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Neoliberalismo e Sociedade Civil: A Despolitização do Estado e o Papel do Terceiro Setor, Manuais, Projetos, Pesquisas de Filosofia

Este documento discute a teoria de gramsci sobre a desresponsabilização social do estado e a transferência de papel em políticas sociais para a sociedade civil, além de autores que apoiam essa abordagem neoliberal. O texto examina como a teoria de gramsci sobre a sociedade civil é influenciada pelos interesses e conflitos das classes sociais e como a noção de 'sociedade civil' não é livre de contradições. O documento também explora como a despolitização operada no 'terceiro setor' resultou na retirada de direitos sociais, econômicos e políticos e na 'flexibilização' de direitos sociais.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2019

Compartilhado em 04/12/2019

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Baixe Neoliberalismo e Sociedade Civil: A Despolitização do Estado e o Papel do Terceiro Setor e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Filosofia, somente na Docsity! UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE POLO UNIVERSITÁRIO DE RIO DAS OSTRAS - PURO SERVIÇO SOCIAL Fernanda Oliveira Araujo SOCIEDADE CIVIL E "TERCEIRO SETOR": CRÍTICA AO PADRÃO NEOLIBERAL DE ATENDIMENTO ÀS POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL E SEUS REBATIMENTOS PARA O SERVIÇO SOCIAL Rio das Ostras 2013 FERNANDA OLIVEIRA ARAUJO SOCIEDADE CIVIL E "TERCEIRO SETOR": CRÍTICA AO PADRÃO NEOLIBERAL DE ATENDIMENTO ÀS POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL E SEUS REBATIMENTOS PARA O SERVIÇO SOCIAL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal Fluminense – Polo Universitário de Rio das Ostras como requisito parcial para a obtenção do Grau de Bacharel em Serviço Social. ORIENTADOR: Prof. Dr. Ranieri Carli Rio das Ostras Março de 2013 RESUMO Este estudo tem por objetivo debater a sociedade civil na atual conjuntura do neoliberalismo, cujo conceito passou por uma reformação tornando-se um fenômeno ideológico caracterizado como “terceiro setor”. Desta forma, a trajetória do capitalismo até a difusão do projeto neoliberal e esta conjuntura que permanece até os dias atuais, vem trazendo grandes modificações no que diz respeito à implementação de políticas sociais do âmbito público, e a sociedade civil – o que para alguns autores é um “terceiro setor” fora do âmbito do mercado e do Estado – assume este papel em detrimento da responsabilidade do Estado em atuar nestas políticas garantido acesso aos direitos para a classe trabalhadora. Neste sentido, focalizamos em específico o Projeto Pescar mantido pela empresa Companhia Brasileira de Offshore para exemplificar o que trazemos como característica deste fenômeno. Realizamos uma pesquisa empírica com o profissional de Serviço Social inserido neste campo, o qual aproximou o contexto teoricamente debatido à realidade sob os limites e possibilidades atribuídos à categoria. Portanto, o estudo discutirá a controvérsia entre os conceitos sociedade civil e “terceiro setor”, a sua relação com o Estado em tempos neoliberais e os rebatimentos para o Serviço Social. Palavras-chave: Sociedade civil. “Terceiro setor”. Neoliberalismo. Estado. ABSTRACT This study aims to discuss civil society in the current conjuncture of neoliberalism, whose concept has undergone a reformation becoming an ideological phenomenon characterized as "third sector". Thus, the trajectory of capitalism till the diffusion of the neoliberal project and this situation that remains until today, has brought major changes with regard to the implementation of social policies from the public scope, and civil society - which for some authors is a "third sector" outside the scope of the market and the State - this role takes over the responsibility of the State to act on these policies guaranteed access rights for the working class. In this sense, the focus on specific Fishing Project held by Companhia Brasileira de Offshore to exemplify what we bring as characteristic of this phenomenon. We conducted an empirical study with Social Work professional entered in this field, which approached the theoretical framework discussed in the reality under the limits and possibilities assigned to the category. Therefore, the study discusses the controversy between the concepts civil society and "third sector", its relationship with the State in neoliberal times and the repercussions for Social Service. Keywords: Civil society. "Third sector". Neoliberalism. State. SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................................................07 1 – SOCIEDADE CIVIL EM GRAMSCI...........................................................................09 1.1 Sociedade civil versus “terceiro setor”...............................................................................12 1.2 O que é “terceiro setor”? Características sobre este fenômeno: traços superficiais e contraditórios............................................................................................................................16 1.2.1 Influências atuais no campo do “terceiro setor”: A “empresa-cidadã” ....................21 1.3 “Terceiro setor”: “setor” ou “função social”?.....................................................................23 2 – A PRIVATIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS NO PROJETO NEOLIBERAL DO BRASIL CONTEMPORÂNEO ...................................................................................25 2.1 A era do neoliberalismo .....................................................................................................25 2.2 Neoliberalismo “à brasileira” ............................................................................................29 2.3 A política social: trajetória e contradições.........................................................................34 2.4 As políticas sociais no Brasil..............................................................................................38 2.5 Sociedade civil mal organizada: o que está por trás do chamado “terceiro setor”.............45 2.5.1 O crescimento do “terceiro setor”: marcos que o reafirmam ...................................47 3 – A CONFORMAÇÃO DO PROJETO NEOLIBERAL, SEUS REBATIMENTOS PARA O ASSISTENTE SOCIAL E A SOCIEDADE CIVIL.............................................51 3.1 O Serviço Social brasileiro: historicamente condicionado às fases do capitalismo............51 3.2 Políticas sociais “neoliberais”, “terceiro setor” e a funcionalidade do Serviço Social.......53 3.3 Inserção do Serviço Social em entidades da sociedade civil: aproximação com esta realidade....................................................................................................................................57 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................69 BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................71 9 1 – SOCIEDADE CIVIL EM GRAMSCI No presente capítulo nos dedicaremos a discutir a categoria sociedade civil para desmistificar o fenômeno ideológico do “terceiro setor”. Para isso, recorremos à teoria política de Gramsci que de maneira ampliada procede às descobertas de Marx e ao método do materialismo histórico anunciando um novo conceito de Estado com novas possibilidades categoriais no contexto do capitalismo desenvolvido. Para iniciarmos, discorreremos a respeito das interpretações teóricas singulares às épocas analisadas pelos pensadores Karl Marx e Antonio Gramsci que nos servirão como base e muito contribuirá para entendermos e considerarmos o fenômeno “terceiro setor”. O tempo histórico vivido por Marx apresentou como contexto para o aprofundamento de sua análise da sociedade uma conjuntura com poucas participações políticas por parte da classe do proletariado de forma a prevalecer o explícito poder coercitivo do Estado burguês como espaço privilegiado, com poder decisório na sociedade, com seu “aspecto repressivo (ou ditatorial) como aspecto principal da dominação de classe” (COUTINHO, 2007, p. 124). Outros tipos de organizações eram apenas as de clubes jacobinos, de profissionais, de pequenos grupos secretos, o que demonstra que Marx encontrava como base para sua crítica a política enquanto esfera voltada para a ordem burguesa como exemplo forte de organização. Este poder representado por uma autonomia estatal era, na verdade, o provedor da divisão da sociedade em classes “garantindo assim que os interesses comuns de uma classe particular se imponham como o interesse geral da sociedade” (COUTINHO, 2007, p. 124). Em suma, Marx reconhece inicialmente em suas pesquisas apenas uma organização política e econômica exercida pelo poder estatal em face da ordem capitalista, ou, nas palavras do próprio Marx e do Engels (2008, p.12) “o poder do Estado moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo”. Para além da importante análise da sociedade capitalista realizada por Marx, a qual sua contribuição política, econômica e social ainda é aquela que nos oferece base para reflexões acerca da superação da organização da sociedade em classes antagônicas, este não pode acompanhar as evoluções que as organizações populares e de massa tiveram a partir de grandes processos de socialização da participação política em busca de sua emancipação. E foi exatamente nesta época em que o pensador Antonio Gramsci sistematizou sua concepção de teoria ampliada de Estado. Cabe destacar a partir disto que o essencial ao analisar tanto a teoria marxista quanto a teoria gramsciana, como faremos a seguir, é o tempo histórico utilizado por estes como base 10 para se pensar na complexidade do fenômeno estatal considerando a esferas política e econômica vigentes. Gramsci, como um pensador que parte das teorias de Marx e Engels como clássicos, pode acompanhar um período histórico no qual amplia-se a participação política da sociedade em alguns países já nos finais do século XIX, que, com o desenvolvimento das relações de produção, possibilitou a socialização da política, com a formação de sindicatos, partidos políticos de operários dando origem ao que chama de “sociedade civil”, “uma esfera social nova, dotada de leis e de funções relativamente autônomas e específicas, tanto em face do mundo econômico quanto dos aparelhos repressivos do Estado.” (COUTINHO, 2007, p. 124), de fato uma nova dimensão nas relações de poder no capitalismo. Nesse sentido, Gramsci apoia sua teoria no Estado em seu sentido ampliado trazendo como principal contribuição a distinção entre duas esferas principais no interior da superestrutura política que, compreende-se segundo Bobbio, superestrutura como fora da estrutura econômica (apud MONTAÑO, 2010, p. 121), a sociedade política e a sociedade civil. No que tange à compreensão da sociedade política, Gramsci também a chama de “Estado em sentido estrito” ou de “Estado-coerção”, a formação desta pelos aparelhos repressivos do Estado, “ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e à economia em um dado momento” (COUTINHO, 2007, p 127). Há aqui uma “dominação mediante a coerção” e foi até este momento o analisado pelos “clássicos”. A sociedade civil, enquanto a essência das novas determinações descobertas por Gramsci, como representatividade social da hegemonia, são aparelhos privados que voluntariamente, através de consenso, buscam disseminar suas ideologias, isto é, como mesmo resume Coutinho (2007, p.127), formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa), etc. Podemos diferenciar estas duas esferas analisadas por Gramsci seguindo como a sociedade política e a sociedade civil se organizam e que meios utilizam para adquirirem consenso entre os indivíduos no Estado em seu sentido amplo já que ambas são capazes de provocar mudanças, sejam estas coercitivas e autoritárias ou de maneira hegemônica e consensual. Ambas em conjunto formam o Estado e implicam na organização e promoção de 11 uma determinada base econômica, porém o modo de como se propõe tal interesse é o que as distinguem. A sociedade civil como uma organização hegemônica recebe a partir da visão política de Gramsci uma base material e autônoma em face à sociedade política. Funciona como uma nova oportunidade de organização de massa frente às imposições sociopolíticas e econômicas no capitalismo avançado, com novas formas de organizações como podemos obervar atualmente. Tal esfera ideológica ganha corpo através dos “aparelhos privados de hegemonia”, como mesmo destaca Coutinho, proveniente de novas instituições sociais. É interessante destacar ainda a proximidade teórica de Gramsci quando atribui a base material à organização da sociedade civil vinculando-a com a perspectiva materialista de Marx (Gramsci não rompe com o marxismo para avançar em sua teoria política), legitimando a nova possibilidade na organização do Estado em seu sentido amplo através da sociedade civil. Nas palavras de Coutinho (2007, p. 129), Gramsci registra aqui um fato novo de que a esfera ideológica, nas sociedades capitalistas avançadas, mais complexas, ganhou uma autonomia material (e não só funcional) em relação ao Estado em sentido restrito. Em outras palavras: a necessidade de conquistar o consenso ativo e organizado como base para a dominação – uma necessidade gerada pela ampliação da socialização da política – criou e/ou renovou determinadas objetivações ou instituições sociais, que passaram a funcionar como portadores materiais específicos (com estrutura e legalidade próprias) das relações sociais de hegemonia. [...] Temos aqui mais um exemplo de aplicação concreta por Gramsci, na esfera da práxis política, da ontologia materialista do ser social que está na base da produção teórica de Marx: para este, não há forma ou função social sem uma base material, não há objetividade histórica que não resulte da dialética entre essa forma social e seu portador material. Concretamente: em Marx, não há valor-de-troca sem valor-de-uso, não