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Guias e Dicas
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Truques da mente: O que a mágica revela sobre o nosso cérebro, Notas de estudo de Sociologia

Esse livro é o resultado da pesquisa feita pelos neurocientistas Stephen L. Macknik e Susana Martinez-Conde, fundadores da neurociência da mágica, sobre o ilusionismo e o modo como os antigos princípios do mundo da mágica podem ser explicados pelas mais recentes descobertas da neurociência cognitiva. Mágicos revelam suas técnicas e os segredos por trás dos truques e, dessa forma, ensinam muito sobre o funcionamento do nosso cérebro.

Tipologia: Notas de estudo

2020
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Compartilhado em 03/11/2020

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sergio-souza-71 🇧🇷

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Baixe Truques da mente: O que a mágica revela sobre o nosso cérebro e outras Notas de estudo em PDF para Sociologia, somente na Docsity! O QUE A MÁGICA REVELA SOBRE O NOSSO CÉREBRO - BREGA [OS e STE + leveza e diversão” aiii Stephen L. Macknik e Susana Martinez-Conde [RR RA Stephen L. Macknik e Susana Martinez-Conde com Sandra Blakeslee Truques da mente O que a mágica revela sobre o nosso cérebro Tradução: Lúcia Ribeiro da Silva Introdução TERCEIRA LEI DE CLARKE: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.” LEI DE NIVEN: “Qualquer mágica suficientemente avançada é indistinguível da tecnologia.” AGATHA HETERODYNE (“GIRL GENIUS”), PARÁFRASE DA LEI DE NIVEN: “Qualquer mágica suficientemente analisada é indistinguível da ciência!” Alguma vez você já se perguntou como funcionam os efeitos mágicos? Moedas se materializam do nada. Cartas se movem em um baralho como se fossem puxadas por uma força invisível. Belas mulheres são cortadas ao meio. Colheres se vergam. Peixes, elefantes e até a Estátua da Liberdade desaparecem diante dos nossos olhos. De que forma um mentalista adivinha os nossos pensamentos? Como é possível não ver um gorila na sala? Como alguém consegue deter um projétil com os dentes? Como fazem isso? Não se dê ao trabalho de perguntar a um ilusionista. Ao ingressar em uma organização de mágicos profissionais, é possível que o iniciado seja solicitado a prestar um juramento: “Como mágico, prometo jamais revelar o segredo de qualquer ilusão a um não mágico, a menos que essa pessoa também jure respeitar o juramento dos mágicos. Prometo nunca fazer nenhum truque para não mágicos sem antes praticar o efeito até poder executá-lo bem o bastante para preservar a ilusão da magia.” Trata-se de um código. Uma confraria. O mágico que desrespeita esse código corre o risco de sofrer a reprovação de seus colegas profissionais. Então, o que nós, dois intrusos, estamos fazendo ao escrever um livro sobre mágica? Já não se revelou quase tudo sobre o ilusionismo? Escreva “mágica” na caixa de buscas do site Amazon Books e aparecerão 75 mil resultados. Procure no YouTube e você poderá ver praticamente todos os truques de ilusionismo já inventados – muitas vezes demonstrados com adoráveis criancinhas de sete anos em seus quartos, enquanto a mãe ou o pai seguram a câmera. Visite a Craiglist e faça sua escolha em uma miríade de encantadoras descrições de mágicos amadores locais. O que mais resta dizer? Na verdade, muita coisa. Este é o primeiro livro que já se escreveu sobre a neurociência da mágica, ou, se você preferir, a neuromagia, termo que cunhamos ao iniciar nossas viagens pelo mundo do ilusionismo.1 Muito já se disse sobre a história da prestidigitação, os truques dos profissionais, os mais recentes acessórios de apoio e as reações psicológicas aos efeitos do ilusionismo. Mas a neurociência vai mais fundo na investigação. Queremos revelar o interior do cérebro no momento em que somos tapeados por truques de prestidigitação. Queremos explicar, em um nível fundamental, por que somos tão vulneráveis aos truques da mente. Queremos que você veja que a ilusão é parte integrante do caráter humano. Que enganamos uns aos outros o tempo todo. E que sobrevivemos melhor e usamos menos recursos cerebrais ao fazê-lo, por causa da maneira pela qual nosso cérebro produz a atenção. Como muito do que acontece na ciência, chegamos ao ilusionismo por acaso. Somos neurocientistas do Instituto Barrow de Neurologia (BNI, na sigla em inglês), na cidade de Phoenix, Arizona. O BNI é o mais antigo instituto autônomo de neurologia dos Estados Unidos e, no momento, tem o maior serviço neurocirúrgico da América do Norte, fazendo mais de 6 mil craniotomias por ano. Cada um de nós dirige um laboratório de pesquisas no instituto – Stephen, o laboratório de neurofisiologia do comportamento, Susana, o laboratório de neurociência da visão. A propósito, somos casados. Temos o interesse primordial de descobrir como o cérebro, na condição de dispositivo feito de células individuais chamadas neurônios, é capaz de produzir a consciência, a sensação de nossa experiência na primeira pessoa.2 De algum modo, quando os neurônios se ligam uns aos outros em circuitos específicos, atinge-se a consciência. Essa é a suprema indagação científica, e a neurociência está prestes a respondê-la. Nossa incursão pelas ilusões começou há uma década, quando, como jovens cientistas que buscavam renome, tentamos instigar algum entusiasmo popular por nossa especialidade, a neurociência da visão. Em 2005, depois de aceitarmos nomeações para o corpo docente do BNI, organizamos a anual Conferência Europeia sobre Percepção Visual, que se deu na cidade natal de Susana – La Coruña, na Espanha. Queríamos expor a ciência da visão de uma maneira nova, que deixasse o público e a mídia intrigados. Estávamos fascinados pela maneira como a ciência é capaz de explicar algo sobre as artes visuais – por exemplo, o trabalho de Margaret Livingstone sobre por que o sorriso da Mona Lisa é tão inefavelmente enigmático. Também sabíamos que as ilusões de óptica são de importância fundamental para se compreender como o cérebro transforma informações visuais brutas em percepção. A ideia que nos ocorreu foi simples: criaríamos o concurso A Melhor Ilusão do Ano. Pedimos a comunidades científicas e artísticas que contribuíssem com novas ilusões de óptica e recebemos mais de setenta inscrições. A plateia (uma mistura de cientistas, artistas e público em geral) viu as dez melhores ilusões e escolheu as três primeiras. O concurso, que hoje está em sua sétima edição, foi um enorme sucesso. Nossa audiência na internet dobra a cada ano, e nosso site (http://illusionoftheyear.com) recebe cerca de cinco milhões de visitas anuais. Por causa de nosso sucesso com o concurso de ilusões de óptica, a Associação para o Estudo Científico da Consciência (ASSC, na sigla em inglês) nos pediu que presidíssemos sua conferência anual em 2007. A ASSC é uma associação de neurocientistas, psicólogos e filósofos unidos pelo objetivo de compreender de que modo a experiência consciente emerge das interações de células nervosas desprovidas de pensamento e individualmente não conscientes. Propusemos realizar a conferência em Phoenix, nossa cidade natal, mas a diretoria da associação rejeitou prontamente essa ideia porque faz um calor infernal na cidade no meio do ano. Em vez disso, ela sugeriu… Las Vegas. Hmmm. Em junho, Las Vegas é tão escaldante quanto Phoenix, e, se levarmos em conta a lap dance, o jogo e as dançarinas, provavelmente tem vários graus adicionais de calor por causa do atrito. Assim, nossos colegas dos estudos sobre a consciência pareciam estar buscando um pouco de agitação de verdade, para apimentar seus experimentos. Pois então, que fosse Las Vegas. Voamos para lá em outubro de 2005, para fazer umas sondagens. No voo, perguntamos a nós mesmos: como poderíamos aumentar para o público a visibilidade das pesquisas sobre a consciência? Não queríamos promover outro concurso. A resposta começou a germinar no momento em que nosso avião inclinou as asas para se aproximar do aeroporto de Las Vegas. Pela janela, vimos ao mesmo tempo a Estátua da Liberdade, a Torre Eiffel, um vulcão em erupção, a Agulha Espacial, a Esfinge, o reino de Camelot e a Grande Pirâmide. Pouco depois, subíamos e descíamos a Strip, verificando o espaço para conferências nos hotéis. Passamos pelo castelo de Aladim, pelo Grande Canal de Veneza e pela Ilha do Tesouro. Parecia estranho demais para ser real. E então, pimba, surgiu o tema da nossa conferência. Imagens de mágicos enfeitavam cartazes, táxis e ônibus: Penn & Teller, Criss Angel, Mac King, Lance Burton, David Copperfield. Eles nos fitavam com olhares matreiros e sorrisos sedutores. E então nos ocorreu que esses ilusionistas eram algo como cientistas do mundo da bizarrice – e que haviam superado a nós, cientistas de verdade, em sua compreensão da atenção e da consciência, e tinham aplicado de modo irreverente essa compreensão às artes do entretenimento, do furto praticado com destreza, do mentalismo e da tramoia (assim como a padrões singulares e inquietantes de pilosidade facial). Como cientistas da visão, sabíamos que os artistas tinham feito descobertas importantes sobre o sistema visual durante centenas de anos e que a neurociência da visão havia adquirido enormes conhecimentos sobre o cérebro ao estudar as técnicas e ideias deles sobre a percepção. Foram os pintores, não os cientistas, os primeiros a elaborar as regras da perspectiva e da oclusão visuais, a fim de fazer com que pigmentos depositados em uma tela plana parecessem uma bela paisagem, rica em profundidade. Percebemos então que os mágicos eram apenas um tipo diferente de pintores: em vez da forma e da cor, manipulavam a atenção e a cognição. Os mágicos basicamente fazem experimentos de ciência cognitiva a noite inteira para suas plateias, e é possível até que sejam mais eficientes do que nós, cientistas, no laboratório. No entanto, antes que nossas caixas de entrada se encham de mensagens inflamadas de colegas furiosos, permitam-nos explicar. Os experimentos de neurociência cognitiva são intensamente suscetíveis ao estado do observador. Quando o sujeito experimental sabe ou consegue adivinhar a que se refere o experimento, é comum os dados serem corrompidos ou se tornarem impossíveis de ser analisados. Tais experimentos são frágeis e canhestros. É preciso instaurar medidas minuciosas de controle para que os dados experimentais sejam mantidos puros. Agora, comparemos isso com os espetáculos de ilusionismo. Os truques de mágica testam muitos dos mesmos processos cognitivos que estudamos, mas são de uma robustez incrível. Não tem a mínima importância que a plateia inteira saiba que está sendo tapeada; ela cai em todos os truques cada vez que eles são executados, um espetáculo após outro, noite após noite, geração após geração. Pensamos: “Ah, se pudéssemos ter essa habilidade e essa esperteza no laboratório! Se tivéssemos apenas metade dessa mestria para manipular a atenção e a consciência, que avanços poderíamos obter!” A ideia ganhou forma rapidamente: reuniríamos cientistas e mágicos para que os primeiros pudessem aprender as técnicas desses últimos e dominar seus poderes. Havia apenas um problema: não entendíamos nada de mágica. Não conhecíamos um mágico sequer. Nenhum de nós jamais tinha sequer assistido a um verdadeiro show de mágica. Por sorte, nosso colega Daniel Dennett nos arranjou uma grande oportunidade. Dennett é um companheiro cientista e filósofo que também vem a ser amigo de James, o Incr!vel Randi, um famoso mágico e cético que tem passado décadas desmascarando alegações de paranormalidade. Randi nos escreveu uma resposta em que endossou com entusiasmo a nossa ideia. Disse-nos que conhecia outros três mágicos que seriam perfeitos para nossa finalidade: Teller (da dupla de mágicos Penn & Teller), Mac King e Johnny Thompson. Todos moravam em Las Vegas e se interessavam pessoalmente pela ciência cognitiva. Apollo Robbins, o Ladrão Cortês, amigo de Teller, juntou-se ao nosso grupo alguns meses depois. Grande parte deste livro se baseia em nossas interações com esses mágicos talentosos. Assim começou nossa jornada de descobrimento sobre os esteios neurológicos do ilusionismo. Passamos os últimos anos viajando pelo mundo, conhecendo mágicos, aprendendo truques e inventando a ciência da neuromagia. Desenvolvemos nosso próprio espetáculo de mágica e resolvemos fazer uma audição no mais prestigioso clube de ilusionismo do mundo, o Castelo Mágico, em Hollywood, na Califórnia, como autênticos mágicos. (Para saber como nos saímos, veja o Capítulo 11.) Os truques de mágica funcionam porque os seres humanos têm um processo estruturado de atenção e consciência que pode ser invadido e alterado. Ao compreender como os mágicos enganam nosso cérebro, ficamos mais aptos a compreender como os mesmos truques cognitivos funcionam nas estratégias de propaganda, nas negociações comerciais e em toda sorte de relações interpessoais. Quando compreendermos como a mágica funciona na mente do espectador, teremos desvendado as bases neurológicas da própria consciência.3 Então pegue uma cadeira, porque Truques da mente é a história do maior espetáculo de ilusionismo da Terra: o que está acontecendo neste exato momento em seu cérebro. 1 Devin Powell, redator da revista New Scientist, descreveu nossos primeiros estudos em um artigo de 2008, que introduziu o termo “magicologia” (estudo científico da mágica) como alternativa para “neuromagia” (estudo neurocientífico da magia). Embora “neuromagia” seja um pouco mais restrito do que “magicologia”, os dois termos são mais ou menos equivalentes e geralmente intercambiáveis. 2 Ao longo de todo o livro, usamos como sinônimos os termos “consciência”, “apercepção” e “apreensão consciente”. 3 Os leitores poderão encontrar citações relevantes dos estudos originais discutidos ao longo deste livro na seção de notas de cada capítulo. detectamos pela primeira vez as diferentes orientações de linhas, bordas e quinas em uma cena visual. Subindo na hierarquia, temos neurônios que disparam em resposta a contornos, curvas, movimentos, cores e até traços específicos, como mãos e rostos. Temos neurônios binoculares – que respondem à estimulação proveniente dos dois olhos, em contraste com a que vem de um só. Alguns disparam quando um alvo se move da esquerda para a direita, outros, só quando ele se move da direita para a esquerda. Outros reagem apenas a movimentos de cima para baixo ou de baixo para cima. Alguns respondem melhor à movimentação de bordas, ou a bordas que se movem em uma determinada orientação. É assim que passamos da detecção de pontos luminosos nos fotorreceptores para a detecção da presença de contrastes, bordas e quinas até a construção de objetos inteiros, inclusive com a percepção de sua cor, tamanho, distância e relação com outros objetos. Nesse processo, o aparelho visual faz inferências e se vale de palpites desde o início. Percebemos um mundo tridimensional, embora uma simples imagem bidimensional incida sobre cada retina. Nossos circuitos visuais ampliam, eliminam e fazem convergir e divergir as informações visuais. Percebemos aquilo que vemos como algo diferente da realidade. Percepção significa resolução de ambiguidades. Chegamos à interpretação mais plausível das informações retinianas integrando indícios locais. Pensemos na lua cheia elevando-se no horizonte. Ela parece enorme. Horas depois, entretanto, quando está bem no alto e, na verdade, metade do diâmetro terrestre mais perto de nós, parece muito menor. O que poderia explicar isso? O disco que incide em nossa retina não é menor com a lua no alto do que na lua nascente. Então, por que parece menor no alto? Uma das respostas é que inferimos o tamanho maior da lua nascente pelo fato de a vermos perto de árvores, morros ou outros objetos no horizonte. Nosso cérebro a amplia, literalmente, com base no contexto. É também por isso que um pedaço de papel cinza pode parecer escuro quando é cercado de branco, ou claro, quando a mesma folha é cercada de preto. Os neurônios do sistema visual primário ficam atrás dos olhos, no núcleo geniculado lateral (centro do cérebro) e no córtex visual primário (parte de trás do cérebro). A rede que conecta essas áreas do cérebro inclui o nervo óptico, o quiasma óptico, o trato óptico e as radiações ópticas. (Cortesia do Barrow Neurological Institute) É uma pena, mas simplesmente não se pode confiar nos próprios olhos. Inventamos grande parte daquilo que vemos. “Completamos” as partes de cenas visuais que o cérebro não consegue processar. Temos de fazê-lo por causa da simples limitação do número de neurônios e conexões neuronais subjacentes aos processos sensoriais e mentais. Por exemplo, o nervo óptico contém todas as fibras que enviam informações visuais ao cérebro. Cada nervo óptico é composto por cerca de um milhão de fibras neurais, que ligam cada retina ao cérebro. Esses fios individuais são chamados de axônios, e cada um representa um “pixel” da imagem visual. Portanto, cada olho é mais ou menos equivalente a uma câmera de um megapixel. Parece muito, mas considere que, provavelmente, até a câmera do seu telefone celular tem uma resolução melhor que essa. Então, como é possível termos uma percepção tão rica e detalhada do mundo, quando, na verdade, a resolução do nosso aparelho visual equivale à de uma câmera digital barata? A resposta curta é que a riqueza da nossa experiência visual é uma ilusão criada pelos processos cerebrais de preenchimento de lacunas. VISIBILIDADE E LUZ Talvez você pense que a visibilidade requer apenas que a luz incida sobre a sua retina. Porém, ela é mais complicada do que isso. Nem toda luz usada por seu cérebro é visível para você. Por exemplo, como todos os seres humanos, você não sabe calcular com exatidão o nível físico de luz do meio a seu redor. Não sabe, de maneira consciente, qual é o tamanho de sua pupila em um dado momento. Parte da razão disso é que a íris se adapta ao nível de iluminação e ajuda a fazer com que ambientes diferentemente iluminados sejam acessíveis ao processamento neural. Na luz fraca, a íris se abre para permitir a entrada de mais fótons, e na luz forte ela se fecha para impedir que a retina seja ofuscada pelo brilho. É por isso que os especialistas em níveis de luminosidade, como os fotógrafos, precisam usar um dispositivo objetivo de medição do nível de luz, chamado fotômetro, e não suas próprias estimativas subjetivas visuais do nível de luminosidade, a fim de poderem determinar a melhor distância focal a ser usada com a lente de sua câmera. Contudo, isso quase chega a parecer um raciocínio circular. Como é possível não sermos capazes de quantificar com precisão a quantidade de luz que penetra em nossos olhos, por causa das alterações de nossa íris, mas o cérebro que controla a íris ter de ser responsável por otimizar a densidade de fótons que atingem a retina? A resposta é que o controle neural da íris de fato calcula com exatidão as mudanças do nível de luz, porém o faz com circuitos que não estão ligados aos circuitos visuais que resultam na apercepção consciente. Por isso, você só tem consciência de alguns aspectos da cena, como a luminância relativa dos objetos presentes, ao passo que outras partes da informação visual, como a medida quantificada do nível global de luz, são manejadas de forma inconsciente. Os mágicos exploram o tempo todo essas características do nosso sistema visual em seus truques. Usam ilusões de profundidade nos truques com baralhos. Usam o contexto para enganar a percepção. Contam com o fato de que você preencherá as partes faltantes de uma cena. Recorrem a neurônios detectores de bordas para nos convencer de que são capazes de vergar colheres. E podem até recorrer a propriedades específicas do aparelho visual para nos deixar momentaneamente cegos – o que nos leva de volta ao Johnny. ALERTAS DE SPOILER Alguns mágicos acham que os segredos por trás dos truques e ilusões nunca devem ser revelados, mas a maioria concorda que é necessária certa revelação da magia para que a arte floresça – desde que os segredos sejam revelados com cuidado, e apenas para as pessoas que precisam conhecê-los. Jack Delvin, presidente do Círculo Mágico, uma destacada associação internacional de magia e ilusionismo, enuncia a ideia da seguinte maneira: “A porta da magia fica fechada, mas não trancada.” Ou seja, não existem segredos reais na mágica: estão todos aí para que qualquer um os descubra. Entretanto, é preciso querer muito buscá-los. É necessário praticar feito um condenado para obter acesso ao clube, para não vir a revelar segredos acidentalmente, em função de um desempenho precário. E seria inadmissível alguém topar por acaso com um segredo ao ler uma revista ou entreouvir uma conversa – ou ao ler um livro. Visto que é necessário revelar alguns segredos para discutir a neurociência da mágica, assinalamos todas as seções do livro em que os revelamos. Elas vêm com a indicação “alerta de spoiler”. Se você não quiser conhecer os segredos mágicos nem saber como o seu cérebro é tapeado por eles, pode pular esses trechos. Ou então pode se juntar a nós na exploração de como e por que você se deixa enganar com tanta facilidade. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! O truque do Grande Tomsoni com o vestido vermelho revela uma profunda compreensão intuitiva de processos neurais que ocorrem no cérebro. Vejamos como ele o faz. Quando Johnny apresenta sua assistente, o vestido branco e justo que ela usa induz o espectador a supor que nada – ao menos não outro vestido, com certeza – poderia se esconder sob o vestido branco. É claro que essa suposição sensata está errada. O corpo provocante e sedutor da mulher também contribui para que a atenção seja concentrada exatamente onde Johnny a quer – na moça. Quanto mais se fixa o olhar nela, menor é a probabilidade de se notar os dispositivos escondidos no piso, e mais os neurônios retinianos se adaptam à luminosidade do refletor que brilha sobre ela. Durante toda a conversa-fiada de Johnny, depois de sua “piadinha”, os olhos e o cérebro do espectador passam por uma adaptação neural. Quando o refletor se apaga, os neurônios visuais antes adaptados disparam uma resposta reativa conhecida como pós-descarga. Essa resposta faz com que uma imagem-fantasma do objeto perdure por um momento. Vemos esses tipos de pós-imagens ilusórias todos os dias. Pense no flash das máquinas fotográficas. Ele dispara e a pessoa fica com um brilhante ponto branco temporário no campo visual, que vai esmaecendo na escuridão. Por um instante fugaz, os fotorreceptores da parte da retina que registraram o flash “pensam” que, de repente, o mundo inteiro ficou brilhante e branco. Adaptam-se instantaneamente a esse nível de luminosidade. Quando o flash é brilhante o suficiente, a retina pode levar segundos ou até minutos, às vezes, para se readaptar por completo aos níveis verdadeiros de iluminação. A adaptação dos neurônios do movimento no cérebro também explica a ilusão da cachoeira. Se você passar um minuto ou mais olhando para uma cachoeira e em seguida deslocar o olhar para as pedras ou a vegetação próximas dela, os objetos estacionários parecerão estar fluindo para cima. A ilusão ocorre porque os neurônios cerebrais que detectam o movimento descendente se adaptam ao estímulo contínuo da água que cai, o que os torna relativamente menos ativos. Os neurônios vizinhos que detectam o movimento ascendente não se adaptam ao movimento e, apesar de terem estado em repouso, são relativamente mais ativos. Uma vez que o aparelho visual foi feito para discernir contrastes – nesse caso, neurônios adaptados ao movimento descendente versus neurônios não adaptados –, o cérebro chega à conclusão final de que há alguma coisa se movendo para cima. Por isso, quando você olha para as pedras imóveis, elas parecem fluir magicamente para cima por alguns segundos. Então, percebe agora por que o truque do Johnny funciona? Os neurônios retinianos seletivos da cor vermelha adaptam-se ao vestido iluminado de vermelho, reduzindo sua atividade. Os fotorreceptores do vermelho são mais sensíveis a essa cor do que os fotorreceptores do azul ou do verde. Assim, os neurônios sensíveis ao vermelho no aparelho visual ficam mais adaptados e têm uma pós-descarga maior. Na fração de segundo depois que Johnny apaga as luzes, você percebe a explosão de vermelho como uma pós-imagem em forma de mulher. Ela persiste em seu cérebro por cerca de um décimo de segundo. Durante essa fração de segundo, abre-se rapidamente um alçapão no palco e o vestido branco, apenas levemente preso com Velcro e ligado a cabos invisíveis que descem até debaixo do palco, é arrancado do corpo da assistente. Em seguida, as luzes retornam e revelam um autêntico vestido vermelho. Outros dois fatores contribuem para que o truque funcione. Primeiro, a iluminação é tão forte no instante que antecede a retirada do vestido que, quando ela se atenua, o espectador fica efetivamente cego. Não consegue ver os movimentos rápidos dos cabos nem o vestido branco, quando eles desaparecem sob o palco. A mesma cegueira temporária pode nos acometer quando saímos de uma rua ensolarada e entramos em uma loja pouco iluminada. Segundo, Johnny só faz o verdadeiro truque depois que você pensa que a coisa já terminou. Isso lhe confere uma importante vantagem cognitiva: a surpresa. Você não está à procura de um truque no momento crucial, por isso relaxa ligeiramente seu exame. As pós-imagens persistem em todos os sistemas sensoriais. Quando criança, talvez você tenha aprendido a criar uma pós- imagem da memória muscular, pressionando o dorso dos pulsos para fora contra as ombreiras de uma porta e contando até trinta, depois do que seus braços pareciam levitar. Na verdade, há uma profusão de pós-imagens sensoriais na vida cotidiana e, à medida que temos consciência delas, essas pós-imagens costumam ser apenas pequenas impressões ou chatices fugazes. Para os mágicos, no entanto, valem ouro. FIM DO ALERTA DE SPOILER Como cientistas da visão, admiramo-nos constantemente com a argúcia com que os mágicos manipulam os circuitos visuais do cérebro. Lembre-se do que dissemos sobre a nossa aptidão para identificar contrastes: sem ela, o mundo não teria fronteiras e o cérebro não conseguiria se compreender nem compreender nada fora dele. Pois bem, os mágicos sabem tudo de identificação de contrastes. Esbarraram nela há mais de cem anos, com a invenção da arte negra, ou teatro negro . Não se trata do abracadabra dos antigos magos e feiticeiras, mas de um método cênico para produzir assombrosas ilusões visuais, descoberto por acaso em 1875 por um ator e diretor alemão, Max Auzinger. Segundo consta, Auzinger estava preparando uma cena de calabouço para uma peça e, no intuito de torná-la o mais assustadora possível, forrou o cômodo de veludo preto. Em um momento crucial, um mouro negro deveria aparecer em uma janela do calabouço e recitar sua fala. No entanto, quando o ator que representava o mouro pôs a cabeça na janela, ninguém conseguiu vê-lo. As únicas coisas visíveis foram duas fileiras de dentes brancos flutuando no ar, abaixo de dois globos oculares brancos. Auzinger captou de imediato as implicações da ilusão. Manipulando lençóis pretos contra um fundo preto, conseguiu fazer objetos e pessoas aparecerem e desaparecerem no palco. E pôde criar um número de mágica que ninguém jamais tinha visto. Em pouco tempo, seu espetáculo “O armário negro”, estrelado por ele como Ben Ali Bey, saiu em turnê pelo continente, recebendo críticas extasiadas. Hoje em dia, um número de teatro negro chamado Omar Pasha é igualmente popular e, equipado com material e técnicas de iluminação modernos, sem dúvida é mais espetacular do que as apresentações de cem anos atrás. Produzido e apresentado por Michelle e Ernest Ostrowsky, juntamente com seu filho Louis-Olivier, o programa é estrelado por um personagem que aparece com adereços fluorescentes em um palco negro como azeviche, banhado por luz negra. A luz negra – aquilo que os cientistas chamam de luz ultravioleta – vibra em um comprimento de onda mais curto do que o da luz violeta visível, e é chamada “negra” por ser invisível. A fluorescência ocorre quando um comprimento de onda luminosa se converte em outro. Milhares de substâncias brilham ou fluorescem sob a influência da luz negra, porque a luz invisível se transforma em luz visível e faz as substâncias fluorescentes se iluminarem com um brilho que não parece natural. A vaselina é de um azul elétrico, a fluorita tem um intenso brilho roxo, amarelo, azul, rosa ou verde. Outros materiais reluzem em vermelho ou laranja, dependendo de suas substâncias químicas. No verão de 2009, vimos Omar Pasha em uma apresentação ao vivo.2 Ela é assim: ao subir a cortina, um homem de turbante branco decorado de brocado vermelho, túnica branca de brocado de seda, pantalonas de seda, faixa vermelha na cintura e capa vermelha, luvas brancas e sapatos vermelhos com curvinhas na ponta dos pés que lembram os duendes do Papai Noel curva-se quase até o chão. Não sorri – em momento algum. Trata-se de Omar Pasha (Ernest Ostrowsky), que é uma movendo em sequência até o dedo mínimo, como uma onda na praia de Pipeline, no litoral norte de Oahu, no Havaí. À medida que seus dedos se fecharam, vimos a moeda desaparecer atrás da onda. Ao mesmo tempo, a mão direita de Jamy se afastou. E então, acabou-se. Observamos com atenção quando o mágico reabriu o punho, e a moeda – que sem a menor dúvida tínhamos visto aninhada na palma de sua mão – havia sumido. Incrível! ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Jamy nos contou que o efeito de retenção da visão funciona melhor com objetos brilhantes. A moeda é perfeita porque ele pode girá-la quando a deposita na mão esquerda. Isso garante que todos os espectadores vejam um lampejo de luz, refletindo as luzes do salão. Esse lampejo cria uma breve pós-imagem, não muito diferente do que faz o flash de uma câmera fotográfica, porém menos intenso. Literalmente, vemos a imagem da moeda desaparecer, ou desfazer-se em nada, diante de nossos olhos. O truque de Jamy é semelhante ao de Johnny com o vestido vermelho, na medida em que os dois exploram pós-imagens. A diferença é uma questão de escala, tempo e das populações específicas de neurônios que se adaptam. Johnny faz o aparelho visual se adaptar a um alvo seletivo, o vestido vermelho. Jamy usa um clarão para fazer com que se adapte apenas a pequena porção da retina que vê a moeda. Ele fecha a mão sobre esta, assim que a pós-imagem é criada. Isso lhe dá algumas frações de segundo para retirar a moeda e escondê-la na mão direita – enquanto a plateia pensa que ela está na esquerda, obviamente. Isso se vê com uma clareza cristalina. A pós-imagem começa a desvanecer enquanto os dedos de Jamy se curvam, fechando o punho. Mas já fomos enganados. Jamy também nos disse que não é apenas o que ele faz com as mãos que leva o truque a funcionar. Ele usa o corpo inteiro. Exagera, modificando propositadamente a postura para indicar suas intenções. Os mágicos usam a tensão e o relaxamento para manipular nosso julgamento sobre onde está ou não está o objeto oculto. (Percebemos que teríamos de aplicar esse princípio em nossa audição no Castelo Mágico.) Jamy demonstrou como fazer uma falsa transferência. A ideia é fingir que uma moeda passa da mão direita para a esquerda. Ele faz o movimento de transferência e acentua suas consequências. A mão esquerda, que supostamente recebeu a moeda, sugere tensão. A direita, que em tese a teria largado, fica relaxada, como se não segurasse coisa alguma. Jamy usa o corpo todo nesse número. Enquanto faz a falsa transferência, desloca o peso da direita para a esquerda, como se esse lado do corpo passasse a suportar o peso da moeda. Gira a cintura, torcendo e deixando cair muito ligeiramente os ombros para a esquerda, como se transferisse o peso de uma das mãos para a outra. Vira a cabeça enquanto seus olhos acompanham a moeda de uma das mãos para a outra. Não importa que a moeda pese menos que um gole de café. Não precisamos deslocar o corpo a cada golinho tomado da xícara. Mas Jamy exagera ligeiramente cada aspecto da falsa transferência para nos convencer de outra coisa. Ao combinar seu ato ágil com a pós-imagem da moeda e ao transferir sua atenção, ele introduz uma incrível dose de poder de sugestão nesse minúsculo evento falso. Cria um enorme sortimento de pistas cognitivas para que nossa atenção as descubra. Sua técnica é tão primorosa que, apesar de ter repetido o truque várias vezes (o que é uma prática proibida para espectadores e mágicos) a nosso pedido (isso por amor à ciência, explicou), não conseguimos deixar de ser seguidamente enganados. Mesmo tendo resolvido nos concentrar nas partes relaxadas de seu corpo, não pudemos deixar de atentar para as partes tensas. “É aí que está a ação”, nosso cérebro ficou nos dizendo, embora soubéssemos que era o contrário. FIM DO ALERTA DE SPOILER Jamy acrescentou uma ilusão cognitiva a uma ilusão visual, estratégia usada por muitos grandes mágicos para nos convencer de que coisas impossíveis podem acontecer. As ilusões cognitivas, que examinaremos no próximo capítulo, envolvem funções cerebrais de nível superior, como a atenção e as expectativas. No entanto, antes de chegarmos a elas, discutiremos mais algumas ilusões de óptica derivadas de níveis superiores da hierarquia da visão. 1 Embora seja tentador concluir que nós, seres humanos, temos aptidões cognitivas especiais que faltam inteiramente a outras espécies, toda vez que os cientistas decidem que um desses atributos ou capacidades nos distingue do resto do reino animal, outros pesquisadores não tardam a desmenti-los. Aptidões como a linguagem, o uso de ferramentas, a moda, a cultura e até a dança não são exclusivas dos seres humanos, ainda que, em dado momento, todas tenham sido consideradas definidoras do reino humano e restritas a ele. 2 Você pode assistir a essa apresentação em http://sleightsofmind.com/media/black-art. Não se utilizou a luz negra nesse vídeo, mas se calibrou cuidadosamente a iluminação para que a câmera não pudesse captar os objetos ocultos ao serem cobertos de preto. • 2 • O segredo das colheres que entortam: por que os mágicos tomam cuidado com os ângulos Seis semanas após visitarmos Jamy, estávamos sentados no terraço do restaurante e enoteca Cheuvront, na Central Avenue, em Phoenix, segurando taças de haste longa. O trem ligeiro que corre pelo centro da avenida passou rangendo e tinindo, a caminho do norte, e fez uma parada a algumas centenas de metros. Uma figura solitária desceu na plataforma e caminhou em nossa direção, carregando uma sacola preta que balançava a cada passo. Era Anthony Barnhart, ou Magic Tony, para seus fãs, e vinha trazendo as ferramentas do ofício – baralhos, um saquinho de moedas, bolas de esponja vermelhas e cordas preparadas para fazer truques. Magic Tony é o nosso mentor e professor de magia, e esse encontro era para termos outra sessão hilariante de como “ensinar os cientistas a praticar o ilusionismo, ou pelo menos a fazer alguns truques clássicos de mágica sem que passem vergonha no teste no Castelo Mágico”. Tony é um sujeito grandalhão, de cabelo preto à escovinha e ar jovial. Durante a semana, faz doutorado em psicologia na Universidade Estadual do Arizona, em Tempe. Nas noites de sexta-feira, no entanto, põe sua gravata boba com a imagem de um peixe vermelho (“Só a uso por causa do halibute”) e seus sapatos de estampa de leopardo (“Foi preciso usar dois leopardos para fazer estes sapatos, mas não faz mal, eram filhotes”), e sai fazendo truques de mesa em mesa no Dragonfly Café, em North Scottsdale. Os fregueses o adoram. Nós também. Tony cresceu em Milledgeville, Illinois, onde teve um professor de natação que ensinava mágicas nas horas vagas. Junto com o nado crawl australiano, Tony, então com sete anos, teve aulas de ilusionismo como iniciante e se apaixonou. Também aprendeu uma lição de importância crucial: a mágica é para divertir a plateia. Os jovens mágicos não devem priorizar a metodologia em detrimento da teatralidade. Uma loja de mágicas, a Magic Manor, ficava a uma hora de distância, em um shopping na cidade vizinha de Rockford. Como muitos garotos apaixonados pelo ilusionismo, Tony passava incontáveis tardes na loja, vasculhando as gôndolas e tendo aulas em grupos, nos quais era sempre o mais jovem (e o que aprendia mais depressa). Frequentou o Acampamento Mágico de Tannen, em Long Island, durante dois anos seguidos. Sua lembrança favorita de ter se ferrado (isto é, de ter sido vergonhosamente tapeado) ocorreu em seu dormitório no meio da madrugada. Ele dividia o quarto com dois colegas de acampamento. Por volta das duas horas da manhã, seu mentor os acordou e disse a Tony: “Pense numa carta.” Ele o fez e, mais tarde, o mentor deu o nome da carta em que o menino sonolento havia pensado (era o sete de paus). “Ainda não sei direito como ele fez isso”, disse Tony. “Deve ter me preparado de algum modo, mas não tenho certeza. De certa forma, gosto de não saber.” Nesse dia, Tony ia nos ensinar dois métodos usados no truque da carta ambiciosa. Esse truque famoso pode ser feito de inúmeras maneiras, mas as que íamos aprender são especialmente pertinentes ao modo como os mágicos enganam nosso aparelho visual. O mágico pede que escolhamos uma carta no baralho, qualquer uma. Nós o fazemos e colocamos a carta no meio do baralho. O mágico estala os dedos sobre o baralho e pronto: a carta aparece misteriosamente no topo. É uma carta ambiciosa – sempre passa por cima de todas as outras. Esse número é conhecido nos anais do ilusionismo como o truque que enganou Harry Houdini. Nas primeiras décadas do século XX, Houdini era o mágico mais famoso do mundo. Embora tivesse conquistado uma confiança suprema em sua capacidade de lograr truques espetaculares de escapismo, talvez ele tenha confiado demais em suas habilidades na micromagia. Com uma empáfia ofensiva, fez um desafio a todos os mágicos: mostrem-me qualquer truque três vezes seguidas e eu lhes direi como ele é feito. Em 1922, no Great Northern Hotel, em Chicago, um mágico talentoso, Dai Vernon, aceitou o desafio e demonstrou sua versão do truque da carta ambiciosa. Conhecido como o Professor, Vernon era mais do que páreo para Houdini. Era um dos melhores prestidigitadores de todos os tempos e, ao lado de outro mágico, Ed Marlo, talvez tenha sido o mais influente mago das cartas do século XX. Vernon foi um inventor brilhante de efeitos de micromagia com cartas, moedas, bolas e outros objetos pequenos. Ele pediu que Houdini escolhesse uma carta e nela assinasse suas iniciais, à tinta. A carta foi para o meio do baralho. Vernon estalou os dedos. A carta de Houdini apareceu no topo. Houdini ficou perplexo: – Você deve ter uma carta duplicada. – Com as suas iniciais, Harry? – perguntou Vernon. Ele repetiu o truque três vezes, usando um método diferente a cada uma. Houdini ficou enfurecido. Não conseguiu descobrir como tinha sido feito. Vernon o executou mais quatro vezes. E ainda assim Houdini foi enganado – embora nunca o tenha admitido em público. A prestidigitação, quando bem feita, é milagrosa de se ver. (A palavra “ sleight”1 vem do nórdico antigo e significa inteligência, perspicácia, astúcia.) Em geral, é executada a curta distância, a poucos passos do espectador. Existem centenas de truques diferentes. Alguns envolvem o desvio da atenção (chegaremos a eles no Capítulo 4). Outros exploram falhas do aparelho visual. Aliás, o papel da percepção visual na prestidigitação é fundamental para a mágica. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Não é à toa que os mágicos usam baralhos para fazer truques. As cartas são notáveis, por serem duras mas muito finas. Cabem na palma da mão e podem ser escondidas com facilidade. Podem ser embaralhadas, abertas em leque, viradas, empalmadas, cortadas, seguradas e embolsadas. Nossa primeira lição de hoje é a dupla levantada,2 provavelmente o passe mais básico e central do repertório dos mágicos – e um aspecto-chave dos truques da carta ambiciosa. O segredo é virar duas cartas do topo do baralho, dando a impressão de que se vira apenas uma. É simples assim. No entanto, se usado na hora certa e combinado a outros tipos de desvio da atenção, é um passe absolutamente espantoso. Dai Vernon era mestre na dupla levantada. Digamos que a sua carta seja o ás de paus. O mágico abre o baralho em leque e você introduz o ás. Ao fechar o leque, ele põe uma carta em cima do ás e marca sub-repticiamente esse local, chamado intervalo, com o dedo mindinho. Faz um corte rápido, de modo que o ás passe a ser a segunda carta a contar do topo. Vem então a levantada dupla. Ele levanta duas cartas e o ás aparece virado para cima, no topo. É a carta ambiciosa. O mágico sorri e diz: “Sim, é a carta ambiciosa.” Torna a levantar duas cartas viradas para baixo e pega a carta superior (que você pensa ser o ás, mas obviamente não é) e a coloca no meio do baralho. Estala os dedos e vira a carta do topo, que é… o ás! Com certeza, trata-se de uma carta ambiciosa, e você fica perplexo. Os mágicos treinam por milhares de horas para levantar duas cartas sem revelar que as estão “manipulando”. É necessário treinar os dedos para levantar duas cartas com destreza, convencendo o espectador de que está levantando apenas uma. Isso envolve diversas manobras, como fazer uma pequena ondulação nas duas cartas para que, quando viradas para baixo, o mágico possa senti-las como uma só. Uma vez viradas as cartas, a ondulação se desfaz e as cartas ficam planas. Para dominar esse truque, os mágicos devem ter a capacidade de executar os movimentos sem prestar atenção ao que estão fazendo. Em um livro de 1961, Stars of Magic, Vernon alertou para o fato de que muitos mágicos estragam a dupla levantada por terem medo de que as duas cartas se separem. “A carta”, disse ele, “é um objeto leve e delicado, e não deve ser virada como um bloco de cimento.” Então, como é que a dupla levantada engana sistematicamente o espectador? Por que o aparelho visual não consegue acompanhar as cartas como deveria? Isso tem a ver com o centro da visão. Para identificar duas cartas juntadas com firmeza e se movendo como uma só, seria preciso pôr os olhos a centímetros das mãos do mágico e fitar as cartas como que sob uma lente de aumento. Ainda assim, o truque poderia passar despercebido. A razão é que o aparelho visual tem uma resolução muito precária, exceto bem no centro do olhar. As cartas são tão finas que a visão não consegue distingui-las, sobretudo nas mãos de um hábil especialista em truques de baralho. O centro da visão é chamado de mácula – a região próxima ao centro da retina, abarrotada de fotorreceptores. Junto com a fóvea (o próprio centro da mácula e a parte com a resolução mais alta), ela é responsável pela visão de alta acuidade. Trata-se de uma parte tão especializada da anatomia que tem seu próprio conjunto de doenças, inclusive a degeneração macular ligada à velhice. A degeneração macular é a mais comum dentre as formas de cegueira nos idosos, pois a mácula vai morrendo lentamente ao longo dos anos. Sem a mácula, só se consegue enxergar com a visão periférica, que tem uma resolução baixíssima. O indivíduo circula vendo o mundo de acordo com o que aparece nas laterais da cabeça. FIM DO ALERTA DE SPOILER Tony mostrou-nos outra maneira de fazer o truque da carta ambiciosa, chamada ilusão de profundidade de Vernon (também conhecida como inclinação de Marlo, porque os dois mágicos a desenvolveram de modo independente). Muito depois da morte de Houdini, Vernon continuou a aperfeiçoar o truque, com um discernimento diabólico do processamento visual. Nesse truque da mente – captado em uma filmagem rara da década de 1950 –, Vernon pede ao espectador que escolha uma em outros momentos, muito perigoso. Sou contra o embuste. Desmascaro as pessoas e suas ilusões, mostrando-as como de fato são.” Por exemplo, Randi explicou que fazia anos que os mentalistas reproduziam desenhos ocultos. Uma pessoa desenhava algo em um pedaço de papel e o escondia, e então o mágico revelava o que fora desenhado. Às vezes, o mágico virava de costas e tapava os olhos enquanto o desenho era feito. Randi se perguntou: “Por que tapar os olhos, se ele está de costas?” E fez a demonstração: um espelhinho escondido na palma da mão que cobria os olhos mostrava exatamente o que a pessoa estava desenhando. Entretanto, apesar de seus esforços para desmascarar Geller como ilusionista, as pessoas continuaram a acreditar. Até alguns cientistas se deixaram iludir. Em 1975, dois pesquisadores de psicologia paranormal do Instituto Stanford de Pesquisas, Russell Targ e Harold Puthoff, submeteram Geller a testes e concluíram que ele se saíra bem o bastante para justificar estudos mais aprofundados. Deram a isso o nome de “efeito Geller”. As ondas cerebrais, afirmaram, podiam afetar os metais dúcteis. Danny Hillis, um renomado cientista da computação e mágico amador, tem uma explicação para a razão de os cientistas serem particularmente crédulos em relação aos Gellers da vida. “Quanto melhor o cientista, mais fácil ludibriá-lo”, diz ele. “Os cientistas são pessoas honestas. Não sabem a que ponto os mágicos são capazes de descer e não são treinados para enganar de maneira proposital.” Por exemplo, certa vez Hillis mostrou um truque de mágica a Richard Feynman, um físico da Caltech tido como uma das pessoas mais brilhantes que já existiram. “Eu fazia o truque e o desafiava a descobri-lo. Ele saía por um ou dois dias, pensava no assunto e voltava com a resposta correta”, disse Hillis. “Então eu repetia o truque, usando um método inteiramente diferente. E isso o deixava louco. Ele nunca apreendeu o metaprincípio de que eu mudava de método. Talvez isso se deva ao modo pelo qual os cientistas são treinados para usar o método científico. O sujeito vai fazendo experimentos até encontrar a resposta. A natureza é confiável. A ideia de que alguém pudesse trocar de método simplesmente o atordoava.” ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Vergar colheres é algo que pode ser feito de muitas maneiras. Vejamos o que Tony nos ensinou.6 Ele começa com três colheres e faz alguém escolher e examinar uma delas. Pede a essa pessoa que encoste a colher na testa (Tony fez a demonstração pondo uma colher em sua própria testa) e lhe solicita que informe quando a colher começar a se aquecer. Ao abaixar a colher de sua pequena demonstração – enquanto todos têm a atenção voltada para o pobre bobo que segura uma colher na testa –, Tony dobra simultaneamente suas duas colheres no ponto mais estreito. Essa é a essência da arqueação de colheres. Elas são vergadas antes que se crie a ilusão. Os mágicos dão a isso o nome de “giro da catraca”. Tony dobra a primeira colher na mão direita com o polegar, segurando o cabo no punho fechado. Ao mesmo tempo, verga a segunda pressionando a concavidade contra a parte interna do pulso direito. É uma manobra muito simples e natural. A ideia é dar a impressão de que está apenas juntando as colheres na mão direita. E, de qualquer modo, todos estão prestando atenção ao sujeito que segura uma colher na testa. Enquanto isso, Tony transfere rapidamente a colher já dobrada da mão esquerda para a direita. Segura as duas entre o polegar e o indicador direitos, de tal modo que as dobras das duas colheres se toquem. A impressão é que ele está segurando duas colheres não vergadas, cruzadas na parte mais estreita do cabo. Em seguida, Tony sacode as colheres e as “deixa murcharem”. É como se elas ficassem moles e os gargalos dobrassem lentamente. Na verdade, ele deixa as colheres entortadas girarem devagar entre os dedos, para que as dobras fiquem na mesma direção e a parte côncava das colheres acabe pendendo. Enquanto as colheres se vergam, Tony faz uma pausa rápida e recupera a terceira colher do espectador, usando a mão livre. Redireciona a atenção de todos para as colheres que se dobram, dizendo-se concentrado nelas. Sua mente as está vergando. Enquanto isso, ele entorta subrepticiamente a terceira colher contra a perna e a segura de uma forma que deixa apenas o cabo visível. Quando as duas colheres que “murcham” ficam completamente vergadas, Tony as devolve ao espectador que o auxilia e diz: “Agora, vamos tentar de novo.” Segura a terceira colher com as duas mãos, para que o cabo aponte para cima, por trás das mãos entrelaçadas. Nem a parte côncava da colher nem a dobra de noventa graus agora existente em seu cabo são visíveis. A plateia presume que a colher ainda está reta, já que o espectador acabou de examiná-la. Tony começa a se concentrar na terceira colher e, aos poucos, de forma excruciante, sem que ele exerça qualquer pressão perceptível, o cabo da colher se verga, até o gargalo ficar dobrado na direção dele em um ângulo de noventa graus. Tony entrega a colher entortada ao espectador, o público aplaude e o número acaba. O princípio da boa continuidade contribui para que vejamos as colheres cruzadas quando o mágico as segura (à esquerda), apesar de elas estarem de fato vergadas (à direita). (Desenhos de Jorge Otero-Millan) Alguns conceitos psicológicos cruciais nos fazem pensar, de maneira equivocada, que as colheres devem estar retas, quando, na verdade, elas já foram entortadas. O primeiro é o que os cientistas chamam de completamento amodal – o processo pelo qual um objeto ocluído por um segundo objeto nos parece inteiro, apesar de estar ocluído. Imagine-se sentado aqui em Phoenix, em uma das nossas aulas de mágica com Magic Tony. Você está no Cheuvront, saboreando um prato de queijos espanhóis manchegos e de queso de País, com uma taça de Rioja na mão e contemplando a vastidão do deserto de Sonora entre um truque e outro. Você nota uma lebre. Ela dá três saltos e para parcialmente atrás de um enorme cacto de quatro braços, apenas com o traseiro para fora, balançando a cauda branca e felpuda. Será que a lebre ainda tem cabeça? É claro que tem. Como é que seu cérebro lhe dá informações sobre a forma da parte oculta da lebre atrás do cacto? E se não estivéssemos falando de uma lebre, mas de uma superfície retangular vazia, projetando-se de um dos lados do cacto? Nesse caso, você não teria como saber por experiência o tamanho da parte ocluída, porque os retângulos, ao contrário das lebres, podem ter qualquer tamanho. Agora, porém, imagine que o retângulo se projeta de ambos os lados do cacto, de tal modo que você possa ver todos os seus quatro cantos, mas o meio continue ocluído. Ora, apesar da oclusão da maior parte da superfície, você teria uma impressão muito forte do tamanho do objeto e da forma assumida por ele – mesmo não podendo saber, de verdade, o que se passa com a parte da superfície que está atrás do cacto. No caso da lebre, o cérebro já mapeou um modelo biológico tridimensional dela e dá palpites perceptuais sobre a aparência que deve ter a parte ocluída do animal. Isso é muito útil, sobretudo quando se está caçando coelhos. No caso do retângulo, o cérebro pode fazer algumas conjecturas perceptuais, mas não outras, dependendo da quantidade de informações que tenha. Tony tirou partido do completamento amodal ao prender as duas colheres vergadas entre o polegar e o indicador. Visto que o cabo da colher número um estava alinhado com a concavidade da colher número dois, e vice-versa, ambas pareceram retas; o completamento amodal completou de maneira imprópria os dois objetos atrás dos dedos de Tony. O mágico explicou que esse processo obedece à lei da “boa continuidade”, originalmente codificada pelos psicólogos alemães da Gestalt na virada do século XX. POR QUE A BOA CONTINUIDADE É GENIAL A boa continuidade é o processo pelo qual, com base em informações dispersas, o cérebro faz as coisas parecerem inteiras. O completamento amodal é um exemplo de boa continuidade, mas existem muitos outros. Já mencionamos o preenchimento de lacunas. O mundo é grande e complexo demais para que enxerguemos todos os seus detalhes. Quando olhamos para uma praia salpicada de seixos, ou para um tapete persa tecido de modo intricado, nosso cérebro não visualiza cada seixo nem cada ponto da trama. Não temos células suficientes na retina para isso. Vemos uma pequena parte da praia ou do tapete e completamos o resto. A boa continuidade é parte tão integrante de uma multiplicidade de mecanismos cerebrais que Tony acha que esse é o princípio mais explorado de toda a prestidigitação. Para ver como nosso cérebro é inteligente no preenchimento de lacunas, basta experimentar a técnica do Ganzfeld (termo que significa “campo total” em alemão). Primeiro, corte uma bola de pingue-pongue ao meio. Depois, sintonize o rádio em um ponto que só tenha estática. Deite-se, prenda meia bola sobre cada olho com fita adesiva e espere. Dentro de alguns minutos você vivenciará uma enxurrada de sensações bizarras. Haverá ursos-polares saltitando com elefantes. Terá uma visão de um tio morto há muito tempo. Ou qualquer outra coisa. Seu cérebro não sabe lidar com a inexistência completa de estímulos sensoriais, por isso inventa sua própria realidade. O importante aqui é que o cérebro cria constantemente sua própria realidade, receba ou não estímulos provenientes da realidade por meio dos sentidos. As maquinações cerebrais de criação do mundo continuam funcionando mesmo na falta de estímulos sensoriais. É por isso que o confinamento solitário é considerado um castigo em nosso sistema prisional. Talvez você pense que esse confinamento seria um alívio dos perigos e incômodos da vida em um presídio. Mas ele é praticamente a pior coisa que se pode fazer com os presidiários, que dessa forma perdem o contato com a realidade. Muitos consideram essa prática uma forma de tortura, e livros inteiros sobre os efeitos psicológicos negativos do confinamento solitário já foram escritos. Os prisioneiros relatam alucinações e outras formas de reações psicóticas. Ou seja, começam a acreditar nos delírios. Como ficar alucinado usando bolas de pingue-pongue e um rádio. (“Hack Your Brain”, reproduzido com permissão da Globe Newspaper Company, Inc., com base em uma edição de 2010 do jornal Boston Globe © copyright 2010) Você já se perguntou como um mágico serra uma mulher ao meio? O truque se baseia em duas coisas: uma caixa oca e o desejo do cérebro por uma boa continuidade. Quando a mulher se deita na caixa, você vê a cabeça em uma extremidade e os pés na outra. Seu cérebro lhe diz que ela está em supinação e inteira. Na verdade, ela não está deitada. A caixa é construída de tal modo que a cabeça que se projeta em uma ponta e os pés que saem da outra pertençam a duas mulheres diferentes. A ilusão é comumente acentuada por um desenho do corpo dela, deitado, na lateral da caixa. Com que facilidade você é enganado! Alguns mecanismos por trás da boa continuidade começam a ser bem compreendidos. Por exemplo, no aparelho visual, ela depende da orientação e da posição espacial das linhas para as quais você olha. Quando a posição e a orientação relativas de dois ou mais segmentos de linha estão alinhadas, você pode discernir um contorno. Quando duas ou mais linhas de orientação semelhante são posicionadas em estreita proximidade, com as extremidades alinhadas, você talvez note que alguns segmentos isolados ficam mais salientes em termos visuais: destacam-se contra o pano de fundo. No entanto, quando a separação entre os segmentos ou as diferenças na orientação deles são grandes demais, a boa continuidade falha e é mais difícil discernir os segmentos (a figura) do fundo. Charles Gilbert e alguns colegas de seu laboratório, na Universidade Rockefeller, descobriram uma base física da boa continuidade no aparelho visual. Lembre-se de que os neurônios do córtex visual primário sintonizam-se com orientações específicas – preferem, digamos, segmentos de reta horizontais ou verticais. Esses neurônios especializados são encontrados em diferentes partes do córtex visual primário, para que o cérebro possa integrar informações que vão muito além das fronteiras de neurônios isolados. Ocorre que os neurônios com atributos similares são ligados por fibras horizontais que percorrem longas distâncias no córtex visual primário. Os olhos da mente conseguem “ver” a lebre atrás do cacto por causa das conexões de longo alcance entre tipos semelhantes de neurônios no córtex. Os mesmos processos desempenhariam alguma função em outros tipos cognitivos de percepção visual, que discutiremos com mais detalhes em capítulos posteriores. Um segundo conceito por trás da mágica da colher já foi documentado. Quando as colheres são sacudidas devagarzinho, de repente parecem moles. Essa ilusão ocorre porque o aparelho visual tem dois mecanismos diferentes para enxergar linhas. Para detectar a borda de uma reta, dependemos de neurônios do córtex visual primário. Para localizar as extremidades de uma reta, porém, recorremos a células de terminação de linha [endstopped], sintonizadas para reagir aos términos de contornos longos. Alguns neurônios de orientação e de terminação de linha reagem particularmente bem a estímulos móveis, como o cabo de uma colher sacudida. Mas seus tempos de reação são diferentes. O cérebro percebe a orientação das linhas mais depressa do que o término delas. Por isso, o cabo de uma colher, quando ela é sacudida, parece se mexer antes de as extremidades se mexerem – o que dá origem à ilusão de que a colher está se vergando. FIM DO ALERTA DE SPOILER A “cúpula” da igreja de Santo Inácio parece real, vista por este ângulo. (Flikr.com) Os arquitetos logo perceberam que também poderiam manipular a realidade, distorcendo as indicações de perspectiva e profundidade para criar estruturas ilusórias que desafiassem a percepção. Alguém precisava de um cômodo grande, porém dispondo apenas de um quarto do espaço? Não havia problema algum. Foi exatamente o que fez Francesco Borromini no Palazzo Spada, que visitamos há alguns anos em Roma. Borromini criou a ilusão de uma galeria de pátio de 37 metros de comprimento em um espaço de oito metros. Há até uma escultura em tamanho natural no fim da arcada. Bem, não exatamente. A escultura parece ser do tamanho de uma pessoa, mas, na realidade, tem apenas sessenta centímetros de altura. Este corredor é muito mais curto e a escultura é muito menor do que ambos parecem. (Flickr.com) Mais perto de nós e do ilusionismo, temos o saguão do Grande Canal no Venetian Hotel and Casino, em Las Vegas. Na primeira vez que se pisa no saguão, tem-se a sensação de um súbito início de crepúsculo. Foi exatamente o que sentiu a mãe da Susana, Laura, quando a levamos a Las Vegas pela primeira vez, enquanto planejávamos nossa conferência. Descemos de nossa suíte depois do almoço fornecido pelo serviço de quarto. Ao sairmos dos elevadores e entrarmos no saguão, Laura disse: – Ah, escureceu tanto aqui fora! Susana perguntou o que ela queria dizer. – O céu – respondeu Laura. – Escureceu muito cedo. – Mas, mamãe – explicou Susana –, ainda estamos do lado de dentro. Está vendo aqueles pontos pretos no céu? São as pontas dos sprinklers. Boquiaberta, Laura examinou o incrível céu ilusório, com seus cinco matizes de azul do rococó – azul-pavão, azul-claro, azul-celeste, turquesa e água-marinha – e os filamentos de cirros, cirros-estratos e cirros-cúmulos. Laura pensou no assunto por um minuto, virou-se para Susana e disse: – Bem, por que você me contou tão depressa? Eu gostaria de tê-lo apreciado um pouco mais. Outro grande ilusionista foi o litógrafo e xilogravurista holandês Maurits Cornelis (mais conhecido como M.C.) Escher. No início da carreira, Escher entalhou cenas realistas, baseadas em suas observações e suas viagens. Mais tarde, voltou-se para sua imaginação e produziu algumas das mais brilhantes ilusões de óptica da história da arte. Quando Steve frequentava o curso médio, um de seus cartazes favoritos era uma reprodução da escada interminável de Escher (Subindo e descendo, 1960), na qual um grupo de monges trajando hábitos subia ou descia perpetuamente uma escadaria impossível, situada no alto de um templo. Ela era impossível porque descrevia um círculo em torno de si mesma e não acabava nunca. Ora, como podia ter sido desenhada se era fisicamente impossível? Escher devia ter trapaceado em algum ponto da gravura e deixado de retratar a estrutura adequada de uma escada de verdade. Mas Steve não conseguiu descobrir onde, por mais que olhasse com atenção. Percebeu que deveria examinar a estrutura como um todo para ver se havia alguma pequena distorção sistemática em toda ela que permitisse a ilusão. E foi então que constatou que não podia olhar de maneira global para a estrutura. Só conseguia realmente ver uma área da escada de cada vez. Sua visão conseguia processar os detalhes da escada quando ele centrava o olhar em uma parte específica. No entanto, no momento em que o fazia, todas as outras áreas da escada, em sua periferia visual, viravam um borrão. Ele se deu conta, então, de que foi assim que Escher deve tê-la desenhado: como só se pode ver uma área local de cada vez, os pequenos erros graduais da estrutura inteira não podem ser vistos a olho nu. Esse efeito desafia nossa percepção, conquistada com dificuldade, de que o mundo à nossa volta segue certas normas invioláveis. Revela também que nosso cérebro constrói a sensação de percepção global costurando múltiplos perceptos locais. Desde que a relação local entre as superfícies e os objetos siga as regras da natureza, nosso cérebro não parece se importar com o fato de a percepção global ser impossível. A apresentação formal de Susana às ilusões de óptica veio em 1997, quando ela chegou à Universidade Harvard para estudar com David Hubel e Margaret Livingstone. Na época, Harvard era a meca do estudo das ilusões, e foi lá que ela conheceu Steve. Hubel e Livingstone lideravam o campo de estudos das ilusões cerebrais, mas vários psicólogos de Harvard também vinham descobrindo um leque de fenômenos completamente novos. Como parte de sua formação no pós-doutorado, Susana resolveu escolher uma ilusão de óptica e investigar seus efeitos. Folheando um livro de arte, descobriu o pátio de recreação perfeito para sua curiosidade: a arte óptica, um campo que explora muitos aspectos da percepção visual, como as relações entre formas geométricas, variações de figuras “impossíveis”, que não podem ocorrer na realidade, e ilusões que envolvem o brilho, a cor e a percepção de formas.2 Susana escolheu o pintor e escultor de op art Victor Vasarely, cuja série Quadrados Aninhados exibia uma estranha ilusão: os cantos dos quadrados pareciam mais brilhantes do que seus lados retos. Mas o efeito não tinha a ver apenas com a luminosidade dos cantos, pois quando Vasarely invertia a ordem dos quadrados, passando de branco a preto (do centro para o exterior) para preto a branco, os cantos ficavam mais escuros do que os lados. Portanto, parecia ser uma ilusão referente ao contraste, não à luminosidade em si. Susana vasculhou a bibliografia sobre a visão e constatou que só duas ou três pessoas já haviam discutido esse efeito, e ninguém investigara suas bases neurológicas. Tampouco alguém havia examinado outras formas além dos quadrados, que são um tipo especial de forma, em que todos os cantos são convexos (todos apontam para fora a partir do centro). Ninguém examinara o efeito com formas não quadradas e com cantos côncavos, ou com formas cujos cantos tivessem outros ângulos que não o de 90 graus. Susana se deu conta de que havia muitos aspectos dessa ilusão que ela poderia estudar de modo perceptual, fazendo em seguida uma pesquisa fisiológica do cérebro. Utem, de Vasarely (1981). Quadrados encaixados, de luminância crescente ou decrescente, produzem diagonais ilusórias que parecem mais claras ou mais escuras do que o restante dos quadrados. (Cortesia de Michèle Vasarely) Após muitos anos, primeiro como estagiária em Harvard, depois como diretora de sua própria equipe de pesquisa, Susana aprendeu um dos segredos mais fundamentais do aparelho visual. O dogma anterior desse campo era que os neurônios dos primeiros estágios do sistema visual eram particularmente sensíveis às bordas das superfícies dos objetos. Os resultados de Susana mostraram, ao contrário, que os neurônios do aparelho visual são mais sensíveis às quinas, curvas e descontinuidades nas bordas das superfícies, e não às retas, como se pensava antes. Os pintores da op art também se interessaram por ilusões cinéticas ou de movimento. Nesses truques visuais, estampas estáticas dão origem à percepção intensa, mas subjetiva, de uma ilusão de movimento. Enigma, de Isia Leviant, é um exemplo. Essa imagem estática de padrões regulares provoca um intenso movimento ilusório na maioria de nós e tem gerado enorme interesse nas ciências da visão desde que foi criada, em 1981. Todavia, a origem da ilusão – o cérebro, o olho ou uma combinação de ambos? – continua sendo, de maneira muito apropriada, um enigma. Em 2006, concebemos um experimento para investigar essa questão. Pedimos a alguns observadores que dissessem quando o movimento ilusório se tornava mais rápido ou mais lento enquanto eles olhavam para a imagem. Ao mesmo tempo, gravamos seus movimentos oculares com alta precisão. Antes de eles informarem períodos de movimento “mais acelerado”, aumentou seu índice de microssacadas – minúsculos movimentos oculares que ocorrem durante a fixação visual de uma imagem. Antes dos períodos de movimento “mais lento”, ou “sem movimento”, esse índice diminuiu. O experimento provou a existência de uma ligação direta entre a produção de microssacadas e a percepção do movimento ilusório em Enigma. A ilusão começa no olho, não no cérebro. Reinterpretação de Enigma. (Criada e fornecida por cortesia de Jorge Otero-Millan, Laboratório Martinez-Conde, Instituto Barrow de Neurologia) Outra de nossas ilusões de óptica favoritas é o sorriso da Mona Lisa. Sua expressão é comumente chamada de “enigmática” ou “esquiva”, porém, como observou Margaret Livingstone, nossa mentora na Universidade Harvard, a natureza ilusória desse sorriso se explica ao considerarmos exatamente como funciona o aparelho vndentisual. Quando olhamos diretamente para a boca da Mona Lisa, seu sorriso não se evidencia. Mas, ao desviarmos o olhar da boca, o sorriso aparece, convidativo. Olhamos para a boca e ele torna a desaparecer. Na verdade, o sorriso só pode ser visto quando olhamos para longe da boca. Isso se deve ao fato já mencionado de que cada olho tem duas regiões distintas para ver o mundo. A área central, a fóvea, é onde lemos as letrinhas miúdas e discernimos detalhes. A área periférica, ao redor da fóvea, é onde vemos detalhes mais grosseiros, movimento e sombra. Ao olharmos para um rosto, nossos olhos passam a maior parte do tempo focalizados nos olhos da outra pessoa. Assim, quando o centro de nosso olhar fica nos olhos da Mona Lisa, nossa visão periférica, menos precisa, fica em sua boca. E, como a visão periférica não se interessa por detalhes, ela capta prontamente as sombras das maçãs do rosto da Mona Lisa, que acentuam a curvatura de seu sorriso. No entanto, quando nossos olhos vão diretamente para a boca, a visão central não integra as sombras provenientes das maçãs do rosto com a boca. O sorriso desaparece. posteriormente. A tese de pós-graduação de Steve mostrou como essa ilusão funciona no cérebro. O alvo provoca duas reações em nossa via visual. Uma, a resposta inicial, ocorre depois que o alvo é acionado. A segunda, a pós-descarga, ocorre após o alvo ser desligado. Outros laboratórios tinham ignorado a pós-descarga, por ela acontecer depois que o estímulo é desligado. Mas Steve mostrou que, quando a pós-descarga é inibida, o estímulo desaparece. O mesmo também ocorre quando se inibe a resposta inicial, mas não a pós-descarga. Logo, tanto a resposta inicial a um estímulo como a pós-descarga contribuem para a representação neural do estímulo. Steve percebeu que, se isso fosse verdade, deveríamos ser capazes de prever uma ilusão nova e muito poderosa, na qual um alvo cintilante seria perpetuamente tornado invisível pela inibição da resposta inicial e da pós-descarga de cada cintilação. E funcionou!3 Demos à nova ilusão o nome de onda permanente de invisibilidade, e ela une nosso interesse pelas ilusões de óptica e pela magia. É essa ilusão que planejamos transformar em um novo efeito cênico, para assombrar os mágicos com o poder na neurociência no próprio campo deles. Para fazer com que isso aconteça, precisaremos da ajuda de um estúdio de mágicas especializado em efeitos de iluminação eletricamente arquitetados. Por enquanto, o truque está em nossa lista de “coisas por fazer”. 1 Um dos primeiros exemplos de trompe-l’oeil – um exemplo talvez apócrifo, relatado por Plínio o Velho – é a lendária competição entre dois pintores renomados da Grécia antiga, Zêuxis e Parrásio. Cada qual levou um quadro coberto para a disputa. Quando Zêuxis tirou o pano que cobria sua obra, as uvas que havia pintado eram tão realistas que desceram pássaros do céu para bicá-las. Convencido de sua vitória, Zêuxis tentou retirar o véu do quadro de Parrásio, para confirmar a superioridade de seu trabalho. Mas foi derrotado, porque a cortina que tentou abrir era a própria pintura do rival. 