressivo, e « sua estrutura menos estável, menos coesa, menos definida e perfeita e mais fluida; mas pela sua origem, pela sua composição, pelo seu espirito, êle está dentro das leis constitucionais dêsse tipo de organização social tão escrupulosamente estruturado pelos modernos sociólogos e historiadores. Toda a nossa história política tem nele à sua força motriz, a causa primeira de sua dinâmica e evolução. é) O regime de clã, como base da nossa organização social, é um fato inevitável entre nós, como se vê, dada a inexistência ou a insuficiência, de instituições tutelares e extrema miserabilidade das nossas classes inferiores.” A partir desse raciocínio, é que Oliveira Viana conclui que a política no Brasil é organizada de forma personalista e não partidária, pois sob c sistema de clã, os homens costumam apoiar homens e não programas, pessoas e não idéias, e os partidos políticos não passam de uma “ficção ridícula”. * ** Francisco José de Oliveira Viana “Populações Meristonais do Brasil”. Rio de Janeiro: Livraria José Oiympio Editora, 1952. pp. 202-204. * CE Maria Stella M, Bresciani. “O Charme da Ciência e a Sedução da Objetividade: Oliveira Viana - Cientista Social”. Campinas, 1998. p. 76, mimeo. 72 Oliveira Viana estudou as orientações do pensamento investigador da política e do direito público brasileiros de forma sistemática, ao longo de sua produção acadêmica, e demarcou três orientações entre os intelectuais brasifeiros. Para ele, havia os pensadores que, como Rui Barbosa, tomaram o caminho exclusivo da norma e praticavam uma “metodologia dialética” baseada em postulados e princípios apriorísticos. Estes acreditavam em tipos universais de Estado e desdenhavam a sociedade. Havia outros pensadores que, como Alberto Torres, consideravam a estrutura política apenas como uma forma de adaptação social, subordinada às realidades da estrutura da “massa”. Estes defendiam uma constituição para cada pova, de acordo com a sua estrutura social. E, por fim, havia os que, como ele próprio, não acreditavam na universalidade de tipos constitucionais e políticos, nem na onipotência reestruturadora do Estado De acordo com Oliveira Viana, os que pensavam como ele “acreditam e reconhecem a capacidade do “povo-massa” e aceitam essas criações como “fatos >> 76 naturais” da sua vida social e orgânica”. Em seus estudos, Oliveira Viana defende, ainda, que os fundamentos da Primeira República podem ser encontrados nas idéias de Rui Barbosa e dos seus adeptos do federalismo americano e se basciam na visão do peder central como inimigo das liberdades. Para Oliveira Viana, no entanto, esse entendimento seria historicamente correto na Europa, mas não no Brasil. Ele compreende que aqui o inimigo das liberdades sempre foi o poder local. "SCE Oliveira Viana op. cit. 1974. Vol. E. p. 32. Quanto às posições de Alberto Torres, a que nos referimos acima, Oliveira Viana afirma concordar e se aproximar da sua concepção do Estado brasileiro enquadrado dentro do Brasil. Segundo ele, Torres, portanto, reacordou o sentido nacionalista do nossa existência e, com a sua doutrina, restaurou - para a vida política do país, para suas elites dirigentes, nas suas expressões mais representaiivas - a consciência da nacionalidade, o sentimento dominante da Pátria comum. Eis porque ele é um dos grandes mestres do pensamento nacionalista do Brasil” Este pensamento nacionalista, colocado por Viana, baseia-se na idéia de quebra dos interesses regionalistas que, segundo ele, dispersam, ao invés de congregar, e no sentimento de unidade que possibilita a construção de uma consciência coletiva de interesses. No que diz respeito à idéia de que seria um seguidor de Torres, Viana reage com as seguintes palavras. No fundo, pelos métodos empregados estávamos em oposição: Torres partia do alto para baixo; eu de baixo para cima. Torres partia da humanidade para chegar, descendo, até ao povo brasileiro, considerado na sua totalidade: eu porto dos nódulos de formação das primeiras feitorias. dos primeiros rebanhos povoadores, dos grandes dominios do interior, das “fazendas”. dos “engenhos reais”. dos clãs pairiareais - para chegar subindo, de escala em escala, à concepção do nosso povo, também como uma totalidade. * Portanto, Viana diferencia seu método do de Torres afirmando que este parte de um conceito abstrato de humanidade, da idéia de que todos os povos do mundo têm uma 7 Idem. p. 71. 