há mais-valia sem produto excedente [...] em Gramsci, não há hegemonia, ou direção política e ideológica, sem o conjunto de organizações materiais que compõem a sociedade civil enquanto esfera específica do ser social. Esta análise suscitada por Gramsci quanto ao conceito “sociedade civil” nos permite avaliar a abrangência legitimada por este que defendeu o papel da organização popular e de massa e sua relevância pensando em novas propostas de transformação na sociedade onde contextos (sociais, políticos e econômicos) tem como influência o capitalismo, uma vez que esta é a ordem econômica dominante. Assim como temos o conceito de sociedade civil fortemente analisado em Gramsci como base que provém dos estudos de Marx, tem-se atualmente uma ideia distorcida desta esfera de organização, se assim podemos considerar, do que de fato esta representa 14 integra a sociedade civil e a sociedade política) e estrutura econômica –; não sendo, portanto, setorialista, mas uma visão de totalidade” (MONTAÑO, 2010, p. 125). Neste caso, podemos assumir que a teoria do Estado ampliado analisada por Gramsci permitiu a construção de conceitos distorcidos em relação a esferas na sociedade burguesa. Em suma, para Gramsci o Estado e a sociedade civil fazem parte de uma mesma estrutura, a superestrutura, nas relações ideológicas, culturais e políticas na sociedade capazes de se articularem; e para os adeptos do “terceiro setor” estas esferas participam de setores diferentes e interesses incomuns na sociedade. Isso porque, o que propõem os neoliberais acerca da disseminação do “terceiro setor” que se dizem apoiados no conceito gramsciano, é a autonomia deste desvinculado do Estado e da estrutura econômica na sociedade para conferir neutralidade ao “terceiro setor”, na verdade despolitizando-o. Assim sendo, o uso da noção de sociedade civil como um “terceiro setor” nada tem a ver pois a “sociedade civil” gramsciana “faz parte do Estado (lato sensu) que por sua vez é permeado pelos interesses e conflitos das classes sociais conformadas na estrutura econômica” (MONTAÑO, 2010, p. 126) e, portanto, o efeito seria o de desarticular este “terceiro setor” da esfera estatal. Há também que se pensar que a ideia de “terceiro setor” como uma esfera autônoma e singular na sociedade é estratégica. O “terceiro setor” tem procedência sim e funcionalidade com os interesses de classe e, neste caso, foi fundamentalmente criado por instituições ligadas diretamente ao capital. Em linhas gerais, “isso sinaliza clara ligação com os interesses de classe, nas transformações necessárias à alta burguesia” (MONTAÑO, 2010, p. 53) e a análise crítica histórica deste processo é reveladora. Ao analisar Gramsci podemos entender ainda que a sociedade civil situa-se na intermediação entre a base econômica e sociedade política existentes na sociedade de caráter claramente classista, e que esta, na superestrutura forma “um par conceitual”, uma “unidade na diversidade” junto ao Estado, como destaca Coutinho (apud MONTAÑO, 2010, p. 125). Isto significa que a teoria da sociedade civil defendida por Gramsci é permeado pelos interesses e conflitos das classes sociais aderidas à estrutura econômica e, desta forma, a noção de “sociedade civil” não é desprovida de contradições e livre de influências da totalidade social, aliás, em nenhum dos autores que discorreram sobre a sociedade civil. Neste caso, o que afirma ainda mais o uso inadequado para o “terceiro setor” (autonomizado dos outros dois setores) associando-o à ideia de sociedade civil. Partidários do “terceiro setor” por vezes aproximam-se de uma interpretação não histórica sobre sociedade civil (contrário do que baseia-se Gramsci na revolução proletária em sociedades orientais e ocidentais como pressupostos de análise para uma teoria ampliada de 15 Estado), desvinculando-o do Estado e da economia, afirmando que ambos (sociedade civil e “terceiro setor”) possuem mesmos objetivos, ao contrário do que realmente é defendido por Gramsci. O “terceiro setor” deve ser considerado como uma organização da “sociedade civil” com novas perspectivas pelo seu vínculo aos interesses de um Estado mínimo e funcional ao mercado. O que ocorre é a descaracterização do verdadeiro conceito de “sociedade civil” adaptando-o à realidade do capital e escamoteando o que está por trás do chamado “terceiro setor”. Podemos verificar nas palavras de Montaño (2010, p. 129): Os autores do “terceiro setor” de “intenção progressista” entendem que aí está radicada sua proposta: a democratização da sociedade, através da ampliação deste “setor”. O problema, que revela a clara funcionalidade desta proposta com o projeto neoliberal consolida-se na despolitização operada no “terceiro setor”, na retirada das contradições de classe (que estão presentes no conceito gramsciano de sociedade civil), na sua desarticulação com as esferas estatal e infra-estrutural e, portanto, no efeito de encobrir a lógica “liberal-corporativa” que termina assumindo essa proposta supostamente “democratizadora”, dando (resignadamente) como fato a retirada do Estado das respostas à “questão social” e a “flexibilização” (ou esvaziamento) de direitos sociais, econômicos e políticos[...]. O “terceiro setor”, portanto, tem procedência e funcionalidade com os interesses políticos e econômicos de uma classe que a propósito é a dominante segundo a ordem econômica capitalista, assumindo uma propriedade supostamente “democratizadora”. É neste caso, uma “sociedade civil” mal organizada que mantém falsa associação ao que Gramsci reconhece como sociedade civil e não um “terceiro setor” que por muitos autores é considerado como um aparelho separado do Estado (“primeiro setor”) e do mercado (“segundo setor”). Assim, nas palavras de Coutinho (apud MONTAÑO, 2010, p. 133), A partir de finais dos anos 80, a ideologia neoliberal em ascensão apropriou-se da dicotomia maniqueísta entre Estado e sociedade civil para tornar demoníaco de uma vez por todas tudo o que provém do Estado (mesmo que agora se trate de um Estado democrático e de direito, permeável por demais às pressões das classes subalternas) e para fazer a apologia acrítica de uma ‘sociedade civil’ despolitizada, ou seja, convertida num mítico ‘terceiro setor’ falsamente situado para além de Estado e do mercado. Neste contexto, pensar no efeito “democratizador” do “terceiro setor” em consonância com o conceito de sociedade civil é desconsiderar as contradições de classe e o interesse escondido na sua desarticulação com a esfera estatal, e ainda, é desconhecer que a sociedade civil é a uma arena de lutas como uma sociedade organizada em busca do rompimento com a correlação de forças presentes na sociedade. (MONTAÑO, 2007, p. 129). Afinal, o que autores do “terceiro setor” tentaram, tratando-se de fundamentações teóricas, foi a de se reafirmarem nas teorias de Gramsci utilizando-se da ideia de sociedade 16 civil como se tratasse de um setor específico, isolado e independente para visibilizar o fenômeno “terceiro setor” afirmando ser este preenchido com as mesmas particularidades. Consideraram superficialmente as procedências gramscianas e as apontaram como sendo ideais para reafirmação de um conceito neoliberal cunhado de interesses para sua legitimidade na sociedade. Isto porque o ideal é tornar a sociedade civil organizada num setor despolitizado, independente e responsável pelas suas necessidades sociais, políticas e econômicas, encobrindo-os pela lógica neoliberal. Além do mais amplia-se cada vez mais uma sociedade civil despolitizada a ser manipulada por este projeto desarticulado com a esfera estatal, pouco organizada. Nada tem a ver, portanto, um “terceiro setor” na sociedade e reforçar este mistificado “terceiro setor” não é reforçar a “sociedade civil” como pensam e pretendem. O que podemos considerar sim é que o que não há entre os pensadores neoliberais é uma determinação de sociedade civil como a estudada por Gramsci. 1.2 - O que é o “terceiro setor”? Características sobre este fenômeno: traços superficiais e contraditórios Como já apontamos, o termo “terceiro setor” carrega grandes debilidades teóricas e é um conceito atravessado de controvérsias. Havendo ou não, e sendo este um conceito utilizado estrategicamente na sociedade capitalista moderna de maneira intencional, o que é em síntese o chamado “terceiro setor”? Vimos que o debate atual sobre esta ideologia, como proposta dos autores que o defendem, parte do pressuposto de isolar os supostos “setores” um dos outros na sociedade a concentrar-se apenas nos interesses particulares e nas problematizações que o compõem, considerando-o como um fenômeno isolado. Assim, veremos em seguida as propriedades e perspectivas superficiais apresentadas, como falsa visão hegemônica, confusa e mistificada defendida por aqueles que o contemplam. Em termos internacionais, a concepção de um “terceiro setor” foi cunhada nos EUA na transição da década de 1970 para a década de 1980 e, no Brasil, o III Encontro Ibero- Americano do Terceiro Setor, evento este organizado no Rio de Janeiro em 1996, foi o marco para a introdução deste conceito no país (MONTAÑO, 2010, p. 55), aliás, utilizam-se deste os adeptos para datar a iniciativa do fenômeno. Segundo Rubem Fernandes – um dos autores que participaram deste encontro – quando define o “terceiro setor”, menciona que este “é 19 Os movimentos sociais desenvolviam suas atividades de maneira interligada à ONG, atividades para ou contra o Estado com o intuito e objetivos principais de luta, reivindicações, organização e participação nas demandas emergentes da época. A ONG surgiu como apoio aos movimentos oriundos destes anos a fim de potenciar sua organização. O fato é que os movimentos sociais historicamente conhecidos como campo de luta de uma sociedade civil organizada voluntariamente dotada de reivindicações democráticas por direitos contra e pelo Estado estão perdendo seu lugar para um dito “terceiro setor” (até porque não são considerados inclusos neste fenômeno) que desenvolve uma relação de parceria harmônica com o Estado e mercado. Por assim dizer, ocorre atualmente mudança de caráter e significado do que de fato representaram os movimentos sociais fortemente organizados nos anos de 1980 e 1990. E ainda, aqueles que atualmente são resistentes passam a não serem considerados pertencentes a mesma categoria “sociedade civil” organizada pelos neoliberais, de fato por não creditarem das mesmas propostas. Entretanto, iniciando a década de 1990, os partidários ao “terceiro setor” começam a ostentar uma nova postura a partir de grandes processos históricos ocorridos no Brasil. A ONG iniciou uma ação de “despolitização” na sociedade e os movimentos sociais foram “substituídos” (não em sua maioria, pois fortes movimentos permanecem) por um “terceiro setor” desenvolvendo assim parceria “escamoteada” com o Estado e o mercado e os movimentos populares que hoje permanecem organizados em luta não são então considerados como um campo do “terceiro setor”. Para além desta imprecisão em delimitar os segmentos e instituições que a compõem, temos ainda que enfatizar em nossas reflexões outra debilidade entorno do modo contraditório que o “terceiro setor” carrega quando se trata do “caráter “não-governamental”, “autogovernado” e “não-lucrativo” em questão” (MONTAÑO, 2010, p.57), como uma das principais peculiaridades deste setor. Parece que este traço não é assinalado verdadeiramente em suas entidades, ocasionando uma confusão entre público e privado, não se conseguindo distinguir assim sua origem, atividade e finalidade. Os espaços/iniciativas privadas como as organizações não-governamentais (ONG’s) com o intuito voltado para o trato da “questão social”4 são financiadas por entidades que mantém parceria com o Estado (seja este federal, municipal ou estadual) a desempenhar, de 4 Podemos definir com base em Iamamoto (2004, p.17) que “a questão social diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura (...) expressa portanto, disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal”. Uma análise mais profunda desta relação será apresentada nos próximos capítulos. 20 maneira terceirizada, as funções que lhe são atribuídas. Desta forma, uma das principais bandeiras levantadas por autores neoliberais ao sintetizarem a emancipação da sociedade civil moderna através de um “terceiro setor” parece-nos enganosa. O caráter autônomo e independente na verdade é tendencialmente ligado à política de governo e estão condicionadas por esta política. A questão é que ao ser estabelecida esta parceria com uma ONG e não outra, ao destinar recursos a determinados projetos e não a outros, podemos então definir que há consensos pré-selecionados em determinar a permanência e a sustentação de selecionadas organizações que diretamente desenvolvem interesses governamentais. Observamos que parcerias entre Estado e sociedade civil em vista a interesses coletivos comuns para a sociedade são descartadas de imediato a fim de perpetuar a lógica governamental com aquelas organizações de caráter público e fins privados. Esta confusão entre Estado e governo não é neutra e não aparece à toa entre as discussões dos autores do “terceiro setor” já que uma coisa são as ‘parcerias’ com os governos nacionais, estaduais ou municipais com clara hegemonia do grande capital e engajados no projeto neoliberal, e outra são as ‘parcerias’ com governos, particularmente estaduais e municipais, de inspiração trabalhista ou progressistas, populares e democráticos (MONTAÑO, 2010, p. 137). No entanto, a verdade é que as organizações que englobam o “terceiro setor” não são estatais mas suas parcerias são diretamente resultadas da política de governo. Diferentemente do âmbito do Estado democrático e social a política governamental, esta associada aos interesses basilares do “terceiro setor”, é “definida a partir de opções de classe, de alianças políticas partidárias e de acordos e compromissos com organismos internacionais de certas gestões” (MONTAÑO, 2010, p. 137). Outro contexto de discussão refere-se ao caráter de “não lucratividade” dessas entidades. As organizações e fundações que fazem parte deste conceito oferecem através das atividades que exercem um caráter econômico cobiçoso e disfarçado ao mesmo tempo por meio da isenção de impostos e da melhora da imagem dos seus produtos aumentando suas vendas e ainda na função propagandista, um marketing estratégico. Há, portanto, um claro fim lucrativo, ainda que de maneira indireta. Esta última debilidade apresentada pelo “terceiro setor” em sua afirmação é uma especificidade centrada principalmente pelas iniciativas inovadoras das empresas com práticas de responsabilidade social em parceria com as organizações não governamentais (ONGs) e com as fundações, por exemplo. Muito se observa entre empresários brasileiros o comprometimento com o social na atual conjuntura do capitalismo moderno face as sequelas 21 da questão social, aproveitando-se da insuficiente oferta de políticas e serviços sociais públicos pelo Estado ajustado à política neoliberal. 