2 O movimento da op art (de “arte óptica”) surgiu simultaneamente na Europa e nos Estados Unidos na década de 1960. Diferentemente dos artistas que os precederam, os pintores ópticos não usavam as ilusões apenas como meio para chegar a um efeito perceptual desejado, como a distância ou o volume. A meta era a ilusão em si. 3 Ver http://sleightsofmind.com/media/standingwave. • 4 • Bem-vindos ao espetáculo, mas, por favor, mantenham os olhos vendados: ilusões cognitivas Apollo Robbins correu as mãos pelo corpo do sujeito que acabara de escolher na plateia. – O que estou fazendo é apalpar você – informou o punguista-mor de Las Vegas à sua vítima –, só dando uma espiada para ver o que você tem nos bolsos. Suas mãos se moviam num alvoroço de toques e tapinhas delicados pela roupa do homem. Mais de duzentos cientistas o observavam como gaviões, tentando captar um vislumbre de dedos que invadissem um bolso de maneira indevida. Mas, ao que parece, tratava-se de uma revista perfeitamente inocente e respeitosa. – Agora tenho uma porção de informações a seu respeito – continuou Apollo. – Vocês, cientistas, carregam um monte de coisas.1 Apollo estava demonstrando suas artes cleptomaníacas a um salão cheio de neurocientistas que tinham ido a Las Vegas para o simpósio Mágica da Consciência, em 2007. A ideia por trás dessa noite era mostrar a esses cientistas que os mágicos tinham muito a lhes ensinar sobre os assuntos de suas pesquisas: a atenção, a percepção e até o santo graal – a consciência. Mágicos e neurocientistas compartilham a paixão por compreender os detalhes práticos da mente humana, mas faz gerações que temos desenvolvido nossas respectivas artes e teorias de forma mais ou menos independente. A partir dessa noite, se tudo corresse como o planejado, nossas duas comunidades passariam a prestar rigorosa atenção às descobertas uma da outra. Apollo havia desafiado todos os presentes no auditório a tentar flagrá-lo surrupiando os pertences desse homem no palco, bem à vista de todos. Nós dois observamos atentamente, como as outras pessoas, porém, na verdade, nenhum de nós tinha a menor chance. Esse era Apollo Robbins, o infame Ladrão Cortês, que certa vez pungueou os integrantes da guarda do Serviço Secreto do ex-presidente Jimmy Carter, batendo-lhes carteiras, relógios, insígnias, itinerários confidenciais e as chaves da limusine de Carter. Ele podia nos fazer de bobos pelo tempo que quisesse, mas ao menos sabíamos uma coisa que escapava ao seu conhecimento. Assim que vimos o homem que ele escolhera ao acaso no público, trocamos olhares. Ele não era nenhum cientista, como presumia Apollo, mas um repórter de ciências do New York Times , George Johnson, que estava ali para explicar ao mundo o que viesse a acontecer naquela noite. George é um homem de grande humor e inteligência, mas é muito tímido. Seu constrangimento deu grande contribuição à teatralidade. A revista continuou, enquanto Apollo se entregava à sua arenga ligeira e sumamente aprimorada: – Você tem tanta coisa nos bolsos que não sei ao certo por onde começar. Tome, isto era seu? – perguntou, enfiando alguma coisa na mão de George, que franziu o cenho. – Você tinha uma caneta aqui – disse Apollo, abrindo o bolso do paletó de George –, mas não era isso que eu estava procurando. O que tem naquele outro bolso? George deu uma olhada, e Apollo prosseguiu: – Havia um guardanapo ou um lenço de papel, talvez. Você tem tantas coisas que está me confundindo. Sabe, para ser sincero, não sei direito se algum dia já bati a carteira de um cientista. Nunca tive que fazer um índice ao vasculhar os bolsos de alguém. Essa arenga, aliás, é uma das ferramentas mais importantes do kit dos ilusionistas para manipular a atenção. Existem apenas uma ou duas dúzias de categorias principais de efeitos mágicos (dependendo da pessoa a quem você pergunte) no repertório dos ilusionistas; a aparente grande variedade de truques está toda na apresentação e nos detalhes. A destreza manual é crucial para um punguista, é claro, mas o mesmo se dá com sua arenga – a sequência fluente e confiante de comentários, que pode ser usada para prender, orientar ou dividir a atenção. Apollo dizia uma coisa a George enquanto fazia outras duas com as mãos. Isso significava que, na melhor das hipóteses, George teria uma chance em três de notar que algo seu era surrupiado. A rigor, suas verdadeiras chances estavam muito abaixo de uma em três: no ringue psíquico do manejo da atenção, Apollo é um rematado faixa-preta. Ao apalpar George sem parar – no ombro, no pulso, no bolso do paletó, na parte externa da coxa –, ele lhe desviava a atenção para lá e para cá, tal como um ímã atrai a agulha de uma bússola. Enquanto George tentava acompanhar tudo, o punguista enfiava delicadamente a outra mão em seus bolsos, usando a fala acelerada para ajudar a manter a atenção da vítima presa a suas fintas, e longe dos bolsos que iam sendo furtados. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Apollo furtou de George a caneta, as anotações, o gravador digital, alguns recibos, dinheiro trocado, a carteira e, logo de início, o relógio. Uma forma clássica de tirar o relógio de alguém é primeiro segurar seu pulso sobre a pulseira e apertar. Isso cria uma pós-imagem sensorial duradoura. Você já aprendeu um pouco sobre as pós-imagens visuais no Capítulo 1 – o vestido vermelho, a moeda que desaparece –, mas elas podem ocorrer em qualquer sistema sensorial. Apollo explorou o mesmo princípio, só que, nesse caso, a pós-imagem foi tátil. A pós-imagem tornou os neurônios do tato na pele e na medula espinhal de George menos sensíveis à retirada do relógio e criou uma percepção convenientemente duradoura da presença deste, que se manteve muito depois de ele ter sumido. George simplesmente não notou a falta do objeto porque sua pele lhe disse que ele continuava no lugar. Nós notamos o relógio ao vermos Apollo cruzar os braços nas costas e prendê-lo no próprio pulso, enquanto sua arenga conduzia George por uma nova trilha da atenção. FIM DO ALERTA DE SPOILER SOBRE A ADAPTAÇÃO Em um ou outro momento da vida, você com certeza já revirou tudo à procura dos óculos – “Eles não podem ter simplesmente sumido!” – e então se deu conta de que os estava usando. Quando você os colocou, uma hora antes, os receptores táteis de seu rosto e sua cabeça lhe deram uma viva impressão sensorial da localização deles, de seu peso e do aperto que eles causavam em suas têmporas. Desde então, porém, os óculos se tornaram um estímulo ineficaz e você passou a não sentir nada. Ou então procure tocar o elástico da sua meia sem olhar, mantendo as pernas e os pés imóveis. É provável que você erre a localização por pelo menos uns cinco centímetros. Esse mesmo elástico era muito fácil de notar na pele hoje de manhã, quando você calçou as meias. No entanto, como nada se alterou de lá para cá, ele se tornou indetectável para seus sensores táteis. Ou então ponha a mão sobre uma mesa e a mantenha completamente imóvel. No começo, você sentirá a mesa, mas, depois de um curto período, não a notará mais. A adaptação é um processo crucial e ubíquo do sistema nervoso, não só no processamento sensorial, mas em todos os sistemas cerebrais. Ela economiza energia, reduzindo o metabolismo dos neurônios que não recebem novas informações. Algumas vezes, durante a pilhagem, Apollo levantava bem alto algum objeto surrupiado, por trás da cabeça de George, para que a plateia o visse. Isso fazia todos rirem, menos George, que sorria e olhava em volta, sem jeito, pensando em qual seria a piada. Depois, com mais risadas, Apollo lhe devolveu todos os seus pertences, um por um: – Se você estiver gravando, acho que teremos provas – alertou, enquanto devolvia o gravador digital. Exibindo uma pilha de notas dobradas, comentou: – Suponho que esse seja o seu dinheiro da gorjeta, não é? Por fim, virou-se para George e disse: – Todos fizemos uma vaquinha para lhe comprar um relógio, muito parecido com o que você estava usando quando chegou. – Tirou do pulso o relógio de George e o entregou. O repórter soltou uma exclamação de surpresa e revirou os olhos. Como é que o George pôde ser tão desatento? Por que um ladrão trapaceiro pôde manipular sua atenção como um toureiro conduzindo um touro? É incrível que isso possa acontecer com um observador profissionalmente treinado, em um momento em que ele estava no palco (e portanto com a atenção mais aguçada) e tendo sido informado do que lhe aconteceria. Trata-se de algo que nos faz perguntar o que vem a ser a atenção. Será que podemos olhar diretamente para uma coisa e não a ver de forma alguma? Os mágicos são mestres da cognição humana. Controlam processos cognitivos muito sofisticados, como a atenção, a memória e a inferência causal, com uma combinação desconcertante de manipulações visuais, auditivas, táteis e sociais. As ilusões cognitivas que eles criam, ao contrário das ilusões visuais discutidas até aqui, não são de natureza sensorial. Envolvem, antes, funções cerebrais de nível superior. Ao brincarem com nossa cognição – ainda que não saibam em que circuitos neurais estão mexendo –, os ilusionistas nos impossibilitam de acompanhar a física do que de fato acontece. Deixam-nos com a impressão de que só existe uma explicação para o que acabou de acontecer: pura mágica. É possível que a melhor definição do que é a atenção tenha sido formulada em 1890 por William James, autor dos Princípios de psicologia e rei-filósofo da psicologia moderna: “Todos sabem o que é a atenção. É a apropriação pela mente, de forma clara e vívida, de um entre aqueles que parecem ser diversos objetos ou linhas de pensamento simultaneamente se alteram. Quando você toma a decisão consciente de prestar atenção a um local específico desse espaço “retinotópico”, os neurônios dos níveis superiores do sistema visual aumentam a ativação dos circuitos de nível baixo e aumentam sua sensibilidade aos estímulos sensoriais. Ao mesmo tempo, os neurônios das regiões circundantes do espaço visual são ativamente inibidos. Recentemente, trabalhamos com um grupo de colegas chefiados pelo neurocientista José-Manuel Alonso, da Universidade Estadual de Nova York, e mostramos que os neurônios do córtex visual primário não só aumentavam a atenção no centro do foco e eliminavam a atenção nas regiões circundantes, como seu grau de ativação era modulado pela quantidade de esforço usada para realizar determinada tarefa. Em outras palavras, quanto mais difícil a tarefa, mais a região central da atenção era ativada e mais a região circundante era reprimida. Em um espetáculo de mágica, você enfrenta uma tarefa muito difícil: descascar todas as camadas de despistamento e descobrir o método secreto subjacente a cada efeito mágico. No entanto, quanto mais tentamos, mais difícil é: quanto mais a atenção é intensificada no centro do foco de atenção, mais ela é reprimida em todos os outros locais. É claro que o centro do foco de atenção fica no exato local onde o mágico o quer – onde não acontece nada de interesse especial. Os locais que cercam o foco da atenção, onde acontece a ação real, são convenientemente reprimidos pelo cérebro. Os exércitos de neurônios que eliminam a percepção nessas regiões são os confederados do mágico. Apollo lida com suas vítimas como se soubesse desde sempre desses circuitos neuronais. Tira uma moeda de 25 centavos do bolso do paletó e pergunta: “Isto é seu?” Você sabe perfeitamente que não é (quem guarda moedas de 25 centavos no bolso do paletó?), mas não consegue evitar: examina o rosto de George Washington como se fosse encontrar as suas iniciais gravadas na testa dele. “De que ano é a moeda?”, pergunta Apollo. E você tenta obedientemente discernir, mas as letras são muito miúdas e borradas, então você procura seus óculos de perto… no bolso do paletó. E eles não estão lá. “Experimente estes óculos”, oferece Apollo gentilmente, entregando-lhe os que usava no rosto, que são justamente os seus, como se verifica. Enquanto você fitava atentamente a moeda, que sabia não ter saído do seu bolso, as mãos de Apollo surrupiavam os óculos, literalmente embaixo do seu nariz, no momento em que você eliminava todo o movimento visual em volta da moeda. Se os neurocientistas tivessem sabido – como Apollo parece saber – que a atenção funciona dessa maneira, isso teria poupado um tempo enorme gasto em pesquisas. Por isso, agora estudamos os mágicos. SOBRE O DESPISTAMENTO Você não tem que ser mágico para ser hábil no despiste da atenção. Quando uma conversa beira um terreno incômodo, seu instinto natural é mudar de assunto. Muitas vezes, a outra pessoa entra no jogo, como se vocês não tivessem acabado de falar do seu câncer, e finge que sim, estamos realmente falando do resultado do jogo dos Red Sox ontem à noite. Nosso cérebro foi feito para ser flexível no que diz respeito àquilo a que prestamos atenção, tanto no nível sensorial quanto no cognitivo. Sem essa flexibilidade, seríamos incapazes de dirigir para casa pensando em qual será a comida do jantar e, de um instante para outro, dar uma guinada no volante, para desviar da criança que saiu correndo atrás da bola. Após depenar George, Apollo virou-se para a plateia e perguntou: – Agora, vocês querem ver os bastidores de como fiz isso tudo? Os mágicos são famosos por terem horror a revelar seus segredos, mas Apollo estava em Las Vegas nessa noite para instruir, não apenas para divertir. Chamou de novo o sempre amável George para mais uma pilhagem, porém dessa vez explicou o que fazia. Diminuiu muito a velocidade de suas técnicas, de vez em quando parando e voltando atrás. A maioria das pessoas chama de “despistamento” o que os mágicos fazem, explicou Apollo, mas isso é como dizer que os médicos levam as pessoas a melhorar usando suas habilidades de cura. É um termo tão genérico que chega a ficar quase sem sentido. Apollo prefere discutir princípios e técnicas específicos, como “enquadramentos” e “manejo da atenção”. Não é verdade, diz ele, que a mão seja mais rápida do que o olho. A maioria das manipulações é executada em uma velocidade normal. O sucesso depende da habilidade do mágico em desviar nossa atenção do método e direcioná-la para o efeito mágico. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Os enquadramentos são janelas de espaço criadas pelo mágico para focalizar nossa atenção. O enquadramento pode ter o tamanho de um cômodo inteiro ou de um tampo de mesa, ou não ser maior do que um cartão de visita. “Dentro do enquadramento, você não tem alternativa senão observar”, diz Apollo. “Uso o movimento, o contexto e o tempo para criar cada enquadramento e controlar a situação.” Apollo fez uma demonstração, chegando bem perto de George. Segurou-lhe a mão e fingiu pressionar uma moeda dentro dela, embora tudo o que estava de fato colocando ali fosse outra pós-imagem sensorial, feita com seu polegar. “Aperte com força”, instruiu. George olhou atentamente para sua mão, agora captada dentro de um enquadramento, e apertou. “Você está com a moeda?”, provocou Apollo, e George meneou a cabeça. Achava que sim. “Abra a mão”, disse Apollo. A palma estava vazia. “Olhe para o seu ombro”, instruiu o mágico. George o fez, e havia uma moeda pousada nele. Apollo explicou que, quando a atenção do sujeito se localiza em um enquadramento, as manobras fora deste raras vezes são detectadas (como pôr uma moeda em um ombro). Os mágicos, disse ele, controlam totalmente a atenção, em todos os momentos. As pessoas tendem a pensar no despistamento como a arte de fazer alguém olhar para a esquerda enquanto se faz um truque à direita, mas Apollo afirmou que despistar tem mais a ver com forçar o foco de atenção a se concentrar em um lugar específico em determinado momento. Os mágicos exploram diversos princípios psicológicos e neurais para fazer com que a pessoa concentre o foco de atenção. Lembre-se de que, quando você vê um objeto que é novo, brilhante, chamativo ou móvel – pense na pomba branca que sai voando da cartola –, sua atenção é impulsionada pelo aumento da atividade em seu sistema sensorial ascendente, o que significa que a informação que se destaca em seus sentidos flui para o cérebro. Vem da parte inferior e sobe. Você sente uma forte atração pelo objeto. Os neurocientistas dão a isso o nome de captação sensorial. Os psicólogos chamam de captação exógena da atenção. Para os mágicos, o nome disso é despistamento passivo. No despistamento passivo, você presta atenção ao pássaro esvoaçante, enquanto o mágico consegue alguns instantes despercebidos para executar uma manobra furtiva. O despiste é passivo porque o mágico nos deixa fazer todo o trabalho. Ele apenas cria a situação. Na versão com copos e bolas de Penn & Teller, Penn usa suas habilidades de malabarista para atrair sua atenção, enquanto Teller faz um movimento oculto. Na verdade, Penn lhe diz o que está fazendo. “Isto não é malabarismo”, declara, enquanto as três bolinhas de papel-alumínio giram diante do rosto dele – “isto é um despiste.” Você, é claro, não consegue deixar de observar atentamente o espetáculo de malabarismo, até o momento em que Penn lhe informa que você foi tapeado. Se há mais de um movimento visível – a pomba que voa descreve um arco no alto, enquanto o mágico põe a mão em uma caixa para preparar o truque seguinte –, você acompanha naturalmente o movimento maior, mais destacado. Acompanha o pássaro, não a mão. Daí o axioma dos ilusionistas: “O movimento grande encobre o movimento pequeno.” De fato, um estímulo grande ou veloz, como a pomba voando, pode literalmente diminuir o destaque perceptível de um estímulo menor, ou que se mova mais devagar, como a mão do mágico na caixa, de modo que a atenção é atraída pelo pássaro, não pela mão. A razão você já conhece: quando prestamos atenção a certa localização no espaço, os neurônios responsáveis pelo processamento das informações nas regiões circundantes são inibidos. Quando duas ações de destaque idêntico se iniciam simultaneamente, a que você nota primeiro capta a sua atenção. Torna- se mais destacada e a outra ação é inibida, ficando menos saliente. Além disso, as coisas inéditas (a pomba inesperada) produzem reações mais fortes em partes do cérebro que são cruciais para a alocação da atenção (a saber, o córtex inferotemporal, o hipocampo, o colículo superior, o córtex pré-frontal e a área intraparietal lateral; essas áreas recebem os sinais sensoriais de baixo para cima e acionam circuitos que intensificam o objeto ao qual se presta atenção, ao mesmo tempo que eliminam outros objetos do campo visual). O destaque de um objeto também aumenta quando o mágico dirige ativamente a nossa atenção para ele. Por exemplo, Apollo pode pedir a você que folheie as páginas de um livro enquanto põe no bolso a carteira que lhe surrupiou. Você fica absorto na tarefa de virar as páginas. Esse é o despistamento ativo. (Os psicólogos o chamam de captação endógena da atenção.) Seu controle da atenção de cima para baixo se concentra no livro e você ignora a mão. As ações do mágico intensificam a ativação dos neurônios envolvidos na atenção que você presta para virar as páginas do livro, enquanto os neurônios que poderiam atentar para as mãos dele são inibidos. Apollo também nos confunde a cabeça de outras maneiras. Sua arenga visa gerar um diálogo interno na mente do espectador – uma conversa dele consigo mesmo sobre o que está acontecendo. Isso, diz o mágico, resulta em uma enorme confusão. Torna mais lento o tempo de reação do espectador e o leva a se criticar. Muitos mágicos usam a comicidade e o riso para reduzir a concentração de nossa atenção em pontos cruciais de seus truques. Lembra-se do Grande Tomsoni e de suas piadas batidas? Ele tira proveito da atenção diminuída naqueles momentos incomuns em que você relaxa depois de uma piada. E o Magic Tony e seus sapatos de leopardo? A lenga-lenga de Tony nas mágicas se concentra nos trocadilhos e em uma retórica de natureza caseira. Ele criou um personagem que encarna plenamente um dos estereótipos primários dos mágicos: o tio piadista fora de moda. Tony diz que o objetivo de sua conversa é ser “tão careta que chegue a ser maneira”. Não pudemos deixar de nos perguntar por que ele havia escolhido uma persona tão, bem… chata. Tony diz que os canastrões acidentais criam um clima em que o espectador pode rir de suas piadas, mas por achar que tem de ser gentil, não por elas serem engraçadas. Sem o riso falso, o espetáculo seria constrangedor para todos, e por isso a pessoa ri. Mas Tony percebeu que um amante incorrigível de trocadilhos, exagerado e intencionalmente canastrão, é capaz de fazer do espectador um carrasco voluntário de seu humor. E isso pode ser muito útil como veículo de despistamento. Uma reação sincera de resmungo diante de um trocadilho prende mais a atenção do que uma risada falsa, diz Tony. É difícil o sujeito ficar concentrado no método de um truque quando está ocupado em se contrair de horror ou em revirar os olhos. Em muitos truques de ilusionismo, a ação secreta ocorre quando o espectador pensa que o truque ainda não começou ou já acabou. Os mágicos dão a isso o nome de despistamento temporal. Eles também podem introduzir demoras entre o método por trás de um truque e seu efeito, impedindo que se estabeleça uma ligação causal entre os dois. Arturo de Ascanio, grande teórico da mágica e pai dos truques espanhóis de baralho, refere-se a esse tipo específico de despistamento temporal como o “parêntese do esquecimento”. Em essência, isso significa que o mágico deve separar o método do efeito mágico. Essa separação confunde o processo de reconstituição dos espectadores. Imagine que um mágico finja que transfere uma moeda da mão esquerda para a direita e depois abra a mão direita e revele que está vazia. Como não há separação entre o truque (a falsa transferência) e o efeito mágico (o sumiço da moeda), você pode facilmente concluir que a moeda nunca foi transferida de fato, mas permaneceu escondida na mão esquerda do mágico. Um profissional mais talentoso introduzirá uma separação – um parêntese de esquecimento – entre o método e o efeito. Por exemplo, após a falsa transferência da moeda e antes de revelar a mão direita vazia, ele poderá pôr a mão no bolso, com a finalidade explícita de pegar uma varinha mágica, mas, na verdade, estará também deixando cair no bolso a moeda empalmada. Depois, tocando na mão direita com a varinha da esquerda, ele mostrará que a moeda desapareceu. Ao repassar a cena em sua mente, você terá mais dificuldade para descobrir onde pode estar escondida a moeda que sumiu. Um dos truques de Magic Tony envolve o despistamento baseado no que os psicólogos chamam de paradigma da habituação-desabituação. Isso significa que ele procura promover a apatia do espectador (isto é, deixá-lo entediado, com preguiça ou desatento ao que o mágico faz), dando a impressão de repetir a mesma ação várias vezes, induzindo-o a um falso sentimento de segurança. Isso é a habituação. E aí, bum!, ele modifica o método e o conduz ao efeito espetacular resultante. Eric Kandel, ganhador do Prêmio Nobel, e nosso amigo Tom Carew mostraram que um dos correlatos neurais da habituação-desabituação é uma mudança na força das ligações entre os neurônios do cérebro. Quando ocorre a habituação, os neurônios enviam menos substâncias químicas sinalizadoras (neurotransmissores) aos neurônios a que estão ligados, diminuindo com isso a resposta descendente. Quando a mesma conexão se desabitua, o neurônio sinalizador torna a enviar uma porção de neurotransmissores, o que restabelece a reação maior no neurônio mais abaixo. Tony, com toda a elegância, faz os neurônios da plateia passarem da habituação para a desabituação. Suas repetições iniciais embalam o cérebro dos espectadores, levando-o a uma habituação que embota a mente, e em seguida eles são bruscamente despertados (desabituados) pelo susto do efeito mágico que ele enfim alcança. FIM DO ALERTA DE SPOILER Outro conceito importante, disse Apollo aos cientistas reunidos em Las Vegas, é que os truques se inserem em atos naturais. Ele demonstrou essa ideia fazendo uma caneta desaparecer. Balançou-a diante da plateia com uma das mãos. Quando passou a outra mão pela orelha, como se estivesse se coçando, ninguém notou. Foi um movimento natural, rápido, sem maior destaque. De repente, todos viram que a caneta tinha desaparecido. Apollo virou a cabeça e a mostrou presa atrás da orelha. Teller, a metade mais baixa da dupla Penn & Teller, despiu-se de sua persona calada para descrever o mesmo conceito. Ex-professor de latim do curso médio, ele está longe de ser mudo fora do palco. Tem grande amor pelas palavras, e