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Enativismo e Cognição: A Relação entre Corpo, Mundo e Ética, Notas de estudo de Psicologia

Este artigo discute a visão representacional computacional da cognição contraposta ao enativismo da ciência cognitiva, que defende que o conhecimento é fruto da afetação do corpo pelo ambiente. O texto também aborda a explicação neuronal da ética, a redução da moralidade a emoções e a relação entre cérebro, ambiente e comportamento moral.

Tipologia: Notas de estudo

2021

Compartilhado em 17/09/2021

bingkingdrake
bingkingdrake 🇧🇷

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Baixe Enativismo e Cognição: A Relação entre Corpo, Mundo e Ética e outras Notas de estudo em PDF para Psicologia, somente na Docsity! Revista Bioética Print version ISSN 1983-8042 On-line version ISSN 1983-8034 Rev. Bioét. vol.28 no.2 Brasília Abr./Jun. 2020 Doi: 10.1590/1983-80422020282387 ATUALIZAÇÃO Ciências cognitivas e neuroética Carolina Alejandra Reyes Molina", José Roque Junges? 1. Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo/RS, Brasil. 2. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Unisinos, São Leopoldo/RS, Brasil. Resumo O artigo parte da discussão entre a visão representacional computacional da cognição contraposta ao enfoque enativo da ciência cognitiva, que defende que o conhecimento é fruto da afetação do corpo pelo ambiente. Discute as consequências dessa visão enativa para a compreensão da neuroética, entendida não como conjunto de parâmetros éticos para as experiências científicas nas neurociências, mas como compreensão neuronal científica do agir moral. A explicação neuronal da ética parte de neuroimagens como expressões de emoção, mas reduzir a moralidade às emoções é discutível, pois juízos emocionais, baseados na proximidade afetiva, destoam de normas éticas de base universal. Outro ponto crítico dessa visão é o artificialismo de suas experi- mentações, devido ao esquecimento do mundo cotidiano de afetações do corpo, enfoque trazido pelo enati- vismo da ciência cognitiva. Palavras-chave: Ciência cognitiva. Neurociências. Meio social. Ética. Resumen Ciencias cognitivas y la neuroética Elarticulo parte de la discusión acerca de la visión representacional de la cognición contrapuesta a un enfoque enactivo de la ciencia cognitiva, que defiende que el conocimiento se origina de la afectación del cuerpo por el mundo ambiente. En una segunda parte discute las consecuencias de esta visión enactiva para la comprensión de la neuroética, entendida no como parámetros éticos para las experiencias científicas en las neurociencias, sino como comprensión neuronal científica del actuar moral. Interesa discutir esta segunda concepción. La explicación neuronal de la ética parte de neuroimágenes, como expresiones de emociones. Reducir la morali- dad a las emociones es discutible, porque existen disonancias entre juicios emocionales, basados en la proxi- midad afectiva, y normas éticas de base universal. Otro punto crítico de esta visión es el carácter artificial de sus experimentaciones, causado por el olvido del mundo cotidiano de las afectaciones, enfoque traído por el enactivismo de la ciencia cognitiva. Palabras clave: Ciencia cognitiva. Neurociencias. Medio social. Ética. Abstract Cognitive sciences and neuroethics This article starts with the discussion between the representational computational cognitive framework versus the enactive perspective of the cognitive science, which argues that knowledge is the result of the body's interaction with its environment. It discusses the consequences of this enactive perspective for the understanding of neuroethics, read not as a set of ethical parameters for scientific experiments in neurosciences, but as a neural scientific understanding of the moral action. The neural explanation of ethics comprehends neuroimaging as expressions of emotion, but reduce morality to emotions is debatable, since emotional judgments, based on affective proximity, diverge from ethical and universal norms. Another critical point of this framework is the artificiality of its tests, caused by neglecting the environmental effects on daily life, approach brought by the enactive approach. Keywords: Cognitive science. Neurosciences. Social environment. Ethics. Declaram não haver conflito de interesse. Rev. bioét. (Impr.). 