1.2.1 – Influências atuais no campo do “terceiro setor”: A “Empresa-cidadã” Entre os finais da década de 1980 e início dos anos 1990 inicia-se no país um processo de ajuste capitalista e reforma do Estado confrontando com as conquistas sociais advindas dos movimentos sociais e trabalhistas fortemente organizados, o que culminou na importante Constituição Federal de 1988, referência magna para as conquistas sociais. E é neste cenário que os empresários das grandes empresas capitalistas não mais se restringem às ações sociais destinadas aos seus próprios empregados através de benefícios e serviços prestados a estes, propondo a interferir também na sociedade como um todo. Anterior a esta época, principalmente após o golpe de 1964 no Brasil, o empresariado une-se ao Estado para articularem serviços sociais para os trabalhadores na intenção de controlar as manifestações e conflitos e adaptá-los ao ritmo de produtividade do trabalho, porém o Estado sendo o responsável pela população brasileira e o empresariado pela força de trabalho contratada. Aliás, desde os primórdios da industrialização no Brasil, por meio da criação de vilas operárias que acolhiam o operário e sua família, o empresariado já apontava sinais de formação e reprodução dos seus trabalhadores, mantendo um maior controle sobre estes e disciplinando-os para o trabalho e consequentemente para o aumento da produtividade. Como apontado, as empresas passaram a investir na ideia da “responsabilidade social corporativa” revelada como o conjunto de atividades que a empresa realiza para atender, internamente, às necessidades dos seus empregados e dependentes e, externamente, às demandas das comunidades, em termos de assistência social, alimentação, saúde, educação, preservação do meio ambiente e desenvolvimento comunitário, entre outras (CESAR, 2008, p. 18). Essas práticas ocorrem por meio de ações sociais e oferta de benefícios para seus trabalhadores empregados e dependentes e através de investimentos em programas sociais para a comunidade, em muitas destas o empresariado está associado à ONG, a Fundações e a outras instituições que mantém parceria que facilitam o trabalho social desenvolvido junto a estas representantes do “terceiro setor”. Muitas destas ações são orientadas e articuladas por associações que tem a função de representarem e realizarem a interlocução da empresa e suas 24 cidadãos comuns, de qualquer pessoa “necessitada”; tratando-se também de “valores de solidariedade local, auto-ajuda e ajuda mútua: segundo Salamon, os valores do “terceiro setor” incluem “altruísmo, compaixão, sensibilidade para com os necessitados e compromisso com o direito de livre expressão” (MONTAÑO, 2010, p. 184). É a partir destas considerações que adeptos caracterizam o “terceiro setor”. Neste sentido, Montaño afirma que na verdade o “terceiro setor”, portanto, ao invés da utilização deste termo - “terceiro setor” – para designá-lo e nomeá-lo deve ser considerado e interpretado a partir de suas funções e ações, do fenômeno real, pois, “o que os autores chamam de “terceiro setor” nem é terceiro, nem é setor [...], nem refere-se às organizações desse setor – ONGs, instituições, fundações e outros”. Isto é, o “terceiro setor” representa “ações que expressam funções a partir de valores”, ações estas desenvolvidas pelas organizações da sociedade civil as quais assumem tais funções de respostas as demandas sociais “a partir de valores de solidariedade local, auto-ajuda e ajuda mútua” (MONTAÑO, 2010, p. 184). Assim, o que na realidade é chamado de “terceiro setor” na sociedade é um termo equivocado, como tentamos ilustrar a partir de algumas definições. E como mesmo ressalta Montaño, essa desarticulação do real, do fenômeno escondido, propicia maior aceitação das classes sociais, porém o que ocorre é a transformação de uma questão “político-econômico- ideológica numa questão meramente técnico-operativa. [...] Opera-se não apenas a já mencionada setorialização do real, mas uma verdadeira despolitização do fenômeno e do debate” (MONTAÑO, 2010, p. 185). A discussão é levada, portanto, para a eficiência de uma ou outra instituição enquanto o debate necessário, porém encoberto sobre a função social em dar resposta às demandas sociais, fica de fora. É relevante pensar as considerações levantadas pelo autor. Este fenômeno não se esgota em controvérsias na tentativa de tornar-se legítimo na atual conjuntura neoliberal brasileira. E a tentativa de desmistificar o conceito de “terceiro setor” é só o início de uma análise crítica que pode ser feita de um fenômeno disfarçado por mitos e interesses específicos da sociedade burguesa capitalista. Portanto, todo debate acima referido é pois em busca de tornar claro um fenômeno que deve ser entendido num projeto de reestruturação social e totalmente produto dele, pautado em seus princípios neoliberais e funcional a ele. Pretendemos agora partir de sua origem e mostrar de maneira crítica sua real pretensão e caráter de um fenômeno que emergiu para assumir juntamente ao Estado (e em maiores partes) o seu papel de provedor das políticas sociais em atendimento as refrações da questão 25 social. Pois uma coisa é o conceito hegemônico do “terceiro setor” e outra, bastante diferente, é o fenômeno real em questão. 2 - A PRIVATIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS NO PROJETO NEOLIBERAL DO BRASIL CONTEMPORÂNEO Para prosseguirmos nosso estudo acerca do atual modelo de atendimento à “questão social” no Brasil em consonância e decorrência do estratégico fenômeno do “terceiro setor”, privilegiaremos expandir a análise da política social brasileira como fundamental alvo deste novo projeto econômico de reestruturação do capital e desresponsabilização do Estado no que concerne à implementação destas políticas pela via pública. As políticas sociais universalistas, com igualdade de acesso, não contratualistas e constitutivas de direito de cidadania (MONTAÑO, 2010) é a materialização dos direitos legalmente reconhecidos e legitimamente assegurados, porém, o projeto neoliberal reorganizou-a à sua maneira. Surge uma nova modalidade de resposta que torna as políticas privatizadas, reduzindo-as a meras atividades focalizadas, localizadas através de reduzidos programas e benefícios e outras alterações significativas – o “terceiro setor”. Neste sentido, faremos um breve retrocesso histórico do contexto de consolidação do capitalismo e suas principais influências para a disseminação em terras brasileiras resgatando pontos principais que fizeram resultar neste “caldo” que permanece até nossos dias. Teorizaremos o neoliberalismo como um todo a fim de contextualizar suas influências mundiais para o Brasil até retomarmos ao tema “terceiro setor”. Retrataremos também as particularidades ocorridas no Brasil no que diz respeito à classe burguesa e à conformação do Estado e contextualizar historicamente no país aquele que chamamos de responsável e fundador deste conceito: a influência do capitalismo no país até chegar ao mais recente projeto, o neoliberal. 2.1 - A era do Neoliberalismo Os anos de 1945 à 1960, período pós-guerra, são considerados os anos de ouro do capitalismo. Época em que vivenciou-se um período de “forte expansão da demanda efetiva, altas taxas de lucro, elevação do padrão de vida” (BEHRING e BOSCHETTI, 2009, p.88), 26 alto crescimento econômico e aumento da produção e consumo em massa. Além de, neste período de “consenso pós-guerra” (MISHRA, 1995 apud BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.92), propagar-se a política do “pleno emprego” e direitos assegurados aos trabalhadores: cobertura de acidentes de trabalho, seguro-doença e invalidez, pensões a idosos, seguro- desemprego, auxílio-maternidade, entre outros – certos de que tais conquistas foram asseguradas a partir das reivindicações dos próprios trabalhadores durante o século XIX (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.93-93). Tais medidas referem-se à fase madura do capitalismo em tempos de padrão Keynesiano que, agregado ao pacto fordista para configurar a produção e regulação das relações econômicas e sociais, foram as saídas para a grande crise de 1929. Considerada como a maior crise econômica do capitalismo em escala mundial até o referido momento iniciado no sistema americano com marco na Bolsa de Nova York. Como motivos podemos destacar a organização trabalhadora que pressionou a classe burguesa para o reconhecimento de seus direitos com um forte movimento e ainda, a concentração e monopolização do capital com a necessidade de altos investimentos e empréstimos de dinheiro. Agrega-se a esta crise econômica o desemprego em massa e a crise de legitimidade política do capitalismo (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.68). O período keynesiano do capitalismo mundial, principalmente considerando sua influência nos países centrais, desenvolveu um momento de práticas estatais intervencionistas e o estabelecimento de uma aliança entre classes, viabilizado somente a partir do abandono, por parte da classe trabalhadora, do projeto de socialização da economia (BEHRING e BOSCHETTI, 2009, p.92). Deu-se a expansão do chamado Welfare State (PIERSON, 1991 apud BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 92) por um ampliado conceito de seguridade social existente deste período. Contudo, no final dos anos 1960 esta época dos “anos de ouro” do capitalismo começa a se esgotar. As taxas de crescimento, o Estado com suas funções “mediadoras civilizadoras” – atuando com políticas intervencionistas – cada vez mais amplas, a absorção de novas tecnologias poupadoras de mão de obra, já não são mais as mesmas e passam a contrariar o essencial ao padrão até então vigente: o “pleno emprego”. Fora as dívidas públicas e privadas que crescem. Resultando desta forma no descontentamento em relação ao Estado e ao papel que assumia, pois “as elites político-econômicas, então, começaram a questionar e a responsabilizar pela crise a atuação agigantada do Estado mediador civilizador” (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.103). Citando Behring & Boschetti (2009, p. 116), 29 individual de trabalho a qual os trabalhadores são convidados a pensarem em si enfraquecendo a luta contra o sistema de produção vigente. Além de um novo caráter de relacionamento construído entre Estado e sociedade civil desestruturando as conquistas até então estabelecidas desde o período anterior, principalmente no campo dos direitos sociais, resultado das reconfigurações do papel de Estado e das políticas sociais – que serão abordadas adiante. Em resposta à crise dos anos 1970 a economia neoliberal trouxe para o capitalismo o aumento das taxas de lucro empresariais não sendo capaz de gerar crescimento econômico, o que não solucionou a necessidade real a qual passava o período de estagnação. Afetou apenas, com a nova estrutura, a vida dos trabalhadores e acirrou a desigualdade social e de classes. Ideologicamente, no entanto, este novo conceito mostrou-se glorioso com estes últimos (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.128-130). Estas questões não se alteraram na década de 1990 e início do século XXI, no capitalismo contemporâneo, só tornaram-se mais incorporadas em diversos países desde aqueles que ainda não tinham ainda instaurado o cenário capitalista em suas rotinas. 