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Guias e Dicas
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Traficando de Drogas: Realidades Contraditórias e Sociais, Resumos de História

Psicologia SocialCriminologiaSociologiaAntropologia

As experiências de pesquisa sobre o tráfico de drogas ilegais e suas consequências sociais e pessoais. O autor descreve as diferenças entre as condições de vida dos sujeitos de pesquisa e as experimentadas pelos pesquisadores. Ele também aborda a questão da justiça e moral, assim como a ausência de cidadania presente na vida dos investigados. O texto oferece detalhes sobre as histórias de vida de paulo, um dos sujeitos de pesquisa, e suas experiências com a vida criminal. Além disso, o autor discute as formas de tratar o fenômeno do tráfico de drogas e as causas que contribuem para o aumento de crianças envolvidas nessa atividade.

O que você vai aprender

  • Quais são as causas que contribuem para o aumento de crianças envolvidas no tráfico de drogas?
  • Como as histórias de vida de Paulo ilustram as realidades do tráfico de drogas?
  • Quais são as consequências pessoais e sociais da participação em atividades criminosas?
  • Como o tráfico de drogas pode ser tratado de forma diferente?

Tipologia: Resumos

2022

Compartilhado em 07/11/2022

VictorCosta
VictorCosta 🇧🇷

4.7

(43)

119 documentos

1 / 272

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Pré-visualização parcial do texto

Baixe Traficando de Drogas: Realidades Contraditórias e Sociais e outras Resumos em PDF para História, somente na Docsity! Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH Tráfico de drogas: uma opção entre escolhas escassas. Dissertação de mestrado em Psicologia Social Orientadora: Doutora Vanessa Andrade de Barros Mestranda: Ana Amélia Cypreste Faria Agosto / 2009 Resumo O presente trabalho procurou compreender o contexto histórico, econômico-social do tráfico de drogas, bem como os aspectos psicossociais que permeiam a adesão a esta atividade. Através de pesquisa realizada no ambiente carcerário, com recolhimento de história de vida de pessoas envolvidas com o tráfico, buscou-se entender a relação deste contexto com a opção individual de adesão a esta atividade ilícita. Entendida como uma prática em grande ascensão na realidade mundial, o tráfico revela-se um fenômeno de grande aliciamento de trabalhadores, inclusive crianças, que iniciam sua carreira em níveis hierárquicos mais baixos com rápida ascensão em função da expansão dos negócios ou morte dos predecessores. É sabido que, no contexto histórico-econômico atual, há um grande contingente humano submetido ao desemprego ou às condições de trabalho precarizadas, em função das exigências impostas pela ordem econômica neoliberal que exclui do mercado de trabalho uma grande camada da população sem condições de atendê-las e sem perspectivas de mudança. Tem-se, assim, uma situação de exclusão social com dimensões estruturais, pois não se referem a uma crise pontual e sim a um contexto mundial onde o social é subsumido ao capital. Tal exclusão social é acompanhada de uma exclusão de cidadania, posto que o Estado, também submetido às regras de mercantilização, pretere seu papel de garantidor do bem-estar social, deixando os excluídos socialmente sem proteção e acesso aos seus direitos de cidadãos. Aliado a isto, tem- se a sedução consumista que, independente do poder de aquisição do indivíduo, cria uma urgência de posse como sinônimo de sucesso, desencadeando uma ilusão de poder e reconhecimento advindo do que se é capaz de adquirir. Neste ambiente fértil, o tráfico de drogas, mostrou-se como uma atividade econômica que se apresenta como uma oportunidade de inclusão na ordem capitalista, de uma maneira marginal pois que ilícita e moralmente questionada pela sociedade. Seu modo de funcionamento, dentro da marginalidade, assume características extremamente peculiares, 2 Agradecimentos Foi um trabalho muito rico e cheio de desafios... Muitos momentos de reflexões, decepções e esperanças... Pude contar com o apoio de pessoas amigas e compreensivas que me deram suporte afetivo, estímulo e vontade de continuar. Agradeço primeiramente e sempre, minha orientadora Vanessa Andrade de Barros, presença inspiradora e amiga desde o início da pesquisa. Eu não teria como expressar por melhores palavras que eu usasse aqui, toda a gratidão que sinto por ter podido conviver com tão maravilhosa profissional e uma pessoa de incomensuráveis generosidade e amor para com o ser humano! Muito menos teria eu como agradecer todo seu empenho, disponibilidade e firmeza como conduziu a orientação deste trabalho. Sem seus sábios e profundos conhecimentos do mundo do Trabalho, sua valiosa conduta ética, sua consciência política, seu rigor metodológico e compromisso científico, eu não teria como escrever esta dissertação. Meu marido Dumas, companheiro de todas as horas, que me fortaleceu com suas críticas e reflexões e me amparou afetivamente nas horas de relutância e carência. Sempre serei grata à sua compreensão pelos momentos em que estive ausente pela demanda de estudo e pesquisa, e ao modo como supriu minha ausência com nossas filhas. Minhas filhas Gabriela e Júlia, que dão sentido a todo este trabalho, estimulando minha esperança de uma sociedade mais justa. A minha mãe presença sempre estimulante e afetiva. Alegria contagiante diante dos meus sucessos, ombro acolhedor nos momentos de tristeza e fracassos e incentivo a continuar caminhando! De quem eu herdei a persistência e ideal de um mundo melhor. 5 Ao meu saudoso e maravilhoso pai... Meu querido pai, cujo orgulho por eu estar participando deste trabalho pude ver nos seus olhos e que acalentou meus momentos de tristeza, me fazendo querer continuar... Mesmo e apesar de não tê-lo comigo no momento de conclusão do trabalho. A todos os recuperandos, voluntários e funcionários da APAC, em especial ao Paulo e sua família, que me proporcionaram valiosas reflexões, enormes indignações e grande vontade de persistir!!!!!!! À amiga Adriana Gomide, que me incentivou a enfrentar este desafio e que facilitou meu caminho com suas orientações e exemplo pessoal, estimulando-me a entrar no mundo científico. Aos amigos Malu e Franklin pela generosidade com que compartilharam seus conhecimentos. Aos professores Teresa Cristina Carreteiro e Robert Cabanes pelas contribuições dadas para a continuidade deste trabalho quando da sua ‘qualificação’, em maio de 2008, que deram um novo norte para nossa pesquisa. Ao professor Marco Aurélio Máximo Prado que, permitindo-me um chiste, foi um “marco” na minha vida acadêmica, ajudando-me a ampliar minha visão política sobre o mundo, de um modo tão fascinante e brilhantemente bem conduzido. 6 Agradeço também a professora Maria Elizabeth Antunes por ter me proporcionado intensas reflexões sobre o Trabalho. Karla, minha querida prima, que desde o início acreditou em mim, sendo um grande suporte nos momentos de dúvidas e inseguranças além de contribuir com grande conhecimento acadêmico. Á Mylene, maravilhosa voz que me comunicou, por telefone, que eu havia sido aprovada no concurso do mestrado, com uma alegria que somente os amigos-irmãos sentem com nosso sucesso.Como sempre, participando dos momentos importantes em minha vida! A toda minha família, em especial tia Nazaré e tio Pedro, presenças sempre acolhedoras e compreensivas, que me fazem acreditar no meu ideal de família. As minhas amigas de mestrado Andréa, Patrícia e Júlia Dorigo, companheiras de um caminho percorrido, cúmplices dos momentos de reflexão, dúvidas e questionamentos. Presença certa e ombro acolhedor nas horas de relutância e “stress”. Ás colegas do Laboratório do Trabalho, especialmente, Carol e Aline, pelo suporte e grande contribuição à pesquisa de campo e às reflexões metodológicas e políticas. Á Vanessa, mais uma vez, minha eterna gratidão e infinita admiração!!!!! 7 Considerações Finais 258 6) Referência Bibliográfica 266 10 Introdução “Pois, em última análise, o que está em jogo na escolha entre a edificação, por mais lenta e difícil que seja, de um Estado social, e a escalada, sem freios nem limites uma vez que se auto-alimentam, da réplica penal é simplesmente o tipo de sociedade que o Brasil pretende construir no futuro: uma sociedade aberta e ecunêmica, animada por um espírito de igualdade e de concórdia, ou um arquipélago de ilhotas de opulência e de privilégios perdidas no seio de um oceano frio de miséria, medo e desprezo pelo outro.” Loïc Wacquant Poderia ser mais um... Poderia ser mais uma História de Vida de um jovem da classe pobre de Minas Gerais. Um brasileiro, dentre milhares cujas condições materiais e sócio-culturais de vida apresentam referências de sociabilidade bem diferentes daquelas consideradas moralmente aceitáveis. Poderia ser mais um cuja forma de ganhar o sustento não é respaldada juridicamente como também não os são seus direitos como cidadão. Poderia ser mais um cuja vida apesar de fazer parte de inúmeras estatísticas: índice brasileiro de criminalidade, repetência escolar, número de jovens aliciados pelo tráfico de drogas, aumentando o seu número e engrossando a fatia dos gráficos que sinalizam a camada da sociedade que vive no mundo da criminalidade. Contudo, é a História de um Ser Humano, de um filho, de um marido, de um pai, de um irmão, de um amigo... A história de vida apresentada neste trabalho sinaliza para o impacto das diversas dimensões econômico-político-sociais e afetivas que se interagem criando um ambiente fomentador da criminalidade. Ela busca apontar as conseqüências de um sistema econômico baseado nas concepções neoliberais vigentes no Brasil a partir da década de noventa, aliadas a práticas de políticas públicas sociais que visam prioritariamente o controle social da violência e o assistencialismo. Nesta ordem econômica o papel do Estado é subsumido aos interesses do capital. A inclusão política e social das classes desfavorecidas e despreparadas para as novas exigências de mercado é preterida, levando a desigualdade social a patamares gigantesco e, um verdadeiro abismo social é formado entre as classes sociais, uma “apartheid social”. Este abismo naturaliza as condições de existência e sucesso no mundo regido pela lógica do capital, como inerentes a cada classe social. Tal naturalização, faz com que estas classes mais vulneráveis e economicamente desfavorecidas sejam consideradas grupos sociais “perigosos”, que ameaçam a paz e a estabilidade do sistema e cuja “incompetência” em se adaptar às novas condições levam à pobreza, insubordinação e inferiorização. Poderia ser mais um Ser Humano, um cidadão brasileiro cuja existência teoricamente deveria justificar a razão de ser do Estado, garantidor dos seus direitos previstos pela Constituição Brasileira. Para quem as Políticas Públicas Sociais deveriam estar direcionadas, propiciando uma vida plena de cidadania, com acesso às condições dignas de moradia, saúde, educação e à garantia de acesso à justiça que lhe possibilitasse uma existência tranqüila e protegida. 12 “A mudança foi importante para adequar a legislação nacional à nomenclatura que se consolidou mundialmente. Com efeito, o termo “drogas” é de uso corrente na Organização Mundial de Saúde (OMS) e no meio acadêmico-científico. Além disso, a Convenção Única sobre Entorpecente da ONU, promulgada em 1961, e a Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, ao se referirem às substâncias tóxicas ou entorpecentes utilizam simplesmente o termo drug (droga). (idem, 2007) Entretanto, apesar de ser considerada uma prática ilegal, o tráfico vem se tornando atualmente, uma atividade intensa, abrangendo vastas áreas do território nacional. Constata-se que, a despeito da ilegalidade, o tráfico alicia pessoas de diversas idades e alimenta uma rede de crimes que extrapola a atividade do tráfico em si, mas que fazem parte da sociabilidade instaurada no cotidiano das pessoas que a ela se dedicam tais como homicídios, latrocínios e furtos, com o envolvimento de menores. Assim, o tráfico de drogas se revela uma emaranhada e complexa organização, denominada “movimento” ou “firma” por aqueles a ele relacionados, apresentando uma estruturada rede de produção, venda e controle comercial. Um dos fatores apontados por esta pesquisa para explicar o avanço desta prática criminosa é o poder e o reconhecimento, mesmo que volátil1 que o tráfico confere, Alimentando a “ilusão” de alcançar um ideal ditado pelo mundo capitalista, o fetichismo e sedução do possuir, de ser uma pessoa de sucesso, capaz de consumir os bens que lhe 11 O uso deste termo para melhor explicar o reconhecimento no tráfico de drogas será melhor explicado no item 5.4. 