suas explicações são não apenas cultas, mas inesperadamente eloquentes. “Ação é movimento com um propósito”, diz. Nas interações sociais normais, buscamos o tempo inteiro o propósito que motiva os atos alheios. Um ato sem um propósito óbvio é anômalo. Chama a atenção. Entretanto, quando o propósito parece ter uma clareza cristalina, não investigamos mais nada. Teller explica que levantaria suspeita se erguesse a mão sem uma razão aparente, mas não ao executar um ato aparentemente natural ou espontâneo, como ajeitar os óculos, coçar a cabeça, pôr o paletó no encosto de uma cadeira, ou meter a mão no bolso para pegar uma varinha mágica. Ele dá a isso o nome de “impregnar o movimento”, e diz: “Os mágicos habilidosos impregnam todas as manobras necessárias com uma intenção convincente.” Agora os neurocientistas têm uma boa ideia de por que esses atos que servem de isca são tão bons para nos enganar. Isso provém de um tipo notável de célula cerebral, chamada neurônio especular. Você já se familiarizou com a ideia da “visão mental”: mais ou menos a seu critério, você pode evocar uma experiência quase visual de praticamente qualquer coisa que possa ser vista ou retratada em imagens. Você também tem seu “ouvido mental”, com o qual pode reproduzir melodias, ruídos e vozes com que tenha familiaridade. De modo similar, existe o seu “corpo mental” – a representação virtual que o cérebro tem do eu físico. Quando planeja o que preparará para o jantar de hoje, quando devaneia que é um herói de um filme de ação ou toda vez que revive a lembrança dolorosa de uma humilhação sofrida na aula de educação física, você faz uma simulação virtual dessas ações em seu corpo mental. É um instrumento psíquico de valor inestimável para o planejamento e a execução de ações, para a aprendizagem de habilidades motoras e a recordação delas. Os neurônios especulares são uma parte importante do corpo mental, pois nos ajudam a compreender os atos e as intenções de outras pessoas. Fazem isso imitando automaticamente as ações de terceiros e presumindo as intenções deles, com o uso do nosso próprio corpo mental. Por essa razão, ao vermos Teller pegar um copo d’água, fazemos instantaneamente a mesma coisa • 5 • O gorila entre nós: mais ilusões cognitivas Apollo Robbins estava se divertindo bastante furtando objetos de George no simpósio A Mágica da Consciência. Virou-se de frente para ele, para mais uma demonstração de seus truques. – Quando me aproximo de alguém – disse –, constato que, quando faço um movimento direto, entro em seu espaço pessoal. É como se fosse uma bolha cercando o corpo da pessoa. A distância é diferente nas diversas culturas e de uma pessoa para outra, mas todas têm uma sensação do espaço e tentam protegê-lo. – Apollo então virou o corpo, para ficar ombro a ombro com George, e continuou: – Mas se eu me puser de lado, assim, a lacuna é muito menor. A pessoa não se sente invadida. Quando entro no seu espaço pessoal, preciso romper o contato visual, para que você não mantenha os olhos em mim. O mágico olhou para baixo. George também baixou os olhos. Apollo apareceu junto ao ombro de George. Estava seguramente instalado dentro da bolha dele. Podia realizar qualquer truque de mágica com conforto. A observação de Apollo foi fascinante. O que ele chama de espaço pessoal é o que os neurocientistas conhecem como espaço peripessoal. (Os cientistas não conseguem resistir a um joguinho de “Ponha um prefixo greco-latino junto a uma palavra simples”.) As pessoas sempre tiveram um forte senso intuitivo desse espaço, e recentemente a neurociência começou a decodificar sua base neural no cérebro. Trata-se de mais do que uma simples metáfora, porém é menor do que uma aura real tangível. É um construto que o cérebro cria de forma ativa, como parte do corpo mental. No que diz respeito ao cérebro, o espaço imediatamente à nossa volta é, literalmente, parte do nosso corpo. É por isso que podemos fazer cócegas em uma criança balançando os dedos no ar acima das costelas dela, e é por isso que somos sensíveis em termos emocionais quando alguém “fura” nossa bolha sem ser chamado. Por fim, Apollo revelou um princípio da arte do punguista que nos encanta particularmente, como neurocientistas: – Após muitos anos apresentando espetáculos, notei que o olho sente mais atração pelos arcos do que por linhas retas – disse, e recomeçou a bater nos bolsos de George, que ficou observando com interesse. – Se eu quiser tirar algo do bolso dele, posso manter seus olhos ocupados com a minha mão livre, se a movimentar em arco. Mas, se eu a mover em linha reta, a atenção dele voltará para minha outra mão, como se fosse um elástico – explicou. Tínhamos ouvido Apollo descrever esse princípio pela primeira vez em uma ida a Las Vegas, alguns meses antes do simpósio, em uma das reuniões que fizemos com ilusionistas para dividir conhecimentos e ideias, refletir e conversar sobre a conferência que estava por vir. (Não nos importamos em dizer que, depois de cada encontro com Apollo, verificávamos os cartões de crédito em nossas carteiras para ver se não tinham sido trocados por cartões falsos. Jamais duvide do talento dele.) Teller havia marcado esse encontro específico em seu escritório, para podermos apresentar aos mágicos nossas pesquisas científicas sobre as ilusões de óptica e a percepção visual. O objetivo inicial de nossa cooperação com eles era usar a mágica no laboratório, mas era óbvio que também seria útil aos ilusionistas saber o que vinha a ser a pesquisa cognitiva. Depois de lhes mostrarmos alguns de nossos trabalhos acerca das ilusões de óptica, Susana expôs o que sabemos sobre a neurociência dos movimentos oculares. Existem dois tipos principais, que servem a propósitos diferentes e que provavelmente são controlados por subsistemas distintos no sistema oculomotor. No primeiro tipo de movimento ocular, chamado de sacádico, os olhos saltam quase instantaneamente de um ponto para outro. Os momentos fugazes entre as sacadas, quando os olhos ficam quase imóveis, são chamados de fixações. As sacadas são cruciais para a visão, porque os olhos só conseguem discernir detalhes delicados em um círculo do tamanho de um buraco de fechadura, bem no centro do olhar, que cobre cerca de um décimo de 1% da retina; a vasta maior parte do campo visual circundante tem uma qualidade chocantemente precária. Você pode comprovar isso com um baralho comum. Separe as cartas de figuras e as embaralhe. Fixe o olhar em um ponto exatamente do outro lado do cômodo e não deixe seus olhos se mexerem. Pegue ao acaso uma carta de figura e segure-a com o braço esticado, bem na extremidade de sua visão periférica, depois vá trazendo devagar o braço para a frente, levando a carta em direção ao centro do seu olhar fixado à frente. Supondo que você consiga resistir à ânsia de deixar os olhos correrem para dar uma espiada rápida, descobrirá que a carta tem que chegar bem perto do centro da sua visão para que você consiga identificá-la. A razão de não parecer que a nossa visão é 99,9% lixo são os movimentos sacádicos. Nossos olhos correm o tempo todo pelo mundo, feito beija-flores dopados com metadona. O cérebro elimina os borrões de movimento e integra as partículas de informação recebidas de cada fixação, a fim de apresentar à nossa percepção visual um retrato pormenorizado e aparentemente estável da cena visual diante de nós. Os movimentos sacádicos também estão relacionados com a adaptação. Lembre-se de que os neurônios do aparelho visual foram feitos para detectar mudanças. Mas, quando as condições permanecem estáticas, os neurônios se adaptam, tornando mais lentos seus disparos. Param de fornecer informações confiáveis e nossas percepções ficam limitadas. É como se os neurônios ignorassem ativamente os estímulos constantes a fim de poupar energia para sinalizar melhor a mudança de estímulos. A cena visual ameaça desaparecer. Para superar a adaptação, fazemos movimentos oculares microscópicos durante cada fixação entre os movimentos oculares amplos. Os movimentos oculares de fixação são essenciais para a visão. Na verdade, sem esses minúsculos volteios oculares, ficaríamos cegos ao fixar o olhar. Nossos estudos indicam que, quando o olhar se detém em um objeto e não se move, a atividade de nossos neurônios visuais é suprimida. O objeto desaparece! Movimento ocular sacádico versus perseguição suave: a imagem da esquerda mostra a trilha em zigue-zague que os olhos do observador podem seguir ao olhar para um mágico. A foto da direita mostra a trilha ininterrupta da perseguição suave, quando os olhos acompanham a ponta da varinha mágica que se eleva em um arco delicado. (Fotografia de Matt Blakeslee) No segundo tipo de movimento ocular, chamado perseguição suave, os olhos se movem em uma trilha contínua e ininterrupta, sem pausas ou trepidações no trajeto. A perseguição suave ocorre apenas quando seguimos um objeto em movimento. Não se pode falseá-la. Essa é uma das razões por que algumas cenas de filmes não dão certo: quando um ator finge acompanhar um objeto que na verdade não existe e é acrescentado na pós-produção, é inevitável que os movimentos oculares pareçam canhestros na tela. Os movimentos oculares de busca ou perseguição permitem que acompanhemos objetos em movimento, ao passo que os movimentos sacádicos buscam e colhem de maneira sistemática informações da cena visual. Você pode observar a diferença entre esses dois tipos de movimento ocular elevando os polegares à sua frente, com uns trinta centímetros de separação. Em seguida, mantendo suas mãos imóveis, peça a um amigo que desloque os olhos o mais suavemente que puder de um polegar para outro. Observe que os olhos dele dão pequenos saltos no trajeto. Esses pequenos saltos são as sacadas. Por mais que ele se esforce, não consegue fazer os globos oculares deslizarem de modo suave entre os polegares. Depois, tente de novo, mas dessa vez peça-lhe que fite seu polegar esquerdo, enquanto você o move lentamente até tocar o direito e em seguida volta para a primeira posição. Agora você notará que os olhos dele acompanham o movimento com perfeita suavidade. Todos os mágicos ficaram fascinados com esses dados. Para Apollo, no entanto, desencadearam um momento de descoberta. Ele tinha dito que, como punguista, distingue os movimentos retos dos movimentos curvos da mão ao controlar a atenção de suas vítimas. Nesse momento, ele percebeu que a razão estaria na diferença entre os movimentos oculares sacádicos e os de perseguição. Ao vermos a mão de alguém se mover com rapidez em linha reta, nossos olhos – e nossa atenção – saltam automaticamente para o ponto final. Assim, o punguista faz um gesto linear rápido quando quer minimizar nossa capacidade de prestar atenção ao trajeto em si. Porém, a mão que se desloca em arco aciona um mecanismo diferente de acompanhamento. Não sabemos prever para onde a mão se dirige e por isso fitamos e seguimos a mão em si, sem notar que a outra mão de Apollo, enquanto isso, é introduzida em nossos bolsos. Os punguistas têm todo um arsenal de técnicas de despistamento. Já estamos familiarizados com algumas. É comum esses larápios exercerem seu ofício em espaços públicos lotados e confiarem muito no despistamento de base social – contato visual, contato corporal e penetração furtiva, à maneira dos ninjas, no espaço pessoal da vítima. Entretanto, a observação de Apollo foi nova para nós e de imediato gerou novas ideias para experimentos. É bem sabido que a percepção visual é eliminada durante as sacadas, o que explicaria o modo como os punguistas se valem de movimentos lineares rápidos. E a atenção? Será que ela também é eliminada durante os movimentos oculares? Os cientistas ainda não têm uma resposta, mas a sugestão de Apollo foi tão intrigante que quisemos levá-la ao laboratório. Essa conversa marcou uma transformação radical em nosso relacionamento com os ilusionistas. Nossa intenção original era simplesmente surrupiar suas melhores técnicas, a fim de podermos conceber experimentos melhores, mas nesse momento percebemos que, na verdade, os mágicos talvez soubessem coisas sobre a mente e o comportamento que os neurocientistas desconheciam. Você já sabe da nossa capacidade de atenção “explícita” e “disfarçada”. A atenção explícita é quando dirigimos propositadamente os olhos para um objeto, prestando atenção a ele. A atenção disfarçada é o ato de olhar para uma coisa enquanto se presta atenção a outra. Os mágicos, diabólicos como sempre, exploram essas propriedades do cérebro ao inventarem alguns de seus truques favoritos. Para descrever esses métodos, cunhamos as expressões despistamento explícito e despistamento disfarçado. No despistamento explícito, o mágico afasta o olhar do observador do método que está por trás do truque. Ele o atrai para alguma coisa de falso interesse enquanto executa um ato secreto em outro lugar. É nisso que pensa a maioria das pessoas ao ouvir a palavra “despistamento”. Uma explosão ilumina o palco e uma nuvem miniatura em forma de cogumelo domina a cena por um momento. Opa! De onde veio aquele coelho do outro lado do palco? Quando você estava olhando para a explosão, o mágico usou qualquer um de uma dúzia de métodos para fazer o coelho aparecer enquanto você estava distraído. Esse é o despistamento explícito, é o que o Steve fazia quando surrupiava doces do Dia das Bruxas na infância. “Ei, Jimbo! Aquele é o balão da Goodrich?”, e lá se ia o doce. E, quando o furto era descoberto, metade dele já fora comido. Sim, Jimbo é o irmão caçula do Steve, e essa é uma lembrança carinhosa de gostosuras roubadas, cheias de nozes e chocolate. O despistamento disfarçado é mais sutil. O mágico desvia do método o nosso foco de atenção – e de desconfiança –, sem redirecionar nosso olhar. Você pode estar olhando diretamente para o método por trás do truque, mas não tem a menor consciência disso, pois sua atenção está concentrada em outro lugar. Você olha, mas não vê. Os neurocientistas cognitivos entendem muito de despistamento disfarçado, que é um elemento crucial da cegueira por desatenção. Nesse tipo de cegueira, você deixa de notar um objeto plenamente visível, por ter tido a atenção orientada para outro lugar. Ela é própria da maneira como o cérebro vê e processa as informações. Também estudamos um fenômeno estreitamente relacionado a esse, a cegueira para a mudança. Nessa forma de cegueira, você não nota uma mudança na cena. Ela tem a ver com a maneira como sua mente deixa de recordar o que acabou de ver. VOCÊ CONSEGUE NOS IMPEDIR DE ADIVINHAR SEUS PENSAMENTOS? Você é capaz de explicar os resultados espantosos dos seguintes experimentos de leitura de pensamento montados por Clifford Pickover, um prolífico autor de livros populares sobre ciência e matemática? Os editores da revista Scientific American prepararam a simulação de um teste de Pickover que você pode fazer aqui ou experimentar na versão on-line, ainda mais intrigante, no endereço http://sprott.physics.wisc.edu/pickover/esp.html.1 Usando a percepção extrassensorial, acreditamos poder prever o resultado de sua escolha com 98% de exatidão. Para começar, escolha uma das seis cartas abaixo e memorize-a. Diga o nome dela em voz alta várias vezes, para não esquecer qual é. Quando tiver certeza de se lembrar da carta, circunde um dos olhos na fileira abaixo. Depois, vá para a página 93 e veja se você acertou. Embora muitos ilusionistas se empenhem em explorar a cegueira por desatenção ou a cegueira para a mudança em seus truques, o grande mestre dessas ilusões é o mágico espanhol Juan Tamariz. Na hierarquia dos ilusionistas, ele é Yoda. Dai Vernon, o lendário mágico que enganou Houdini (Capítulo 2), costumava dizer que, em seus oitenta e tantos anos de carreira, ninguém conseguira enganá-lo como Tamariz. Olhando para ele, no entanto, ninguém diria. Já falamos sobre alguns mágicos de aparência estranha. Mas, ainda assim, ao evocar mentalmente a imagem de um ilusionista de fama mundial, é provável que você pense em alguém chique: bem-vestido, penteado, de modos elegantes. Você pensa em Copperfield, Henning ou até em Penn & Teller com seus ternos combinando. Mas um espanhol desleixado, de cabelo desgrenhado e dentes tortos, óculos enormes, colete cafona e cartola roxa? No auge de um truque, o sujeito costuma assumir a postura de um Gollum e apontar para os espectadores, gritando “Tchan, tchan, categorias de estudantes universitários que atravessavam uma praça central do campus. Uma delas simplesmente andava, cuidando de sua vida. Uma segunda categoria caminhava em pares, conversando. Um terceiro grupo ouvia música em seus iPods enquanto andava. E o quarto tagarelava em telefones celulares. Em todos os casos, um palhaço de roupa escandalosa, montado em um monociclo, pedalou até os estudantes, circundou-os com cômica desinibição e foi embora. Os alunos que caminhavam aos pares foram os que mais tenderam a ver o palhaço. Os que usavam iPods ou andavam sozinhos mostraram-se apenas um pouco menos atentos. Mas metade dos estudantes que falavam ao celular deixou escapar por completo o palhaço no monociclo. Esses alunos também andavam mais devagar, deslocando-se de maneira mais sinuosa pela praça. Os pesquisadores concluíram que conversar pelo celular leva à cegueira por desatenção e perturba a atenção. Perturba até o andar. SOBRE AS MULTITAREFAS Você acha que pode digitar uma mensagem de texto enquanto dirige? Que pode ouvir música ao mesmo tempo que paga suas contas, manda recados pelo Twitter e monitora um jogo de futebol na televisão? Que pode redigir um e-mail, jogar paciência e verificar as cotações das ações enquanto tem uma discussão com seu cônjuge? Pois está enganado. Uma década de pesquisas mostra que o dom das multitarefas – a capacidade de fazer várias coisas simultaneamente, com eficiência e bem-feitas – é um mito. O cérebro não foi projetado para atentar para duas ou três coisas simultâneas. Ele é configurado para reagir a uma coisa de cada vez. As pesquisas mostram que não se pode dar completa atenção à tarefa visual de dirigir e à tarefa auditiva de escutar, mesmo que se utilize um aparelho viva-voz. Na verdade, as pessoas que conversam pelo celular enquanto dirigem têm o mesmo foco de atenção das que estão bêbadas, segundo os padrões legais.6 Quando presta atenção à conversa telefônica, o indivíduo “diminui o volume” das partes visuais do cérebro, e vice-versa. Os estudos também mostram que as pessoas que são bombardeadas por vários fluxos de informações eletrônicas não prestam atenção, não controlam a memória nem passam de um assunto para outro tão bem quanto as que concluem uma tarefa de cada vez. Os adeptos crônicos das multitarefas “são tarados pela irrelevância”, diz Clifford Nass, professor de comunicação na Universidade Stanford. “Tudo os distrai.” Eles não conseguem ignorar as coisas, não conseguem lembrar-se delas tão bem e têm menos autocontrole. Outro colega nosso, Russ Poldrack, da Ucla, mostrou que as pessoas usam o corpo estriado, uma região do cérebro envolvida na aprendizagem de novas habilidades, quando estão distraídas, e usam o hipocampo, uma área envolvida na armazenagem e recuperação das informações, quando não estão distraídas. “Temos de estar cientes de que há um preço a pagar pela maneira como nossa sociedade vem se modificando, de que os seres humanos não foram feitos para funcionar dessa maneira”, diz Poldrack. “Fomos realmente estruturados para nos concentrar. E, quando nos forçamos a exercer uma multiplicidade de tarefas, talvez estejamos contribuindo para que percamos eficiência a longo prazo, ainda que às vezes pareçamos estar sendo mais eficientes.” Os mágicos sabem que o dom das multitarefas é uma lenda urbana. Por isso, utilizam uma abordagem do tipo “dividir para conquistar”: cindem a atenção do espectador para que ele não possa se concentrar por inteiro em nenhuma parte do palco em determinado momento. Quando uma lista de tarefas tem páginas de comprimento, você pode sentir a tentação de fazer duas ou mais coisas de cada vez – por exemplo, responder a e-mails em seu iPhone enquanto participa de uma reunião de equipe. O provável é que você não execute bem nenhuma das duas tarefas. Para ter um desempenho melhor, faça uma coisa de cada vez. Eric Mead, o mentalista cujo conhecimento da natureza humana não cansa de nos surpreender, encontrou-se conosco no restaurante Monterey Fish House, na Califórnia, onde nos munimos de nossos guardanapos e sorvemos tigelas gigantescas de cioppino,7 bebendo taças de Chianti. Susana perguntou se em algum momento Eric usava sua formação de mágico na vida cotidiana. Sem pestanejar, ele fechou os olhos e descreveu em detalhes os clientes sentados à nossa volta – quantos havia em cada mesa, o sexo e a idade aproximada, o que estavam comendo e até suas conversas e seu aparente temperamento. O casal à esquerda comemorava um aniversário. A família ao fundo estivera em um enterro mais cedo naquele dia. A cerimônia deve ter sido para alguém que não pertencia à família imediata (já que eles estavam jantando ali), mas próximo o bastante para levar o clã inteiro a comparecer ao funeral. As pessoas atrás de Susana viviam um casamento infeliz. À direita de Steve, um grupo de colegas de trabalho comemorava um feito de alguém, Eric ainda não sabia ao certo qual. O homem mais adiante estava se divertindo. Uma mulher do outro lado do restaurante estava de mau humor. O casal aniversariante trocava olhares sensuais e não queria ser perturbado. Eric disse que precisa desse tipo de informação quando escolhe pessoas em suas apresentações de mentalismo, e contou que as colhe praticando a consciência situacional – a percepção deliberada de tudo o que acontece no espaço e tempo imediatos, a compreensão de seu significado e a previsão do que poderá acontecer em seguida. Enquanto entramos no restaurante, sentamos à mesa, escolhemos nossos pratos no cardápio e começamos a jantar, Eric voltou despreocupadamente seu foco de atenção para todas as pessoas que nos cercavam, por hábito. Ele nunca para de avaliar o ambiente. Nunca se sabe quando se precisará de informações para uma demonstração improvisada de magia, disse-nos. Deslocando seu foco de atenção como um farol no céu noturno, Eric aprendeu a não se deixar absorver em demasia por nenhum aspecto isolado do que acontece ao redor, e diz que por isso já não vivencia a mágica do mesmo modo que a maioria das pessoas. Ele não é insensível ao despistamento, mas resiste a usá-lo. Também não é nada bom em exercer tarefas múltiplas, segundo sua própria admissão. A habilidade que ele descreve envolve a atenção sequencial. Ficamos pensando em qual seria a dificuldade de aprender técnicas de consciência situacional. Para tanto, assistimos a um curso de treinamento no Centro de Treinamento de Sobrevivência em Aviação do Corpo de Fuzileiros Navais, em Miramar, na Califórnia. A Marinha ensina seus aviadores a usar a consciência situacional – a otimizar a percepção e a cognição em condições difíceis, tanto ambientais como de carga mental de trabalho. Quer você esteja escolhendo um prato num cardápio enquanto mantém uma conversa, quer esteja se recuperando de uma descida em parafuso chato em um jato de asas fixas, um padrão ótimo de varredura da atenção maximizará o seu sucesso, não importa o que você tente fazer. Experimentamos pessoalmente esse desafio ao prendermos os cintos de segurança e, em um simulador de milhões de dólares, pilotar um dos maiores helicópteros do arsenal militar dos