2.2 – Neoliberalismo “à brasileira” O processo de consolidação do capitalismo na América Latina, particularmente no Brasil, deu-se de maneira tardia e de forma diferente dos países europeus e, inclusive, do norte-americano que a partir da Revolução Industrial no século XIX, assumiram a tendência liberal como percussora da economia, da política e do controle social. No liberalismo predominante ocorridos nos países desenvolvidos até a Grande Depressão em 1929, momento este causado pela crise e descontentamento deste modelo pelos burgueses, o mercado é o supremo regulador das relações sociais funcional à ausência da intervenção estatal, em que “o papel do Estado, uma espécie de mal necessário na perspectiva do liberalismo, resume-se a fornecer a base legal com a qual o mercado pode melhor maximizar os ‘benefícios’ aos homens” (BEHRING e BOSCHETTI, 2009, p. 56). A contrarreforma do Estado no Brasil culminou mediante a “constituição de um capitalismo oligárquico-dependente, que, ainda no século XIX e início do século XX, estava baseado no latifúndio tradicional e num esquema colonial de exportação de matérias-primas e importação de produtos industrializados” (MONTAÑO, 2010, p. 30). Isto significa que, em raízes brasileiras e em toda América Latina, quando traços capitalistas começam a serem 30 introduzidas no país, as estruturas econômicas começam a serem modificadas, mas não atingem plenamente elementos ideológicos, culturais e até de relações sociais próprias da influência colonial, já que o capitalismo “nasce subordinado à fase imperialista” (LENIN, apud MONTAÑO, 2010 p. 31), de um sistema latifundiário, servil e escravocrata (idem, p. 30-31). Desta forma, podemos considerar que o capitalismo no Brasil não foi implantado aqui a partir da revolução burguesa, mas de maneira conservadora. No ápice de um período de tensão do capitalismo o qual países respiram sinais de uma grande crise numa escassez de lucros e queda do consumo, o Brasil apresentava um capítulo diferente em seu contexto. No final dos anos 1960 o “período de ouro” do capitalismo internacional aprecia sinais de esgotamento do seu padrão de produção fordista-keynesiano. Enquanto no plano brasileiro desencadeava, no contexto de ditadura militar pós-64, a expansão do “fordismo à brasileira” (SABÓIA, apud BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 92). Neste período de intenso crescimento econômico chamado de “Milagre Brasileiro” viveu-se no Brasil um período no qual prevaleceu a produção em massa para o consumo restrito de automóveis e eletrodomésticos, com uma redistribuição restrita dos ganhos da produtividade que, embora não tenha ocorrido consenso e o pacto social-democrata, acarretou para o país o crescimento interno (idem, p. 135-136). Sem contar que, para o que nos importa neste estudo com o objetivo de apresentar as influências neoliberais no Brasil, expandia-se, ainda que de forma tecnocrática e conservadora, a política social no país. De forma que o capitalismo avance em terras brasileiras, numa fase que Montaño (2010, p. 31) chama de neocolonialismo, a aliança entre Estado, capital nacional e partes da classe trabalhadora foram essenciais para a industrialização por exportação o que exigiu participação de todos, como a demandada intervenção estatal (o que chamou de “Estado social intervencionista”), e o aumento do emprego para crescer a produção e a elevação do salário para aumentar o nível do consumo. No final dos anos de 1970 inicia no Brasil uma fase crítica de esgotamento da política econômica até então vigente o que acirra para uma crise que criou forças na década de 1980 combinando com a conjuntura de tensão econômica do capitalismo que ocorria nos países desenvolvidos como em toda América Latina. Afirma Cesar (2008, p.143) que “o regime militar se desfazia sob o descrédito provocado pelo conteúdo da política que praticara, acentuando os níveis de injustiça social, o que fez com que a questão social, em seus diferentes aspectos adquirisse grande visibilidade”. Este período de recessão foi marcado pelo crescimento da dívida externa e interna, estagnação econômica, entre outros agravantes como pressões coletivas pela classe trabalhadora para a democratização das relações sociais e 31 políticas do país. Amplos movimentos de massa que propunham grandes mudanças para o cenário político e econômico do país (Idem, p. 143) foram atores importantes para a mudança na conjuntura brasileira de ditadura militar.5 Além de, como efeito desta crise do endividamento, uma tensão no padrão de intervenção social estatal e deste modelo político, econômico e social de ditadura. A década de 1980 foi marcada pelo início de transformação lenta e gradual do regime ditatorial em transição para o processo da democracia que irá influenciar e muito a adesão brasileira ao padrão neoliberal, este já em curso num plano mundial. Período este, como já mencionado, marcado pelo fracasso econômico e, ao mesmo tempo, pelas conquistas significativas no plano democrático em função das lutas sociais, como resultado, por exemplo, a Constituição Federal de 1988. Segundo Netto (1999 apud MONTAÑO, 2010, p. 35) “a constituição de 1988 consagrou este profundo avanço social, resultado das lutas conduzidas, por duas décadas, pelos setores democráticos”, configurando um pacto social. Nesse tempo, tal crise causou um empobrecimento generalizado na América latina, especialmente no Brasil onde tais características resultantes da crise que preexistiam antes deste período, foram acirradas “quando a estagnação chega à periferia, fazendo cair os índices de crescimento, deslegitimando os governos militares e dando fôlego às transições democráticas” (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 137). O país ingressou na década de 1990 devastado pela inflação, pouco investimento (público e privado) e com uma questão social muito agravada. Um terreno fértil para a adesão das possibilidades da hegemonia neoliberal principalmente com a realização do Consenso de Washington que organizou seu receituário de medidas de ajuste a serem aplicados politicamente em busca pela estabilização. Representando uma conquista democrática brasileira, ocorre em 1989 a primeira disputa direta para o cargo de presidente num período de crise insustentável. Duas foram as candidaturas – entre Lula e Collor – que expressavam a tensão entre distintas classes sociais as quais representavam respectivamente a classe operária e àquela classe que demonstrava insatisfação com a Carta Constitucional e almejava a guinada rumo ao ajuste neoliberal (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 142-143). Em 1990 Fernando Collor de Mello tomou 5 Segundo Cesar (2008, p. 144-145) o processo de redemocratização do Brasil teve ampla participação de novas práticas e formas de organização com o fortalecimento dos movimentos sociais. A vida política foi abalada por estes movimentos que propunhas mudanças profundas na institucionalidade política e econômica do país, como o movimento das Diretas Já (reivindicações por eleições diretas). Movimento este que se desenvolveu com as greves do ABC Paulista, com as mobilizações dos trabalhadores rurais por aumento de trabalho e acesso à terra entre outros movimentos que lutavam por melhores condições de vida, insatisfeitos com a tendência até então vigente. 34 dias atuais. Passando pelos mesmos processos de estagnação, esgotamento e crise nos âmbitos econômicos, políticos e sociais, o Brasil, considerando suas particularidades, se mantém firme neste projeto. Durante o processo histórico de inserção do modo de produção capitalista no Brasil considerando suas particularidades até chegar às influências neoliberais que até hoje permanecem, as políticas sociais perpassaram por mudanças as quais as caracterizaram de acordo com o contexto. É neste sentido que limites e possibilidades se desenvolvem no percurso das políticas sociais enquanto processo central na agenda de lutas dos trabalhadores, todavia participante do processo de produção e reprodução do capitalismo. Portanto, o próximo tema de discussão será para, neste sentido, discutir a respeito deste movimento. 2.3 – A política social: trajetória e contradições Para compreendermos o percurso histórico das políticas sociais no Brasil é preciso alinhar o que consideramos sobre este processo social. Este é carregado de determinações econômicas, sociais e políticas que por vezes, se desconsideradas, perde seu real valor. O fato de, por alguns teóricos e autores que discutem o tema, tornarem as políticas sociais descritivas e cercadas de bases técnicas, corre-se o risco de despolitizá-las, transferindo-as para uma dimensão instrumental e técnica, e esvaziando-as das tensões políticas e societárias que marcam sua formulação e cobertura. Ou ainda, há aqueles que as consideram como deveriam ser e não como realmente ela é ignorando sua realidade crítica (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 35-36). No entanto é necessário, como mesmo destaca as autoras, que a análise das políticas sociais como processo e resultado de relações complexas e contraditórias que se estabelecem entre Estado e sociedade civil, no âmbito dos conflitos e luta de classes que envolvem o processo de produção e reprodução do capitalismo, recusa a utilização de enfoques restritos ou unilaterais, comumente presentes para explicar sua emergência, funções ou implicações (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 36). Desta forma o que temos como base é a perspectiva crítico dialética de contribuição marxista para abordagem da política social que problematiza o surgimento e desenvolvimento desta no contexto da acumulação capitalista e da luta de classes demonstrando seus limites e possibilidades na produção do bem-estar nas sociedades capitalistas. Sendo assim como um processo social inscrito na sociedade burguesa (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 37). Desde sua gênese, quando as primeiras ações desenvolvem-se voltadas para a noção de políticas sociais até os dias atuais, é imperativo considerar as múltiplas causalidades e 35 diversas manifestações e dimensões que as compõem até o atual fenômeno do “terceiro setor”. Do ponto de vista histórico, é preciso considerar o surgimento das expressões da questão social que foi fundamental para seu aparecimento e que, de maneira dialética, sofre efeitos destas políticas, ao passo que, do ponto de vista econômico, as fases as quais passaram o capitalismo são determinantes para o efeito que provocaram e provocam na classe trabalhadora, ao considerar, por exemplo, o Brasil que sempre se manteve influenciado e acompanhando, mesmo que tardiamente, as determinações mundiais. E ainda, de um ponto de vista político, ao analisar as forças políticas na sociedade desde a atuação estatal – e sua relação com os interesses de classe – até a influência das organizações sociais, caracterizando a sociedade civil, e/ou o que chamam de “terceiro setor”. Neste, inserem-se também o fato de que tipo de vinculação esta sociedade civil mantém em relação aos movimentos de defesa dos trabalhadores ou aqueles que defendem interesses do empresariado. Elementos estes devem ser observados como complementares e articulados entre si, como referenciais que auxiliam situar as políticas sociais e compreender seus significados (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 43-45). Mas afinal, podemos considerar de que forma sua gênese? Mundialmente, as políticas sociais, mesmo que autores como Behring & Boschetti não situam um período específico para o seu surgimento, a Revolução Industrial, em meio aos movimentos de ascensão do capitalismo, à luta de classes e desenvolvimento de intervenção do Estado, teve um papel significativo na gestão destas como processo social. Porém, citam que sua generalização tem estrita relação com a passagem do capitalismo concorrencial para o monopolista, em especial, em sua fase tardia no pós-45 (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 47). Nas sociedades pré-capitalistas onde não havia influência do mercado e a força de trabalho era afastada das demais atividades – diferentemente da era capitalista – as ações sociais eram voltadas para a punição e restrição da classe trabalhadora e dificilmente, para aquela classe considerada apta para atividades laborativas mas que não à exerciam. Tais ações não tinham o intuito de garantir o bem comum, mas o fim de manter a ordem e punir a “vagabundagem” – ao direcionar-se somente àqueles que trabalhavam -, estas ações podem ser consideradas como protoformas de políticas sociais, mesmo que garantidas com objetivos diferentes. Das leis inglesas, podemos considerar que a partir de 1975 com a Lei Speenhamland as configurações da política social começam a se modificar com um caráter menos repressor, garantindo aos empregados como também aos desempregados uma quantia em valor, mas de forma que estes se mantivessem fixados sem mobilidade de mão de obra. Já as leis anteriores 36 a realidade manteve-se diferenciada a partir do Estatuto dos Trabalhadores vigorada em 1349, que sinalizava a finalidade de “estabelecer o imperativo do trabalho a todos que dependiam de sua força de trabalho para sobreviver; obrigar o pobre a aceitar qualquer trabalho que lhe fosse oferecido; regular a remuneração do trabalho [...]; proibir a mendicância dos pobres válidos [...]” (CASTEL, 1998 apud BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 48) entre outras medidas punitivas. Dentre as mais conhecidas da época que sucederam o Estatuto temos: o Estatuto dos Artesãos de 1563, a Lei dos pobres elisabetanas, que se sucederam entre 1531 e 1601 e a Lei de Domicílio que vigorou em 1662 (idem, p. 48). Com a Nova Lei dos Pobres, criada em 1834, num contexto de iniciação da Revolução Industrial, seu objetivo era o de liberar a mão de obra interessante e necessária à nova sociedade de mercado. Esta na verdade configurou-se em uma nova roupagem da Lei Speenhamland, a qual reinstituía de maneira menos intensa a obrigatoriedade ao trabalho para os pobres capazes de trabalhar para, desta forma, merecer e obter o auxílio. Cabe ressaltar que já nesta época o capitalismo mundial já engendrava no cenário influenciando nas ações de proteção social à classe que vive do trabalho. Nesta ocasião é que os trabalhadores iniciam no século XIX um processo de revolta contra o novo padrão de exploração que cada vez mais causava o agravamento de suas condições de vida. A questão social, como uma inflexão deste processo de produção e reprodução das relações deste momento histórico capitalista, torna-se visível a partir da luta de classes em busca da redução da jornada de trabalho. Começa a ocorrer o deslocamento da desigualdade social e da exploração para o campo da questão social, porém, o que tiveram como respostas advindas do Estado foram, sobretudo, repressivas e algumas apenas ações demandadas pela classe trabalhadora, de maneira tímida e parcial, não atingindo o cerne da questão social (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 62-63). Todavia, estreando o século XX, ainda mundialmente falando, algumas benesses no que diz respeito ao campo dos direitos foram conquistadas, como o direito ao voto e de organização sindical. De maneira geral, como já mencionado, o surgimento das políticas sociais em cada país depende totalmente de cada uma das realidades vividas historicamente nestes, dependendo especificamente da força dos movimentos da classe trabalhadora, de sua pressão e organização, o grau de desenvolvimento das forças produtivas e das correlações de