15 Conferem o status de “bacana”. Desta forma, o tráfico de drogas estabelece relações sociais fortemente estruturadas dentro, não só do grupo de traficantes da mesma facção, mas em toda comunidade a qual pertence o traficante. Esta comunidade lhe confere um reconhecimento, além de “volátil”, também perverso, pois o traficante é visto, por um lado, como poderoso, protetor, e provedor de toda uma comunidade, e por outro como o detentor do direito de punir, até mesmo com a morte, sendo legitimado e respeitado como aquele que comanda, estabelece regras de convivência entre todos os que estão sob sua proteção. No que se refere às formas de sociabilidade locais que daí surgem, podemos dizer que o “gerente da droga”tem, em certos aspectos, as mesmas características do chefe da horda mostrada por Freud (1912), em “Totem e Tabu”. Ele possui sobre os membros da comunidade um poder de vida ou morte. ”(Carreteiro, 2001) Buscando conhecer/compreender os caminhos que levam ao trafico, suas determinações e conseqüências psicossociais é que realizamos o presente trabalho. Nossa pesquisa foi realizada em uma unidade prisional APAC - Associação de Proteção e Assistência ao Condenado, no Estado de Minas Gerais. A criação da primeira unidade APAC ocorreu em São José dos Campos, São Paulo, sob a liderança do advogado Mário Ottoboni, em 1972, e adquiriu personalidade jurídica dois anos depois. Ottoboni, juntamente com outros membros voluntários da pastoral carcerária católicos, dedicou-se a pesquisas de “recuperação” de criminosos buscando uma alternativa para o sistema penitenciário brasileiro, que se apresentava, conforme seu depoimento, insuficiente para amenizar as constantes rebeliões e atos de 16 inconformismo dos presos que viviam amontoados em celas insalubres. “Inúmeras entrevistas com presos da antiga Cadeia de Humaitá, num confronto com o material colhido na Faculdade, deram-nos a certeza de que seria necessário um estudo mais aprofundado do sistema em vigor, para que se estabelecesse uma política penitenciária em sintonia com a realidade brasileira. Nosso trabalho teria de se desenvolver paulatinamente em busca de métodos mais adequados à nossa situação, pois concluímos que não existia nenhuma atividade estruturada de preparação do preso para seu regresso ao convívio social.” (Ottoboni, 1997:25) O nome Associação de Proteção e Assistência ao Condenado, como uma entidade juridicamente constituída, ampara o trabalho da APAC cujo nome originário, de caráter pastoral é Amando o Próximo, Amarás a Cristo. Com esta iniciativa, A APAC transformou seu papel que era inicialmente apenas de Pastoral Penitenciária, em entidade civil de direito privado com uma finalidade definida, respaldando seu trabalho nas premissas jurídicas. Passou, então, a ser órgão auxiliar da justiça tendo com isto total respaldo do Poder Judiciário, contando com o apoio do Juiz da VEC do município em que estiverem atuando. Ao desenharem uma entidade civil, de direito privado, os fundadores da APAC objetivaram atuar na área de execução de pena, que suprisse o Estado em sua missão de preparar o preso para volta ao convívio da sociedade. Segundo OTTOBONI (2001) a metodologia da APAC romperia com o sistema penal vigente. Isto porque, conforme seu depoimento, o método preocupa-se em resguardar a valorização humana da pessoa que cometeu um erro, e que acaba por ter que cumprir 17 como as guerras, nem tampouco se pode a elas atribuir o status de trabalhadores, uma vez que não são vinculadas ao trabalho legal. Tem-se um quadro de indefinição que as deixa ainda mais desprotegidas, enquanto crianças e cidadãos, completamente nas mãos das leis do tráfico. No capítulo 5, abordaremos as formas de sociabilidade existentes nos grupos envolvidos com a atividade do tráfico de drogas, dentre as quais, a maneira de se fazer justiça se mostrou de grande importância, na medida em que evidenciou práticas peculiares de punição aos infratores das leis estabelecidas por eles. Consideramos relevante sinalizar a correlação entre a ausência de justiça legalizada nestes grupos e a justiça feita pelas próprias mãos. Isto porque pudemos identificar em nossa realidade empírica como esta correlação é fortemente apontada em alguns depoimentos: “Polícia, se mata, vai preso. Bandido, não... nada acontece com ele. Mas, se ele não fizer o que mandam. Aí ele morre.” (sujeito de pesquisa). Por fim, como considerações finais, achamos pertinente tecer alguns comentários a respeito da ineficácia da penalização aos infratores com privação da liberdade, apresentando a pena alternativa, principalmente a prestação de serviço à comunidade, como uma opção mais eficaz, por possibilitar maior transformação do sujeito e da sociedade, com menor dispêndio financeiro dos cofres públicos e menos desgaste psicológico e social do indivíduo. Consideramos (ousamos) este trabalho como um primeiro passo que damos em direção à busca de uma sociedade, de um mundo, sem prisões. 20 1) PERCURSO METODOLÓGICO “O coletivo é depositado em cada indivíduo sob a forma de estruturas mentais duráveis. Os produtos da história coletiva são adquiridos na história individual.” Legros Bawin3 1.1) Objetivos 1.1.1) Objetivo Geral: Analisar os aspectos psicossociais presentes na adesão à prática da produção, distribuição e venda de drogas ilícitas buscando compreender a relação tráfico de drogas e trabalho. 1.1.2) Objetivos específicos - Compreender o significado atribuído ao trabalho por apenados de uma unidade prisional e sua relação com a entrada no mundo do crime; - Entender o impacto da ideologia capitalista na construção da subjetividade dos apenados e sua relação com a adesão à criminalidade; - Analisar as determinações sociais presentes na constituição subjetiva dos apenados de uma unidade prisional; e - Compreender as repercussões do encarceramento na resignificação das experiências de vida dos apenados. 1.2) Pesquisa 3 Apud Barros e Silva (2002:7) 21 Por tratar-se de uma pesquisa qualitativa, trabalhamos com método de Recolhimento de História de Vida e entrevistas em profundidade com recuperandos de uma unidade prisional APAC. Trata-se de pesquisa realizada no âmbito do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Laboratório de Psicologia do Trabalho do departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais e, assim, contou também com depoimentos de apenados, recolhidos em atendimento individual, plantões psicológicos e recolhimento de histórias de vida realizados por alunos do curso de graduação em Psicologia que participam dos projetos do laboratório como estagiários e bolsistas de Iniciação Científica. O trabalho de campo se deu na Associação de Proteção e Assistência ao Condenado – APAC, tendo se iniciado em março de 2007, com encontros semanais com o recuperando Paulo. As entrevistas em profundidade foram feitas com outros recuperandos e com os familiares de Paulo, em sua residência e no Serviço de Psicologia Aplicada do Departamento de Psicologia da UFMG. Diversos relatos nos foram dados também, quando da realização dos Seminários de Valorização Humana ocorridos na APAC. Tais seminários contaram com a participação de todo o grupo de Pesquisa sobre Trabalho e Sistema Prisional do Laboratório de Estudos, Pesquisa e Extensão em Psicologia do Trabalho da UFMG que proferiram palestras sobre temas diversos dentre os quais a importância do fortalecimento da auto-estima, aspectos psicológicos do sujeito privado de liberdade, relacionamento interpessoal etc. Foram promovidas também, discussões compartilhadas em grupos de trabalho, com aprofundamento de tópicos discutidos nas 22 processo de formação identitária, acreditamos ser possível que, ao narrar sua história de vida, possa ressignificá-la. “... o homem singular é um ser social, uma” síntese de múltiplas determinações” ( Marx, 1983ª). Em outras palavras: é uma síntese complexa em que a universalidade se concretiza histórica e socialmente, através da atividade humana que é uma atividade social – o trabalho –, nas diversas singularidades, formando aquela essência. Sendo assim, tal essência humana é um produto histórico-social e, portanto, não biológico e que, por isso, precisa ser vida em sociedade. É portanto, nesse vir-a- ser social e histórico que é criado o humano no homem singular. Como se pode depreender daí, a relação dialética singular-particular-universal é fundamental e, enquanto tal, indispensável para que se possa compreender essa complexidade da universalidade que se concretiza na singularidade, numa dinâmica multifacetada, através das mediações social – a particularidade.” ( Oliveira, 2005:26) Escolhemos este método também porque valoriza a narrativa de sentido e seu entendimento do mundo, permitindo compreender a vida a partir do ponto de vista de quem a vive. Ao falar da sua história, é proporcionado ao sujeito reconstruir sua trajetória, expressando sentimentos, emoções, ilusões e ideologias. Reafirma esta idéia V. de Gaulejac: “Nas diferentes versões da sua história, a pessoa procura um sentido, uma solução para os conflitos identitários que pode encontrar na sua existência.” (Gaulejac, 2002: 106). 1.2.1) A utilização do método de recolhimento de História de Vida no Sistema Prisional 25 As unidades APAC - Associação de Proteção e Assistência ao Condenado -, mesmo oferecendo aos presos condições mais dignas de vida (acomodações limpas, cuidados com a saúde, higiene e boa alimentação), não deixam de ser uma prisão, ou seja, uma instituição coercitiva com características de instituição total4·. Assim, a utilização do método de recolhimento de História de Vida apresentou inúmeras peculiaridades, e colocou-nos frente a diversos dilemas éticos que serão discutidos posteriormente. O que experimentamos – o real – em nossa pesquisa de campo, exigiu-nos reformular algumas orientações metodológicas, buscando incorporar ao nosso trabalho os limites impostos pelo sistema prisional assim como as singularidades do sujeito em privação de liberdade. Além destas adaptações do método, experimentamos outras situações que se configuraram em aspectos dificultadores e outros, no entanto, facilitadores da pesquisa em função de características do sistema carcerário e da especificidade dos sujeitos de pesquisa. “Convém assim interrogar a situação na qual o relato é produzido como sendo o que determina, pelo menos inicialmente, a natureza e o conteúdo do que é contado pelo sujeito. Este conta uma certa história que é endereçada, ou seja, construída em função do que representa para ele a situação de contar sua vida, das interações que se manifestam e dos efeitos que deseja produzir sobre o destinatário de seu contar. ( Jobert, apud Barros, 2002) A remição da pena baseada no trabalho realizado pelo condenado dentro da instituição prisional e a premiação pela boa conduta prisional (mérito), com a 4 Instituição Total – termo utilizado por Goffmann (1974:11) e definido da seguinte maneira “... um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada.”. 