8 Idem. Ibdem, p. 68. A crítica de Viana à idéia da pressuposição de um Brasil “global”, é estendida também para Silvio Romero c Euclides da Cunha. A incompatibilidade da “democracia de tipo federativo” de modelo americano com a nossa realidade nacional, e a crítica às instituições de molde “liberal”, segundo tais analistas políticos, tinha por base, como vemos, a afirmação do caráter de exoticidade no que diz respeito ao Brasil e o seu anacronismo em relação às questões 76 persistirmos nesse preconceito de igualdade a todo iranse e iratarmos as nossas diversas unidades regionais é administrativas (municipios ou Estados) sob um mesmo padrão teórico: - como se todas elas tivessem à mesma cultura política ou a mesma estrutura social” políticas da “atualidade” mundial. A orientação teórica desses estudiosos, no entanto, se pressupunha baseada numa presente “neutralidade cientifica” e “objetividade dos fatos”. Maria Stella Martins Bresciani, analisando o discurso do próprio Oliveira Viana, afirma que ele Assim, foi possível, a partir da “análise objetiva” da “Ciência” e dos estudos das “realidades peculiares à vida de cada coletividade humana”, a construção da via do Srdem p. 149. Aceita com este procedimento a umversalidade dos métodos de análise formulados a partir de quesiões diversas daquelas às quais vão ser aplicados; rejeita entretanto a universalidade do sujeito de direito das sociedades regidas por sistemas representativos de governo. Dá lugar portanto à uma questão que à primeira visia se impõe como um paradoxo: importar idéias políticas e modelos institucionais de outros paises. constitui para eles um erro político primário. fazer porém uso de modelos de emálise da sociedade e de teorias sociológicas, de ampla utilização nos paises europeus e Estados Unidos, significa partilhar com a comunidade internacional de cientistas o campo de conhecimentos obtidos a partir dos sólidos e neutros princípios da ciência. Em suma, estimulam uma ruptura radical entre política “nacionalista” e ciência “universalista” * * Bresciani, Maria Stefia Martins. op. cit 1998, p. 6 7 “Estado Autoritário” e seus métodos de formar e assegurar a unidade nacional forjando uma identidade nacional e uma alteridade entre o Brasil e outros paises. E essa compreensão deu margem à ruptura da Primeira República pela chamada Revolução de 1930, e aos recortes das práticas políticas desse periodo como práticas “coronelistas”, Foi com base na compreensão da Revolução de 1930 como um fato histórico que consolidou a queda das oligarquias e mudou a cara do pais, concorrendo para O desenvolvimento industrial, para a consolidação do mercado intemo e para o fortalecimento da União, que as “práticas coronelistas” ganharam o estatuto de temática imprescindível no tratamento das relações de poder exercitadas na Primeira República, como veremos adiante. 2.2. A REVOLUÇÃO DE 1930 COMO MARCO PARA A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE CORONELISMO De acordo com as considerações anteriores, Vavy Pacheco Borges", faz uma ampla análise dos textos acadêmicos que procuram dar conta da Primeira República e afirma que, na década de 1930, a história política e a historiografia brasileiras destacam de forma preponderante a idéia de uma ruptura com o Estado Liberal, oligárquico e federativo, baseado na economia de exportação, que acaba por construir uma “história CE Vavy Pacheco Borges. “Anos Frinta e Política: História e Historiografia”. In. FREITAS, Marcos Cézar. “Historiografia Brasileira em perspectiva”. São Paulo: Contexto, 1998. 