força do Estado. A situação começa a mostrar traços de mudança durante os trinta anos de expansão do capitalismo maduro mundial após a grande crise ocorrida em 1929. Momento este marcado pelas altas taxas de lucro e ainda grande investimento de políticas sociais voltadas para os 39 centrais, conforme características mencionadas acima, além de que não houve aqui no Brasil no século XIX, uma radicalização das lutas operárias. O tardio impulso capitalista no país ainda enraizado no colonialismo, imperialismo e com forte influência do trabalho escravo, teve somente no século XX, em sua primeira década, os indícios de aparecimento das políticas sociais. Fatos como dificuldade de interação dos escravos libertos com a sociedade do mercado, pauperismo acentuado característico de um país com raízes capitalistas, afinal, foram algumas situações que facilitaram nas primeiras ações sociais brasileiras, porém um pouco tardias em relação ao parâmetro mundial. Tímidas foram as ações sociais as quais podem-se considerar como protoformas das políticas sociais brasileiras. Afirmam Behring e Boschetti que em 1881 foi promulgada a primeira legislação em atenção à infância no Brasil, mas que nunca fora cumprida, além do direito à pensão e dias de férias a determinados trabalhadores. O que temos como referência significativa veio a partir do século XX com a formação dos primeiros sindicatos quando reconhecido o direito à organização sindical, o que provoca a redução da jornada de trabalho para 12 horas, contudo, apenas mantendo-se no papel. O ano de 1923 é marcado pela lei Eloy Chaves para criação de Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP’s) para algumas categorias ligadas diretamente no processo de produção e circulação de mercadorias – ferroviários, marítimos, entre outros – como forma originária da previdência social brasileira. Além de, em 1927, emergir o famoso Código de Menores que puniria a população infantil e juvenil, o que para este caso sofreria mudança apenas em 1990 com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 78-80). Com os acontecimentos mundiais que vinham ocorrendo, tratando-se principalmente da crise econômica de 1929, o Brasil sofre repercussão tendo como resultado mudanças das relações sociais com influências tipicamente capitalistas. A era de Vargas trouxe para o país, com a ditadura do Estado Novo, entre os anos de 1930 a 1943, um período que pode ser considerado como a introdução das políticas sociais no país numa sequência lenta de expansão dos direitos, dentre as quais podemos considerar: em relação ao trabalho, o Brasil seguiu a referência de cobertura de riscos ocorrida nos países desenvolvidos [...] que parte da regulação dos acidentes de trabalho, passa pelas aposentadorias e pensões e segue com auxílios doença, maternidade, família e seguro-desemprego. Em 1930, foi criado o Ministério do Trabalho e, em 1932, a Carteira de Trabalho, a qual passa a ser o documento da cidadania no Brasil: eram portadores de alguns direitos aqueles que dispunham de emprego registrado em carteira (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 106) Além destes, houve a criação dos IAP’s – Institutos de Aposentadorias e Pensões – como sistema público de previdência para os trabalhadores que aos poucos facilitaram a 40 extinção das CAP’s, organização privada; a criação do Ministério da Educação e Saúde, bem como o Conselho Nacional de Educação e o Conselho Consultivo de Ensino Comercial. Há também neste período o desenvolvimento de atendimento à saúde privada e filantrópica e, para a assistência social, não há precisão quanto ao surgimento de políticas envolvidas nesta área já que esteve durante muitos anos ligada a um caráter fragmentado, diversificado e desorganizado. Porém, neste âmbito, há o que podemos considerar como forte influência para esta área a criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA) que em 1942 atendia às famílias envolvidas na Segunda Guerra, num caráter de favor, primeiro-damismo e clientelismo na relação entre Estado e sociedade. Com o passar dos tempos, a LBA tornou-se a principal rede – em sua maioria instituições privadas – de articulação da assistência social no Brasil, realidade que se modifica, ao menos houve a tentativa através da legislação – com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Outros fatores importantes em reconhecimento das políticas sociais no Brasil durante a era da ditadura de Vargas foram assinalados como a Constituição promulgada em 1937, e ainda, a importante conquista atrelada aos trabalhadores em reconhecimento de suas categorias pelo Estado através da Consolidação das Leis Trabalhistas – a CLT – promulgada em 1943 (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 106-108). Em comparação à experiência keynesiana de intervenção e regulamentação estatal na área social nos países de capitalismo central, o Brasil, como em muitos aspectos, passou por este período de modo particular, inclusive considerado como incompleto por alguns autores, mesmo que acompanhando as tendências dos países desenvolvidos. As especialidades das políticas sociais brasileiras neste período de Getúlio Vargas no governo foram de caráter corporativo e fragmentado, contudo há de se considerar que gradativos avanços incentivaram reivindicações nos anos seguintes. Assim, com o enfraquecido governo de Vargas – marcado ainda pelo seu suicídio –, o pós-45 revestiu-se de grandes lutas de classes. A classe burguesa demonstrava-se sem força e inclusive dividida entre distintos partidos – a União Democrática Nacional (UDN), o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) –, e a classe trabalhadora vivia um momento de descontentamento em vista da conjuntura capitalista que os propiciava uma instabilidade trabalhista e social. Este período de Vargas foi marcante para o desenvolvimento das políticas sociais brasileiras com o contexto assinalado durante a ditadura militar. Em busca do consentimento popular e de legitimidade, o governo da ditadura desenvolveu políticas sociais em busca de sua expansão e modernização. Em um contexto de censura e repressões políticas, prisão e 41 torturas por perda de liberdade democrática da população, as políticas foram determinantes para adesão deste padrão regulador na sociedade brasileira na época. Então a política desenvolve-se correspondendo às particularidades desta fase histórica nas áreas da previdência social, assistência, saúde e habitação como poderemos observar. Na previdência, o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) centralizou a gestão deste direito assim como, no ano seguinte, passou a gerir também os acidentes de trabalho, além de estender-se para os trabalhadores rurais, e gradativamente, incluindo cobertura às empregadas domésticas, os jogadores de futebol e autônomos e os ambulantes. Aos idosos, houve a criação da Renda Vitalícia que garantia, pelo menos àqueles que contribuíram um ano para a previdência, meio salário mínimo e ainda, atenção à licença-maternidade para 120 dias, extensiva às trabalhadoras rurais e empregadas domésticas e ao direito de pensão. Destaque também para os movimentos sociais em defesa dos direitos de crianças e adolescentes, o que acabou por desdobrar posteriormente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no ano de 1990. No campo da assistência social, foi criado em 1974 o Ministério da Previdência e Assistência Social vinculado à LBA, à Central de Medicamentos (CEME) e à Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social (Dataprev), que mais tarde este complexo se transformou em Sistema Nacional de Assistência Social e Previdência Social (SINPAS), já no ano de 1977. Para a Saúde, houve ênfase ao processo curativo, individual e especializado em detrimento à saúde pública, nesta para o incentivo à mercantilização de medicamentos em vista da lucratividade. No que tange à habitação, a ditadura militar impulsionou uma política nacional de habitação a partir da criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) que ampliou o mercado das empreiteiras e impulsionou a economia por meio da construção civil (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 135-137). Contudo, em conjunto, tais políticas sofreram um avanço significativo para o acesso aos direitos, principalmente para a introdução do conceito de seguridade social, ao passo que o que se procedeu foi a limitada capacidade de acesso, sendo restrita a determinadas parcelas na sociedade. Além disso, foi um período marcado pela privatização de serviços e acessos pela abertura privada para algumas áreas como a própria previdência social, saúde e educação, o que acabou por configurar um sistema com disparidade de acesso entre aqueles que podem e aqueles que não podem pagar, o que resultava em muitas pessoas sem acesso a estes serviços. Durante um longo período, o Estado em sua ditadura militar conseguiu manter o ritmo condicional de acesso às políticas sociais, mas que aos poucos os trabalhadores reconheciam sua insuficiência. A política social brasileira foi marcada nesta etapa como de caráter clientelista, compensatório, seletivo e fragmentado. 44 medidas que pudesse atender e modificar o quadro social que já não vinha bem no contexto histórico brasileiro. Mas não foi esta realidade vivida no contexto econômico e político na década de 1990 no Brasil após sua criação. Podemos considerar deste período no país que no atendimento às demandas da população na perspectiva universalista da Constituição de 1988, muitas foram as disputas para que esses princípios de universalidade fossem alterados, sempre invocando a insuficiência de recursos para aplicá-los e a necessidade da focalização de atendimento às populações mais pobres, visando a racionalização dessa aplicação. (COUTO, 2006, p.153) Como princípio promulgado na Carta Magna no artigo 194 do capítulo II “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (CF 1988). Porém, o que se pode observar é que a privatização, como um dos maiores princípios voltados para a gestão das políticas sociais na era do capitalismo neoliberal, gera o que se pode considerar como uma dualidade discriminatória entre aqueles que podem e aqueles que não podem pagar pelos serviços. Já a seletividade seguida da focalização é responsável pelo processo de assegurar acesso, principalmente às políticas de assistência social, somente aqueles comprovadamente na extrema pobreza, ou seja, a situação dos trabalhadores pobres que consequentemente tornou-se desempregada já não terá um fácil acesso aos direitos por decorrência desta nova forma de atendimento às necessidades sociais. Na saúde e previdência social, a privatização manteve a seletividade e ao aumento dos planos privados que são contratados como saída para acesso a este tipo de serviço (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 159-161). A proposta do Sistema Único de Saúde – SUS –, por exemplo, a qual deveria ser fundamentado nos princípios da equidade, universalidade, regionalização e participação dos cidadãos, vem se tornando na verdade, um campo minado por péssimas condições da qualidade dos serviços e falta de recursos, sofrendo de fato com a privatização. Embora seja um tema muito pertinente que não será aprofundado neste trabalho. Já a assistência social nesta nova lógica torna-se um alvo fácil para o enraizado “assistencialismo” brasileiro, com uma grande dificuldade de se fixar como política pública. Muito se correlaciona com a nova lógica de atendimentos emergenciais e focalizados que são descentralizados da responsabilidade pública, fruto desta realidade atual. A política neoliberal construiu para a assistência social um caráter fragmentador e que ainda permanece enraizado em muitas dessas ações atuais da “sociedade civil mal organizada”, como já mencionados no capítulo anterior e o caracterizaremos mais especificamente adiante. Mesmo que neste período o Brasil tenha vivido um grande marco de democracia política a partir da 45 promulgação da Constituição como resultado de movimentos e lutas sociais e a criação da LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social efetivada em 1995, como uma importante iniciativa legal no campo da assistência social brasileira, o Estado permanecendo como um instrumento de hegemonia do capital com toda concentração econômica brasileira voltada em prol da sua expansão, dificulta ainda mais a promoção dos direitos sociais públicos. O campo da assistência social é um espaço propício para a cultura do assistencialismo e práticas clientelistas onde esteve enraizada. Seu verdadeiro sentido como política integrante do tripé da Seguridade Social firmado no campo dos direitos sociais no Brasil se perde em traços conservadores e neoliberais. Esta situação de fragmentação de acesso dos trabalhadores que rebateu sob as políticas sociais de acesso coletivo que reforçou de um lado a mercantilização de programas de saúde e previdência e ampliação dos programas assistenciais diretamente ligados para as áreas emergenciais de forma focalizada e seletiva, resulta em medidas restritivas que diminuem a cobertura deste segmento populacional. Como é o caso de alguns selecionados programas governamentais, tais como o Benefício de Prestação Continuada e o Programa Bolsa-família, que tem como objetivos a estratégia de enfrentamento da questão social sem a participação popular, geralmente insuficientes e incapazes de prover o mínimo de atenção econômica necessárias às pessoas e famílias atendidas.6 Citamos tais programas não como o centro de nossas análises, mas para fazer menção de exemplos de como o Estado neste novo contexto neoliberal está representando a esfera pública na efetivação das políticas sociais atuando nestes programas e benefícios destinados à parcela extremamente pobre do país. 2.5 – Sociedade civil mal organizada: o que está por trás do chamado “terceiro setor” Estas orientações de cunho assistencial refletem práticas de clientelismo, assistencialismo e favor que passam a fazer parte do histórico social brasileiro a partir dos anos de 1990. Contudo, a negação das conquistas inscritas na CF 1988 pelo processo de reestruturação do capital e, a partir disto, dos direitos públicos e acesso dos trabalhadores às políticas sociais públicas, tem a ver com a nova proposta desmistificada no capítulo anterior: 6 O Benefício de Prestação Continuada – BPC, assegurado pela constituição e regulamentado pela Lei Orgânica de Assistência Social, consiste no pagamento de um salário mínimo mensal a idosos com 65 anos ou mais e aos portadores de deficiência, ambos pertencentes às famílias com renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo. [...] é feita uma avaliação social do beneficiado [...] o que implica a manutenção ou suspensão do pagamento do benefício (CESAR, 2008, p.192). 