26 progressão de regime, configuram-se em aspectos que, se por um lado, facilitaram a realização da pesquisa, pois criaram uma predisposição para o atendimento psicológico e a boa aceitação da presença dos estagiários e pesquisadores no estabelecimento da APAC, por outro, consistiram em dificultadores na medida em que levaram a inúmeros “endereçamentos”. Um destes endereçamentos, amplamente percebido, referia-se às expectativas manifestadas de que o que fosse falado com o psicólogo teria um valor legal para a justiça, comprovando a recuperação ou o bom comportamento do recuperando em atendimento. O endereçamento dado por Paulo, nos primeiros encontros, foi notório. Através de seus depoimentos, tentava mostrar ser ele um recuperando em adiantado estado de conscientização quanto aos fatores que o levarem ao crime, totalmente evangelizado e preparado para o mundo fora da APAC em condições de não reincidir no crime. Mesmo depois de seguidos esclarecimentos de que o que fosse falado por ele não seria usado nem a favor, nem contra, perante a justiça e que apenas a professora e estudantes que participavam do programa de psicologia desenvolvido na APAC teriam acesso aos seus dados e depoimentos, o endereçamento continuava. Havia, assim, manifestações bem claras do desejo de que a pesquisadora fosse ajudá-lo, dando depoimentos de bons comportamentos à direção da APAC e à justiça. Em nossos primeiros encontros não houve a gravação dos depoimentos, o que limitava a reprodução com maior fidelidade ao relato feito. Isto porque havia o entendimento de que tal gravação pudesse significar um inadequado uso do que fosse falado. Tal compreensão reforçava a idéia de que os encontros eram momentos de diagnóstico do seu nível de recuperação, bem como de suas condições psicológicas. Precisávamos desta forma, cuidar para que não houvesse distorções que impactassem no 27 Era um discurso religioso que, como será explicitado no capítulo 4, faz parte do método empregado pela APAC para buscar a recuperação do presidiário. Não estamos negando aqui os diversos aspectos ilusórios presentes no engajamento das atividades cotidianas, afinal, estar iludido significa buscar um sentido para aquilo que se acredita como importante: “Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro; tampouco é necessariamente um erro [...] O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos... As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a realidade.” (Freud, 1927:43 e 44). Contudo, estamos apontando para as limitações da pesquisa, uma vez que os aspectos ideológicos veiculados pela APAC tiveram que ser considerados, para que não fossem atribuídos somente às motivações de engajamento ao crime, pela freqüência com que apareciam em nossa pesquisa, distorcendo a análise da realidade pesquisada. Há fatores na realidade do crime e no contexto social que possibilitam a “ilusão de pertencimento” ao que é veiculado como “bacana” pela sociedade do consumo e à “ilusão de poder” sobre a qual trabalharemos com maiores detalhes posteriormente. Contudo, não podemos nos deixar enganar por um discurso já pronto que faz parte do método de recuperação institucional. “O crime é errado, antes eu não achava que era errado não, não achava que roubar era errado: se ele tem muito, tem que me dar tudo que tem. Eu fui preso porque tava roubando. Eu roubava pra comprar muita droga. Não gostava de mexer com pouca droga. Pouca droga não dava dinheiro e dava confusão.” (Paulo). Percebemos, através deste depoimento, como a vida carcerária na APAC estava possibilitando reflexões sobre o caráter moral das atividades criminosas. Constatar isto nos é importante para futuros estudos sobre a eficácia da metodologia empregada pela 30 APAC, mas não se constituiu o objeto desta pesquisa. Consideramos interessante o caráter imperativo dado por Paulo ao relatar que quem possuísse muitos bens teria que lhe dar o que tivesse. Isto porque tal depoimento revela um sentimento de injustiça perante as desigualdades econômicas e a busca de resgate da justiça pelas próprias mãos. Aqui, observa-se com clareza a mudança, pelo menos cognitiva, do que seria considerado certo ou errado, pelo paralelo feito entre o que pensava antes e depois do encarceramento. A responsabilização pessoal pelos seus atos não foi, contudo, percebida em todo discurso de Paulo. Em alguns momentos, soava como uma verdade posta como se seus atos fossem definidos por algo externo a ele, que dominasse a sua mente e ao espírito, colocando-o fora do “caminho certo designado por Deus”. Este foi um grande desafio: o que era reprodução do discurso da instituição penitenciária APAC e que mascarava a realidade e o que fazia parte do discurso do sujeito que correspondia ao seu modo de vida, escolhas feitas e desejos. “Gosto mesmo de dinheiro. Dinheiro abre as portas. Deus abre as portas também.” (Paulo). “Era criminoso, mataram o criminoso. O criminoso foi morto mesmo. Meu criminoso eles matou ele aí. Meu criminoso era droga. Eu não mexo com droga mais não. Agora é só chá. Não quero química, não. To tranqüilo, to controlando minhas emoções. A gente tem que ter entendimento. O que está faltando dentro de mim é a solidão. A mente fica voada. Eu vo mais no chá mate, chá de funcho, canela. O pessoal fala que eu vou ficar meio boiola. Boiola nada. Falei pra minha mãe: primeiro Deus, depois a senhora. A senhora é milhões de graus. Tenho que sair do crime, sair do 31 crime... tem que matar o criminoso, mesmo, matar o criminoso e libertar o homem.” (Idem) Até então, enquanto enclausurado, Paulo estava sem usar drogas, contudo, na primeira saída que teve após ter ido para o sistema semi aberto, fez uso de maconha e posteriormente “ecstasy”. Fica claro neste discurso a idéia de que se deve matar o criminoso que existe em cada um dos recuperandos. Esta é uma das premissas do método APAC para que o homem (não criminoso) seja libertado, inclusive sendo título de um dos livros de Ottoboni (2002): “Vamos matar o criminoso?”. Tal premissa será abordada com maior profundidade no capítulo sobre “A APAC e o Eficientismo Penal”, uma vez que aponta para o fato de que a ênfase maior do método da APAC é a recuperação do indivíduo, sem haver uma busca de transformação do contexto social gerador da adesão às drogas e ao tráfico. Por ora, é importante registrarmos o quanto a ideologia do método da APAC é incorporada ao discurso dos recuperandos. Entendemos ser ele um aspecto importante a ser considerado para que não se tenha uma leitura enviesada da realidade, como se a adesão ao crime fosse apenas fruto de uma conduta criminosa a ser eliminada e/ou determinada pela ilusão por ele proporcionada e que dominasse a pessoa, eliminando sua capacidade de ser sujeito da sua própria história: “Entrei pro crime não foi porque eu quis. Eu entrei pela ilusão, né?” (Paulo). Porém, além da ilusão funcionar como uma justificativa para os delitos cometidos, alguns recuperandos ressaltam, também, o caráter contraditório presente em cada ser humano, suas pulsões e desejos moralmente repreendidos como sendo 32 uma comunidade e de um grupo de trabalhadores, sem tentar impor a lógica vivenciada por nós. “O sociólogo clínico pode ter um papel equivalente a esses receptores de histórias; não aceitando nem o papel de pesquisador refugiado em uma neutralidade distante, nem o papel de ator imerso no operacional: ele pode ser verdadeiro agente de historicidade ou, ainda, de criador de história (Enriquez 1981): ajudando aqueles que o desejam a compreender em que a história é mobilizadora neles.” (Gaulejac, 1996). Enfim, pudemos aprender a importância da humildade para reconhecer que nossas premissas e ideologia de vida não são as únicas e acertadas, que cada contexto possui uma historicidade que deve ser respeitada, mesmo que apresente valores contrários aos nossos. Somente assim o pesquisador pode cumprir seu papel científico de entendimento da realidade e possibilitar que os sujeitos possam refletir sobre a historicidade a que estão submetidos e o seu papel de construir esta história. 1.2.2) Vínculos transferenciais e Dilemas éticos na pesquisa “A tão falada neutralidade do pesquisador engendra múltiplos deslocamentos que o dispensa de se interrogar sobre as maneiras pelas quais esses pressupostos, a ideologia, os afetos, intervém na construção do objeto, a fabricação de hipóteses, nas escolhas metodológicas, no recolhimento e na análise dos dados, a validação dos resultados.” Vincent de Gaulejac 35 Ao nos depararmos com a realidade do sistema carcerário, percebemos a necessidade de revermos alguns aspectos do método de Recolhimento de História de Vida adotada em nossa pesquisa. Dentre estes aspectos, um se tornou peculiar e relevante por referir-se à postura do pesquisador diante de narrativas de comportamentos que são frequentemente adotados pelos sujeitos da pesquisa, consistindo-se em práticas comuns ao modo como estruturam as relações sociais construídas no dia-a-dia desta atividade considerada ilegal. Como irá ser aprofundado no item 5.2, a atividade do tráfico de drogas é permeada por relações de poder coercitivas, que acarretam ações criminosas que visam tanto garantir a manutenção do controle sobre a “boca de venda da droga”, quanto à garantia da ordem vigente e do próprio status dos traficantes. Neste sentido, aqueles que, de alguma forma contrapõem-se ou se tornam obstáculos à realização dos propósitos podem sofrer duras punições que podem chegar à própria condenação à morte, São pessoas que traem a confiança do dono de boca ou que fazem parte de gangues inimigas por serem “concorrentes” no negócio ou que não pagam as dívidas. Foram inúmeros os depoimentos de assassinatos cometidos cujas vítimas nem mesmo eram pessoas envolvidas diretamente no tráfico, por exemplo testemunhas em júris populares de ações criminosas. . Percebemos em alguns relatos manifestações de arrependimento pelo crime cometido, mas ao mesmo tempo de conformismo revelado por um levantar de ombros, numa demonstração de impossibilidade de se fazer diferente ou por palavras como: “é a lei do movimento, é assim que funciona” como se fosse uma prática “natural” ao bom funcionamento do negócio, e como uma justificativa para tais práticas, funcionando como uma espécie de conforto para um suposto/aparente 36 sentimento de culpa. Esta é a lógica de funcionamento do “movimento” como é chamado o tráfico, ou “firma”, como uma organização. De acordo com as premissas do método de recolhimento de História de Vida na perspectiva teórica da Sociologia Clínica, espera-se do pesquisador uma postura acolhedora e compreensiva diante da escuta, sem manifestação de julgamentos morais. Como pesquisadores, cabem-nos entender que a narrativa do sujeito faz parte de sua história, como contada por ele, dentro da lógica social a que está submetido, de seus valores morais, aceitos e acatados pela comunidade da qual faz parte. A rigor, espera-se que o pesquisador se isente ao máximo de seu modo de ver o mundo, de seus valores, para entregar-se à escuta responsável do outro sem julgá-lo, sem avaliá-lo sob seus próprios valores, conceitos ou qualquer premissa dada a priori: “... Assim, podemos dizer que a pesquisa em história de vida Implica uma produção de conhecimento a partir do discurso do sujeito sobre sua situação concreta de vida e, reconhecendo ao saber individual um valor sociológico, não é utilizada como simples ilustração, como exemplo do que já é conhecido ou mesmo como ferramenta suplementar para completar pesquisas baseadas em outros métodos. Não existe, tampouco, a pretensão de demonstrar leis, de buscar a prova empírica de hipóteses teóricas ou encontrar causas últimas. O interesse é o conhecimento de uma situação ou objeto por meio de um saber que jamais é dado a priori, e sim construído na experiência cotidiana e na interlocução.” (Barros e Silva, 2002). Como nos ensina Freud, a construção deste saber, o rememorar e re-significar a história de vida do sujeito acontece através da relação com o interlocutor no que ele denominou de relação transferencial: “Tal como acontece nos sonhos, o paciente encara os produtos do despertar de seus impulsos inconscientes como contemporâneos 37 sim psicóloga. Com todo respeito pela senhora, a senhora tem um sorriso lindo,... a senhora namora muito? Eu sei tratar bem uma mulher, bandido é diferente de trabalhador, bandido chega em casa e tem tempo para fazer a mulher ter prazer. Trabalhador chega em casa cansado e só que dormir. Eu sei fazer a mulher ter muito prazer”. (Paulo). Trabalhar a relação transferencial foi fundamental para que Paulo saísse da repetição de descrever as relações sexuais que mantinha nas suas saídas temporárias e voltasse com seu trabalho de relatar sua história de vida. Percebeu-se que havia uma tentativa de sedução de Paulo ao se mostrar um excelente amante e a repetição funcionava como resistência a falar do que havia experenciado nas “descidas” com os traficantes da sua boca, suas angústias, lembranças de momentos vividos antes de ser preso e dúvidas sobre a vida que teria após sua saída da prisão. Outro momento em que a relação transferencial teve que ser trabalhada, pois se colocava como uma resistência ao atendimento, aconteceu quando houve uma recusa por parte de Paulo de ser atendido, dizendo estar muito nervoso: “Paulo estava muito nervoso. Disse que não queria falar nada aquele dia, que precisava trabalhar com o artesanato, pois “tava muito bolado” (sic).” Em face de tal recusa e respeitando a vontade de Paulo, fomos embora da APAC, retornando na semana seguinte. Contudo, ao encontrar com Paulo na oficina de laborterapia, observou que ele continuava nervoso, agitado e disse que preferia não ser atendido naquela semana novamente: Paulo disse que não gostaria de conversar hoje também, pois estava “muito bolado” (sic). Quando estava “bolado” não gostava de conversar com ninguém. Insisti um pouco dizendo que havia ficado preocupada na semana passada pelo fato dele estar 40 muito chateado e nervoso. Ao ser perguntado por que estava chateado, Paulo disse que quando estava chateado não gostava de falar com ninguém, pois não gostava de falar coisas ruins para as pessoas, não. Foi lhe perguntado o que significava “coisa ruim” para ele. Paulo disse que coisa ruim era aquilo que poderia magoar quem ele gostava e ele não gostaria de me magoar. Salientei que estava ali para escutar o que ele tinha pra falar, mesmo que estas coisas fossem consideradas ruins para ele. A partir daí Paulo aceitou ser atendido e começou a falar do quanto estava chateado em ficar preso. “Que sua mãe havia lhe visitado no domingo e ele não conversou nada com ela...”