Estados Unidos, o CH-53 Super Stallion. Sentados na cabine, procuramos distribuir nossos sistemas de atenção e examinar os instrumentos enquanto pilotávamos aquela fera enorme. Nosso instrutor, o capitão Vincent Bertucci, um piloto naval conhecido como “Fredo”, explicou que a capacidade de vasculhar o meio circundante se desarticula quando a atenção fica presa a uma rotina. O mundo fora do para-brisa nos chama enquanto os sentidos nos dão informações erradas. Surgem problemas com os motores, com o navio em que o piloto vai pousar, com a carga que ele tenta levantar com o helicóptero, com os sistemas de comunicação dentro e fora da aeronave. Todos esses eventos requerem atenção, às vezes por tempo demais, se o piloto não tiver cuidado. Enquanto sua atenção se concentra em determinado problema, sem vasculhar os outros problemas potenciais – por exemplo, ele fixa os olhos em um único medidor –, o piloto, sem querer, pode mergulhar o helicóptero na água. Os ilusionistas usam o despistamento explícito e o disfarçado para produzir efeitos semelhantes a essas condições de voo. Dividem a atenção do espectador e o levam a um desastre cognitivo. Se pudermos fazer uma engenharia reversa do modo como eles fazem isso e aplicar tais princípios ao desenvolvimento de métodos que se contraponham aos deslizes da atenção, poderemos reduzir as falhas de atenção que ocorrem em condições de sobrecarga mental de trabalho. Dois anos após o simpósio A Mágica da Consciência em Las Vegas, estávamos no antigo vilarejo pirenaico de Benasque, na Espanha, participando de uma conferência internacional sobre arte e ciência. Era um grupo eclético de especialistas que vêm explorando os limites da percepção humana. Havia mestres-cucas junto com cientistas que estudavam o sentido do olfato, arquitetos trabalhando com especialistas na percepção espacial humana, pintores ligados a neurocientistas da visão, e nós dois nos juntamos a um dos maiores jovens talentos do ilusionismo na Espanha. Enquanto lidávamos com os aspectos mais acadêmicos dos despistamentos explícito e disfarçado e sua relação com os mecanismos cerebrais da atenção, Miguel Ángel Gea foi direto ao ponto, fazendo truques que deslumbraram os doutos ali reunidos, provando como era frágil a apreensão que tinham da realidade. Miguel Ángel é um rapaz grandalhão, com uma longa cabeleira castanha presa em um rabo de cavalo. Com calças utilitárias e uma camisa de tecido transparente, ele exalava um bom humor descontraído, o que não é de admirar, uma vez que foi formado pelo próprio Juan Tamariz. Ele é um espírito que ama tanto as diversões que, embora sua intenção original fosse passar menos de 24 horas conosco em Benasque, acabou ficando quatro dias – tudo graças à acolhida calorosa que recebeu dos participantes da conferência e da população local. Nossa apresentação conjunta na conferência começou às 21 horas e, a pedidos, prosseguiu até a meia-noite, depois do que Miguel Ángel correu os bares e os restaurantes do vilarejo, regalando os habitantes (que o conhecem da televisão espanhola) com mais truques até altas horas da madrugada. Fez isso todas as noites e só terminou a festa quando anunciou estar completamente esgotado e não ter mais forças para segurar uma moeda ou um baralho. Seu amor à vida é profundo. Igualmente profunda é sua compreensão do comportamento humano. Ele usa a bibliografia mais recente da ciência cognitiva como uma luz para orientar o desenvolvimento de novos truques. Por exemplo, nosso colega Dan Simons, famoso pelos “gorilas entre nós”, concebeu outro experimento engenhoso que ilustra a cegueira para a mudança. Em uma versão do experimento, observa-se um professor proverbialmente distraído atravessar um pátio do campus. Um aluno se aproxima dele e diz: “Com licença, o senhor pode me dizer onde fica o ginásio?” Puxa um mapa do campus e completa: “Não sei andar por aqui.” O professor, satisfeito por ajudar, olha para o mapa, em atenção conjunta com o aluno, e começa a apontar o caminho. Mas, nesse exato momento, dois operários que carregam um grande objeto retangular – ora uma porta, ora um quadro grande – aproximam-se e forçam a passagem. “Com licença. Por favor, nos deem licença”, dizem, enquanto carregam o objeto por entre o professor e o aluno. Passam-se apenas uns dois segundos, durante os quais vem a guinada súbita: o aluno – de jeans, camiseta vermelha e cabelo preto – abaixa-se atrás do objeto e se retira. Um segundo estudante, que vinha andando agachado atrás do objeto – louro e vários centímetros mais baixo, usando calças e camisa social –, levanta-se no lugar do primeiro. Está segurando o mapa quando torna a se aproximar do professor, que, espantosamente, não percebe a mudança. Talvez os estudantes sejam “unidades homogêneas” na cabeça dele, mas ainda assim é inevitável nos maravilharmos com essa cegueira para a mudança. O experimento foi repetido muitas vezes, trocando toda sorte de características, como a altura, o sotaque e as roupas. A CEGUEIRA PARA A MUDANÇA EM AÇÃO Quando nos mudamos para nosso instituto atual, Susana precisou de outro laboratório em que pudesse conduzir experimentos sobre a percepção. O chefe de seu departamento ofereceu-lhe a sala de desenho, desde que ela não se incomodasse em dividir o espaço com uma porção de peças volumosas – uma mesa inclinada, um armário enorme com gavetas rasas para guardar desenhos grandes, guilhotinas imensas e coisas similares. Susana agradeceu e se mudou para lá. Depois, procurou cada um dos chefes de laboratórios e lhes perguntou se não se importariam em retirar os desenhos que tivessem guardado no armário, já que o móvel simplesmente ocupava espaço demais. Muito gentis, todos concordaram em ajudar, e Susana se livrou do armário. Depois, em um andar diferente do edifício de pesquisas, ela achou outra sala com equipamentos em comum, onde havia algum espaço disponível em uma bancada. Retirou as guilhotinas e vários outros apetrechos de seu novo laboratório e os deslocou para lá. No correr de algumas semanas, a sala de desenho tornou-se sala de desenho apenas no nome, já que fora completamente transformada no laboratório de Susana. Assim, ela ligou para o pessoal que cuidava das instalações e pediu que a placa da porta fosse trocada, passando de “Sala de Desenho da Neurobiologia” para “Laboratório de Susana Martinez-Conde”. Aos poucos, porém de forma segura, Susana havia transformado seu laboratório de testes de percepção, fazendo-o passar de um simples canto de uma sala de desenho compartilhada para seu espaço laboratorial completo e não dividido, e tudo empregando apenas os princípios da cegueira para a mudança. O chefe do departamento ainda abana a cabeça quando se lembra disso, mas nunca pediu a sala de volta, porque o espaço do laboratório é muito produtivo e seus projetos obtiveram verbas de financiamento para apoiar as pesquisas feitas ali. Miguel Ángel calcula que, se alguém deixa de notar uma troca de lugar entre duas pessoas muito diferentes, pode deixar escapar quase qualquer coisa. Pode confundir uma carta com outra. Uma tarde, na conferência, ele demonstrou de que maneira. Vestindo sua roupa informal de praxe, chamou um voluntário na plateia. Quando a moça chegou ao palco, ele lhe pediu que escolhesse uma carta em um baralho. Era o oito de paus, que ele reintroduziu no baralho. – Gosto de tirar a sua carta do meu bolso – disse, enquanto puxava magicamente o oito de paus do bolso direito da calça. Aplausos. Miguel Ángel olhou para a voluntária: – Gostou desse truque? É? Há truques de que eu não gosto – comentou. Levantou a mão vazia em direção a ela, colocou-a no cabelo da moça e, ao retirá-la, o oito de paus tinha voltado à palma da sua mão. – Outros mágicos gostam de tirar cartas do cabelo das pessoas, mas, quanto a mim, não gosto desse truque. – Vieram risinhos da plateia. Em seguida, Miguel Ángel reintroduziu o oito de paus no baralho e o pôs na mesa, segurando algumas cartas fora do monte. Esfregou essas cartas entre o polegar e as pontas dos dedos da mão direita. – Outros mágicos preferem fazer moedas aparecerem – disse, enquanto uma moeda grande deslizava por entre as cartas esfregadas e caía na palma de sua mão esquerda. O público reagiu com “ohs” e “ahs”. A voluntária abanou a cabeça, incrédula. O mágico a fitou, enquanto depositava as cartas restantes na mesa – onde agora havia um baralho completo, que, é claro, incluía o oito de paus –, e ficou apenas com a moeda na mão esquerda. Passou-a então para a palma da mão direita. – Mas eu não gosto de truques em que se tiram cartas do cabelo, ou mesmo de truques com moedas – disse, enquanto tornava a jogar a moeda. – Só que dessa vez ela desapareceu. – Não, eu prefiro truques só com uma carta no bolso – prosseguiu. Enfiou a mão direita no bolso e tirou uma carta com o verso voltado para a plateia. – E esta única carta é a sua – disse, virando-a para o público e revelando, milagrosamente, o oito de paus. Aplausos delirantes.8 ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! • 6 • O segredo do ventríloquo: ilusões multissensoriais A primeira coisa que notamos ao chegar ao 24º Campeonato Mundial de Mágica, em Pequim, foi que o prédio monumental onde ele era realizado – o Centro Nacional de Convenções da China – era todo fumaça e vidros. Não é que houvesse algo errado com o sistema de ventilação, tampouco algum mágico tinha usado uma quantidade excessiva de gelo seco em seu número. O edifício fora construído com janelas de vidro espelhado que, no enorme calor de julho de 2009, aprisionavam um imenso manto de smog urbano. Do lado de fora era pior. Toda a cidade de Pequim estava coberta por um smog tão denso que era como se tudo e todos ao redor fossem aparições emergindo de trás da máquina de fumaça de um mágico. Muitos fóruns premiam os mágicos por suas habilidades, mas o Campeonato Mundial de Mágica é o evento internacional de maior destaque. Realizada a cada três anos num país diferente pela Fédération Internationale des Sociétés Magiques (FISM), a competição é informalmente conhecida como Olimpíada da Mágica. O concurso tem uma semana de duração e revela as principais estrelas do ilusionismo. Receber um grande prêmio nele é como ganhar um Oscar – é uma garantia de trabalho permanente por anos a fio. Muitos jovens mágicos de talento, como Lance Burton, passaram da obscuridade para a fama mundial na Olimpíada da Mágica. Estávamos ali para ver com nossos próprios olhos esse acontecimento, e era uma cena e tanto. Dois mil e quinhentos mágicos amadores e profissionais, fornecedores da parafernália do ilusionismo e observadores curiosos de 66 países circulavam pelo saguão principal e pelos corredores, a caminho dos imensos salões decorados em que se realizavam as cerimônias e competições. Os trajes iam desde a roupa comum do dia a dia até mantos de magos, assim como tudo que existe entre uma coisa e outra. Algumas pessoas assistiam a palestras de mágicos famosos sobre temas como “Do caos à ordem: métodos diferentes de dispor secretamente as cartas em uma ordem especial”, “O estilo japonês de estudar a magia”, “Como apresentar o mesmo truque de três maneiras diferentes” e “Ousadia e ilusionismo, ou a arte da verdadeira coragem”. Outras perambulavam entre estandes que vendiam truques com cordas e baralhos, toda sorte de acessórios falsos, livros sobre truques de mágica, baralhos feitos sob encomenda, engenhocas para uso no palco… tudo o que um mágico poderia cobiçar. Uma centena de artistas competia pelo grande prêmio em duas categorias principais: mágica de palco e mágica de perto. As apresentações no palco eram julgadas pelos quesitos manipulação, mágica geral, ilusões cênicas, mágica mental e mágica cômica. Os ilusionistas que fazem mágica de perto eram avaliados em mágica com baralho, mágica de salão e micromagia (truques feitos em escala pequeníssima, como os truques com moedas ou palitos). Dois dias depois de iniciado o evento, ficamos emocionados ao avistar Max Maven, um dos maiores mentalistas vivos do mundo, sentado diante do telão montado no salão principal, fora das salas de competição. Maven é lendário por sua capacidade de ler pensamentos. No palco, assume uma aparência sinistra, à la Svengali: espessas sobrancelhas negras, arqueadas com um ar de desdém, um bigode colado à Fu Manchu e um bico de viúva meticulosamente aparado. Tem a testa bastante larga, em forma de coração, orelhas pontudas, voz grave de barítono e cabelos grisalhos, presos com um nó apertado do qual pende uma longa trança em suas costas. Para completar o visual, Maven usa um terno preto com paletó traspassado, camisa preta e pulseiras e anéis de prata. Nesse dia, porém, ele usava sua roupa corriqueira – camiseta preta, calças pretas e botas. Seu cabelo de samurai estava preso em uma trança frouxa e descia quase até o chão. Era fim de tarde, e os raios de sol brilhavam nos corredores do centro de convenções como pilastras de ouro em uma catedral. Na parede pendia um grande cartaz – SALA 319, RESTAURANTE E SALÃO MÁGICO. Maven estava descansando e observando uma tela de cinema de seis metros de altura, na qual um jovem mágico da Suécia exibia carta após carta, todas saindo de sua mão vazia e estendida. Nosso filho Iago tinha adormecido em seu carrinho, e assim nos aproximamos de Maven. Tínhamos uma pergunta pronta: será que ele conhecia algum truque multissensorial? Em outras palavras, poderia nos falar de truques que dependem de interações entre os diferentes sentidos, como visão, audição e tato? Maven gostou da pergunta e respondeu contando-nos uma piada clássica, usada por gerações de mágicos para divertir amigos e familiares. Trata-se do truque do pãozinho. Eis a descrição feita por ele: para começar, o mágico senta-se a uma mesa de jantar coberta por uma toalha. Certifica-se de que o espectador fique de frente para ele, sem poder ver seus movimentos atrás e abaixo da toalha. Diz alguma coisa batida, do tipo “você sabe que é falta de educação brincar com a comida, mas eu me pergunto se esse pãozinho macio pode quicar”. Então segura o pãozinho e o joga no chão. O espectador ouve-o quicar com um baque alto e, em seguida, elevar-se no ar, onde o mágico o apanha. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! O segredo por trás dessa ilusão muito convincente é simples. O mágico senta-se à mesa em frente a você, desviado da posição normal em que se come. A mão dele faz o movimento de atirar o pãozinho no chão. Tão logo a mão e a parte inferior do braço ficam fora do campo visual de quem olha, ele vira a palma da mão para cima. Usando os dedos e o pulso, joga o pãozinho para o alto, tomando o cuidado de não mover as partes superior e inferior do braço. Toda a ação se dá nos dedos e no pulso – e no pé dele. Antes que o pãozinho ressurja no ar, o mágico bate com o pé. Você ouve o baque no mesmo instante em que o pãozinho teria batido no chão. Mas o que torna o truque do pãozinho realmente interessante é um toque a mais, executado pelo mágico Jay Marshall. Ele introduziu uma demora extra entre o som do pãozinho atingindo o chão e seu quique de volta. É como se o pão caísse abaixo do piso, antes de bater nele, e então quicasse para o alto. Essa manobra acentua a ilusão, e ninguém nota a discrepância. FIM DO ALERTA DE SPOILER No cinema, técnicos chamados de sonoplastas exageram artificialmente sons do cotidiano para torná-los mais realistas. Por exemplo, podem recriar o som de uma caminhada na lama, apertando ritmicamente um jornal molhado em sincronia com os passos do ator visto na tela. Um estudo recente mostrou que, em mais de 70% dos casos, os ouvintes consideram esses sons modificados mais realistas do que as gravações do evento real. Susana testemunhou isso quando entrou em uma academia para aprender tae kwon do (uma arte marcial coreana), aos quinze anos de idade. No primeiro dia, ela se surpreendeu ao constatar que, ao contrário dos socos dos filmes de ação, um soco na vida real não fazia muito barulho. Outro truque multissensorial popular entre os mágicos da mesa de jantar envolve um saleiro que desaparece. Também sentado à mesa em frente ao espectador, o mágico põe uma moeda sobre ela e diz: “Você quer ver eu fazer esta moeda atravessar a mesa?” É claro que sim. Ele então explica que precisará de alguma ajuda para mover a moeda. Pega o saleiro, enrola-o bem apertado em um guardanapo e bate na moeda. Toc toc . Aproxima do corpo o saleiro envolto no guardanapo. Nada acontece. A moeda continua ali. Ele repete o toc toc e o movimento do saleiro. A moeda não se mexe. Ele repete a ação pela terceira vez, dizendo “Puxa vida, isso é difícil”, e deixa o saleiro em cima da moeda. Em seguida, levanta a mão e, pou, achata o saleiro, direto através da mesa. Pelo menos, isso é o que parece. O saleiro sumiu. O guardanapo fica arriado e a moeda ainda permanece na mesa. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Esse truque também é simples. Na segunda vez que o mágico puxa o saleiro para perto do corpo, ele o leva até a beirada da mesa e, com muita destreza, deixa-o cair em seu colo. Como o guardanapo conserva a forma do saleiro, o observador presume que ele continua na mão do mágico, dentro do envoltório de guardanapo. Enquanto isso, o mágico usa a mão livre para deslocar o verdadeiro saleiro por baixo da mesa, até a posição diretamente abaixo da moeda. Faz um terceiro movimento de toc toc com o guardanapo, mas, dessa vez, na verdade o som vem de baixo. Quando o mágico achata o guardanapo vazio em forma de saleiro, os sentidos da visão e da audição do espectador criam juntos a percepção de que o saleiro atravessou a mesa. Trata-se de uma combinação profundamente convincente. FIM DO ALERTA DE SPOILER Esses dois truques revelam uma propriedade fundamental do cérebro: a propensão do indivíduo, ao interagir com o mundo, para integrar informações provenientes de múltiplos sentidos. Quando vemos uma luz intensa e ao mesmo tempo ouvimos um som alto, o cérebro depreende que eles estão relacionados. Lembre-se de que as ilusões ocorrem quando a realidade física não corresponde à percepção. Se você vê os pratos de um címbalo baterem um no outro e ouve o barulho resultante, isso não é uma ilusão. Porém, se você está em Boston para a comemoração do 4 de Julho, vê os címbalos da orquestra Boston Pops baterem e ouve apenas os disparos dos canhões durante o crescendo de Sousa,1 isso é uma ilusão. O fato de que nosso cérebro combina visões e sons em percepções singulares parece flagrantemente óbvio, mas, para os neurocientistas, o fenômeno é muito complicado. Desde Aristóteles, os pesquisadores tendem a estudar os sentidos de maneira isolada – visão, audição, tato, olfato, paladar, equilíbrio, movimento voluntário e sensações do corpo. Os mágicos, contudo, aprendem a manipular a percepção, por compreenderem quando e onde os sentidos não se misturam com precisão. Os sentidos são de fato separados? Ao nos depararmos com o mundo, não temos dele uma experiência desarticulada. Quando percebemos um cachorro latindo, não temos a impressão de vê-lo com um canal do cérebro e ouvi-lo com outro. Em geral, quando as combinações de sons, cheiros, sabores, luzes e sensações táteis ocorrem simultaneamente, percebemos um mundo multissensorial coerente. Os sentidos não apenas interagem, como intensificam uns aos outros. Por exemplo, o som de um alimento pode determinar seu sabor. A batata frita é mais saborosa quando faz barulho no momento em que a mordemos. O sorvete de bacon com ovos (desculpe, os experimentadores são britânicos) tem mais gosto de bacon quando ouvimos o som deste chiando em uma frigideira, ou mais gosto de ovo quando ouvimos galinhas cacarejando em um terreiro. As ostras têm mais sabor quando ouvimos gaivotas e ondas do mar quebrando. O mesmo se aplica à pele e ao som. Ao dizer uma palavra iniciada pelas letras p, t ou k, você produz um sopro de ar que é sentido pelos mecanorreceptores da pele humana. O sopro de ar ajuda você e os outros a perceber os sons corretamente. Esse incrível fato foi revelado em uma série recente de experimentos. Se você fosse um participante, sentaria em uma cadeira enquanto os pesquisadores lançariam pequenos sopros de ar em seu tornozelo e tocariam os sons pa e ta. Você ouviria pa e ta. No entanto, quando eles tocassem o pa e o ta sem o sopro de ar, você mais provavelmente ouviria ba e da. 2 Os olhos podem enganar os ouvidos. Consideremos o efeito McGurk.3 Nessa ilusão audiovisual, vemos um videoclipe de um homem que diz “da da da”. No entanto, se fecharmos os olhos, nós o ouviremos dizer “ba ba ba”. Depois, se tirarmos o som e apenas observarmos os lábios, veremos com clareza que ele diz “ga ga ga”. O efeito é incrível. Ele ocorre porque o cérebro dá o melhor de si para, sempre que possível, conciliar informações descasadas. Às vezes, o melhor dele não é bom o bastante para ser exato. Mas, afinal, é muito improvável que algum dia você veja “ga ga ga” e ouça simultaneamente “ba ba ba” na natureza. A razão pela qual esses efeitos funcionam é que o cérebro usa atalhos para fazer com que as interpretações prováveis das percepções ocorram mais depressa. Assim, embora a percepção resultante possa não ser exata (trata-se de uma ilusão, pois a percepção não corresponde à realidade física), a ilusão é exata o bastante e tem ajudado os seres humanos a sobreviver, economizando tempo e esforço de processamento cerebrais, como quando, por exemplo, nossos ancestrais procuravam ouvir leopardos à espreita nas moitas vizinhas. Os ouvidos também podem enganar os olhos. Se você olhar para um único clarão de luz enquanto escuta diversos bipes, é possível que veja múltiplos clarões. Do mesmo modo, aquilo que ouvimos influencia o que sentimos. Na ilusão da pele de pergaminho, a pessoa esfrega as palmas das mãos uma na outra enquanto ouve sons diferentes. As frequências mais altas trazem a sensação de que as mãos são ásperas. As mais baixas dão a impressão de que são macias, embora nada nelas tenha se alterado. A maneira de sentir o mundo pode efetivamente modificar a maneira de vê-lo, e vice-versa. Lembra-se da ilusão da cachoeira, do Capítulo 1? Se você passar algum tempo fitando o movimento descendente de uma cachoeira, os objetos imóveis adjacentes, como pedras, parecerão estar correndo para cima. Entretanto, se você sentir uma guinada ascendente ou descendente na ponta dos dedos enquanto observa a cachoeira, a direção percebida do fluxo da água se modificará. O tato altera a visão. E há também a ilusão da mão de borracha, que você pode experimentar em casa. Primeiro, compre uma daquelas mãos de borracha horripilantes em uma loja de fantasias. Vamos supor que se trate de uma mão direita. Sente-se diante de uma mesa e coloque-a sobre ela, num ponto em que possa vê-la, ao mesmo tempo pondo a sua própria mão direita no colo, fora do campo visual. Peça a um amigo que pegue dois pincéis macios e os passe simultaneamente, e no mesmo ritmo, na sua mão de verdade e na mão de borracha. Se você for como a maioria das pessoas, logo terá a sensação de que a mão postiça é sua. Se o seu amigo acertar a mão de borracha com um martelo, é possível que você grite Ai.4 Com o equipamento apropriado, inclusive fones de ouvido de realidade virtual, você poderá até induzir toda uma experiência extracorpórea com base nessa ilusão.5 Por causa da maneira como o cérebro é estruturado, um número surpreendente de pessoas experimenta percepções multissensoriais inusitadas. Uma sensação, como a música, desencadeia