78 oficial”. FE, ainda que tenha havido, em oposição à essa idéia a defesa de uma continuidade, sobretudo por parte dos “políticos tradicionais”, prevalece a compreensão de que deveria ser construído, no Brasil, um Estado Autoritário, centralizado e voltado para o mercado interno. Este argumento acompanha a tese defendida por Edgar Salvadori de Decca, que no seu estudo sobre a “Revolução de 1930”, afirma: O conjunto das propestas políficas em 1928 se definia a partir de várias estratégias de revolução. Além disso, havia ainda um lugar em que todas essas propostas políticas se encontravam: à tuta contra o fantasma da oligarquia. Nesse sentido, « caráter universalizanie dessas propostas situou-se exatamente no lugar onde se podia definir um inimigo comum a todas elas e à liquidação desse passava necessariamente pelo registro da revolução” Apesar da efervescência política desse momento e da multiplicidade de propostas de mudança sócio-política e cultural para o Brasil, a Revolução de 1930 vai se apresentar, segundo Decca, como um corpo de representação que precisa ser preenchido e definido em seus elementos constitutivos. É com esse objetivo que temas como, revolução, industrialização, democracia, ete., vão ser enunciados e transformados em eixos substantivos de análise para 2 superação da política oligárquica. O debate político da época, sobre o caráter da “Revolução de 1930”, se apresentava como um duelo entre duas facções: os políticos situacionistas, que combatiam as propostas da Aliança Liberal, consideravam que os aliancistas eram É Decca, Edgar Salvadori de. “7930: O Silêncio dos Vencidos”. 5º cd. São Paulo: Brasiliense, 1992, O 1981. p. 83-84 8i presente à luz das oposições criadas por esse discurso de poder, de modo a influir na consirução de um futuro para o país, com base naquele momento considerado de “ruptura política e social”. Portanto, a chamada Revolução de 1930, que teve como alicerce as idéias demonstradas acima, tem sido vislumbrada pelos historiadores e cientistas políticos como momento de ruptura com os “coronéis” e as “oligarquias”, passando a se apresentar como um marco capaz de referenciar um mundo de questões que, apesar de conter em si um universo de práticas e reflexões, assumem um caráter unitário; e, à medida que cresce como idéia, como significação, cresce como fato, transparecendo precisamente como a representação nele envolvida Numa demonstração de como se constrói um fato através dessa “transubstanciação” Carlos Alberto Vesentini afirma que A transubstanciação cria no tempo, algumas ações, e ações coletivas, com cerias idéias, criando o jato - e neste lugar a política No entanto, em segundo momento ouira operação parece tomar forma, pela qual o fato perde boa parte do conjunto de significados, à vista imediata, assumindo essa expressão concreta, despida, como a pedir, quase a implorar, uma interpretação. Na hora do balanço, procurar o pessoal no coletivo. ou mediante o primeiro mostrar o último, enriquecem no e dão-lhe alcance todo especial. Enfocar o fato de fora, procurando reproduzir o trabalho do historiador, complementa a postura, alêm de ser um direito pleno. E a junção da memória viva, do rememorar. com a análise, pode apresentar possibilidades refinadas *” ** Cr. Carlos Alberto Vesentini “A teia do faro": uma proposta de estudo sobre a memória histórica”. São Paulo: HUCITEC, História Social, USP, 1997. p. 43-44. * Idem p 45. 82 A partir desse discurso, poderemos compreender, então, como a Revolução de 1930, ao se constituir como fato, abriu espaço para o debate de projetos políticos e permitiu que os ideólogos do “Estado Novo” - considerado como continuidade e consegiência inevitável daquela - pudessem apresentar as propostas advindas dos críticos da “Primeira República”, que se traduziram na ação governamental de Getúlio Vargas. E compreender também que os discursos acadêmicos que teorizam sobre o “coronelismo” não são, senão, tentativas de caracterização das práticas políticas exercidas durante a “República dos Coronéis”, com o objetivo de, através de recortes, criticá-las e superá-las, por isso só poderiam ser construidos posteriormente, ou seja, quando taís práticas já se encontravam em um estágio de declínio. Na tentativa de junção da “memória viva”, do “rememorar”, com a análise, no debate político e acadêmico da década de 1930, confromtavam-se diferentes projetos, mas num universo de temas comuns ao pensamento da época. Assim, têm sido apontados como os três grandes eixos que marcaram o pensamento dos anos 1930 e se fizeram igualmente presentes na “doutrina do Estado Novo”, o elitismo, o : mus ss conservadorismo e o autoritarismo. 