. Ao recusar o atendimento, na verdade, Paulo estava fugindo daquilo que o incomodava muito e que, na sua visão, poderia magoar-nos por não corresponder à pressuposta expectativa de que ele fosse um recuperando perfeito. Havia recusado também de conversar com sua mãe, no decorrer do atendimento, salientou o quanto sua mãe sofria quando ele manifestava tristeza, desesperança e desproteção na prisão. Percebe-se, assim, como confrontar a dificuldade em falar, o medo de magoar, de não corresponder ao que imaginava ser esperado dele, foi importante para o andamento do recolhimento de história de vida, pois permitiu aprofundar os laços de confiança e evitar uma possível desistência dos atendimentos, causada pela resistência. Estar ciente da relação transferencial, saber manejá-la como facilitador ao método, são pontos importantes que evidenciamos em nossa pesquisa. Porém é nosso objetivo aqui, insitarmos outras reflexões sobre a postura ética do pesquisador, que emergem de nossa experiência com sujeitos em privação de liberdade. Sabemos do quanto a ética e a moral são constructos muitas vezes tratados como similares. Historicamente há diversas concepções e entendimentos destes dois termos, muitas vezes colocando-os em patamares diferenciados em seu nível de abrangência, 41 abordando a ética como, por exemplo, o estudo dos comportamentos morais, como nos esclarece Néri (2004). Este mesmo autor salienta que em outras concepções, a ética é vista como uma concepção mais universal do pensamento humano e a moral se refere às escolhas individualmente feitas de acordo com valores pessoais aprendidos no decorrer do processo educacional e de socialização. Não é nosso objetivo adentrarmos nestas diferentes abordagens existentes no âmbito da filosofia moral, nome designado por Néri, (2004: 20) “ao estudo filosófico do que constitui o fenômeno moral”, contudo é importante esclarecermos em qual destes constructos nós nos baseamos para direcionar nossa prática, como pesquisadores, uma vez que a adoção de uma determinada abordagem pressupõe um posicionamento na conduta profissional. Ao determinar o que fazer aqui e agora, estabelecendo julgamentos de certo e errado, a moral estabelece parâmetros de ação baseados numa definição de determinada esfera ou classe social. Que por sua vez estão referendados em instrumentos ideológicos fortes e dogmáticos tais como crenças religiosas, critérios de valoração humana e reconhecimento social baseados em poderio econômico ou capacidade de consumo dentre outros. O importante é desvendar quem ou o quê está determinando o posicionamento moral. Este aspecto foi muito bem esclarecido por Canivez: “Deve-se dizer ética ou moral? A moral nos lembra a existência do dever e das interdições, ela nos fornece uma doutrina de ação, nos convida a julgarmos a nós mesmos, a nos vigiar e anos transformar por respeito à regra. Donde a possibilidade do moralismo: atitude que consiste a se especializar em lembrar aos outros seus 42 narração de história de vida, advindas do receio, do sujeito de pesquisa, de se expor ou de não ser aceito pela pesquisadora. Isto porque, dada a peculiaridade da nossa delimitação de pesquisa, estávamos recolhendo histórias de vida de pessoas em privação de liberdade, seja por envolvimento em atividades econômicas ilícitas ou outro delito. Qualquer posicionamento que soasse como uma repreensão ou uma doutrinação poderia comprometer e muito, todo andamento de nossa pesquisa. Nossos sujeitos de pesquisa estavam em um sistema carcerário que, embora tendo diferenças na sua estruturação e tratamento da pessoa humana, conferindo a ele a possibilidade maior do que no sistema convencional de melhores condições de vida, com dignidade humana, ainda assim, eram pessoas que haviam se envolvido em práticas consideradas criminosas e estavam submetidas a inúmeros estigmas sociais de “bandidos”, “mente criminosa”, “perigoso socialmente” dentre outros. Isto os levava à maior vulnerabilidade a tudo que era dito no atendimento. Além do mais, estavam sob a determinação do sistema judiciário, o qual definia quando iriam ter sua liberdade ressarcida: “O pessoal lá da boca fala que esse negocio de psicólogo é tudo relacionado à polícia.”( Paulo). Qualquer suspeita de estarem sendo julgadas pelos pesquisadores dentro de premissas morais, sendo recriminados por estes, poderia significar um grande impacto nos laços de confiança estabelecidos com o pesquisador, na sua auto estima e também um sentimento de não estarem correspondendo à expectativa de “recuperação”, estimulada pela instituição. “Tudo depende da maneira pela qual se recolhem as histórias de vida, a que fins irão servir e a quais indagações buscarão responder, (...) tudo depende ainda da maneira pela qual se analisam as histórias, de quem participa dessa análise e de que ferramentas intelectuais podemos dispor para fazê-lo.( Bertaux, apud Barros e Silva, 2002). 45 Uma vez rompidos ou “balançados” os laços de confiança com o pesquisador, poderíamos comprometer a implicação do sujeito na pesquisa, uma vez que a confiança e a compreensão sem julgamentos, foram elementos fundamentais para o tal implicação. Além disto, a aceitação e compreensão do pesquisador de tudo que estava sendo dito, sem preconceitos e repreensões, mostraram-se uma fonte importante de fortalecimento da auto estima dos recuperandos conforme depoimentos nos atendimentos pelas psicólogas, no sistema de plantão ou no recolhimento de história de vida. Tal postura ética permitiu a Paulo, assumir seu papel de sujeito, apropriando-se de sua própria história de vida, refletindo sobre suas escolhas feitas no passado e ainda a serem feitas quando saísse da prisão, submetendo-as a uma análise crítica, a partir do seu próprio referencial de valores, como ressalta Barros e Silva(2002): “ a importância e relevância do método : ajudar os sujeitos a apreender e a interpretar sua própria história. Isso ocorre no momento em que a pesquisa transforma-se, para os participantes, em uma ocasião de “refletir em voz alta”(Lévy A. (2001) sobre si mesmos, sobre suas histórias; momento de re-fazer, de compreender o agora a partir do que já passou.” ( Chauí, M. 1987) Contudo, assumir a postura de respeito e compreensão do que estava sendo dito nos colocava diante de um dilema ético. Partindo da premissa ética norteadora de nossas ações ressaltada anteriormente, nossas possíveis intervenções situavam-se entre a tênue linha que separa um discurso moralista, de um posicionamento profissional que apresentasse outros pontos de vista sobre as situações por eles experenciadas, das possibilidades de refletir sobre sua cidadania, conseqüências e possíveis alternativas às suas ações. Este posicionamento profissional justificava-se na medida em que estávamos diante de seres humanos pertencentes a uma classe social desprovida de 46 desfrutarem dos direitos a eles teoricamente garantidos pela Constituição, conforme salienta Gomes: “A impotência de muitos Estados no exercício da função reivindicada de criar uma ordem social baseada na legalidade e no respeito aos direitos dos cidadãos, bem como sua ausência sistemática para grandes contingentes da população que moram nas periferias das grandes cidades (e que desconhecem os direitos mais elementares de vida digna, especialmente os direitos civis e sociais básicos como educação, saúde, serviços públicos, segurança, devido processo etc.), não fazem mais que evidenciar que o chamado Estado de Direito Democrático, tão solene e generosamente proclamado pelas Constituições, não consegue se universalizar nem social nem territorialmente.” (Gomes, José Maria, apud Dornelles, 2008: XIII). Tratava-se de depoimentos de assassinatos que foram e que ainda seriam cometidos por integrantes de facções de drogas, fruto de alguma infração às leis do tráfico tais como, delação de seus membros à justiça, atuação como testemunhas em julgamentos de traficantes etc. . A postura que adotávamos revelava uma condescendência por parte dos pesquisadores, até mesmo uma aceitação destas ações como única possibilidade de vida e exercício da cidadania. Estávamos reproduzindo a mesma ideologia que embasava a lógica do tráfico e do tipo de sociabilidade estabelecida pela comunidade da qual faziam parte. É claro, que não tínhamos clareza desta postura, tão bem intencionados que estávamos e preocupados em não sermos preconceituosos. Tal compreensão de nossa postura remeteu-nos à necessidade de questionarmos nossas práticas enquanto pesquisadores. Deveríamos apenas escutar e registrar como dados para nossa pesquisa os depoimentos acima citados? Com certeza, seriam depoimentos de grande relevância para nossa pesquisa, pois apresentavam a lógica do 47 Estávamos cientes, como citado anteriormente, de que não deveríamos assumir o papel do moralista, do “pregador” que zela pela observância de certo código moral, ditando comportamentos aceitos como certos e condenando aqueles considerados errados numa perspectiva moral. A questão não se referia a ditar o que era certo ou errado e assumir uma posição de repressão, mas sim de viabilizar um questionamento sobre alternativas que pudessem se apresentar como exercício da cidadania e pleno gozo dos direitos apregoados pela Constituição como direitos de todo cidadão. Era importante que lhes fosse dada a condição de repensar as ações ditadas pelas leis do tráfico ao invés de considerá-las naturais ou necessárias e que assumissem uma postura conformista de reação, sem permitir a eles que ressignificassem sua experiência a partir dos direitos a eles conferidos pela cidadania brasileira. Partindo de tais reflexões passamos a adotar, nos momentos de atendimento aos recuperandos, além da postura de escuta e compreensão, uma posição de confronto diante dos fatos relatados, questionando as causas das ações tomadas ou a serem realizadas, as possíveis consequências, as prerrogativas políticas e sociais que as embasavam, apresentando também possíveis alternativas calcadas nos exercício da cidadania, através dos direitos previstos na Constituição Federal de 1988, que por definir os princípios de cidadania brasileira, foi denominada de Constituição Cidadã por consolidar o Estado Democrático de Direito: Recuperando: “Eu já mandei avisar pra ele que se eles encostar a mão em um filho meu, se colocar um óculos de pirata neles, vou descarregar a arma na cara dele, vou enfumaçar a lata dele.. Se eu não puder fazer, tenho gente que faz por mim.” 50 Pesquisadora: “É compreensível sua revolta e indignação, afinal são seus filhos, mas você já pensou em alternativas para buscar a proteção deles que não seja a violência contra o agressor”? Recuperando: “Não, que alternativas?”. Pesquisadora: “Há pessoas na Prefeitura que são preparadas para proteger seus filhos e evitar que sejam agredidos. Você já ouviu falar do Conselho Tutelar?”. Recuperando: “Conselho o que? Eu nunca ouvi falar... mas não adianta nada não, no crime só funciona a morte mesmo. Eu vou matar ele...”. Pesquisadora: “Mas se você matá-lo, não vai sair da prisão que é o que você tanto quer. Aí que você vai ficar longe dos seus filhos mesmo. O Conselho Tutelar poderia garantir proteção aos seus filhos e você não iria comprometer sua liberdade.”