46 o “terceiro setor” passaria a ser responsável, não como uma rede complementar, mas como uma alternativa pela gestão das políticas sociais. Neste caso, a implementação de políticas sociais no Brasil, para viabilização de direitos sociais, passam a ser de responsabilidade deste “terceiro setor” que deve ser tratado como uma opção capaz de dar conta do fenômeno, ou seja, ele é fruto deste processo. Como já nos referimos no capítulo anterior, com base no que defende Carlos Montaño, nos referimos aqui à função social praticada pelo “terceiro setor”, ações que são desenvolvidas sim por uma sociedade civil muitas vezes mal organizada e esta sociedade civil acaba assumindo a função de dar respostas às demandas sociais, necessária à reestruturação do capital. Esta nova função assumida pela sociedade civil (contrária àquela à qual refere-se Gramsci) acaba por transferir para o próprio indivíduo com necessidades a responsabilidade pela cooptação de sua satisfação através da auto-ajuda e ajuda mútua. Ora são respondidas pelos próprios necessitados que se veem movimentados a tomarem iniciativas, ora pela ação filantrópica de entidades sociais, ora pelo próprio Estado que, de maneira focalizada e minimalista, atende àquela pequena parcela. Torna-se notório a insuficiência deste novo padrão em dar conta dos problemas sociais que vai muito além de meros atendimentos de acordo com a necessidade apresentada por grupos e comunidades. Isto por que os efeitos deste trato emergencial da questão social não apenas não resolvem os problemas em geral como também não solucionarão a raiz dos problemas mais abrangentes, fruto das desigualdades econômicas, por exemplo, como também perpetuam a cultura destes tipos de políticas sociais que simplesmente só as eliminam como direito do cidadão. Por tudo isso, a lógica é bastante clara: a dualidade que abordamos anteriormente entre aqueles que podem e os que não podem pagar pelos serviços que a partir de então passaram a serem privatizados faz com que serviços de qualidade tornam-se mercadoria, a serem vendidos7, “comprados” por aqueles cidadãos que tem a possibilidade de comprá-los. Já os serviços oferecidos pelo poder estatal (precarizado, focalizado, sem cobertura para todas as regiões) são destinados àqueles que não possuem condições de acesso aos serviços privados e ainda desta forma muitos ficarão descobertos e para isto, a sociedade civil assume determinadas práticas voluntárias, filantrópicas e caritativas. Neste esquema, há o que 7 Mota (1995, p.230) chama atenção para o caso da reforma da Previdência a qual o trabalhador, ao procurar uma forma complementar diferentemente daquela oferecida pelo Estado, paga com o próprio salário tais serviços ao “comprar” o que agora passa a ser privado e mercantilizado. 49 A Lei nº 9.732, de 11 de dezembro de 1998, altera os dispositivos anteriores para isenção de contribuição à seguridade social, dirigidos a entidades filantrópicas (cf. Szazi, 2000: 205 e 94). O Decreto nº 2.536, de 6 de abril de 1998, dispõe sobre a concessão do certificado de entidade de fins filantrópicos, alterado posteriormente pelo Decreto nº 3.504, de 13 de junho de 2000 (cf. idem: 230 e 94) (MONTAÑO, 2010, p. 204). É neste cenário que podemos destacar a forma de como estão firmadas no nosso cotidiano legal a configuração desta prática de atividades de captação de recursos mantenedores do funcionamento destas entidades da sociedade civil que atuam com políticas sociais fora do viés público, mas com recurso público. Segundo Montaño (2010, p. 210-211), tais atividades decorrem de maneira essencial, como uma atividade central e não auxiliar configurada como a missão destas que recebem proventos de pessoas em geral, aquelas simpatizantes à organização, de empresas doadoras ou fundações de filantropia empresarial, de atividades comerciais e vendas, de instituições estrangeiras e recursos governamentais e proventos do Estado. Desta forma, mantém-se. Nos dias atuais, conforme anunciamos previamente no capítulo anterior, podemos verificar empresas que financiam estes tipos de organizações como parte integrada de suas atividades profissionais, num consenso de responsabilidade social de uma “empresa cidadã”. Numa visão apoiada ao que defende Montaño podemos considerar que esta relação significa “uma nova modalidade de o capital obter isenção de impostos e subsídios estatais (diminuindo custos e/ou aumentando as rendas) para a melhora da imagem da/do empresa/produto (aumentando as vendas ou os preços das mercadorias)”. E ainda acrescenta que, “a filantropia empresarial entra nos custos da representação do capital, limpando a imagem da empresa, melhorando o marketing comercial, isentando o capital de impostos estatais, conseguindo subsídios, entre outros benefícios” (MONTAÑO, 2010, p. 213). Desta forma, no contexto em que se reafirma a sociedade civil como protagonista na sociedade pelas políticas sociais, além das entidades filantrópicas e ONG, o empresariado busca sua posição neste novo cenário, reforçando seus interesses econômicos, escondidos pelas iniciativas sociais. Os ganhos conquistados com esta nova medida adotada pelas empresas do Brasil e do mundo, constrói uma noção de suposta “responsabilidade social” em conjunto com outras instituições que compõem a “sociedade civil”, como traremos um exemplo no próximo capítulo. Para a economia, muito se ganha. O lado perverso do capitalismo econômico segue na tentativa de se escamotear entre as medidas sociais trazendo para os trabalhadores e para esta classe uma suposta preocupação em atuar com políticas – focalizadas – atendendo suas necessidades sociais emergentes. Conforme debatemos no capítulo anterior, muitas são as 50 fundações e institutos que representam este tipo de atuação empresarial. Desta forma, num contexto neoliberal de um Estado marcado por parcos gastos sociais, as empresas buscam o aceitamento através de suas iniciativas que ideologicamente fazem parte deste mesmo contexto. Conforme apresentamos acima, procura-se a transferência da responsabilidade de um Estado ineficiente e falido para outro setor mais eficiente, a sociedade civil (ou como alguns autores chamam de “terceiro setor”). Este processo unicamente ideológico é parte estratégica da reestruturação do capital que se diz “transferir” tal compromisso com a execução de políticas sociais o que na verdade é uma “parceria” entre Estado e sociedade civil. No atual contexto, a função social assumida pelas entidades da sociedade civil para a implementação de políticas sociais – um conceito que acreditam ser um “terceiro setor” desmistificado por Montaño, ver capítulo anterior – são estratégias do capitalismo neoliberal, o que antes fora assumido por um Estado mediador. As considerações levantadas acima a respeito do que atualmente temos de atendimento das políticas sociais mostram, em síntese, como é o esquema de acessibilidade das políticas sociais e o trato à questão social. Realizamos uma contextualização histórica acerca da influência neoliberal mundial que inspirou a culminância deste projeto econômico em terras brasileiras. E a partir daí articulamos com as conquistas ocorridas no campo das políticas sociais até sofrerem alterações no que diz respeito ao acesso aos direitos da classe trabalhadora, sob a ascensão do neoliberalismo e a consequente reestruturação do Estado, ocasionando na sociedade civil como “responsáveis pela execução” de políticas. O que para alguns autores, configura-se uma conjuntura ideológica do chamado “terceiro setor”. 51 3 – A CONFORMAÇÃO DO PROJETO NEOLIBERAL, SEUS REBATIMENTOS PARA O ASSISTENTE SOCIAL E A SOCIEDADE CIVIL Partindo das análises precedentes, quando tentamos expor o que se configura por trás do ideológico conceito de “terceiro setor” que na verdade é a participação da sociedade civil frente ao ideário neoliberal na promoção de políticas sociais em um âmbito que diretamente não está vinculado à gestão pública, a configuração das políticas sociais neste contexto e o que ideologicamente tudo isto representa, estamos agora partindo para discorrer sobre os rebatimentos e as tendências que a conjuntura deste projeto tem causado para a profissão de Serviço Social. Para isto, traremos em debate o que se tem como cultura desta profissão como as principais influências para sua reafirmação e renovação, as políticas sociais determinadas pelo “terceiro setor” que diretamente refletem para o assistente social e sua relação com o Serviço Social e, para concluir nosso trabalho, apresentaremos a entrevista realizada com um profissional da categoria inserido no campo do “terceiro setor” a fim de discorrer criticamente sobre sua inserção e adequação nesta nova tendência. 3.1 – Serviço Social brasileiro: historicamente condicionado às fases do capitalismo O processo de renovação do Serviço Social – da perspectiva tradicional à modernização – muito significou para a construção de sua identidade teórico-metodológica e prática ao longo dos anos no Brasil. Considerando o cenário brasileiro no pós-64, onde tivemos no país o período o qual Netto (2009) classifica como o de autocracia burguesa, o Serviço Social esteve atrelado ao seu período característico de renovação. Anterior a esta época os assistentes sociais viam-se apoiados em práticas profissionais propriamente individuais e grupais mas que, com a chegada do período considerado como “Milagre Brasileiro”, de grandes avanços econômicos, a “questão social” demonstrava-se também em amplas proporções e estes perceberam que não era mais possível tratar a situação vigente desta forma. Neste sentido, tais profissionais empenharam-se em desenvolver, em acordo com as exigências da realidade nacional, ações para problemáticas “macrossociais”, com as primeiras elaborações teóricas sobre o Desenvolvimento de Comunidade. Outra consequência, então, seria a aproximação destes profissionais a disciplinas que abordam questões macrossociais e, ainda, propiciou a inserção 54 aquela política que nega os direitos sociais, que garante o mínimo de sobrevivência aos indigentes, que exige contrapartida para o gozo dos benefícios, que vincula diretamente o nível de vida ao mercado, transformando-o em mercadoria (VIEIRA, apud GUERRA, 2005, p. 20). Observamos que, no atual contexto, ocorreram mudanças significativas no campo do trabalho e do trabalhador (inserção de tecnologias e máquinas que substituem mão de obra, acirramento da “questão social”, diminuição do acesso às políticas sociais e menos acesso aos direitos) e que esta “classe que vive do trabalho”, como sendo os principais usuários das políticas sociais, participam da desresponsabilização do Estado para promoção dos direitos através destas políticas de maneira consequente. Desta forma, se as políticas sociais apresentam-se como mediações entre Estado e as classes sociais, podemos afirmar, segundo Montaño que “consequentemente, as políticas sociais, no atual contexto neoliberal, ‘global’ e produtivo, são substantivamente alteradas em suas orientações e em sua funcionalidade” (2010, p. 244). Nesta relação é importante notar que “as políticas sociais constituem a base de sustentação funcional-ocupacional do Serviço Social, caracterizando sua funcionalidade, sua legitimidade, criando o espaço de inserção ocupacional” (MONTAÑO, 2010, p. 244). Ou seja, as políticas sociais como um instrumento do Estado cria e possibilita o espaço de trabalho para o assistente social. E se estas sofreram mudanças significativas, é possível afirmar que o Serviço Social também tende a sofrer importante repercussão em toda sua estrutura, como em seu mercado de trabalho, modo de atuação e empregabilidade. Em comparação, diferentemente podemos considerar a relação política social/assistente social como sendo a política a “base de sustentação funcional-ocupacional” desta categoria ou como “instrumentos” da sua ação profissional. Desta forma, a compreensão sobre os rebatimentos e a repercussão destes significados na profissão podem ser divergentes e contraditórios quando apoiados em uma ou em outra interpretação desta relação Serviço Social/política social. Com isso, podemos considerar que no primeiro caso a política social é a “base de sustentação” do Serviço Social, como instrumento do Estado intervencionista para acesso ao direito de todos e, neste contexto, cria-se o campo de intervenção profissional onde o assistente social é o agente de implementação da política social, e assim, é criado o espaço para sua expansão e legitimidade. Já numa segunda possibilidade de interpretação, tem-se a 55 política social como um mero “instrumento” de trabalho, como um instrumento interventivo (MONTAÑO, 2010, p. 244-346). Neste sentido, entender a política social como base de sustentação do Serviço Social e instrumento de execução do assistente social é compreender que a retirada do Estado pela responsabilidade em atuar nas sequelas da “questão social” e a precarização das políticas sociais, afetam radicalmente a categoria e especificamente “no tipo e quantidade da demanda dirigida ao profissional, nas condições de trabalho do assistente social, na modalidade interventiva, na eventual tendência ao aumento do desemprego e subemprego profissional, na descaracterização da profissão” (MONTAÑO, 2010, p. 246). Na perspectiva de considerar as políticas sociais como instrumentos de intervenção profissional do assistente social somente, toda estrutura de mudanças que podem ocorrer quanto a condições de trabalho e objetivos de intervenção, por exemplo, são desconsiderados e a questão da relação da profissão com as políticas volta-se meramente para mudanças na função profissional e no espaço de trabalho que não será mais o Estado mas as entidades organizadas pela sociedade civil. O que isto nos conota é que ao considerar a política como mero instrumento do Serviço Social, as mudanças ocorridas a partir da reestruturação neoliberal podem resultar numa “crise de materialidade” do Serviço Social (SERRA, 1993 apud Montaño, 2010, p. 246), a qual há a descaracterização da função de prestação de serviços (base material) voltando-se apenas para uma atividade política-educativa. Neste caso, Montaño chama atenção para a impossibilidade de separação entre reprodução profissional sem a “base material” (prestação de serviços) apenas atuando numa função educativa. Além disso, cabe a reflexão de como serão e a quem serão demandadas as necessidades materiais fundamentalmente estatais, o que diz respeito a uma atribuição dada ao assistente social. (idem, pg. 246). Ainda nesta perspectiva de pensar na relação política social/Serviço Social, analisá-la sob o enfoque da política como mero instrumento de intervenção, é notável perceber que com a saída do Estado de suas atribuições públicas para o enfrentamento da “questão social”, o assistente social poderá deslocar-se para a sociedade civil naturalmente acompanhando as mudanças e os novos espaços de intervenção, com novos instrumentos e funções. Isto significaria, ao ser a política social um instrumento, que o assistente social consideraria apenas a necessidade mudar-se do âmbito estatal para o âmbito da sociedade civil para atuar com as políticas acompanhando as modificações atuais projetadas pela cultura neoliberal para o Serviço Social. 