2020; 28 (2): 257-64 257 (e) fe] E [e] E Atual 258 Ciências cognitivas e neuroética No final da década de 1950 e início da década de 1960, pequenos grupos de pesquisadores, princi- palmente das áreas de linguística, neurociência, psi- cologia, antropologia, filosofia da mente e, de forma destacada, inteligência artificial, se propuseram a res- ponder em que consiste a mente ou a cognição. Para isso, tiveram que ultrapassar as fronteiras dos seus pró- prios saberes específicos e assumir perspectiva multi- disciplinar, assentando as bases conceituais e metodo- lógicas para a compreensão interdisciplinar da mente e dando origem à assim chamada “ciência cognitiva” 12, A década de 1990 trouxe a contribuição de Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch coma obra The embodied mind: cognitive science and human experience. Nesse livro, os autores apresentam o modelo computacional da mente como origem do cognitivismo, passando pelo modelo conexionista e buscando apresentar o que surgia como nova aborda- gem para as ciências cognitivas: o “enfoque enativo”. Baseado no conceito de enação, entendido como algo que emerge ou brota, o modelo questiona o entendimento tradicional de cognição como repre- sentação do mundo externo totalmente distinto do sistema cognitivo, propondo substituí-lo pela com- preensão da ação corporificada. Os autores se preo- cupavam em estabelecer diálogo entre as ciências, especialmente a sofisticada ciência cognitiva, e a experiência humana, de modo a não resultar em uma cultura científica dividida e irreconciliável com a autocompreensão cotidiana”. O enfoque corporificado inspira-se na pro- posta fenomenológica de Merleau-Ponty, que con- sidera os corpos simultaneamente estruturas físicas e estruturas experienciais vividas. Diversas áreas apropriaram-se desse enfoque antes mesmo que se estabelecesse programa bem definido, como se demonstra pelo uso de variados termos relaciona- dos à noção de corpo, como corporização (embo- diment), mente incorporada, ação ou cognição cor- porizada etc. Contemplando a variedade semântica desses termos, a noção de “mente incorporada” é usualmente utilizada de forma mais abrangente. Dada ainda a influência da teoria da auto- poiese, desenvolvida por Maturana e Varela* (este último, fundador do enfoque), o enativismo foi por vezes compreendido como coextensão entre sistema vivente e sistema cognitivo, pela similitude entre vida e cognição. Observa-se nesses casos a necessidade de melhor revisar os conceitos de autopoiese e as implicações e modificações de sua recepção enativa. Outra discussão, já em plano epistemológico, é o grau de homogeneidade e integração entre o Rev. bioét. (Impr). 2020; 28 (2): 257-64 enfoque enativo e o marco teórico metodológico da ciência cognitiva — em outras palavras, debate- -se a compatibilidade entre cognitivismo clássico e enativismo. Nesse contexto, Clark” propôs distinguir posturas enativas simples, nas quais é possível con- jugar enfoque enativo e ciências cognitivas, posturas mais radicais, que possibilitam modificar o objeto de estudo, e o marco teórico das ciências cognitivas. A diversidade e o aumento do número de pesquisas de diversas áreas focadas na interação entre fatores corporais, ambientais e comporta- mentais demonstram o interesse nesse enfoque corporizado. Considera-se, portanto, pertinente aproximar os princípios do enfoque enativo, que aborda a relação conceitual entre vida, mente e mundo, como paradigma plausível para as ciências cognitivas, servindo-se de suas consequências para compreender a neuroética. Em vista disso, esboçam-se as principais características do cognitivismo como enfoque a ser superado pelo enativismo, cujas características são então apresentadas como contraponto ao modelo anterior. Posteriormente, explicita-se o significado da neuroética para a identidade da ética, analisando criticamente as tendências que reduzem o agir ético a funções cerebrais, por fim possibilitando aplicar o princípio enativo para a compreensão das decisões morais na neuroética. Cognitivismo O cognitivismo surge com o intuito de com- preender os princípios da cognição — os mecanis- mos que produzem suas funções, como memória, aprendizagem, linguagem etc. Com o surgimento dos computadores e o desenvolvimento da teoria da computação, a mente passou a ser entendida como computação de representações simbólicas de caráter linguístico, representações que adqui- rem realidade física na forma de um código simbó- lico no cérebro ou em uma máquina. A cognição humana seria, portanto, a representação mental, compreendida como manipulação de símbolos que representam o mundo externo. Os avanços tecnológicos possibilitaram com- preender os processos cognitivos humanos de forma análoga aos processos computorizados, for- talecendo e potencializando o enfoque cognitivo clássico. Consequentemente, o computador digital se tornou a metáfora-guia deste enfoque cogniti- vista, entendendo-se a relação corpo-mente como hardware-software. http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422020282387 e viabilizaria, com isso, o aperfeiçoamento moral da humanidade por meio da intervenção neuronal. As bases neurofisiológicas da ética sustentam- -se em pesquisas empíricas que usam neuroima- gem para demonstrar a ativação de certas regiões do cérebro durante situações que exigem discerni- mento moral entre opções diversas e às vezes opos- tas. Pretende-se encontrar a ética