. Sabemos que estas intervenções não tem o poder de mudar de modo imediato todo um histórico de opressão e não exercício da cidadania, levando- os a se negarem a agir conforme as leis do tráfico. Nem é esta nossa pretensão. Mas nos leva a cumprir nosso papel ético como pesquisadores e psicólogos por viabilizar reflexões que poderão contribuir para a conscientização destes cidadãos, oferecendo a eles condições de pensarem sobre suas opções de vida, que mesmo sendo escassas, poderão ser mais plenas de cidadania. “Eu fui morar com os ciganos. Meu pai me buscava várias vezes lá, mas eu fugia e voltava. A senhora sabe, naquela época não havia Conselho Tutelar, quando os ciganos iam mudar, meu pai apareceu e me levou de volta, foi com eles que eu aprendi a roubar...” (Paulo). 51 Esta fala de Paulo se deu já no final da pesquisa, o que revelou estar ciente agora da existência de um órgão público que poderia intervir numa situação experenciada por ele. É importante frisar, que anteriormente, Paulo desconhecia a existência do Conselho Tutelar conforme depoimento acima. 1.2.3) Romance X História Vivida “O romance é, então, o que permite sair da contingência, de mudar de lugar, de bagunçar o peso das determinações, de se inventar uma vida melhor.” Vinc ent de Gaulejac “O homem resiste a ver a realidade como ela é; ele ama travesti-la de acordo com seus desejos, com seus medos, com seus interesses ou sua ideologia. Aqui o romance é o inverso da vida. Não é a vida. Não é a vida concreta e objetiva, é a vida imaginária e subjetiva, o desejo de outra coisa que se exprime. E é nessa capacidade de imaginar uma outra vida que o indivíduo vai conseguir energia para construir essa outra vida.” (Gaulejac, 1996:6) À medida que se dava o recolhimento de história de vida de Paulo, suas experiências infantis, sua vida familiar, sua entrada no tráfico de drogas e prisão eram relatados de modo muito aberto e fluente. Não se percebia nenhuma reticência, nenhum titubear que denunciassem fatos diferentes da realidade por ele vivenciada, a não ser a tentativa de se mostrar um recuperando perfeito para, fruto da expectativa 52 “Eu mesmo nunca tomei um pau da minha mãe. Meu pai nunca bateu em mim. E eu cresci nesta ai, ó.”(Paulo) Contudo, durante a visita que fizemos à sua casa, os depoimentos dados por sua mãe e irmã, contradiziam muitos dos relatos feitos por Paulo sobre seu pai. “O pai do Paulo sempre foi muito violento. Chegava em casa e batia nas crianças...no Paulo era o que ele mais batia, eu tinha que entrar no meio para ele não espancar ele... aí eu apanhava. Quando ele viu que Paulo estava andando com bandido ele ficou furioso, bateu muito nele e ficou sem conversar com ele muito tempo.”( depoimento mãe Paulo) Sua irmã revelou a preocupação com os filhos dele, pois perguntavam por ele e eram proibidos de ir à APAC visitá-lo. Como Paulo havia relatado à que o aniversário da sua filha era naquele dia, 15 de maio e que ela freqüentava a casa dos seus pais, levamos um livro infantil de presente para ela. Contudo, quando perguntou pelos filhos dele obteve a seguinte resposta: “A mãe deles não deixa eles ir visitar na APAC. Dá dó... tem mais de ano que Paulo não vê os filhos dele, ele sofre muito. Ela mora aqui perto... eu levo o presente que a senhora trouxe para ela.” (irmã de Paulo). Contudo, nos relatos de Paulo, havia sempre a referência a seus filhos como se estivessem fazendo as visitas e conversando com ele: “Meu filho de oito anos de idade pergunta: “o meu pai, senhor ta preso?” Eu não to preso não. “Aqui é uma roça né meu pai?”É aqui é uma roça. Criança a gente não pode contrariar, não. Tem que amar a criança. Eu to pensando muito 55 neles, no meu menino e na minha menina. To muito pensativo esses dias. Eu demonstro pra eles que eu amo eles, eu gosto muito deles.” (Paulo). Neste momento, ficou claro o quanto Paulo havia citado fatos, diferentes da realidade, porém que correspondiam ao seu desejo: manter contato com seus filhos, acompanhar seu crescimento, presenteá-los com artesanatos que ele próprio fazia. Também com relação ao seu pai, o fato de ser sido severamente punido e agredido por ele, era algo que preferia mudar, daí os vários relatos e afirmações: “Meu pai nunca me encostou um dedo... é eu tive educação, carinho...” (Paulo). “... é em torno do romance familiar que se encadeou no que me concerne, a reflexão entre fantasia e realidade de uma parte, e entre o social e o psíquico de outra parte. O romance familiar está no coração das articulações múltiplas e ele exprime claramente, que a vida é um romance ou, pelo menos, que o desejo de fazer de sua vida um romance é um modo privilegiado para suportar as contingências.” (Gaulejac, 1996:6). Após a visita à sua casa, Paulo assumiu outro discurso e postura diante da pesquisadora mesmo não tendo lhe dito nada do que havia sido relatado por sua família. “A senhora foi na minha casa, né? Minha coroa me contou na visita domingo...a senhora conheceu minha irmã? O que a senhora achou da minha coroinha, ela não é mil grau? E a minha irmã , ela não é linda? Muito obrigada pelo presente que a senhora levou para minha filha...pô que saudade daquele lugar...a senhora viu minha casa? A senhora viu meu esconderijo da minha treis oitão?”( Paulo) 56 Paulo demonstrou um estreitamento do vínculo de confiança conosco e sem nada explicitar a respeito, reestruturou todo discurso que mostrava ter tido uma infância “perfeita” e uma freqüente convivência com seus filhos, relatando paulatinamente durante vários atendimentos o quanto sofria saudades dos filhos, o quanto sofria por não poder vê-los pelo fato da mãe deles não deixar que o visitasse na APAC e como seu pai era “bravo”. A partir deste momento, os encontros para recolhimento de história de vida tiveram outro tom, Paulo continuou muito falante como era desde o início, porém começou a relatar de modo mais intenso seus sentimentos experenciados no sistema prisional, na sua vida pessoal, seus sonhos noturnos e, pela primeira vez relatou sua ausência de sonhos para sua vida: “Eu não sabia que minha irmã tinha um sonho... eu nunca tive sonhos, bandido não tem sonho ele morre cedo... ele vive aqui e agora e não no futuro... eu falei pra minha mãe que meu sonho era me casar e ter filhos, mas só depois dos 40, antes não... é difícil bandido ter 40 anos.” (Paulo). Além dos depoimentos dados sobre seu pai e filhos que foram contraditos por sua mãe e irmã, outro aspecto interessante foi o fato de Paulo afirmar que a família de sua mãe era de bandidos e que seu avô materno estava no crime há mais de 50 anos e que o considerava o neto predileto. Contudo, também estes relatos foram alterados. Paulo revelou que a família de seu pai era composta de bandidos e policiais e que o avô materno era, na verdade, um lenhador. Reafirmou a admiração de seu avô paterno pelo fato dele ser o neto que mais parecia com ele. Este aspecto nos pareceu, contudo, não fruto de um romance, estimulado por um desejo, mas sim como uma leve deturpação dos fatos para garantir a segurança de sua família paterna que ainda continua no crime em Minas Gerais. Ainda não havia sido estabelecido um vínculo de 57 2) História de Vida de Paulo – “Tráfico de Drogas: uma opção entre escolhas escassas”. “Minha história de vida tem muitas rosas e espinhos, mais rosas.” (Paulo). 2.1) Infância “Eu tive infância, é uai... matava mosquito, é uai... gostava muito de ir em parquinho, tinha uns parques, andava de aviaozinho, praticava tiro ao alvo, eu adorava, roubava manga na casa dos vizinhos e andava muito de cavalo...” É capixaba, veio para BH em 1980, nasceu em 1979. Pai nascido em Vitória, Espírito Santo, mãe,de Pedra Bonita, Minas Gerais O pai trabalhava na construção civil. Desde pequeno começou a trabalhar com o pai, morava em bairro na Capital. Disse que ficou iludido com o crime e começou a trabalhar como olheiro. O pai ficou muito chateado e mudou para o atual bairro onde mora, na época que estava começando, não tinha o crime ainda. O pai quis ir para lá para tirá-lo do crime. Começou novamente a trabalhar com o pai, mas o crime foi crescendo no bairro, vários bandidos começaram a matar inclusive pessoas inocentes. “Eu tenho sete irmãos. Eram oito. Um morreu. Minha mãe conheceu meu pai em Vitória da Conquista. Eu vim com 6 anos para Minas. Meu pai comprou uma casa em outro bairro. A família do meu pai veio pra cá. Ela tem polícia e bandido. Meu 60 irmão é trabalhador. Eu sou trabalhador do crime. Quando meu pai viu que eu estava no meio de bandido mudou para o Palmital. Só que lá cresceu muito e virou favela. Lá o crime é grande. Minha mãe tinha medo de eu injetar droga no meu corpo. É, é muito perigoso os bandido injetam aquilo no corpo. “Tenho medo do Paulo também começar a colocar aquelas coisas ruins no corpo dele.” Aí nós mudamos para o bairro. Eu cresci em favela. O pai da minha mãe tem 92 , a mãe dela tem 97. Ele é um bandidão, da pesada. Eu pareço com ele. O meu pai tinha um irmão que era bandidão. Ele morreu de uma doença sinistra, não foi de bala não. Ele era maior pegador de mulher. É... ele tinha umas dez mulheradas . Ele era um negão igual meu pai. Um dia ele arrumou uma mulhe que tava com o vírus HIV e pegou nele. Ele ficou magrinho... Os filhos deles viraram bandido. Tenho 8 primos, todos bandidos. Eles estão lá matando e mexendo com drogas”... Paulo relatou que o irmão é mais novo que ele, que trabalha como bombeiro e eletrônica de carro. Diversas vezes Paulo se referia ao irmão com certa preocupação dizendo que não iria “deixá-lo na areia”, pois ele tinha família e era do mesmo sangue. Paulo relatou que teve uma infância muito boa. Brincava na rua, nadava no córrego, corria pra cima e pra baixo, subia em árvores. Lembrou de cenas da sua infância quando já mexia com o tráfico. Disse que um dia, estava em casa preparando o crack. Reafirmou que nunca mexeu com crack. Só com maconha. Mas vendia também. Quando uma vizinha entrou na sua casa com sua mãe e viu todo o material em cima da mesa. “E aí, seu filho está mexendo com isso também?” Ela perguntou. A mãe disse que não, que não era dele não. Outra vez, já era mais velho, chegou a casa com duas armas e muita droga. Como estava drogado, colocou tudo sem querer na bolsa da mãe que ficava dependurada na parede e foi dormir. Sua mãe saiu para ir ao médico e levou tudo 61 sem saber. No caminho, ela percebeu que estava muito pesado e abriu a bolsa. Teve que voltar pra casa. Ele ressaltou que sua mãe é muito linda. Que tem sardas no rosto que são lindas. Paulo sempre fala muito bem da sua mãe. “Minha mãe é mil grau. Lá perto de casa todo mundo, todo mundo gosta dela. Minha coroinha é mil grau: ela entende bandido, entende trabalhador. Todo mundo na favela gosta dela.” “Com todo respeito, meu pai é negão, minha mãe é loirinha. Eu quis comprar um óculos pra ela. Falei: pai, compra uns óculos bom, pois ela merece. Minha mãe é muito coruja, ela cuida muito bem de nós todos. Eu gosto escolhas escassas de toda minha família, inclusive da minha irmã que é adotada. Ela é loira dos olhos claros, parece com sua mãe. Ela parece comigo, só que eu tenho o olho mais amarelado. Minha mãe diz que essa é nossa filha mesmo, é sua irmã, pois parece com você” Apenas em alguns momentos durante a pesquisa, após ter passado alguns dias em sua casa em duas saídas, ele ressaltou que sua mãe é muito brava. “Muito 22” “... quando eu tinha 12, 14 anos eu fumava muita maconha. Era um maconheiro nato. Depois eu passei a cheirar cocaína a beber muito. Estava iludido com o crime. Antes de conhecer o dinheiro, eu trabalhava direito, depois que conheci o dinheiro, eu fiquei doido. Pra que trabalhar se a droga dá dinheiro, o dinheiro tava entrando, muito dinheiro. Eu roubava porque eu achava que se ele tinha muito, tinha que me dar tudo que ele tinha.” 