8 É Essas vertentes são definidas por Lúcia Lippi Oliveira da seguinte forma: “Os elitistas reafirmavam a desigualdade entre os homens e a presença de uma minoria, elite estratégica à qual outorgavam o privilégio do poder. Importa destacar que as teorias de elite traziam novas justificativas ao exercício do domínio - o que só se torna necessário quando a autoridade vigente passa a ser questionada. O elitismo, ao se basear no fato natural é demonstrável da desigualdade humana, contribuía para ammnentar a descrença na doutrina da sabedoria popular e no critério da maioria para a organização do governo. A existência da elite como dado e seu domínio como expressão concreta da “ciência” cabiam como uma luva para a geração intelectual dos anos 1930 e sua pretensão de salvar a sociedade brasileira. O conservadorismo (...), não significa defesa intransigente do status guto. Refere-se a uma vertente específica da concepção de mundo onde a ordem, a hierarquia e a tradição têm papel preponderante. Este pensamento contém, inclusive, uma concepção de mudança social enquanto desdobramento natural ou “científico” da ordem. “Ordem e Progresso” podem ser tomadas como concepções centrais do positivismo - conservadorismo que marca a elite intelectual brasileira. Esta elite, em sua antodefinição de minoria estratégica, apresenta, como preocupação fundamentaí, o conhecimento da realidade, a busca do “Brasil Os discursos dos intelectuais da década de 1930, tomando por base os enunciados presentes nos discursos dos politicos ligados à “Aliança Liberal” para caracterizar as práticas políticas exercidas pela elite política e econômica da Primeira República, elegeram, pois, uma série de elementos com os quais construiram um discurso acadêmico que legitimasse tais posições. Assim, os ideólogos do “Estado Novo”, considerados a elite pensante do país, os únicos capazes de dar uma versão “cientifica” aos rumos que o Brasil deveria tomar em busca da construção do “Estado Nacional”, elaboraram um saber que definia toda uma forma de ver e dizer as práticas políticas exercidas nos 40 anos em que vigorou a “República dos Coronéis”, recortando apenas o que seria viável para auxiliar na institucionalização do “Estado-nação brasileiro”. Nesse sentido, Albuquerque Jr. afirma que o Estado poós-30 será um bstado quase sempre preocupado em conciliar formas modernas com conteúdos adicionais. Ele apoiará principalmente aquela produção centrada nas questões do nacional e do popular, que possuisse menor radicalidade, que contribuisse para a gestação de uma linguagem e de uma imagem para o pais que não só rompesse com a antiga subserviência a padrões estéticos europeus. como também ajudasse a incorporar a linguagem e q imagem do “povo” a dizibilidade e a visibilidade nacional. acabando com a sua exclusão, mas o incluindo de forma a não questionar o próprio dispositivo de poder que sustemeva este Estado. O Estado Novo real”. A Sociologia surge, então, como instrumento capaz de oferecer a essa elite o retrato da realidade e o conhecimento necessário para orientar indivíduos ou grupos no caminho da salvação nacional. Nacionalismo e autoritarismo são ângulos distintos e complementares do processo de formação do Estado nacional A soberania, como atributo exclusivo do Estado, e 4 capacidade de ação do govemo federal sobre todo o território se unem na realização do objetivo comum de criar à nacionalidade. Esse projeto unificador ervolve múltiplos aspectos; é movido pelos ideais de justiça, de “democracia social”, mas. acima de tudo. o Tege uma “razão de Estado”. CE. Lúcia Lippi Oliveira. “Estado Novo, ideologia e Poder”. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1980, p. 15-16. 86 fenômeno típico da Primeira República” vão estar presentes, como pudemos observar, praticamente em todas as análises sobre a política brasileira. Porém, se investigarmos a literatura referente à chamada Primeira República, inclusive a imprensa, não encontraremos o conceito de coronelismo - pelo menas até o final dos anos 1920.” Seguidos do estudo de Leai, são considerados como clássicos no tratamento do coronelismo, por terem se institucionalizado como fontes imprescindíveis aos estudos sobre o poder local - seja como ponto de apoio ou como ponto de críticas - os trabalhos já citados de Blondel (1957), Faoro (1958), e Queiroz (1977). Nesse ponto, cabe afirmarmos que a criação do fato “revolução de 1930” elevou