56 Diante da perspectiva de que a política social é a base de sustentação profissional, quem promove a expansão do Serviço Social, tendo a ideologia neoliberal provocando este recorte do Estado para com as políticas sociais públicas, há a necessidade de esta categoria organizar-se contra esta reconfiguração que abala e modifica sua estrutura. Já numa segunda perspectiva a qual a política social é tida como mero instrumento, os profissionais são convocados a aceitar tais reconfigurações e adaptarem-se a outros campos de trabalho e condições, como também novas funções assumirem. Conforme analisa Guerra (2005, p. 22) o que se pode esperar é que com a institucionalização das organizações sociais como responsáveis pela execução das políticas sociais, estabelece-se uma multiplicidade de vínculos de trabalho, flexibilizando os contratos, introduzindo os contratos por tempo parcial e a contratação através de terceiros, reduzindo a carga horária. Este não é o caso do Serviço Social evoluir ou retroceder e até mesmo se acomodar em outro espaço ocupacional, mas eventualmente ser substituído pela filantropia e em geral, ser substituído por serviços de autoajuda e ajuda mútua, trabalhos voluntários e outros resultando no que Montaño (2010) caracteriza de “desprofissionalização”. A qualidade dos serviços sociais e assistenciais prestados exige profissionais qualificados para o planejamento destes e execução e os assistentes sociais encontram-se como profissionais nesta linha. Portanto, aos gerar custos, estes profissionais podem sofrer substituição e até descarte da esfera estatal já que o propósito ideológico é diminuir despesas com a área social. Nas palavras do autor, tendencialmente, no contexto da focalização, descentralização e precarização das políticas sociais, à clara precarização das condições de trabalho do assistente social, sua terceirização e/ou substituição por agente de menor preparo e salários mais baixos (ou voluntários), precarizando/reduzindo a demanda por assistentes sociais, o que, por seu turno, se reflete negativamente na qualidade daqueles serviços (MONTAÑO, p. 249) . Estes detalhes que acabam por influenciar a profissão do Serviço Social - em âmbitos como vínculo empregatício, prática profissional, campo de atuação e objetivos – que nos serviram para debate neste item, caracterizam um processo social mais amplo além destas mudanças específicas para a profissão, como a nova gestão das políticas sociais em resposta às sequelas da “questão social”. A mudança ocorrida na base de sustentação ocupacional desta categoria, agentes privilegiados da operacionalização das políticas sociais, implica na luta de classes, efetivação do projeto societário e o atendimento social diretamente voltado para a superação das desigualdades enfrentadas pela classe trabalhadora. Conforme analisa Iamamoto (2010, p. 188), 59 exercício pleno da cidadania e da atividade profissional”10. Vale ressaltar que esta Fundação recebe “doações” de grandes empresas brasileiras e do exterior. Esta Fundação foi criada em 1995 e dissemina e administra no Brasil este modelo de franquia social: o já mencionado Projeto Pescar. Pude analisar durante minha inserção no projeto que esta mantém como principal objetivo sensibilizar cada vez mais empresas a “adotarem” este modelo, desenvolvendo-se cada vez mais desta forma. A Fundação, portanto, compartilha o Projeto com organizações franqueadas, que são as empresas privadas e públicas, que mantém suas próprias unidades, como é o caso da CBO. Para tanto, podemos sintetizar que esta empresa, como uma empresa privada ligada à área petrolífera brasileira, além de suas atividades econômicas mantém em suas dependências o Projeto Pescar desde o ano de 2007.11 Este projeto na empresa funciona da seguinte maneira: dezesseis jovens residentes da comunidade local são selecionados – participam de um processo seletivo o qual os mais “pobres” são selecionados de maneira comprovada e analisada – para ingressarem em um curso intencionalmente profissionalizante. Durante oito meses a um ano, diariamente, os jovens frequentam o espaço do projeto inserido na empresa a fim de receberem instruções específicas do curso de capacitação ministradas por voluntários e coordenado pela “Educadora social”, a assistente social contratada para assumir este cargo. Esta população usuária que é selecionada para participar do Projeto Pescar é o público jovem em “situação de risco social” avaliado pela assistente social durante o processo seletivo. Este “risco social” equivale a situações de moradia precária, escolaridade defasada, situações econômicas e de vida, entre outras. Esta população usuária fica restrita a 16 jovens com faixa etária entre 18 e 20 anos, ambos os sexos, que passam a fazer parte do Projeto. São jovens com baixa renda – comprovadamente através de documentos que confirmem a renda familiar, entrevistas com familiares –, moradores de comunidades com alto grau de violência do município, índice elevado de tráfico de drogas, miséria, e que sinalizam condições precárias de moradia e na família, bairros pobres e precarizados de políticas públicas. Os jovens participam de quatro longas etapas até serem selecionados para o Projeto. Em pesquisa durante minha inserção no Projeto, ao realizar um estudo institucional e definir perfil dos usuários, pude analisar sobre este público que o nível educacional da maioria dos jovens é inferior em relação à série em que realmente deveriam estar (muitos ainda não se 10 Informações retiradas do site da Fundação Projeto Pescar www.projetopescar.org.br. Acesso em 27/02/2013. 11 Vale notar que cada empresa que “compra” esta franquia Projeto Pescar “doa” um valor mensal de dois salários mínimos reajustados anualmente à Fundação Projeto Pescar, mantenedora deste projeto. 60 encontram no ensino médio). Todos os jovens estavam matriculados e frequentando de modo efetivo a escola regular, até por ser uma condicionalidade do Projeto. Vale ressaltar que estas demandas apresentadas pelos usuários convêm com o de critério exigido para a seleção dos mesmos. Até o término do curso, estes jovens que conseguiram participação no projeto recebem bolsa-auxílio em espécie, auxílio transporte, ticket alimentação, uniformes, alimentação (cesta básica), assistência médica e odontológica, material escolar, através da própria CBO e através de parcerias (empresas estas que prestam serviços à CBO e que se tornam parceiras do Projeto Pescar a partir de doações realizadas aos jovens e para a Unidade do Projeto). Podemos verificar com a síntese de informações apresentadas acima a respeito deste “projeto social” que toda lógica debatida ocorre de fato e podemos afirmar que, desta forma como segue, a tendência é cada vez mais o crescimento de empresas ditas responsáveis. A Fundação é mantida por captação de parcerias (como debatemos no capítulo anterior) e na empresa, o projeto também recebe subvenções de outras empresas que lhe prestam serviços. Este projeto quando sinalizado à Fundação sobre o interesse de alguma determinada empresa em tê-lo, é entregue pronto! Como a didática, os materiais necessários completos e finalizados para implementação, sendo necessário apenas que a empresa contrate um coordenador – no caso da CBO, a assistente social que foi entrevistada foi contratada para coordenar este projeto e mantém-se até hoje inserida neste campo de trabalho. Se analisarmos ações sociais como estas tidas como responsabilidades de empresas capitalistas – como bem observado através do Projeto Pescar inserido na empresa privada CBO – estas podem ser entendidas como funcionais à medida que desenvolvem trabalhos “bem vistos” pela sociedade (mesmo que selecionados) e, na maioria das vezes, com resultados diretamente voltados para as demandas que são apresentadas para grupos que localizam-se entorno da empresa – o mais próximo poderá provocar maior visibilidade das atividades da empresa. Enganosamente, uma cortina de boas práticas encobre a noção de cidadania, consequentemente, cada vez mais sendo reduzida. Neste sentido, os jovens quando finalizam seu período de curso, automaticamente são desligados dos “benefícios” que a empresa lhes fornecia. Aqui se findam os vínculos, o compromisso da empresa que não mais está responsável pela sua condição de vida e acesso às políticas sociais, já que a realidade social destes jovens é de pobreza. O fato é como ocorrerá após o curso se estes não forem inseridos no mercado de trabalho e agora sem os “benefícios” que a empresa lhes garantiam mensalmente, como serão garantidos os mínimos para se manterem. Por isso podemos analisar que as empresas e toda esta estrutura de sociedade civil 61 mal organizada responsável atualmente pela implementação de políticas sociais não são suficientes e não atingem o cerne das sequelas da “questão social”. Busca pela “cidadania” no âmbito neoliberal: efetivação superficial dos direitos Observa-se uma “mercantilização” do atendimento às necessidades sociais emergentes por parte de “empresas cidadãs” decorrente da privatização das políticas sociais materializadas somente durante determinados e selecionados períodos, como a benemerência dada aos jovens do projeto durante o curso. O dito “exercício pleno da cidadania” - sustentado pela Fundação - só seria possível no âmbito estatal ao tornar universal o acesso aos programas e projetos sociais abertos a todos os cidadãos (IAMAMOTO, 2009, p. 366). A interpretação equivocada do que se pode considerar como o exercício pleno da cidadania resulta na aceitação das pessoas pelo atendimento seletivo, focalizado e superficial da forma como são desenvolvidas as políticas sociais como materialização dos direitos, já que o Estado reestruturado não vem demonstrando ser suficiente no atendimento às políticas. Ao contrário, isto requer, acima de tudo, a consciência crítica sobre a realidade a qual estamos vivenciando atualmente e de como estão sendo operados e efetivados os direitos, como a atual tentativa frustrada, pelo viés privado. Neste sentido, notoriamente podemos perceber a identificação positiva da entrevistada em relação ao projeto social em pauta. Quando solicitado a mesma que relatasse sobre este projeto, o que o caracteriza e os resultados obtidos, sua colocação nos dá a noção de que, para ela, este é um projeto completo e que tende a superar as expectativas dos usuários e modificar a realidade destes. “Desde o primeiro contato que eu tive no site, conhecendo o Projeto Pescar, eu me apaixonei pelo projeto, um projeto sensacional. Existem muitos projetos bons, já passei por vários projetos, mas este projeto é um projeto muito completo [...] não só pela seriedade, mas pela estrutura dele. Os jovens não vem ao Projeto para ganhar benefícios somente, ele não vem ao projeto só para ter uma profissão, eles vêm para o projeto para mudar a história deles, e isso é trabalhado a todo momento. Uma das características acho que mais importante do projeto é a oportunidade, que inclusive está no slogan: oportunidades que transformam vidas. E o que eu acho bacana desse projeto é isso, poder realmente dar essa oportunidade dos jovens mudarem a direção de suas vidas, se desejarem. O interessante desse projeto é que ele abrange o todo no jovem. Trabalha 60% de cidadania – aí trabalha família, trabalha adolescência, trabalha empreendedorismo, meio ambiente. Então a grade curricular do projeto consegue abranger várias vertentes dos jovens, eu acho que isso é bacana [...] isso dá ele uma visão de mundo que ele não tem quando entra aqui por ser um jovem de 64 quero trabalhar’, queriam estudar, fazer faculdade e depois a coisa foi tomando outro rumo, acho que a pessoa foi conhecendo esse mercado de trabalho e viram que é muito mais difícil que pensavam e aí meio que houve um desânimo, assim, algumas pessoas não tem muito ânimo pra ir trabalhar [...]