universal integrada no cérebro como conjunto de respostas biológicas a dilemas morais, correspondendo a uma aquisição evolutiva com função adaptativa para sobreviver *. Esse modelo de investigação foi a princípio muito aclamado, pois contribuiu para entender as bases neu- ronais de certas opções morais. No entanto, foi tam- bém criticado, pois as primeiras pesquisas a utilizá-lo se basearam em raciocínios morais ativados por cérebros caracterizados por anormalidades, desconsiderando ainda as influências culturais da moralidade e redu- zindo-a ao seu fundamento biológico neuronal. Essa análise aponta a necessidade de incentivar diálogos interdisciplinares sobre a questão, discutindo-se ainda os desafios éticos de incluir nesse tipo de pesquisa indi- víduos com lesões neurológicas? 2. Pesquisas de neuroimagem que buscam fun- damentar a base cerebral da ética pressupõem que decisões morais têm caráter emocional, ativando a área cerebral responsável por esse desempenho. Nessa perspectiva, em situações de opção de solida- riedade, o agente moral decidirá ajudar a pessoa ou o grupo com o qual se sente emocionalmente mais próximo e identificado. Essa dimensão emocional é definida pelos diferentes autores como intuições, ins- tintos, sentidos, competências — que têm significados diversos dependendo da tradição filosófica 25º. O papel das emoções na vida moral sempre foi tema central da ética no Ocidente. Para Aristóteles*!, o fim último de toda atividade humana é a felici- dade, que pode ser alcançada pelo entendimento teórico do conhecimento ou pelo domínio prático das paixões, viabilizando uma relação harmônica com o mundo natural e o social. Nessa tarefa, o ser humano é ajudado pelas virtudes, capitaneadas pela virtude da sabedoria prática (fronesis), que permite equilibrar excesso e falta 2. O epicurismo compreende a moral como busca de felicidade entendida como prazer, como satisfa- ção de caráter sensível, sendo sábio aquele que cal- cula a duração e intensidade dos prazeres advindos das atividades morais. Para o estoicismo, a moral se identifica com a ordem do universo e, por isso, a moralidade das ações é definida pela razão cós- mica, que é a lei universal que tudo rege. Na época http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422020282387 Ciências cognitivas e neuroética helenística, portanto, surgem dois caminhos para determinar as ações morais: satisfação sensível pra- zerosa ou razão cósmica universal 2. Para Hume, nos tempos modernos a moral se refere a sentimentos subjetivos de agrado ou desa- grado, resumindo-se o papel da razão ao conheci- mento das circunstâncias da ação — sem, no entanto, ser suficiente para produzir efeitos práticos no agir. Para o autor, uma vez que a razão não está encarre- gada de estabelecer juízos morais, estes são delega- dos a outras faculdades, que seriam menos impor- tantes que a razão: as paixões e o sentimento ?. No século XX, com o advento da análise dos enunciados morais, de Moore *, esse posiciona- mento de Hume foi reeditado com o emotivismo de Ayer* e Stevenson*, que afirmam que os enuncia- dos morais são aparentes, pois nada comprovam, expressando apenas aprovação ou desaprovação. Esses pseudoenunciados têm dupla função: expres- sam emoções subjetivas ou sentimentos e influen- ciam os interlocutores com a pretensão de motivar a atitude aprovada. Portanto, não pretendem descre- ver situações, mas provocar atitudes. Para Kant”, as influências da sensibilidade emocional precisam ser superadas para que a decisão moral seja fruto de boa vontade movida pela racionalidade reta. O imperativo ético surge autonomamente de procedimentos apriorísticos racionais, tendo como critério a universalidade das máximas transcendentais, para além de qualquer particularidade situacional que o sujeito impõe para si. Portanto, para Kant, ser ético é não permitir que as emoções influenciem a vida moral do sujeito. Assim, no final dos tempos modernos aparecem perspectivas diversificadas, aparentemente opostas, expressas nos dois modelos vigentes da ética atual: utilitarismo (satisfação sensível) e deontologismo (deveres apriorísticos). Segundo Bonete *, estudos mostram que juízos morais deontológicos se apoia- riam em processos racionais, enquanto os conse- quencialistas responderiam a processos emocionais. Contudo, a história da ética demonstra que a moralidade requer aportes tanto da sensibilidade, por meio das emoções, quanto da racionalidade, por meio de argumentos e juízos. Baseando-se em neuroimagens que apenas estudam as áreas cerebrais das emoções, a neuroética não consegue captar a interação entre sen- sibilidade e racionalidade. Por outro lado, reduzir cer- tas atividades neuronais a áreas definidas do cérebro é esquecer de sua maleabilidade e conectividade, que permite, por exemplo, que as emoções sejam fruto de interfaces entre várias regiões do cérebro. Rev. bioét. (Imp . 