as práticas políticas da Primeira República à categoria de práticas oligárquicas e coronelisticas e possibilitou a construção do conceito de coronelismo como tentativa de caracterização dessas ditas “práticas” de forma “objetiva”. Mas, esse conceito só adquire um estatuto temático, e se torna imprescindível aos estudiosos do poder, exatamente a partir da década de 1940, quando já se colocava em suspeição as orientações políticas do “Estado Novo”. Ou seja, do “Estado Autoritário” instituído após a “Revolução de 1930”. Isso nos leva a crer que os estudos sobre coronelismo que a partir de então entram em evidência não fogem da leitura da História do periado anterior. * Rui Barbosa, escrevendo sobre a queda do Império, já afirmava a existência do coronelato ligado à Guarda Nacional, mas não afirmava as relações entre os membros da Guarda Nacional e o governo como relações coronelísticas. (Cf. Rui Barbosa. “Queda do Império”, Tomo HE 1921, p. 251-2524. 87 2.3. IMPLICAÇÕES POLÍTICAS E TEÓRICAS NA CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE CORONELISMO Embora não percebamos tantas divergências no que diz respeito à delimitação das dimensões do coronelismo - que, como vimos, é tratado como pacto entre as três esferas do poder -, é possível levantarmos alguns eixos temáticos que se apresentam de maneira diversa nos discursos que analisamos, a exemplo da própria concepção de “Estado”, que se desdobra em várias noções explicativas a partir do seu entendimento: como um “Estado burguês” ou “capitalista moderno” em formação, num momento de transição das formas não capitalistas para as formas capitalistas de produção, e/ou, como um Estado patrimonialista-estamental Recortaremos, para efeito dessa análise, as abordagens de Leal e Faoro, por considerarmos estes dois autores como clássicos, pois eles têm sido utilizados como referência obrigatória nos demais estudos que versam sobre o coronelismo. Leal, 20 elaborar o seu estudo, toma como base as idéias dos teóricos ou analistas políticos brasileiros que, na década de 1930, implementaram por meio das críticas à República dos Coronéis a instituição de um Estado autoritário como única possibilidade viável para sanar a crise que havia se instaurado no País. Mas, ao que nos parece, há, nesse estudo, uma pretensão de defesa das idéias liberais e democráticas vigentes na década de 1940, em oposição às idéias autoritárias desenvolvidas após a Revolução de 1930. 88 A partir da segunda metade da década de 1940, o debate político enfatiza o fim da “ditadura do Estado Novo”, personalizada na figura de Getúlio Vargas, e apela para uma proposta de redemocratização do país. Com a Constituição de 1946, considerada “totalmente liberal”, as temáticas do liberalismo e da democracia são então retomadas. E como nos momentos de ruptura as chamas do debate político são sempre reacesas, impôs-se uma maior necessidade das análises sobre a história política do Brasil, que, como já afirmamos, tem sido abordada de forma linear e institucional Diriamos, então, que o estudo de Leal, enquanto marco inicial da construção acadêmica do conceito de coronelismo, possui algumas implicações políticas, pois a década de 1940 foi marcada pela chamada redemocratização do Brasil, momento no qual já entra em cena toda uma série de críticas ao “Regime Autoritário” que foi construido, tendo como marca os acontecimentos políticos de 1930. Acreditamos que a ênfase dada, nesse momento, ao conceito de coronelismo como uma temática que deve ser trabalhada de forma mais aprofundada, ou “sistemática”, parte exatamente da seguinte questão: Como será possivel o Estado reassumir um papel “liberal” sem se retornar ao mando dos “coronéis”? Ou seja, que mudanças precisariam ser efetuadas para que esse “Estado” passasse por uma “redemocratização” sem que houvesse um retorno ao fortalecimento do “poder privado”, uma vez que na proposta de construção do Estado Autoritário, no momento considerada inviável, a temática do “liberalismo” remetia exatamente às “práticas coronelísticas”? É esse o questionamento que, ao nosso ver, torna necessária uma retomada da análise das práticas políticas exercitadas na Primeira República, na tentativa de delimitar
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