62 sorte, pois peguei uma mulher virgem, eu sabia que ela não tinha doença nenhuma. Daí a dois anos ela engravidou do meu menino. Eu gostava muito dela. Mas ela fez safadeza comigo, me traiu quando eu estava na cadeia. Durante o período que esteve com a mãe de seus filhos, Paulo não dizia que estava envolvido com o crime. Ele falava a princípio que trabalhava no centro da cidade e depois arrumou um emprego em um supermercado no qual trabalhava durante o dia, sendo que a noite ele realizava as atividades de tráfico e posteriormente de assalto à mão armada. “Chegava do serviço, ganhava muito dinheiro, falava que trabalhava com meu pai, ta mexendo com seu pai? É eu trabalho com meu pai na construção, mas não era com meu pai não, eu tava na rua vendendo droga, eu escondia dela que era vendedor de droga, ela dizia, esses caras aí na rua vendendo droga é tudo sem vergonha, aí eu não dava idéia pra ela não, passado o tempo eu tive dois meninos com ela, aí tive uma menina, que tem sete anos agora e que é minha jóia rara, aí beleza continuei no crime vendendo droga, fazendo o que eu podia fazer, passando o tempo eu falei...” Paulo morou com ela até ser preso, pois, como ela não sabia que ele era envolvido com atividades ilícitas, ficou muito assustada quando foi visitá-lo na cadeia e acabou não voltando mais. Ele se sentiu muito traído e abandonado, principalmente porque ainda gostava muito dela e sentia falta dos filhos. Embora estivesse morando com ela, Paulo mantinha relacionamentos com diversas mulheres. Na sua visão, “bandido tem que ter muitas mulheres.” Quando descobriu que sua ex-mulher estava morando com outro homem, ficou muito chateado. Durante a pesquisa, Paulo se mostrou muito magoado pela traição dela e revoltado quando ela começou a tentou se 65 aproximar dele nas suas descidas. Ela chegou a ter um filho com o outro homem com quem estava morando. “Agora ela está lá... arrumou um cara que bate nela. Ele bebe e bate nela. Eu fui lá na casa dele e falei que, se ele colocar uns óculos escuros nos meus filhos, óculos escuros quer dizer murro no olho, eu mato ele. Eu mostrei pra ele as armas que eu tinha e falei que se ele encostasse um dedo nos meus filhos eu descarregava na cara dele. A sogra dele ficou assustada e disse que ele não batia nos filhos dele não, só brigava com a mulher. Agora minha mulher quer voltar pra mim...eu não quero de jeito nenhum...quando eu estava preso lá no Distrito, ela foi me visitar só uma vez e não voltou mais. Agora, que eu estou quase solto, ela quer voltar? De jeito nenhum.” “Gosto muito da quebrada, minha quebrada, fui criado na favela desde criança, gosto da favela. To aí, tenho arrependimento mesmo . Um dia estes caras que estão vacilando aí vão se cobrado. Não acabou o dia não.” “Fiz um barco pro meu pai do cruzeiro. Ele é cruzeirense. Minha mãe também. Eu virei galo porque gosto de preto e branco. Meu pai falou: “meu filho escolhe uma camisa” eu era moleque. Eu falei: “Meu pai aquela preta e branca, de galo.” Sempre gostei de calça preta e camisa branca. Meu pai falou: “meu filho, porque você virou cruzeirense”? É eu virei meu pai. Desde os 6 anos eu já era atleticano. Tem 22 anos que eu sou atleticano.” Estudou no Colégio pela manhã. Disse que não era muito bagunceiro na hora da aula não, mas que na hora do recreio levava maconha pra todo mundo. “Eu fazia a maior zoeira. Dei uma cadeirada numa professora e ficava zoando a aula toda. Meu pai já foi me buscar no colégio e me pegou pela oreia. A professora viu tudo e falou 66 que eu merecia. Minha mãe ia no colégio, eu gostava mais quando ela ia porque ela não me batia...Eu já quebrei janela com bola de futebol, arrebentei uma porta do banheiro porque ela tava fechada. Eu já tava no crime. Eu unia tudo: escola e venda de droga. Um dia meu pai me falou pra eu sair do colégio e ir trabalhar com ele. Eu saí no primeiro ano do segundo grau. Por isso eu tenho instrução...eu gostava de ciências, ficava lendo os livros do corpo humano. Eu tive uma professora que eu gostava muito ela chamava Valdete.” “Olha, em 2000 eu conheci uma meninha, eu tinha 17 anos, ela era linda, linda mesmo, morena dos olhos verdes, um corpo lindão. Aí eu comecei a namorar com ela e a gente ficava junto o dia todo. Quando eu tinha que ir pras quebradas eu falava pra ela não ir, ficar me esperando pois era perigoso. Ela me dava muitos whiskys caros... um dia eu pedi a um menor pra acompanhar ela e ver o que ela fazia, ele me contou que ela ia pra casa das “tia”, a senhora sabe, para a zona. Ela fazia a vida...eu fui à zona, com todo respeito com a senhora, eu freqüentava muita zona... quando eu cheguei na zona eu vi que ela estava com um boné tampando o rosto dela, eu perguntei quanto era o programa, porque a gente tem que perguntar quanto é, ela me disse que era R$20,00, quando ela me olhou ela ficou desorientadinha...eu disse pra ela nunca mais me procurar pois eu tinha nojo dela. Eu sei que é o trabalho dela, ela tinha uma filha pra sustentar, mas eu não pego baba de ninguém não...Eu desisti da belezura. Você namora uma mulher bonita e todo mundo fica de olho nela. Eu olho o que ela tem dentro dela, os sentimentos dela. Você pega uma laranja e vê a laranja redondinha, bem bonita, descasca ela, quando parte você prova e vê se ela está podre ou não. Pode ser que você escolhas escassas mordeu a semente, aí tudo bem. Mas laranja podre eu não quero não. Eu sou igual a uma lima, a gente não chupa a gente descasca, ela é muito grande, depois a gente parte, pois no liquidificador e penera. Dá um suco muito 67 outro, matou o outro, matou outro, aí do avião que eu era, me transformei no vapor, já não era mais avião na boca, já era avião que compra as coisas pro bandido, o bandido não pode andar, bandido trabalha escondido, ele é intocável...o dia inteiro convivência com criminosos, eu era avião dos bandidos, só que os bandidos me tratavam muito bem, nessa época aí meu pais brigava muito comigo me dava no coro, eu falava pai ta tranqüilo, eu só entrego pra eles aí, ele falava que eles iam me pegar, me entrega. Quando eu era pequeno, o pessoal lá do outro bairro que eu morava, juntava todo mundo pra fazer o time do galo. Eu ia no meio deles. Eu ficava nos meio dos bandidos. No Mineirão já fui detido com oito armas. Eu levava e buscava droga. Fazia tudo por eles. Eu era de menor e não podia ser preso. Eu tenho 12 Bos de posse ilegal de arma quando eu era de menor. E 3 BOs quando eu já era de maior. Um bandido matava o outro, aí a bandidagem acabou... quem entrou, virou pai de família, morreu de velho... bandido quer uma coisa, vamos supor tem lá a guerra feia um ta querendo que o outro trafica o outro ta querendo meter o assalto aí aquele que furta é mais perigoso que o que vende droga, porque o que vende droga, o que mete furto assaltante quer pegar o revólver, porque o revolver trás mais dinheiro. Um quer assalto, o outro só que mexer com droga, o artigo 33 é o artigo do tráfico de droga e o artigo 157 é o artigo do assalto a mão armada, quando a chapa tava quente eu saltava fora, aí passado o tempo era cinco avião na boca, tem três vivos, um já morreu e aconteceu o seguinte que o pessoal entrou em desentendimento com o outro, o traficante e o assaltante, o traficante quer ganhar o dinheiro tranqüilo mas o assaltante quer buscar o tesouro, meter o revólver e pegar o tesouro... o que acabou em um matando o outro, aí o que aconteceu, acabou os criminosos de verdade, aí veio nós, né? 70 Ai já era eu, é... eu já não era mais o avião, era o vapor e o vendedor também, eu mexia com entorpecente, né? Não mexia com crack não, mexia com bagulho mesmo, com maconha,aí parei de mexer com maconha,lá passou o tempo eu já queria cocaína, né? O vapor tem que ter, artigo 33 que é o tráfico de drogas comecei a vender droga igual doido. Eu era muito menino nesta época mesmo eu só queria zoar mesmo, beber, cheirava eu não cheirava não, só mexia com entopercente, ganhava muito dinheiro.” “Eu fui criado no morro, ce entendeu? Conheci vários tipos de vagabundos de todo tipo: estuprador, dono de boca, ladrão...” Mas, de acordo com ele, ganhava muito pouco. Ficou iludido com o crime de novo, queria comprar as coisas, queria ter mais. Já tinha geladeira, TV, mas não tinha microondas. Começou a ser olheiro e virou o braço direito do dono da boca. “Chegou um pessoal “carioca do Rio de Janeiro” e a mulher do cara deu mole pra mim. Bandido não ama, tem sentimento. Choveu de mulher em mim, me dando mole. Fiquei com elas e minha mulher me largou. Estava iludido com o crime, ganhava muito dinheiro. As mulheres adoram bandidos, elas gostam mais de bandido do que de trabalhador, porque trabalhador chega cansado em casa e não dá no coro...bandido, não, eu, por exemplo, com todo respeito pela senhora, eu sei dar prazer para uma mulher. Ela tem que ter prazer primeiro...a senhora sabia que faz bem pra pele? É outro dia eu vi na televisão, mas bandido não tem uma mulher só não...eu tinha várias...” Paulo narrou os homicídios que mandava os “menores da boca” cometer com o intuito de defender a boca de possíveis invasões. Disse que ia para as festas. Começou a “mandar matar gente, pois tinha que ficar esperto para defender o dono da firma”. Relatou não ter matado ninguém mas mandava matar. Alguns homicídios chegou a 71 cometer quando era “de menor” para defendê-la também, como é o caso do policial que invadiu o bairro e ficou de frente para ele. Nesta época ele já era soldado da boca e, de acordo com ele, tinha que defendê-la. Quando se tornou gerente da boca, mandava que tais mortes fossem feitas pelos olheiros e soldados da firma. “Ai eu comecei a comprar um revolvinho, comprei revólver, besteira não queria matar ninguém não, aí eu tinha 157, paguei 1.000 reais nele... o quê rapaz, este negócio de vender droga ta dando problema. Coloquei os meninos pra vender droga, aí eu comecei a praticar o 157, aí eu comecei a fazer o crime andar ,mas eu era daqueles igual antes, né? Se você quer vender droga vai vender, se quer roubar você rouba, se não roubar não tem essa de não vai vender droga não, aí eu era humilde, na parada “e aí meu irmão vou arrumar um lugar pra você lá embaixo lá,” “Não, vou vender droga mesmo,...” não queria por a família dele em risco né?” “Os meninos da boca matavam”. “A violência aumentou muito, mataram o dono da minha boca, como eu era seu braço direito, fiquei sendo o dono da boca. Passei a ser o dono de tudo. Minha boca era famosa, muito perigosa. Você conhece a famosa boca do bairro? Era minha muito poderosa. Aí ameaçaram de me matar. Queriam minha boca. Chegou um pessoal de São Paulo. Eu comecei a ir para a Igreja, levando a arma. Fiquei com medo de ser morto. Uns caras aproximaram de mim e me deram uma facada no braço ( mostra para a pesquisadora a cicatriz). Chegaram me chamando de amigo... e me esfaquearam. Meu pai falava... “eu trouxe você para cá para você sair do crime e você entrou nele de novo”. 72 “Eu falei com ela, ela é mil grau, eu falei que desembolei com os irmãos lá da boca e que não é pra fazer nada com ela não, pois ela é mil grau, não discrimina ninguém. Mas o fulano não tem jeito não. Eles viram ele dentro do ônibus mas não fizeram nada porque tinha uma menina de 6 anos com uma velhinha. Eles não fazem nada contra criança, é covardia. Criança é coisa de Deus. Quem eles tinha que matar já mataram, era o irmão dele. Ele era um bandidão. Ele e o irmão, ele é mais velho. Levou 5 tiros nas costas. Eles estão só caçando ele.” Paulo deu vários depoimentos do quanto buscava diversificar o local onde realizava suas atividades de venda de droga e assalto. Relatou também o quanto viajava para diversas partes do país para aprender a manipular melhor a droga e estabelecer alguns contatos de compra. Ontem veio uma menina responsa aqui. Ele é de Ouro Preto. Ela me reconheceu: “Aí, eu te conheço”. Ela disse. Eu gostava muito de assaltar em Ouro Preto. “De onde você me conhece? “Da boca do fulanão.” “Ah, sim eu ia muito lá, eu já viajei muito”. Conheço Esmeralda, São Paulo, Rio de Janeiro, Só não conheço a Bahia. Eu tinha uns 15 anos. Até no Paraguai eu já fui. É... aprendi a fazer maconha, fica igual madeira mesmo. No crime tem código para tudo: quando alguém quer maconha grita: irmão dá madeira aí, quando querem crack pedem cascalho, quando querem cocaína pedem a linha branca. Os meninos lá da minha boca ficavam na atividade se os homens chegava eles gritavam o nome de uma rua, todo mundo corria e fechava a boca. Eles passava. Depois eles faziam a ronda deles e os meninos no 75 binóculo gritava: ta bravo: quer dizer que tava tudo limpo. Eu sei todos os códigos do crime.” “A vida de bandido é dura, não é brincadeira não, Crime é doença, eu lhe digo por que você mata alguém por causa da droga, e você mata outra pessoa que também tava doente, pra não te matar.” 