. Então eu acho que a gente tem que mexer mais nisso, acho que é uma posição minha para este ano, investir muito. Por mais que a gente investe, preciso dar um novo olhar pra esse jovem que ainda não consegue olhar o mercado de trabalho como sendo uma coisa importante. Então é fazer um trabalho diferenciado pra suscitar nele, incentivá-lo, motivá-lo, influenciá-lo a ver a importância disso. Porque ele vê a importância, mas quando termina o projeto, não quer procurar emprego ou ele fica muito naquela de ‘vou fazer primeiro um curso’ ou acha que não precisa trabalhar esse ano. Sai com esse olhar diferenciado que não é o olhar do Projeto Pescar que a gente o tempo todo trabalha visando o mercado de trabalho. Esse ano eu delineei isso de como trabalhar maciçamente nesta questão para motivá-los ainda mais a saírem com esse foco no mercado de trabalho. E saem daqui com 18,19 ou 20 anos e só podem ir para o mercado de trabalho. E o objetivo aqui é que ele se capacite para isso.” Não queremos neste ponto levantar a questão que envolve o tema da inserção do jovem no mercado de trabalho na atual conjuntura e seus múltiplos impedimentos, mas a forma de como demandas sociais e controvérsias que deveriam ser colocadas como referências para a atuação do Serviço Social comprometido com a classe menos favorecida, não são priorizados e sim substituídos pela maciça busca de inserção destes jovens que participam do projeto em algum campo de trabalho. A assistente social entrevistada demonstra-se, mediante suas considerações, que mantém sua atuação profissional e política subordinada à empresa e seus objetivos em relação ao Projeto e ainda, convencida de que a sociedade civil é a saída para o enfrentamento de necessidades emergenciais que apresentam determinados grupos. Não há como deixar de analisar em cima do que vem sendo apresentada com a entrevista da assistente social inserida no campo do “terceiro setor” que esta profissional abraça as causas defendidas por esta nova modalidade de prestação de serviços sociais. Por um lado, como vem sendo debatido, vemos que a finalidade deste conceito é o de creditar nas pessoas a aceitação desta nova forma de implementar políticas, principalmente àquelas que são alvo da reestruturação do capital, mas que, os assistentes sociais, que são profissionais críticos e que possuem privilégio no que tange à articulação com políticas sociais na atuação profissional comprometida, não poderia resumir-se a projetos focalizados e seletivos. Este projeto, por se compor em conteúdos e metodologias previamente elaborados pelos que organizam e preparam o Projeto Pescar na Fundação, torna-se muito útil para firmar-se em entidades como as empresas que muito pouco interessam-se pelo que este pode acarretar ao público atendido, almejam a visibilidade dos resultados quantitativos alcançados. O fato é que as empresas franqueadas podem eliminar a fase de criação de um projeto novo, o 65 que, além de demandar tempo, envolve, na maioria das vezes, altos investimentos. As bases prontas exigem apenas alguém que o coloque em prática. Se os custos tornam-se baixos, se a permanência deste projeto acarreta na dedução do imposto de renda, se os materiais necessários são doados pelas empresas que prestam serviços a esta empresa que mantém o projeto, numa espécie de “camaradagem profissional”, não há como negar que os resultados e o marketing empresarial que já apontamos neste trabalho – ver primeiro capítulo – muito se tornam bem vistos pelos representantes da empresa. Quando solicitei que a entrevistada comentasse um pouco sobre a relação sociedade civil (ONG, empresas) versus consolidação de direitos, apesar de não atender o que de fato seria o tema questionado, podemos destacar que, segundo seus comentários, considera necessário reafirmar que a empresa em um todo se dedica e preocupa-se além de acreditar que este projeto como qualquer outro que cumpre apenas papéis sociais apesar das atividades profissionais. “Através do Projeto Pescar, em especial, eu percebo assim que a empresa desde lá o Grupo Fischer, eles tem um olhar muito especial no projeto social. Nessa situação, nosso projeto é muito agraciado, ele é muito incentivado, ele é olhado com excelentes olhos. Não é um projeto somente para cumprir a cota da empresa, de jovem aprendiz, mas é um olhar diferenciado que eles têm. Nós somos felizes por ter um projeto aqui na empresa onde, desde lá de cima na hierarquia, tem o projeto como uma coisa importantíssima dentro da empresa. Então não é meramente um projeto, é um projeto que as pessoas torcem, as pessoas comentam, eles divulgam, os presidentes, os diretores, as pessoas movimentam em cima do projeto. Apesar de a empresa ser offshore e a primeira impressão que se tem é que só o foco é offshore e o projeto é mais um projeto. Não! A empresa CBO e o Grupo Fischer e todas as empresas do Grupo Fischer focam que o Projeto Pescar também é muito importante. O que as vezes eu vejo em outras empresas que até tem o Projeto Pescar é que é mais um projeto, existe, dá estrutura mas é mais um projeto[...] e aqui a gente vê assim muito claramente o empenho desde o presidente até o pessoal de serviço terceirizado. Então eu acredito que isso faz uma diferença desse paralelo que muitas vezes a gente não vê isso fora daqui. Por isso eu acho muito interessante o Projeto Pescar que ele consegue envolver as pessoas de uma tal maneira, inclusive os que estão no auto escalão visualizando o projeto como uma coisa importante para a sociedade, para sua própria empresa. Então acho que o diferencial é esse.” E na tentativa de insistir sobre a questão do acesso aos direitos pelos jovens através deste projeto social empresarial, reforcei em solicitar que a entrevistada comentasse sobre sua opinião a respeito. Mais uma vez tenho este objetivo desviado pois a mesma retrata somente que os jovens participam de “aulas” no projeto onde conhecem sobre o ECA, Leis trabalhistas e outras, de forma que demonstra e acredita ter acesso aos direitos por estes apenas conhecendo-os. “E o que eu acho bacana também é isso. A gente aqui trabalha também dentro da grade, a gente fala dos direitos, a gente fala da legislação, do Jovem Aprendiz, de legislação de uma forma geral. E eles muitas vezes nem sonham – inclusive das Leis 66 trabalhistas e tudo mais -, as vezes eles não têm nem ideia do que ele tem direito, na maioria das vezes, e a partir daí eles começam a prestar atenção. Prestar atenção quando vai ao supermercado e recebe a nota fiscal, coisas simples indo para as mais complexas. Então ele começa a visualizar que é ele um cidadão, que até então ele não tem essa visão, acha que é mais uma pessoa. E quando ele entra no Projeto, com nosso foco de 60% a gente trabalha cidadania, eles começam a perceber que é um cidadão e que têm direitos e que tem deveres também, que a gente trabalha os dois lados, né. E ele começa a visualizar que ele é um ser transformador lá da comunidade dele, do bairro dele mais carente, pobre, que ele pode mudar aquela história, que ele pode participar de uma associação de moradores, de uma Agenda 21 do seu município. E aí ele começa a entender a importância dele enquanto jovem e enquanto cidadão e aí ele começa a lutar pelas coisas que ele acredita que, até então, ele não tem muito essa noção, que isso não é passado muito, e então ele não consegue enxergar isso. E aqui no projeto a gente trabalha também esse foco e daí ele começa a saber que tem direitos sim mas que tem dever. E então ele começa a saber o limite disso e começa a procurar para a própria família [...] Então a parti daí esses direitos eles começam a adquirir a força, a voz [...] e ele começa a ter um panorama diferente que ele pode sim intervir na realidade dele , pode sim fazer a diferença no meio em que ele vive, na escola [...]. Aí a questão dos direitos começa a ficar mais visível pra eles, que parece que os direitos estão lá no papel, na Constituição e aí quando a gente começa a trabalhar isso com eles começam a ver que realmente tem o direito eles podem exercer.” A partir dessas colocações podemos verificar uma atuação profissional superficial diante do que se pode estabelecer como demanda para o assistente social em qualquer campo. Neste caso, esclarece-se somente, à população usuária, seus direitos sociais mas estando num campo que contradiz o acesso aos direitos sociais. Afinal, quais são as funções desempenhas pela entrevistada neste campo? Como e o que é desenvolvido o trabalho desta assistente social neste Projeto? “O meu trabalho que é diretamente de coordenar este projeto social, ele é um trabalho que também é pedagógico, é social [...]. Além do trabalho em sala de aula, que muitas vezes eu tenho que dar aula, a gente trabalha com dinâmicas, com vídeos, com palestras, mas não sou eu sozinha, a gente tem vários voluntários que cobrem essa grade. Mas quem tá diretamente ligada a eles sou eu que estou no dia a dia, na entrevista individual, numa dinâmica em grupo, em algum atendimento em abordagem muito específica. Então o tempo todo estou trabalhando com esses jovens, diretamente, o tempo todo, todos os dias, e em várias vertentes [...].” A partir de novas funções e competências – ou até mesmo àquelas prerrogativas já existentes para o profissional que sofrem mudanças de significado –, podemos verificar que os assistentes sociais, subordinado ao exercício do capital, podem desencadear papéis mecanicistas que afetam diretamente na qualidade do trabalho. A fim de concluir o que temos de influência e resultado para o trabalho do assistente social inserido num projeto funcional à ideologia do “terceiro setor”, a saber, a opinião da entrevistada sobre o que se tem como determinantes negativos desta nova forma de implementação dos direitos. Pergunto se esta verifica falhas e pontos negativos neste projeto. 69 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do resultado obtido através da entrevista realizada com a profissional do Serviço Social podemos observar que a necessidade de provocar a transformação desta realidade social e seu modo de enfrentá-lo não se destina somente para as classes sociais mas também para a categoria. Este projeto neoliberal induz à desconstrução crítica à sociedade, o que pode, como verificamos, incidir também em profissionais – como os assistente sociais – que carregam, a partir de movimentos e lutas, traços críticos em busca da transformação societária contra o atual modelo econômico excludente, impedindo-os de progredir. De fato não podemos generalizar a respeito da categoria a partir do relato desta profissional a respeito de funções e demandas em campos que são funcionais à estrutura econômica vigente, porém, a princípio, o que tivemos de resultado nos conota a necessidade de fundamentação desta ao pensamento crítico da realidade. Quando em minha inserção no projeto social mantido e apoiado por uma empresa privada sob supervisão desta assistente social, o não pensamento crítico que ainda carregava sobre esta realidade que encobre os fenômenos reais, fez com que a primeira impressão se aproximasse ao encantamento, quase da forma como exposto pelas colocações da assistente social. A maneira a qual prevalecia em seu olhar sobre o projeto, os objetivos e os resultados que apresentavam, mostravam efetividade e quase perfeição e, para aqueles que não conseguiam participação, por exemplo, tornava-se mesmo questão de oportunidade. Nos debates em sala de aula por vezes questionava como é possível não ser efetivo um projeto o qual atende aos usuários desde materiais necessários até os benefícios garantidos, já que no âmbito público, onde companheiras da sala cumpriam seus períodos de estágio, revelavam que o que tinham de parâmetro era a precariedade de serviços, materiais que impediam o caráter do atendimento profissional e atenção às demandas. Em necessidade de articulação das análises feitas nos relatórios de estágio com referenciais teóricos que travavam criticamente sobre o tema, a partir de então, pude perceber o quão perverso é este modelo econômico que tende a afastar do âmbito estatal a implementação de políticas e acesso aos direitos pelos cidadãos para que, cada vez mais, possa propagar sua ideologia focalizada, seletiva e que não asseguram direitos, através do fenômeno do “terceiro setor”. Avalio, desta forma, a grande importância que a minha inserção neste campo de atuação para profissionais do Serviço Social revestido de controvérsias pode 70 contribuir para minha formação profissional que culminou na conclusão do curso a partir deste tema. Neste sentido, acreditamos que a educação política, que particularmente é uma das mais significativas atribuições do assistente social, seria para a sociedade como um todo em busca pela transformação social, a melhor saída. 71 BIBLIOGRAFIA ANDERSON, Perry. “Balanço do Neoliberalismo”. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. BEHRING, Elaine Rossetti. Política Social no capitalismo tardio. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2007. BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contra reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política Social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, Col. Biblioteca Básica de Serviço Social, v. II, 2006. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: 1988: texto constitucional de 5 de outubro de 1988 com as alterações adotadas pelas Emendas constitucionais de n.1, de 1992, a 32, de 2001, e pelas Emendas constitucionais de Revisão de n. 1 a 6, de 1994. Brasília: [s. n.] CESAR, Monica de Jesus. Empresa-cidadã: uma estratégia de hegemonia. São Paulo: Cortez, 2008. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. COUTO, Berenice Rojas. O direito social e a assistência social na sociedade brasileira: uma equação possível?; 2 ed.; São Paulo: Cortez, 2006 FERNANDES, Rubem Cesar. 3º setor: desenvolvimento social sustentado. São Paulo: Paz e Terra, 2005. Fundação Projeto Pescar. Página Virtual. Disponível no site: www.projetopescar.org.br Acesso em 27/02/2013.
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