2020; 28 (2): 257-64 (e) fe] E [e] = Atual 261 (e) fe] E [e] E Atual 262 Ciências cognitivas e neuroética Por fim, os juízos emocionais aferidos no cére- bro pela proximidade afetiva divergem das normas estabelecidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos? como expressão de uma ética universal de respeito à dignidade humana. Na mesma linha, todas as éticas seculares e religiosas atualmente relevantes não apenas defendem os que estão emo- cionalmente próximos, mas propõem igual respeito a todos os seres humanos. Essas éticas se preten- dem universais, mas de base sócio-contratual que supera a pura inclinação emocional. Trata-se, portanto, de projetar a moral para além dos semelhantes e próximos, abrangendo des- conhecidos e pessoas diferentes que não despertam emoções, mas cujos direitos universais é necessário respeitar. Esse tipo de ética é indispensável para a convivência no mundo globalizado e para a supera- ção da xenofobia e de todos os particularismos iden- titários de base emocional. É preciso ainda considerar o modelo investiga- tivo pelo qual a neuroética pretende provar empiri- camente seus achados. Nos estudos da área, o inves- tigador submete o sujeito de pesquisa a situações controladas, retirando-o de seu ambiente habitual e apresentando-lhe decisões verificadas por instru- mentos que não expressam verdadeiramente sua moralidade espontânea. Nesses cenários, a situação real do participante não é considerada, medindo-se apenas processos neurofisiológicos *»º. Para analisar esse modelo, convém observar que a moralidade pessoal se expressa nos desafios da vida cotidiana — não em situação controlada, mas em contexto sociocultural do qual o indivíduo retira os recursos necessários para decidir e responder ao desafio. A moralidade das pessoas não consiste em enfrentar dilemas artificiais, mas em projetar boa vida “º. A artificialização do experimento, prescin- dindo da situação normal e rotineira, típica da ciên- cia moderna, é chamada por Heidegger *! de “des- mundanização” (Entweltlichung), que compromete tanto o investigador quanto o sujeito pesquisado porque modifica a perspectiva habitual. O indivíduo investigado perde o olhar situacional, confrontado com o outro, como acontece na vida real, dispondo em vez disso de um ver artificializado pelos pro- cessos de controle do experimento, possibilitado pela desmundanização. Já o olhar do investigador se restringe ao aspecto particular de interesse da investigação, pretendendo abstraí-lo do mundo contextual que conforma o seu ver. Essa desmun- danização entifica a realidade, utilizando ainda a nomenclatura de Heidegger*!, pois capta o real como presença representada — em outras palavras, Rev. bioét. (Impr). 2020; 28 (2): 257-64 a realidade está presente pela sua representação. A compreensão clássica do cognitivismo se baseia nesse pressuposto º. A pretensão de dar base científica à moral pela constituição da neuroética significa assumir os pres- supostos metafísicos do processo de desmundaniza- ção/entificação que caracteriza toda ciência moderna. Em outras palavras, a neuroética significa entificar a moralidade do ser humano. A filosofia de Heidegger buscou superar a entificação do ser humano por meio da análise existencial de sua inserção no mundo. Com isso, o enfoque enativo/atuacionista das ciên- cias cognitivas, antes explicitado, pode ser caminho para superar a compreensão representacional da rea- lidade, presente nos pressupostos da neuroética. Neuroética e enfoque enativo O enfoque enativo da cognição pretende supe- rar a visão representacional interna da realidade como base do conhecimento, defendendo a com- preensão situacional corporificada. Segundo esse conceito, o contexto e a situação são elementos constituintes da cognição, entendida como ação no mundo e não como representação do mundo. Entender a decisão moral como pura representa- ção cerebral atestada pela neuroimagem tem, na sua base, a mesma insuficiência que a perspectiva questio- nada pelo enativismo. A decisão não é representação cerebral, mas fruto de atuação situada no mundo e, portanto, ela não pode ser desmundanizada e entifi- cada pela representação. Assim como a perspectiva da epigenética veio para corrigir os exageros da pura determinação genética, a da cognição enativa pode ter esse mesmo papel em relação à redução da ética a pro- cessos neurofisiológicos. O ambiente é indispensável para configurar o funcionamento tanto das expressões do gene quanto das sinapses neuronais — assim como o genótipo não existe sem sua expressão fenotípica, o cérebro não funciona sem sua conformação intelectiva. Para exemplificar o argumento, o cérebro de pessoas de cultura oral e o daquelas de cultura digital são bio- logicamente idênticos, mas configurados de maneira diversa pelo ambiente sociocultural que as conforma. E a relação entre cérebro e ambiente é intermediada pelo corpo”. O cérebro é