2.4) Vida Carcerária Paulo foi preso durante um assalto a caminhão de carga. Até então, nunca havia sido preso e ficou muito chateado, pois um dos policiais que o prendeu o reconheceu e lhe perguntou por que ele não havia ficado somente com o tráfico de drogas, pois devido ao assalto ele teria que prendê-lo. “Mas um dia teve uma blitz, nós trocamos tiros com a polícia. Aí teve este probrema aí, nos fomos lá roubar uma carga, a carga tava derrubada, derrubada assim, alguém falou que nós ia roubar a carga deles, um do meio de nós, quando nós chegou, prendemos, beleza, em cima do caminhão tinha um sinal que contactava com a central,eu tava na pilotagem, os cara vão parar o caminhão, eu tava berrado também, tinha metralhadora com nós, um três oitão, Aí eu falei: “vamos trocar tiro com os home” não dá não, é muito pesado, né? Aí ele falou, vou entrar pra fuder mesmo, eu falei, eu num to aqui pra funde não, vou ganhar o meu, meu irmão, não vou fuder, não, os home foi enquadrou todo mundo e aí prenderam. Eu fui preso porque tava roubando. Eu roubava pra comprar muita droga. Não gostava de mexer com pouca droga. Pouca droga não dava dinheiro e dava confusão. 76 Eu queria muita droga pra vender e comprar droga e arma. Meus primos estão no crime. Eles falaram que estão me esperando sair da prisão. Eu falei que não quero saber do crime mais não. Vender minha arma pra eles, eles me deram ‘areia’. O negócio foi feio. Trocamos tiros, aí eu fui preso. Enquanto eu só mexia com tráfico, eu nunca fui preso, não sei por que eu comecei a assaltar carga de caminhão, os home que pegaram a gente me pegaram, gritavam porque eu estava fazendo aquilo pois eu só mexia com droga. Eu tinha um armário cheio de cocaína. Quem me bateu muito não foram esses manos não, foram os da civil. Eles batem para pegar dinheiro. Quando eu sair daqui eu vou voltar para o crime, mas só vou vender droga. Não assalto mais. Eu era conhecido em todas as favelas. Serra papagaio... Subia nos morro e todos me conheciam. Revela como ficou assustado com as condições da cela e com a possibilidade de contrair uma doença. Ele nos relata as condições a que foi submetido no sistema convencional. “Fui para a prisão no Distrito. Lá foi horrível, tinha uns quinze cara neste espaço aqui (mostra o espaço com as mãos). Eu fui preso, fui preso no Distrito lá, cheguei lá não conhecia a cadeia nunca tinha sido preso,falei nossa, onde é que eu fui me meter, nossa... “Eu ficava numa cela do tamanho deste quadrado aqui, com uns vinte homens, todos me relando,... tinha irmão com tuberculose, a senhora sabe que tuberculose pega, tinha até um irmão com AIDS... eu detesto homem me relando...Eu gostava de tomar banho pra arejar a cabeça, aí os mano me falou que era perigoso eu pegar pneumonia, pois não tinha ventilação na cela, e não batia sol. Eu tinha um colchão pra mim, os irmão falava: ô irmão, me dá uma carona, porque a gente dormia no colchão igual pedra, eu tinha um colchão só pra mim, o colchão na cadeia quando alguém tem um colchão é porque é latrocínio, matava pra roubar, eu não matava 77 relando em mim também não. Aí tinha dois deles que era mil grau, né eram macumunado comigo. Eu dividia alimentação, mas falava: não mexe na minha colher não, não quero ninguém pondo a boca no meu copo, não, você não é muié... o que tiver de comer pode pegar, pode fazer a festa aê, mas mexer na minha colher, não. Aí os cara me pediu desculpa, “desculpa aê”, eu falei: “ta normal” Aí lá no barraco, lá, você sabe como é que é, todo mundo tinha uma faca, lá, aí eu pensei, nossa todo mundo tinha uma faca na cadeia, eu não tinha maldade não, né? Aí um deles foi embora e deu a faca dele pra mim. Eu fiz um buraco na parede, pus a faca lá, passei pasta de dente, a parede era branca, eu enterrei ela, ficou branquinho assim, eles falavam, quando ele sair nós vamos usar a faca dele, eu falei: “pode usar aê, quando eu sair não quero levar comigo, não. Aí quando eu saí, a faca ficou pra ele.” Devido a sua habilidade manual e conhecimento de construção civil, foi dada a ele uma chance de trabalhar no distrito, o que lhe deu melhores condições de vida, pois podia sair da cela para realizar tarefas solicitadas. Foi aconselhado pelos colegas de cela a tentar a fuga, porem, de acordo com seu depoimento, o fato de não ter tentado fuga e a confiança que despertou nos agentes policiais e que fizeram com que fosse indicado para ir para a APAC. “Aí um dia um cara resolveu me dar uma chance. Perguntou o que eu sabia fazer. Eu disse que sabia mexer com fiação, concreto. Ele disse que ia me deixar livre, mas para eu não fugir porque senão ia ficar pior pra mim. Aí meus colegas falavam: “Aproveita e foge”, eu disse, não, palavra de confiança não pode faltar... foi esta 80 palavra de confiança que fez eu conhecer a APAC, que me entrevistaram e eu vim pra cá. “Ô diretor, droga eu não uso não, só maconha. Ó Diretor, eu quero ir pra APAC, quando tiver oportunidade” Lá tinha muito rato, eu tinha muito medo de rato, né? No barraco tinha muito rato. Eu tava doido pra sair de lá..”. Ao chegar a APAC, Paulo percebe as diferentes condições estruturais da instituição, desde o numero de pessoas alocadas nas celas, que eram, de, no máximo, cinco pessoas, ate as condições de higiene, de acomodações e de condições de realização de laborterapia, através de atividades artesanais. “Aí beleza, eu vim pra cá. Vim pro fechado... Quando cheguei, achei que tinha muita briga, pois aqui é grande, mas depois eu fiquei sabendo que aqui é proibido agredir, ter briga usar droga... nada Quando eu cheguei na APAC, eu vi que eu tinha um colchão só pra mim,aqui eu to igual rei, ó! To dormindo sozinho, ninguém relando nimim, acordo de manhã, acordo cedo, seis hora eu acordo, faço minha oração, tomo banho, faço oração de novo e tomo café, faço meu serviço e vou pro artesanato, faço barco, casa, a cola tinha acabado, falei pro diretor, a cola chegou, eu to montando um atrás do outro, é tenho paciência, To aí vivendo a vida aí do jeito que Deus que. Sem apavoramento, tomando um maracujá aqui outro ali, porque eu sou um cara muito nervoso, escurece a vista assim, eu fico loco, acordo seis horas, fico tranqüilo, de boa, né? Do jeito que Deus qué, pedindo a Deus pra eu ir embora aê, né embora logo...” Paulo revela sua indignação diante da percepção de ter sido injustiçado pelo castigo que havia recebido da Diretoria da APAC, devido a uma agressão física a outro 81 recuperando. Neste período, Paulo estava muito indignado com algumas posturas que, na opinião dele, eram de pessoas que não tinham respeito pelos colegas. Principalmente quando este comportamento era relacionado a posturas de assedio homossexual. “Minha história de vida tem muitas rosas e espinhos, mais rosas. Esta semana estou na reflexão. Na sexta-feira, eu tava tranqüilo, sô, tranquilinho, aí um irmão veio zoá eu, eu dei dois murros no olho dele. Dei um murro no irmão. Ele estava mostrando os ovos pra uns irmãozinhos, não agüentei. “olha aê rapaz, não sou menino, não, você não vem brincar comigo, não. Você ta me fazendo de otário aê, ó. Eu não sou otário, não”. Eu sou bandido porque me iludi com o crime. Eu não sou doido porque eu gosto de dinheiro. Não posso ver dinheiro eu fico loco. Por isso eu não sou doido. Doido rasga o dinheiro, eu não. Ontem tive uma boa notícia. Meus filhos vão me ver no próximo domingo. Eles estavam vindo ontem e perderam o ônibus. Eu falei com minha mãe pra trazer os meus filhos pra mim. Eu fico doido se não puder ver meus filhos. Meus filhos são anjos. Eu falei pra eles ficarem espertos: se alguém chamar pra ir comprar bala, dizer não, meu pai compra pra mim. Meus filhos sentem minha falta, quando estava no crime podia levar eles no parque Municipal, no mangueiras. No parque Municipal tem doze brinquedos. Eu comprava doze ingressos e dava pra eles, toma, vão brincar. Hoje não posso mais. Ta bom! Eu pedi pra minha mãe pra trazer eles pelo menos um mês todo fim de semana.” Paulo foi preso por assalto, mas respondia também por alguns homicídios que aconteceram no bairro onde morava. Durante os atendimentos, os processos contra ele 82 assim, se mexer comigo e com covardia com os mano, eu fico doido e dou murro. Ele falou que vai me matar. Se fala que vai me matar eu mato primeiro, fico cabreiro ( fez gesto com a mão colocando o indicador sobre o polegar e pondo nos olhos imitando um olho) Era só mandar matar, não eu não quero isso. Mas eu mato primeiro se falar que vai me matar. Minha família é de criminoso mas não é de estuprador não. Meu avô ficou 50 anos no crime. Com todo respeito com a senhora. Hoje ele tem 72 Ele fala que eu sou o neto que ele mais gosta. Minha família tem uma parte criminosa. Todos estão velhos, eu sou o jovem, ( depois de um tempo onde mencionou outros assuntos ele continuou: ) A família da minha mãe é criminosa. Meu pai me perguntava: “Filho você sabe o que é o certo e o errado, né? Eu falava sei... ele ficou sabendo que eu era criminoso quando eu tinha 20 anos. Ele me perguntou: “filho, você já foi preso e eu disse que sim.” Meu pai falou para eu ir para São Paulo, mas quando eu saí daqui ele vai me dar a moto dele. Eu dirijo bem moto, como canhão. Sou bom com as mãos. Luto judô, jiu jitso, karatê... Quando eu sair daqui,... lá fora eu sou poderoso. Bandido dorme de manhã, eu não. Bandido tem um lado lobo outro cordeiro. Lobo guará. Fiquei mal visto porque meu mano trouxe droga pra mim eles me descobriram. Agora tem 8 meses que eu não fumo. Eu saco um pervertido... eu vi que o sujeito tava lendo muito bíblia, lia a bíblia o dia inteiro. Eu falei: tem algo errado com esse cara. Ele ria esprimia o olho, quem fecha o olho é perigoso (ele se referia ao recuperando que fugiu)”. Paulo demonstrava diversas vezes sentir, de acordo com suas palavras: “embolado”. Isto porque havia muito “lero, lero, na prisão”. 85 “Quando entram para a APAC é falado que um recuperando deve ajudar o outro. Mas isto não acontece. Eles ficam tentando dar um BO para o outro levar castigo. “Tinham passado um sabão neles dizendo que eles não podem ficar com aquele lero-lero.” Disse que são três coisas proibidas na APAC: “usar drogas, ameaçar e bater”. Paulo disse que há muita ameaça, ele não ameaça e faz. Ele fica no canto dele com o rádio ligado tão alto que dói o ouvido. No fechado ele tinha um espaço só para ele, ali no aberto ele divide o quarto até com cinco pessoas. Relatou que não agüenta ficar levando “sabão de doutor, não”. Que os bandidos ficam fazendo “big bolo (grande confusão) com tudo, uns ficam tentando dar um BO no outro.” Paulo vivenciava diversos momentos de reflexão sobre sua vida, suas escolhas e futuros comportamentos que adotaria depois que saísse da prisão. Demonstrava estar passando por conflitos interiores advindos de balanços que fazia das conseqüências de suas escolhas. Comparava sua vida anterior a prisão, com a atual. Revelava pesar pelas coisas que tinha parado de viver, inclusive dos momentos com seus filhos. O fato de estar se vendo livre da dependência química lhe dava perspectivas de outras mudanças que poderia fazer na sua vida. Mas sempre oscilava entre momentos da certeza de que iria adotar outro caminho para sua vida, com momentos de desconforto pelo fato de ter facilidade em continuar com as atividades do trafico que já estavam esperando por ele. Estas reflexões sempre apareciam acompanhadas por palavras religiosas, afirmações sobre comportamentos considerados importantes e esperados para um recuperando. 