a memória das afetações do ambiente sobre o corpo, conformadoras desse cére- bro como individual, tornando-se a base do próprio self daquela pessoa. As diferentes funções e partes do corpo são dirigidas pelo cérebro, mas é neces- sário lembrar que esse corpo se torna próprio pela http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422020282387 sua inserção no mundo, um ambiente particular e próprio de relações e afetações que o configuram, assim como o cérebro que o comanda. Em outras palavras, a mente é o software do corpo sujeito, assumido como expressão de si e como base das relações com os outros e com o mundo, pois o cére- bro expressa e explica o seu funcionamento e suas potencialidades. As experiências corporais do sujeito conformam o cérebro, que, por sua vez, possibilita o desempenho do corpo próprio. O sistema nervoso faz parte da estrutura biológica do corpo, mas esse hardware neuronal precisa ser configurado por um software funcional que depende da constituição do corpo sujeito, cujo cérebro é conformado pelas afetações do ambiente como próprio, individualizado, como base de desem- penho daquele corpo “23. Esse é o significado do conceito de mente incorporada defendido por Varela, Thompson e Rosch“ como fundamento do princípio enativo que explica a cognição. Quais são as consequências dessa relação entre cérebro e ambiente intermediada pelo corpo para a compreensão do comportamento moral? Quais são as implicações para a explicação das bases cerebrais da ética? Se o cérebro é conformado pelas afetações do ambiente sobre o corpo, pois a mente é corporalizada, um dos elementos centrais desse ambiente é o contexto sociocultural. O que verda- deiramente configura o cérebro como mente situada é a cultura, entendida no sentido da palavra alemã bildung, isto é, cultura como formação. Isso explica por que pessoas de determinada cultura pensam, refletem e reagem em certas situações de maneira semelhante: porque elas fazem parte de uma mente coletiva. O núcleo dessa mente é o que Bourdieu chamou de ethos, entendido como o conglomerado de evidências, símbolos, mitos, valo- res e práticas que fundamentam e regulamentam a vida individual e coletiva. É o ethos que, por um Referências Ciências cognitivas e neuroética processo de acumulação, herança, tradição e prá- ticas suscita e institui, em cada um, predisposições para as relações sociais. Essas predisposições podem ser definidas, com maior precisão, como sistemas de disposições duráveis e transferíveis que, integrando todas as experiências passadas, funcionam em cada momento como matriz de percepções, apreciações e ações. Essa matriz torna possível cumprir tarefas infinitamente diferenciadas graças à transferência analógica de esquemas. Permite resolver os proble- mas da mesma forma e graças às correções inces- santes dos resultados obtidos, dialeticamente produ- zidos por esses resultados**. Onde está armazenada essa matriz de pre- disposições duráveis que explica o comportamento moral das pessoas? Ela está configurada nas intera- ções neuronais do cérebro como fruto das afetações do contexto sociocultural sobre o corpo, conformada na mente corpórea de resposta aos desafios morais enfrentados por essa pessoa. Assim, o cérebro ético da pessoa é expressão da cultura moral da mente coletiva à qual ela pertence. Considerações finais As investigações das neurociências sobre a base neurofisiológica da ética podem trazer contri- buições valiosas para o entendimento do compor- tamento moral das pessoas. Isso porque as ações morais resultam da execução de predisposições con- figuradas na matriz cerebral, fruto de afetações do contexto sociocultural sobre o corpo como mediação para o agir no mundo. Entretanto, o modelo investi- gativo que busca comprovar o fundamento biológico neuronal da ética por meio de pesquisas controladas sobre situações morais, verificáveis em neuroima- gens, contradiz essa constatação, pois desconsidera a base cultural de toda moralidade, ativada pela mente corpórea conformada pelo ambiente. 1. Gardner H. The mind's new science: a history of the cognitive revolution. Nova York: Perseus Books; 1985. 2. BlankB. Brainpoli Georgetown University Press; 1999. how the new neuroscience will change our lives and our politics. Washington: (e) fe] E [e] = Atual 3. Varela F), Thompson E, Rosch E. The embodied mind: cognitive science and human experience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press; 1991. 4. Varela F), Thompson E, Rosch E. A mente incorporada: ciências cognitivas e experiência humana. Porto Alegre: Artmed; 2003. 5. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes; 1999. 6. Maturana H, Varela F]. De máquinas e seres vivos: autopoiese: a organização do vivo. Porto Alegre: Artmed; 1997. http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422020282387 2020; 28 (225764 263
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