86 “Na mão de Deus, não vou mexer com mais nada não, vou pra São Paulo, tenho minha menina, né? Vou comprar uma casa boa pra minha menina, uma motocona pra mim eu gosto muito de moto, ta de boa, né? Cadeia pra mim é só ilusão, crime pra mim é só ilusão... ta maior do que eu minha menina, a mãe dela é alta, vou querer é ficar com Deus, né? Meus inimigo eu entrego pra Deus também, né? Eu não tenho inimigo, mas se eu tiver eu entrego pra Deus, lá fora eu não tinha inimigo não, lá fora eu só tinha amigo. Na boca lá tinha bandido, tem outras pessoas tomando conta da boca, lá, né? Primeiro tem que ter a humildade, porque a humildade é vida e a perversidade é a morte, né? Quem é humilde tem entendimento e diálogo, quem é perverso só pensa perversidade. Coisa ruim chama coisa ruim, coisa boa, chama coisa boa, se a gente não for humilde, os outro acha que a gente ta tirando e arruma problema, ás vezes o crime não tem volta não, quem não é da boca rala, como diz o ditado. Sem droga sem arma, nem canhão, disposição no braço mesmo pra trabalhar. Porque honesto pode andar solto, né? E dinheiro fácil, vai embora fácil, o crime hediondo faz ficar preso, o bandido tem que ficar preso, o trabalhador tem que ficar solto, eu quero ficar solto, trabalhar, dignidade e respeito. Eu não vou chorar, não, eu vou sair caçar um serviço, eu tenho alguém por mim lá fora, meu pai vem toda semana, traz fruta, roupa, o mau meu foi envolver com o crime, o crime não dá futuro. Preso você faz não o que você quer, fica igual passarinho na gaiola, eu quero voar igual a Águia, a águia voa por cima, eu tava voando igual galinha, por baixo, eu tava iludido com o crime, eu estava vegetando no crime, no modo de dizer, né? vegetando no crime através de ilusão, o crime só me passou doença, porque quando eu passei de usar droga eu fiquei gripado, eu fiquei na APAC dois meses gripado, porque o organismo pedia eu não tinha, não podia usar, né? Aí eu pedi pra Dra Maria um remédio pra parar de fumar, eu tomei um 87 eles aí, quinta-feira eu vou ganhar outro diploma. Eu já tenho uns quatro diploma deles aí. Tenho do método da APAC, da Valorização Humana, de religião que é negócio de crente, e este agora de artesanato”. Paulo passou por momentos, na APAC, de muitas oscilações emocionais. Em alguns momentos mostrava-se muito nervoso, irritado com as “fofocas” entre os recuperandos, com muita vontade de se vingar daqueles que falavam sobre ele. Em outros, concentrava-se nas suas atividades de artesanato e buscava não se inteirar do que estava sendo dito. Durante este período, Paulo foi acompanhado pelo psiquiatra da equipe da UFMG e medicado para que conseguisse superar os momentos de ansiedade e oscilação emocional. “Eu fico meio chateado, chateado, não, invocado. Eu fico doido, eu ligo o som até doer. Eu to dormindo muito pouco, me bate um estado de nervo. Tem mentiroso contando mentira pra mim. Eu deixo baixo. Começou a mentira eu ponho algodão no ouvido. Começou a falar muito alto eu ligo o som. Eu sou um cara agitado demais, sou tranqüilo, mas sou agitado demais. Quando eu fico estranho, não é eu não, é outro. Eu fico muito tenebroso. Tenho que segurar a onda,né? Meu filho de oito ano de idade pergunta: “o meu pai, senhor ta preso?” Eu não to preso não. “Aqui é uma roça né meu pai?”É aqui é uma roça. Criança a gente não pode contrariar, não. Tem que amar a criança. Eu to pensando muito neles, no meu menino e na minha menina. To muito pensativo esses dias. Eu demonstro pra eles que eu amo eles, eu gosto muito deles. Com a mulher não. Eu nunca bati nela. Nunca fiz covardia com ela. Não quero papo com ela, não. Não deixo nada faltar pros meus meninos, uma fruta, né? Dei quinze reais pra minha mãe pra comprar coisa pra eles. Peço pra comprar uma roupinha pra eles. Calcinha pra menina, cuequinha. Sandália pra minha menina. Meu pai compra pra 90 mim. Nestes dois anos que eu estou preso já devo ele quase quatro mil real. Fora o advogado que cobrou três mil. Mas eu vou pagar ele. Ele ta fazendo favor. Eu vou dar um tempo do crime. Não vou parar não, vou dar um tempo. Tem meu pai e minha mãe, né? Fica todo de papo com o dotor. Fica contando bobrinha pro dotor. Eu fico furioso. Tipo, sai um entra outro. Eu falei pro dotor: “dotor me manda pro fechado de novo? Me manda pro fechado, dotor.” Aqui no semi-aberto tem muito lero-lero. Muita fofocaiada. Deixa a gente muito nervoso. Home passando por muié. A gente fica chateado. Não to gostando de cadeia, não. Tenho que sair do crime, sair do crime...tem que matar o criminoso, mesmo, matar o criminoso e libertar o homem. Tem um ano que eu estou na APAC. Tem um ano que eu não fumo droga. Chorar eu não vou, né? Graças a Deus vou levando a vida aí. Não to doente. Não to tendo probrema com ninguém. To correndo de probrema também. Quando eu vejo um probrema eu corro longe.” O artesanato para Paulo mostrou-se muito importante, pois, além de sentir orgulho pelo que fazia, levava-o a se concentrar em algo produtivo e evitar possíveis confrontos com outros recuperandos. Em diversos momentos Paulo sinalizava como sua mente era rápida e que precisava se ocupar para evitar pensar “perversidade” que poderia levar a querer criticar um colega seu, a se ofender por alguma coisa dita por um deles e, assim, levá-lo a se descontrolar emocionalmente. A luta travada por Paulo para buscar maior equilíbrio e controle sobre suas emoções foi notória durante todos estes meses de atendimento. Principalmente porque ele parou, não só de consumir drogas, mas também de tomar a medicação para ansiedade que havia sido prescrita pelo médico da APAC. A princípio ele apenas tomava os remédios à noite pois, acordo com ele, “fazia com que ficasse muito sonolento”. Após um tempo, Paulo parou com a 91 medicação e substituiu pelos chás calmantes feitos por uma voluntária da APAC. O artesanato era para ele um momento em que ele evitava pensar no “mundão”. O cara que eu briguei na APAC foi embora, agora estou de consciência limpa. Não tenho probrema com ninguém. Eu sou assim, quando eu não gosto de uma pessoa eu não fico zoando não. Ou eu pego ela de uma vez, ou eu isolo ela. Quando eu era pequeno eu era muito nervoso. Agora eu to tomando o remédio que o médico mandou para os nervos. Eu só tomo a noite. Eu acordo meio zonzo. Mas to tranquilo, viu? Eu tava meio agitado, meio doido. Não tava trabalhando direito. Agora eu to tranqüilo. Naquela época que eu fiquei doido, eu não tava tomando remédio não. Agora to de boa. Meu sistema é este, entendeu? Falar menos e ouvir mais. Agora to bem graças a Deus. To fazendo muito porta retrato. Rosa, azul e vermelho. Ele aceitava os chás e buscava na laborterapia momentos de relaxamento e de “ocupação da sua mente”. Mostrava-se cuidadoso e detalhista nos artesanatos que fazia. Eu tenho uma régua de milímetro e de polegada. Faço tudo nivelado, tirei 30 centímetros de comprimento e 10 de largura. Aqui tem cinco, de largura 30, 23 de comprimento. Aqui fica a foto. Ah vou fazer alguma coisa diferente. Eu bolei. Minha mãe ficou doida. Vou mandar pra minha menina agora. Eu quero fazer um helicóptero. Tudo que tinha de artesanato na APAC eu já dei pra eles. Ah eu tava parado sem fazer nada. Falei ah, vou tirar cadeia, ficar sem lero-lero e ir fazer alguma coisa. Tem mais uns cinco pronto. Eu fiz um e coloquei no showroom e eles achou bonito. Eles foi e comprou eles. Fiz dez e vendi os dez. Ta na mente. Quando eu fico nervoso, a mente não funciona. Agora quando estou na tranqüilidade. Só que a gente fica aí, né? As pessoas vêem e querem comprar. Eu vendo baratinho. Eu não gosto de ficar perdendo 92 desmaio na cama. Fico muito sonolento. Pode jogar água, jogar tudo que eu não acordo.” Paulo narrava os seus sonhos. Para ele, os sonhos eram uma maneira, não só de fugir da realidade, mas de realizar suas vontades. Seus sonhos, castelos nas suas palavras, eram ótimos momentos que vivia e que lhe davam força para iniciar um novo dia. Adorava os momentos de ir para cama e sonhar. “Na maioria das vezes, seus sonhos evidenciavam construção de “castelos”, alguns eram, como falava” premonitórios”, outros mostravam conflitos internos sobre o que fazer como certo entre opções vivenciadas na APAC. Quando tenho sonho bom eu não acordo. Quando tenho pesadelo, eu acordo tipo 22, meio louco, tomo água, louco com as coisas que eu já fiz né? Com as muié, né, tem muita muié também. Dia 23 de novembro eu sonhei, eu tava num castelo lá no mundo, lá fora aí. Aí um irmão falou: “aí irmão, ta ficando doido Paulo? Ta chapado de cadeia?” eu falei: “Não, eu tava lá fora da APAC. Só em sonho, né? Ta fazendo castelo de areia? Não, meu castelo é de concreto, de tijolo. E meu coração é diferente do seu, minha mente é diferente da sua, meu sangue é diferente do seu, eu falei pra ele. Ele falou: “Nossa irmão, sua mente é perigosa.” Não é perigosa não. É de criminoso, mas não é de criminoso que mata gente não. Minha mente é um castelo, construo como eu quiser. Se penso coisa positiva, atrai coisa positiva. Se penso negativo, atraio negativo. Por isso penso positivo. Eu não gosto de acordar, não. Se você ta sonhando coisa boa, você quer acordar? Quando eu sonho coisa ruim, eu acordo invocado, passo uma água no rosto e não falo com ninguém. Eu sou um cara 22, entendeu? Se acordo invocado.... Quando me acorda eu fico nervoso, não mexe comigo, não. Aí irmão, eu te 95 acordei pra te pedir um suco. Já falei, não precisa pedir, não, vai aí e pega as parada aí. Eu só guardo meu glicerina, sabonete e escova de dente. Isso aí não empresto pra ninguém não. Biscoito, suco, refrigerante, pode pegar dou tudo. E to vivendo aí na tranqüilidade. To mexendo com vários tipos de cerâmica to fazendo santo, vaso, vários tipos de gesso. Meu pai é mestre de obra, trabalha na construção. Meu pai não fala muita gíria. Meu pai é mil grau. O que mais zoa aqui sou eu. O pessoal vem falando lero-lero comigo, eu vou e pá. Não gosto de saber da vida de ninguém não. Fofoca é pra muié. O pessoal fica bravo comigo. Quem é, é, quem não é o cabelo vai voar. Meu cabelo não vai voar, não. Eu vi o irmãozinho, aquele que fugiu. De noite eu tava meio gripado, acordei pra tomar água, suco, ir ao banheiro. Esse dia tinha muito pernilongo, quando eu deitei no sonhador, tinha dois pernilongos no meu ouvido. Eu levante e vi o irmãozinho. Eu não falo nada não. O problema é que eu fiquei sabendo que alguns recuperandos que foram lá para o mundão e alguns daqui que mandaram carta lá pro mundão, pedindo que eles cortem a cabeça de alguns recuperandos aqui da APAC, por causa destas punições. Como eles vão jogar futebol lá fora no dia 13, um irmão me contou que já estava tudo marcado para o massacre. Eles queriam matar muitos recuperandos. Eu fiquei sem saber o que fazer, pois não queria me intrometer nisto, não. Ce ta doido, eu quero é ficar de fora. Aí eu fui deitar e comecei a pensar nas muié, ce sabe que eu sempre penso em muié, né? Então vinha sempre esta idéia na minha cabeça, eles ia matar os irmão, eu mandava a idéia ir embora, ela voltava de novo. Aí eu dormi e sonhei com dois homens, um branco, vestido de branco e outro preto todo vestido de preto. O preto falou assim pra mim: “ah, num esquenta, não mexe com isso não, deixa pra lá”, ele estava cavando a terra, um buraco e o branco me mostrava umas melancias bem grandes e pedia para eu plantar as sementes. O preto falava para eu não plantar. Aí eu 96 acordei assustado... Quando eu fui falar para o irmão do CSS o que estava para acontecer. Ele disse: Não mexe com isso não, deixa pra lá. Aí eu liguei as idéia do home preto e ele me falando a mesma coisa. Eu vi que eu precisava falar com outro irmão do CSS, pois não podia dar atenção ao home preto. Já imaginou se eles fazem uma chacina? Aí acaba a APAC... e o diretor como é que fica? Eu falei pros outros irmão e aí eu acabei pegando castigo... eles não querem que cancele o futebol lá fora. Pensa bem... tanto lugar pra jogar futebol aqui dentro, e eles querem jogar lá fora. O diretor é bacana comigo, quando eu vim pra cá eu fiz muita zoeira, pedia os irmão pra trazer maconha, cocaína, zoava até, bati nuns irmão...mas agora... eu vi que não vale a pena, que eu quero sair daqui e pra sair, eu tenho que fazer tudo legal... mas eu não agüento estes caras daqui, é muita falsidade...eu não gosto de ninguém falso... o diretor ta me dando força, é acho que ela viu que eu sou um cara legal. Mas eu sou estourado também. Eu sonhei com a senhora duas vezes. A primeira vez foi quando a senhora foi embora, eu sonhei que a senhora não veio, eu estava na horta quando a senhora chegou na APAC e pediram pra senhora levar um copo de suco, eu estava suando, aí eu acordei. Fiquei embolado, esperei um pouquinho e desembolei. Agora sonhei de novo. A senhora correndo. Eu perguntei o que a senhora arrumou na perna. Ah não, eu caí e relei. Aí hoje eu vi a senhora chegando e fui guardar os porta-retratos que eu tava fazendo. Eu não me apego a ninguém, não. Assim, amor é só de mãe, você entendeu? Mas as pessoas que a gente tem conivimento fica na mente, fica um pouquinho de sentimento. Sentimento é uma coisa que ninguém brinca, ce entendeu? Vem cá, como é que chama aquela dona de olhos verdes? Ela falou que você tava doente. Eu sou um 97
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