outro tipo de sensação, como o paladar. Os sentidos têm uma ativação cruzada. Por exemplo, algumas pessoas percebem as letras ou números como dotados de cor. Para uma, o A é sempre vermelho, o B é sempre turquesa. Para outra, o 7 é sempre amarelo, o 4 é sempre laranja. Os dias da semana podem possuir personalidade: a terça-feira é triste, a quarta é alegre. Essas associações são idiossincráticas e automáticas, e duram a vida inteira. Esse fenômeno é chamado de sinestesia. Os neurocientistas identificaram pelo menos 54 variedades de sinestesia, inclusive algumas que são bastante comuns. As pessoas com sinestesia auditiva ouvem sons de batidas leves, bipes ou zumbidos ao ver coisas se moverem ou faiscarem. Esse traço foi descoberto por acaso, quando um estudante que participava de um estudo sobre o movimento visual relatou ter ouvido sons ao observar uma cena semelhante à abertura de Guerra nas estrelas, em que as estrelas vêm voando em direção aos espectadores, só que, nesse caso, não havia trilha sonora. Os pesquisadores não tardaram a identificar muitos outros alunos com as mesmas percepções trans-sensoriais. Parece que algumas pessoas têm uma trilha sonora acentuada na vida, o que faz sentido, ao considerarmos que, no mundo natural, muitas coisas móveis (digamos, as abelhas) fazem sons ao se tampo da mesa, logo antes de ele parecer afundar, obriga o cérebro a prestar atenção e a visualizar o falso acontecimento. Da próxima vez que entrar na internet, vá ao YouTube e digite “Terry Fator”. Você não se decepcionará. Fator foi o primeiro colocado na competição do programa America’s Got Talent de 2007, com seu número de ventriloquia. Seus bonecos imitam cantores famosos – Roy Orbison, Elvis Presley, Marvin Gaye e muitos outros –, enquanto os lábios de Fator não parecem se mover em momento algum. Os jurados foram ao delírio. A plateia gritou, encantada. O Mirage Hotel, em Las Vegas, viu naquilo uma boa oportunidade. Agora, Fator tem um contrato de cinco anos, por muitos milhões de dólares, além de um teatro próprio para onde trazer a ventriloquia, uma arte ultrapassada, para o século XXI. A ventriloquia é a proeza de deslocar o som para um alvo visual. É uma ilusão multissensorial clássica, com profundas raízes históricas. Em muitas sociedades pré-agrícolas, os xamãs usavam a ventriloquia para falar com o mundo espiritual. Os inuítes desciam a profundezas repletas de vozes rosnadoras e pareciam usar um arpão na batalha. “Emergiam” cobertos de sangue (graças a uma bexiga de sangue escondida embaixo da parca) para revelar a verdade e a sabedoria. Na Grécia, no templo de Apolo em Delfos, os “oradores do ventre” – “ventriloquia” significa “falar pelo estômago” – davam voz a revelações divinas e a profecias que emanavam dos mortos. Se pensarmos no mundo anterior à invenção das gravações sonoras, poderemos avaliar o assombro provocado pelos ventríloquos. Hoje em dia, estamos acostumados com sons que nos chegam de todas as direções, em elevadores, shoppings, restaurantes e assim por diante. Todavia, antes das vitrolas e, muito mais tarde, dos iPods, uma voz vinda do teto ou do piso (um dos truques favoritos dos ventríloquos) podia ser apavorante. Era magia negra. Durante o Iluminismo, a ventriloquia perdeu sua reputação de magia negra quando os mágicos se ofereceram para demonstrar a arte de “atirar a voz” e basicamente a desmistificaram. Descreveram-na como era: uma ilusão multissensorial que exigia muita prática para se tornar convincente. Experimente dizer “amor verdadeiro” sem mover os lábios. Ou “mamãe e papai”. Ao olhar para a boca de Fator, notamos que seus lábios mal se movem. A garganta se mexe, mas ele a esconde embaixo de um cavanhaque e um microfone. Como todos os ventríloquos, Fator utiliza um conjunto de aproximações acústicas e truques de articulação. Os sons produzidos com os lábios – p, b e m – são acusticamente similares aos produzidos pela língua no palato mole – k, g e ng [nh]. O ventríloquo pode substituir os primeiros por esses últimos. Ao forçar o ar pela boca ligeiramente entreaberta, Fator pode produzir os sons de f e v sem usar os lábios. Todos os demais sons da língua inglesa podem ser produzidos com duplicações no interior da boca. No início do século XX, ventríloquos como Edgar Bergen (e o boneco que era seu parceiro, Charlie McCarthy) gozaram de imensa popularidade. Bergen dançava com os bonecos, fazia piadas tolas e dava vida a personagens convincentes, como Mortimer Snerd. Mas, quando surgiu uma outra fonte de ilusões multissensoriais – o cinema falado –, números de ventriloquia como os de Bergen se viram fadados ao fracasso, substituídos pela tela. Em matéria de puro entretenimento, não havia como competir. Da próxima vez que você for a um cinema, considere o fato de que os filmes são uma forma de ventriloquia, uma vez que a fala não sai da boca dos atores. O som é canalizado por alto-falantes muito distantes dos atos deles. O cérebro cria a ilusão de que os atores falam entre si, graças ao cérebro multissensorial. Além disso, as imagens parecem ser estáveis, quando na verdade piscam. A aparência estável de uma fonte luminosa faiscante – como uma lâmpada fluorescente, uma tela de monitor ou outros aparelhos, uma projeção de cinema ou um televisor – é conhecida como fusão da cintilação. Ela ocorre quando a velocidade de cintilação ultrapassa um limiar crítico, que no cinema é de 24 fotogramas por segundo. Acredita-se que a fusão da cintilação ocorra graças a um processo chamado de persistência da visão. Esse conceito foi originalmente apresentado à Royal Society de Londres, em 1824, por Peter Mark Roget (criador do famoso tesauro), que o descreveu como a capacidade retiniana de reter a imagem de um objeto por um período que varia de 1/20 a 1/5 de segundo depois de ele ser retirado do campo visual. Johnny Thompson explorou esse fato em seu truque do vestido vermelho. Max Wertheimer, fundador da famosa escola de psicologia da Gestalt mencionada no Capítulo 2, e Hugo Munsterberg descobriram um segundo princípio – o fenômeno fi, ou efeito estroboscópico, que tem estreita relação com a fusão da cintilação. É possível eliminar perceptualmente o hiato temporal entre duas exposições consecutivas, de tal modo que se perceba uma série de imagens estáticas em movimento contínuo. Somando-se a essa ilusão visual uma fonte sonora próxima, o cérebro faz o resto: você é transportado de maneira ininterrupta para maravilhosos mundos ficcionais (a menos, é claro, que esteja assistindo a um filme estrangeiro mal dublado!). A interligação entre nossos sentidos também desempenha um papel importante nos truques de prestidigitação que envolvem a memória, que será o tema do próximo capítulo. Considere a história a seguir. Quando era repórter na União Soviética, na década de 1920, Solomon Sherashevsky era capaz de recordar nomes, datas, instruções, fontes e outros dados essenciais para um jornalista sem jamais anotar nada. Nas reuniões de equipe, seu editor achava que ele estava sendo preguiçoso, já que não anotava seus compromissos, e um dia pediu ao repórter que repetisse cada palavra do que acabara de ser dito na reunião daquela manhã. Sherashevsky assim fez, de maneira impecável – meio admirado, segundo consta, com o fato de seu talento ser considerado incomum. Perplexo, o editor mandou o repórter para o laboratório do psicólogo russo Aleksandr Romanovich Luria “para que se façam uns estudos sobre a sua memória”. Nos anos seguintes, Luria estudou “o homem de vasta memória”, assinalando que o talento dele provinha de uma forma de sinestesia. Sherashevsky via imagens vívidas – como respingos de cor ou sopros de fumaça – a cada palavra, número ou sílaba que chegavam até ele. Quando queria se lembrar de números, sílabas, palavras ou eventos, evocava as combinações de imagens que via mentalmente. Com isso, conseguia se lembrar de quase tudo com que se deparava. Os mágicos, como vimos, mesmo que não apresentem sinestesia, sabem utilizar a mistura dos sentidos. 1 John Philip Sousa é o autor da marcha patriótica “The Stars and Stripes Forever”, considerada sua obra-prima. (N.T.) 2 Na verdade, ouvimos mal as pessoas. Deduzimos o sentido pelo contexto. Podemos ouvir “charco” [bog] em vez de “cachorro” [dog], mas a frase “o menino fez carinho no charco” não faz sentido – por isso você pensa em cachorro. Além disso, embora possamos ouvir sons na ausência de fluxos de ar, os sopros de ar talvez facilitem a distinção entre duas palavras como “alto” [tall] e “boneca” [doll], quando há muito ruído no ambiente. 3 Ver http://sleightsofmind.com/media/McGurk. Esse fenômeno é às vezes chamado de efeito McGurk-MacDonald. Foi descrito pela primeira vez em 1976 por Harry McGurk e John MacDonald, no artigo “Hearing Lips and Seeing Voices”, Nature 264, p.746-8. 4 Ver http://sleightsofmind.com/media/rubberhand. 5 Ver http://sleightsofmind.com/media/out-of-body. • 7 • O truque indiano da corda: ilusões mnêmicas A década de 1890 é lembrada como uma época de invenções exuberantes, em que os engenheiros das máquinas a vapor desenvolveram os primeiros precursores do avião, do automóvel e do cinema. Wilhelm Roentgen identificou os raios X, Marie e Pierre Curie descobriram a radioatividade e William James descreveu os princípios da psicologia. Os leitores se extasiaram com Sherlock Holmes, Drácula e O livro da selva, de Rudyard Kipling. Entretanto, para milhões de pessoas imersas no espiritualismo da época – repleto de sessões mediúnicas, luzes psíquicas, vozes dos mortos e obscuros segredos do Oriente –, a melhor novidade talvez tenha sido um fenômeno mágico de tirar o fôlego, chamado truque indiano da corda. Em 8 de agosto de 1890, o Chicago Tribune publicou o primeiro relato oficialmente registrado do truque. Dois pós- graduados de Yale, um pintor e um fotógrafo, viajavam pela Índia quando viram um faquir de rua puxar de baixo dos joelhos um rolo de corda cinzenta, segurar a ponta solta com os dentes e jogar o rolo para o alto. A corda se desenrolou até a outra ponta desaparecer do campo visual. Em seguida, um garotinho “de mais ou menos seis anos” subiu pela corda. Quando estava a uns dez, doze metros de altura, sumiu. Puf! Isso aconteceu ao ar livre, em plena luz do dia; seria impossível ocultar da visão qualquer arame escondido ou outras engenhocas de apoio. O pintor fez um esboço do evento. O fotógrafo registrou com sua câmera. No entanto, quando as fotos foram reveladas, não mostraram nem corda nem menino. Havia apenas o faquir, sentado no chão. O autor anônimo da reportagem proferiu uma explicação: o faquir havia hipnotizado todos os espectadores, mas não tinha conseguido hipnotizar a máquina fotográfica. De acordo com Teller, que escreveu sobre esse truque anos atrás, a genialidade da reportagem foi que ela permitiu a muitos leitores se regalarem com os mistérios orientais ao mesmo tempo que mantinham a pose de modernidade. O hipnotismo era para os vitorianos o que é a energia para a Nova Era: uma explicação genérica para toda sorte de crenças excêntricas. Ao descrever um milagre eletrizante que desafiava a gravidade e, em seguida, desacreditá-lo como resultado do hipnotismo – algo igualmente enigmático mas com um toque científico ocidental –, o Tribune permitiu que os leitores tivessem seu mistério e o desmascarassem, tudo no mesmo instante. Quatro meses após a publicação do artigo, o editor de um semanário britânico escreveu ao Tribune, pedindo para falar com um dos pós-graduados de Yale. Recebeu um bilhete em tom escusatório do autor da matéria: “Sou levado a crer que essa historinha despertou mais atenção do que eu sonhara ser possível, e que muitos a aceitaram como perfeitamente verídica. Lamento que alguém tenha sido iludido.” Em outras palavras, era um embuste. O truque é impossível. Não existe nem nunca existiu. Os historiadores do ilusionismo consideram apropriado que o autor da reportagem tenha sido John Elbert Wilke, um mentiroso de talento que, tempos depois, se tornou o primeiro diretor do Serviço Secreto dos Estados Unidos, famoso por sua velhacaria e seus estratagemas maquiavélicos. Ele escrevera a matéria apenas para aumentar a circulação do jornal. Depois, Wilke publicou uma retratação, assinalando que a história fora “escrita com o objetivo de expor uma teoria de forma divertida”. Quem assinou a retratação foi um certo Fred S. Ellmore (um trocadilho com a expressão “sell more” [“vende mais”]). No entanto, a retratação de Wilke chegou tarde demais. A história já se transformara em um vírus. Muito antes de a internet tornar a disseminação de informações instantânea, a notícia do truque indiano da corda disparou mundo afora – só que o fez em meses, em vez de minutos. A história foi retomada por jornais de todo o território norte-americano e da Europa, traduzida para quase todas as línguas europeias, e chegou também à Índia, onde foi recebida com surpresa. Que truque da corda? Durante os cinquenta anos seguintes, muitas centenas, se não milhares de pessoas, deram testemunhos oculares do truque indiano da corda. Em 1904, um jovem aristocrata britânico, tido como digno de crédito, em virtude de sua formação de alto nível, disse à Sociedade de Pesquisas Psíquicas ter visto o truque alguns anos antes. Após um questionamento prolongado, a Sociedade descartou seu depoimento como algo que ilustrava, “mais uma vez, a falta de fidedignidade da memória”. Mas os relatos continuaram a pipocar, e com retoques adicionais: depois que o menino desapareceu no ar, o faquir o chamou, para que ele voltasse. Não ouvindo resposta, ele pegou uma faca, subiu a corda e também desapareceu. Ouviram-se gritos. Em seguida, pedaços do menino – pernas, braços, tronco, cabeça – caíram no chão. O faquir desceu e pôs os pedaços do menino em um cesto; depois de ele proferir um encantamento, o garoto pulou do cesto, íntegro e risonho. O faquir ficou coberto de sangue. À medida que crescia a lenda do truque da corda, o mesmo se deu com sua genealogia. Historiadores levantaram sua Johnny efetivamente eliminou a possibilidade de que a plateia, ou mesmo o próprio Dan, conseguisse reconstituir o truque e elaborá-lo a posteriori. FIM DO ALERTA DE SPOILER Johnny nos disse: “Quando veem um número maravilhoso de mágica, as pessoas tentam descobrir como ele é feito. Elas têm vias de pensamento e de lógica. O mágico, pouco antes do desfecho ou da conclusão, deve fechar todas essas portas. A única solução é a mágica.” Em 2007, Hillary Clinton, então candidata à Presidência, virou notícia ao narrar um episódio em um voo para uma base militar dos Estados Unidos na Bósnia em 1996. “Lembro-me de ter aterrissado sob o fogo de franco-atiradores”, disse ela. “Era para haver uma espécie de cerimônia de recepção no aeroporto, mas, em vez disso, simplesmente corremos de cabeça baixa para entrar nos veículos e seguir para nossa base.” A CBS então exibiu um vídeo da viagem. Não houve fogo de franco-atiradores. Não houve cerimônia de recepção. A primeira-dama e sua filha Chelsea foram vistas caminhando, trocando apertos de mãos, conversando e sorrindo. Muita gente deu boas risadas à custa dela, mas Hillary não estava mentindo. Sua lembrança dessa viagem específica à Bósnia tinha sido revisada, transformada e reconsolidada com outras lembranças da Bósnia nos circuitos normais do cérebro da primeira-dama. Os mágicos sabem que a memória é falha e que, quanto mais tempo passa, pior ela fica. Eles contam com o fato de que a memória precária do espectador não o deixará reconstituir com precisão o que aconteceu no palco. Saiba que isso também acontece com você, portanto faça registros das informações e conversas importantes imediatamente após sua ocorrência. As falsas lembranças podem ser devastadoras. Elizabeth Loftus, psicóloga da Universidade da Califórnia em Irvine e autoridade na maleabilidade da memória, ficou famosa por mostrar, na década de 1990, que alguns psiquiatras e outros profissionais de saúde mental implantavam as chamadas lembranças recalcadas (e depois recuperadas) na mente de seus pacientes. Por exemplo, uma mulher, sob efeito da hipnose, convenceu-se de possuir recordações de ter participado de um culto satânico, comido bebês, sido estuprada, praticado sexo com animais e sido forçada a assistir ao assassinato de sua amiga de oito anos. Posteriormente, depois de conversar com outros terapeutas e se dar conta de que o médico havia manipulado sua memória, ela o processou por conduta antiética e recebeu uma grande indenização. Para a maioria de nós, entretanto, as falsas lembranças são prosaicas e, em sua maioria, inofensivas. A pessoa se recorda de ter votado em eleições nas quais não votou. Lembra-se de ter feito mais doações a obras de caridade do que realmente fez. Lembra-se de que seus filhos andaram e falaram mais cedo do que de fato aconteceu. Lembra-se de ter trocado um aperto de mão com o Pernalonga (personagem da Warner Bros.) na Disneylândia. Os estudos de Loftus também exploraram os efeitos da desinformação. Em um dos exemplos, os participantes assistiram à simulação de um acidente de automóvel em um cruzamento em que havia uma placa de sinalização de parada obrigatória. Depois de exibido o filme, metade das pessoas recebeu a sugestão de que a placa de sinalização era a de dar a preferência. Mais tarde, quando se perguntou que tipo de placa os sujeitos experimentais se lembravam de ter visto no cruzamento, os que haviam recebido a sugestão tenderam a dizer que tinha sido a de dar a preferência. Os que não receberam a informação falsa foram muito mais precisos em sua recordação da placa de trânsito. Em outro experimento clássico, Elizabeth Loftus e seu colega John Palmer pediram a observadores, depois de assistirem a uma gravação em vídeo de um acidente, que calculassem a velocidade de um carro que batera em outro. Os observadores a quem se perguntou qual era a velocidade do carro quando ele bateu no outro veículo fizeram estimativas mais baixas da velocidade do que aqueles a quem se perguntou qual era a velocidade do carro quando ele arrebentou o outro. A escolha de palavras dos mágicos, ao recontarem as experiências dos espectadores, tem um impacto similarmente profundo nas lembranças que estes guardam dos eventos originais. A desinformação pode alterar as recordações de maneiras previsíveis e às vezes muito intensas. O indivíduo constrói uma falsa lembrança ao combinar uma lembrança real com o conteúdo de sugestões recebidas de terceiros. Durante esse processo, ele esquece a fonte das informações. Esse é um exemplo clássico de confusão da fonte – coisa que os mágicos constatam ser muito útil. TIPOS DE MEMÓRIA A memória dá a impressão de ser um recurso único, mas isso é uma ilusão. Ela se compõe de subsistemas que funcionam em conjunto para nos dar a sensação de que somos inteiros e dominamos nossa vida passada. • A memória procedural ou implícita, às vezes conhecida como memória muscular, é a das habilidades físicas: esquiar, andar de bicicleta, embaralhar cartas. • A memória declarativa lida com fatos e se subdivide em memória semântica e memória episódica. • A memória semântica codifica significados, definições e conceitos – fatos que sabemos não terem raízes no tempo nem no espaço: “O cavalo tem quatro pernas”, “A capital da Inglaterra é Londres”. • A memória episódica ou autobiográfica codifica experiências do nosso passado pessoal e singular. É isso que lhe permite saber e se lembrar do que aconteceu na sua vida: a ocasião em que você descobriu que alguém tinha roubado seu laptop. A ida ao hospital quando seu filho teve uma reação alérgica a nozes. O primeiro espetáculo de mágica a que assistiu. Em um nível biológico mais profundo, todos os nossos tipos de memória são falíveis. O ato de recordar um acontecimento do passado não é como reproduzir um videoteipe mental no cinema doméstico da mente. É mais parecido com contar uma história sem pé nem cabeça que um dia se ouviu. Você se lembra de algumas frases e situações principais, junto com o tema geral da história, mas não se recorda da ordem exata das palavras. Ao repetir a “mesma” história para outra pessoa, você a reconstrói à sua própria maneira. Adorna e preenche livremente as lacunas para fazê-la fluir com facilidade. Ainda que você repita de maneira literal alguns trechos centrais da narrativa original, a maior parte das escolhas vocabulares é sua. De modo similar, quando o cérebro grava uma nova lembrança, o que ele de fato codifica é uma constelação dispersa de detalhes pessoais e momentos significativos. Mais tarde, ao recuperar a lembrança, o cérebro usa essa constelação como um andaime para reconstruir a experiência original. À medida que a recordação se desenrola em sua mente, você pode ter a forte impressão de que ela é um registro de alta-fidelidade, mas apenas alguns elementos do conteúdo são realmente exatos. O resto é uma porção de acessórios cênicos, cortinas de fundo, figurantes e gravações de arquivo que a mente fornece às pressas, em um processo conhecido como fabulação. E a coisa fica ainda mais estranha. Às vezes, um aspecto que foi fabulado em um ato de rememoração é relembrado no ato seguinte. Nesse processo, a fabulação pode se transformar em um aspecto permanente da lembrança. Torna-se indistinguível do original. A memória não é um esboço parcial do passado, mas um esboço do esboço do esboço do esboço do esboço do esboço… e, a cada vez que a recordação ressurge, mais erros podem ser introduzidos. Nosso colega Joseph LeDoux, neurocientista da Universidade de Nova York que estuda a memória e as emoções, diz que, antigamente, achava que uma lembrança era algo armazenado no cérebro e ao qual se obtinha acesso quando necessário. Mas uma pesquisadora de seu laboratório, Karim Nader, convenceu-o de que não é assim. Nader demonstrou que, toda vez que se usa uma lembrança, ela tem de ser rearmazenada como se fosse nova, para que se possa acessá-la depois. A antiga desaparece ou se torna inacessível. Portanto, a lembrança que você tem de alguma coisa só é tão boa quanto a sua última recordação dela. É por isso que as pessoas que testemunham crimes depõem sobre o que leram nos jornais, e não sobre aquilo que viram. Ser especialista na maleabilidade da memória não impediu Karim Nader de experimentar uma confusão quanto à fonte da lembrança que é compartilhada por milhões de outras pessoas. Nader, que agora dirige um laboratório na Universidade McGill, em Montreal, lembrou-se de ter visto, no dia 11 de setembro de 2001, a filmagem feita pela televisão do choque do primeiro avião com a torre norte do World Trade Center. Entretanto, o filme da primeira colisão foi ao ar pela primeira vez n o dia seguinte aos ataques. Um estudo de 2003 constatou que uma estarrecedora parcela de 73% dos estudantes universitários submetidos a um teste similar recordou o evento de maneira errônea. As “lembranças em lampejo” – isto é, nossas recordações de eventos traumáticos ou acontecimentos biográficos definidores sob a forma do que parecem ser instantâneos vívidos de alta definição – são repetidamente reevocadas. A pesquisa de Nader indicou que o próprio ato de rememorar essas lembranças em lampejo pode alterá-las de modo fundamental. MEMÓRIA E MEIOS DE COMUNICAÇÃO No dia 23 de fevereiro de 1981, duzentos oficiais armados da Guarda Civil, comandados pelo tenente-coronel Antonio Tejero, irromperam na Câmara dos Deputados do Congresso espanhol, durante o processo de eleição do novo primeiro- ministro, e mantiveram, durante dezoito horas, o governo democraticamente eleito sob a mira de armas. A tentativa de golpe de Estado acabou no dia seguinte, mas pergunte a qualquer espanhol com mais de 35 anos o que ele estava fazendo na hora desses acontecimentos e ele será capaz de lhe contar até os mínimos detalhes. Aquela noite tensa e a longa madrugada que se seguiu ficarão gravadas na memória de maneira permanente. Será mesmo? Como se constatou, muitas pessoas se lembram de ter visto o início do golpe ao vivo na televisão, enquanto ele acontecia. Não é verdade. Embora o golpe tenha sido transmitido ao vivo pelo rádio, as imagens em videoteipe só foram exibidas na TV no dia seguinte, muito depois de a tentativa de golpe ter fracassado e de os reféns terem sido libertados. O escritor espanhol Javier Cercas escreveu sobre essa confusão específica quanto à fonte da lembrança em seu livro Anatomia de um instante: “Todos resistimos à extirpação de nossas lembranças, que são as detentoras da identidade, e alguns preferem aquilo de que se lembram àquilo que aconteceu, e por isso continuam a recordar que viram o golpe ao vivo.” A confusão quanto à fonte da lembrança ocorre porque as pessoas determinam mal a fonte da informação. Você se lembra da explosão do ônibus espacial Challenger, que matou todos os astronautas a bordo, inclusive a professora Christa McAuliffe? Onde você viu pela primeira vez a imagem daquelas duas nacelas dos foguetes de lançamento descrevendo oitos lentamente pelo ar? Você se lembra da imagem. Quem poderia esquecê-la? Mas você a viu primeiro no New York Times , no Wall Street Journal , no Today Show, na CNN? Terá sido na televisão, ou você a viu primeiro no jornal? Será que ela lhe foi descrita no rádio? É difícil lembrar porque não nos preocupamos tanto com a fonte de nossas informações quanto com o seu conteúdo. É por isso que a propaganda é tão eficaz quando nos diz que o produto à venda é o melhor que existe. É claro que a fonte é tendenciosa (a empresa fabricante do produto pagou pelo comercial). Porém, quando ouvimos isso repetidamente por um número suficiente de vezes, começamos a acreditar. Essa é uma das razões por que a reforma do financiamento das campanhas políticas é um tema tão inflamado: queiramos ou não, os anúncios tendenciosos desempenham uma enorme influência na formação de nossas opiniões, de modo que os candidatos com mais verbas levam grande vantagem. A nosso convite, Magic Tony foi dar uma aula de ilusionismo e psicologia a alguns de nossos colegas de pesquisa no Instituto Barrow de Neurologia, em Phoenix. Nesse dia, ele resolveu que mexeria com as lembranças dessas pessoas. Faria uma demonstração de como criar uma ilusão mnêmica, implantando a confusão quanto à fonte na plateia. Tony chamou duas pessoas, Hector e Esther, para se juntar a ele diante do grupo. Explicou que, antes do início da aula, gostaria da ajuda deles em um truque. Pediu a Hector que pensasse em uma carta e continuasse pensando nela durante toda a palestra – simplesmente guardar a carta na memória. E deu a Esther um baralho, pedindo-lhe que retirasse uma carta e a pusesse no bolso, sem olhar para ela. Portanto, tínhamos Hector pensando em uma carta e Esther guardando outra, mas sem saber qual era. Chegou a hora da verdade: – Hector, qual foi a sua carta? – O valete de espadas. – Esther, olhe no seu bolso. Qual é a carta? Ela a tirou: o valete de espadas. Aplausos. Hector e Esther exibiam uma expressão de perplexidade. Como foi que o Tony fez isso? ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! – Uma das coisas encantadoras sobre ser mágico – disse ele – é que se percebe que as palavras têm consequências poderosas. E este truque é o exemplo perfeito de como um mágico pode usar a linguagem para criar um efeito que na verdade não existia inicialmente. Tony pediu à plateia que pensasse na semântica, na ambiguidade e em como uma frase pode ter dois sentidos diferentes de acordo com o contexto. Consideremos estas duas frases: Pedi que ele pensasse em uma carta. Mostrei-lhe uma carta e pedi que continuasse a pensar nela. As duas descrevem o mesmo resultado, mas a primeira implica mais liberdade, explica Tony. Ao colocar Hector diante do grupo, Tony usou a primeira frase para descrever o que havia acontecido. Implantou essa mentira na memória de todos. Para Hector, que estivera presente no evento original, a desinformação induziu a uma confusão quanto à fonte. Mais tarde, ele se lembraria de que ele próprio tinha escolhido livremente a carta. Mas, na verdade, Tony tivera uma interação anterior diferente com ele. Tinha aberto em leque um baralho e dito a Hector que parasse ao sentir vontade de escolher uma das cartas. Uma vez feita essa escolha, Tony lhe dissera para continuar pensando na carta durante a palestra. No entanto, como você talvez desconfie, Hector não escolhera livremente a carta. Tony havia forçado o valete de espadas. Examinaremos as técnicas de forçar no próximo capítulo. Por ora, guarde em mente que Hector foi tapeado. Em seguida, Esther. Consideremos duas frases: Entreguei-lhe um baralho e pedi que ela retirasse uma carta e a pusesse em seu bolso direito, e que colocasse o resto do baralho no bolso esquerdo . Ou: Pedi que ela escolhesse uma carta e a guardasse no bolso. Mais uma vez, a primeira frase implica uma liberdade muito maior – Esther teria o controle das cartas –, porém, afirma Tony, não foi isso que aconteceu. Ele abrira o baralho em leque e pedira a ela que escolhesse uma carta, mas, também nesse caso, essa escolha não tinha sido livre. Mais uma vez, ele havia forçado o valete de espadas. Esther também Depois soubemos que a técnica usada por Apollo é chamada de sistema dos pregadores , que é um modo de ligar uma quantidade qualquer de itens a determinados dígitos. Os números ou algarismos são representados por uma palavra – varinha [wand] para 1 [one], colmeia [hive] para 5 [five], galinha [hen] para 10 [ten] e assim por diante. Em seguida, associa-se a palavra referente ao número a uma imagem visual vívida. Os elementos de ligação são mais fáceis de lembrar quando interagem, são inusitados e mexem com as emoções, fazendo a pessoa rir, sentir nojo ou intuir um perigo. É a imaginação que impulsiona a força das associações. Você também pode ligar itens sem usar números, associando cada palavra à palavra seguinte da lista. Na lista de Susana, poderíamos pensar em uma gigantesca bola de tênis ricocheteando em uma roleta que, por sua vez, seria o volante de um ônibus, e assim por diante. Esses sistemas mnêmicos funcionam porque a memória de curto prazo, caso não conte com alguma forma de auxílio, só é capaz de se lembrar de sete unidades (podendo variar em duas unidades para mais ou para menos) de qualquer coisa de uma vez. Depois de sete itens, a pessoa começa a esquecer, a fim de dar espaço para novos itens. Ou então ela pode juntar itens em “blocos”, como ao recordar os algarismos de um número de telefone (prefixo mais quatro) e um código de área. Um verso de poema que tenha mais do que cerca de sete pés precisa ser dividido em dois. Outra estratégia mnêmica, chamada de método dos loci (plural de locus, que significa localização ou lugar), também conhecido como palácio da memória, existe há séculos. Baseia-se na suposição de que conseguimos lembrar melhor os lugares com que estamos familiarizados, de modo que, se pudermos ligar algo que precisemos recordar a um lugar que conheçamos muito bem, o local servirá de dica para ajudar na rememoração. De acordo com o filósofo romano Cícero, esse método foi desenvolvido por volta de 500 a.C. por Simônides de Ceos, um poeta grego que foi o único sobrevivente do desmoronamento de um salão de banquete na Tessália (ele tinha dado uma saída do local). Simônides pôde identificar os mortos, esmagados a ponto de se tornarem irreconhecíveis, recordando os rostos com base na disposição dos lugares à mesa naquele dia. O poeta logo percebeu que poderia recordar qualquer número de itens mediante a criação de roteiros mentais e a visualização dos itens em vários pontos do caminho. Na hora de lembrar, ele simplesmente refazia a rota conhecida e recordava com facilidade cada item. De maneira distinta da ligação, o método dos loci envolve a colocação de uma vívida representação visual de cada item em um espaço geográfico. O que há de bom nesse método é que, quando se esquece um item, pode-se continuar a “andar mentalmente” pelo espaço e passar à coisa seguinte a ser lembrada. Em 1583, o método foi levado para a China por um padre jesuíta italiano, Matteo Ricci, que tinha a esperança de disseminar o catolicismo pelo país, mas primeiro precisava demonstrar a “superioridade” da cultura ocidental. E o fez ensinando o método dos loci a jovens estudiosos confucianos que precisavam saber de cor um número incontável de leis e rituais.4 Você pode tentar essa experiência pessoalmente. Faça uma relação de itens que queira decorar, talvez uma lista de compras – sorvete, pão, ração para o gato, maionese, peito de frango etc. Agora, imagine-se andando por sua casa ou seu apartamento. Comece pela porta da frente e crie seu trajeto passando por vários cômodos. (Se você mora em um apartamento de um cômodo só, divida o espaço em áreas distintas.) Em sua imaginação, ponha cada item da lista de compras em um único local do trajeto. Sua porta da frente estará borrada de sorvete de cereja e chocolate amargo. O sofá da sala terá passado a ser um pão francês. A porta da cozinha terá a forma de um gato. A mesa da sala de jantar estará dissolvida em uma massa de maionese. A porta do banheiro será revestida de peitos de frango. Quando quiser se lembrar da lista de compras, tudo que você terá de fazer será visualizar sua porta da frente. No mesmo instante, você verá o sorvete. Ao entrar na sala, o pão francês virá à lembrança, e assim por diante. Os especialistas em memória dizem que devemos criar imagens que sejam as mais esquisitas e extravagantes possíveis. Você também pode pôr mais de um item em qualquer local. Se tiver uma relação com quarenta itens de compra para recordar, experimente colocar quatro em cada um de dez locais. Cada um desses quatro itens deve interagir com sua localização. Quando você abrir a porta de entrada, verá uma porção de sorvete se derreter em um pão francês com cobertura de maionese e salpicado de ração para gatos. OS PERIGOS DA REMEMORAÇÃO TOTAL Quase todos gostaríamos de ter a memória melhor. Mas será que existem memórias boas demais? Poucos indivíduos (ao que saibamos) possuem uma rememoração quase completa de suas lembranças autobiográficas, embora ninguém, até o momento, tenha descoberto por quê. Por exemplo, Jill Price, que lançou em 2008 um livro de memórias chamado A mulher que não consegue esquecer, diz que os dias de sua vida são repassados de maneira incessante em sua cabeça, como uma exibição mental de um filme. Basta lhe dar uma data qualquer do passado e ela consegue se lembrar que dia da semana era, como estava o tempo, o que lhe aconteceu nesse dia e os principais acontecimentos noticiados na data. Mas ela admite que sua memória perfeita é mais um fardo do que um dom. Ela odeia mudanças. Não consegue se perdoar pelas más escolhas que fez na vida (nem esquecê-las). Rick Baron, que também se lembra de cada coisa que lhe aconteceu, descreve seus dias como “vazios”. Esse homem de cinquenta anos nunca se casou e jamais teve um emprego em horário integral, ainda que participe ocasionalmente de concursos de conhecimentos gerais. Brad Williams, jornalista de uma cadeia de estações de rádio de La Crosse, no Wisconsin, também é capaz de nos dizer o que aconteceu em qualquer data de quase toda a sua vida. Mas também ele fala das frustrações de ter uma memória que nunca dá uma trégua. Nós, como a maioria dos casais, podemos atestar que um dos segredos de um relacionamento feliz a longo prazo é a memória curta. Os campeões de concursos de memória e muitos dos melhores mágicos do mundo usam o método dos loci. O tricampeão do Campeonato Mundial de Memória, Andi Bell, é capaz de memorizar dez baralhos de cartas, embaralhadas de modo aleatório, no tempo que leva para abri-las. São 520 cartas. Depois, consegue responder a qualquer pergunta: Qual é a 13ª carta do quarto baralho? Qual é a 22ª carta do oitavo baralho? E por aí vai. Não erra uma. O roteiro e os marcos – ruas, prédios, portais, sinais de trânsito, caixas de correio e similares – jamais se alteram. Estão fixados em sua imaginação. Cada carta tem um ícone. O valete de paus é um urso. O nove de ouros é uma serra. O três de paus é um abacaxi, e assim por diante, com todas as 52 cartas. Para decorar um baralho de cartas aleatórias, Bell põe um ícone em cada marco do caminho em seu trajeto mental. Assim, pode reconstituir sem dificuldade a ordem das cartas, visualizando cada ícone ao andar por seu palácio da memória. Em um artigo para a revista Slate, o jornalista Joshua Foer disse que se inscreveu no Campeonato de Memória dos Estados Unidos só para ver como se sairia. Disse que os concorrentes afirmam que não têm nenhum dom natural. Apenas usam técnicas mnemônicas para ajudá-los a lembrar de números binários de trezentos dígitos e casar centenas de rostos com números em vinte minutos. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Os ilusionistas e os mestres das cartas usam com frequência o método dos loci para preparar os baralhos. O baralho preparado, como o nome indica, é simplesmente um baralho com as cartas dispostas em uma ordem predeterminada. Ele jamais é embaralhado de verdade, a fim de que o mágico, sabendo a posição de uma carta, sempre possa calcular a posição de todas as outras. Para memorizar o baralho preparado, ele começa por cartas embaralhadas ao acaso. Se você as examinasse, não veria nada suspeito. Em seguida, cria um palácio pessoal da memória para se lembrar da ordem exata desse baralho em particular. Desse ponto em diante, não embaralha as cartas. Apenas finge misturá-las, usando uma variedade de embaralhamentos falsos. Ao dar uma espiada na carta inferior do monte enquanto executa seus truques e evocar seu palácio da memória, o mágico sempre é capaz de saber a ordem exata de todas as cartas. Os baralhos preparados também podem ser cíclicos e, quando você vê como são montados, diabólicos. Um dos mais famosos é o sistema de ordenação de Si Stebbins, originalmente publicado por volta de 1898 por William Coffrin, conhecido como Si Stebbins, em um livrinho intitulado Si Stebbins’ Card Tricks and the Way He Performs Them [“Os truques de baralho de Si Stebbins e sua maneira de executá-los”]. Para criar um baralho como o de Si Stebbins, primeiro você organiza cada naipe pela ordem. Pegue todas as cartas de espadas e as arrume na sequência ás, dois, três etc., até o rei. Faça o mesmo com as cartas de ouros, copas e paus. Depois, ponha esses quatro montes lado a lado, na seguinte ordem: paus, copas, espadas e ouros. A palavra mnemônica que designa esse arranjo é CHaSeD.5 Agora, a ordenação. Na pilha de paus, ponha o ás em cima. Na de copas, ponha ás, dois, três e quatro em cima. Na de espadas, vá do ás ao sete e coloque-as no alto. E na de ouros, ponha em cima as cartas de ás a dez. Agora, faça um monte completo, empilhando os montinhos de paus, copas, espadas e ouros. Pronto, você tem um baralho preparado. Pode cortá-lo quantas vezes quiser. Ao olhar para a carta de baixo, você sempre saberá qual é a carta do topo. Como? Contando. A preparação tem como resultado que cada carta é três valores mais alta do que a precedente. ADIVINHAÇÃO COM INFORMAÇÕES PRÉVIAS – HOT READING Alguns mágicos empresariais usam feitos notáveis de memória para dar a impressão de que adivinham pensamentos. Por exemplo, quando recebem uma lista das pessoas que comparecerão a um seminário em determinada empresa, eles podem consultar os nomes no Google para encontrar subconjuntos de informações que tenham fotografias on-line. Memorizam então o rosto e o nome de cada uma, junto com qualquer informação pessoal que possam obter. (Antes do Google, esses mágicos consultavam arquivos de jornais em bibliotecas ou até mandavam cúmplices descobrir informações no escritório da empresa.) O volume de dados colhidos pode ser muito grande. No seminário da empresa, o ilusionista pode então dizer que tem poderes telepáticos e “adivinhar o pensamento” de várias pessoas, fornecendo nomes, endereços comerciais e residenciais, números de telefone do trabalho e de casa, nomes de filhos, nomes de animais de estimação, informações genealógicas etc. O objetivo é fornecer tantas informações detalhadas que pareça impossível que o mágico as soubesse todas de antemão, de modo que a única solução consista em ele estar lendo o pensamento do cliente em tempo real. No mundo da mágica, esse subterfúgio é chamado de hot reading. Mas o verdadeiro feito é o mágico realmente se lembrar de todas essas informações e conseguir evocá-las durante o seminário, como que por mágica. Vimos outro tipo de baralho preparado em ação na Olimpíada da Mágica, em Pequim. Juan Tamariz, o famoso mágico espanhol, chamou um voluntário da plateia e, após muitas brincadeiras, pediu-lhe que “escolhesse uma carta, qualquer carta”. O baralho parecia normal, mas, na verdade, continha apenas seis cartas – o três de copas, o nove de paus, o sete de paus, o valete de ouros, o dois de espadas e o ás de copas – repetidos nessa ordem várias vezes. Tamariz abriu as cartas em leque na frente do voluntário, viradas para baixo, e observou a posição exata da carta escolhida. Contando a fileira de cartas, pôde identificar e, em seguida, levantar sub-repticiamente uma carta idêntica do baralho preparado. Embora não conhecesse a identidade da carta escolhida, agora ele estava de posse de uma cópia exata dela e pôde exibi-la ao final do truque. FIM DO ALERTA DE SPOILER Logo depois, Tamariz demonstrou um truque em duas partes que envolvia a memória e deixou os especialistas reunidos atônitos. A esta altura, é provável que você já tenha percebido que é extremamente difícil enganar um mágico. Eles conhecem todos os truques de prestidigitação que existem e vivem à procura de despistamentos, embaralhamentos falsos, acessórios inteligentes de apoio e coisas similares. Um gesto em falso e eles apanham o sujeito. Tamariz começou seu truque com uma rotina incrivelmente banal. Anunciou que iria nos ensinar um pouco de comédia. Andando de um lado para outro no palco e torcendo as mãos, pediu a todas as pessoas da plateia que juntassem os dois dedos indicadores, formando uma linha horizontal diante dos próprios olhos, e em seguida olhassem para um ponto distante. – Viram? – disse. – Vocês criaram uma salsicha mágica que flutua diante dos seus olhos. E se estiverem mesmo com fome, poderão usar seis dedos para fazer três salsichas. Os mágicos presentes no enorme salão de conferências ficaram embatucados. Do que é que Tamariz estava falando? Salsichas? Dedos? Nesse momento, o mágico deu um pulo para a plateia e corrigiu a posição dos dedos de um sujeito na primeira fila: – Você está fazendo tudo errado! – exclamou. Em seguida, elogiou o homem da cadeira ao lado. – Perfeito! Está tão bom que você pode fatiar a salsicha e dividi-la conosco. Dizendo isso, Tamariz deu um golpe de caratê no ar, passando pelas salsichas perfeitas formadas com os dedos, e exibiu uma fileira de três salsichões defumados. Hmm, que negócio foi esse? Os mágicos se remexeram nos assentos, apreensivos. Coitado do velho Tamariz, devia estar perdendo o jeito. Naturalmente, o sexagenário recomeçou a andar para lá e para cá e fez uma sucessão impecável de truques fantásticos. Todos se esqueceram da bobagem das salsichas. Passados uns 45 minutos, Tamariz convidou uma mulher a subir ao palco e lhe pediu que contasse dez cartas. Fez com que ela as prendesse com um elástico, levasse-as para uma mesa do outro lado do palco e voltasse para o lado dele. Em seguida, convidou um homem a subir ao palco e ficar ao lado das cartas presas com o elástico. Os dois voluntários estavam a uns cinco metros de distância um do outro e em momento algum Tamariz saiu de perto da mulher. Pediu que ela contasse mais dez cartas em uma mesa e depois as segurasse com as duas mãos. Com grande estardalhaço, proclamou então que faria algumas dessas cartas serem teletransportadas pelo palco. Quando terminasse, deveria haver treze cartas em uma pilha do outro lado do palco. Tamariz agitou magicamente as mãos na direção da mulher e pediu que ela lhe entregasse as cartas, para ele poder contá-las aos olhos de todos. Restavam apenas nove. Faltava uma. Ele as devolveu à mulher e repetiu o gesto mágico. Tornou a contá- las, e faltavam duas. Terceira vez… e faltaram três cartas. – Vamos ver como estou indo – disse ele, e pediu que o homem contasse as cartas do seu lado. O voluntário o fez e disse baixinho: – Hmm, tem dez cartas aqui. Tamariz fingiu-se arrasado: – Dez? Você só tem dez? Tem certeza? Pode contar de novo? Sim, eram apenas dez, não treze. Tamariz ficou profundamente pensativo: ERROS Do ângulo que ocupávamos no palco, atrás dos artistas que se apresentavam, não tínhamos uma boa visão da pedra, mas soubéramos de sua existência durante a palestra de Teller, quando Mac a deixou cair sem querer do bolso de trás. Ela fez um barulho e tanto, que todas as pessoas no salão devem ter ouvido, mas só nós, que estávamos no tablado, percebemos o que aconteceu. Jamais esqueceremos a expressão engraçada e sem jeito no rosto de Mac quando ele recuperou a pedra, pondo-se de quatro sem a menor cerimônia, e levantou os olhos para nós, enquanto tateava embaixo da cadeira. Embora ninguém da plateia tivesse visto a pedra, seria de se supor que o barulho alto, seguido pelo engatinhar vexatório de Mac no palco, viesse a ser uma pista do que ele pretendia fazer. Mas o som pareceu entrar em ouvidos moucos. Tanto quanto pudemos perceber, ninguém o ouviu nem pareceu se lembrar de ter visto Mac de quatro embaixo de sua cadeira. Ocorreu-nos que os mágicos, assim como todos nós em nossos trabalhos, devem cometer erros o tempo todo. Mas, como seus erros envolvem objetos e atos improváveis, a maioria dos espectadores não se dá conta de seu significado. Os mágicos sabem disso, o que lhes dá coragem para simplesmente seguirem em frente, mesmo diante de erros lógicos flagrantes. Aliás, uma das marcas do bom mágico é a capacidade de se recuperar com desenvoltura e sem interrupção dos percalços inesperados. Mac nos contou um exemplo hilariante disso, ocorrido no começo de sua carreira. Um dos truques que são sua marca registrada envolve tirar da boca um peixinho dourado vivo e deixá-lo cair em um copo d’água, segurado por um voluntário da plateia. Não se preocupe, diz ele, o peixe não passou muito tempo aqui dentro, só alguns segundos, caso contrário não conseguiria sobreviver ao calor e à saliva da boca. Mas enfim, na primeira vez que Mac fez esse truque no palco com um voluntário, começou a se engasgar, “porque o tal peixinho resolveu nadar pela minha goela abaixo. Tentei fazê-lo sair com uma tossida. Aí, virei de costas e vomitei fragmentos do meu sanduíche do almoço e o peixinho na maleta que conservo no palco. O sujeito do meu lado disse ‘Eeeeca!’, porém ninguém mais reagiu. Eu levo um peixe extra, para o caso de acontecer um acidente com o primeiro, e assim me recuperei e terminei o truque.” Os olhos de Mac se arregalaram: “Depois, ninguém me perguntou se eu tinha vomitado no palco. Todo mundo viu. É muito estranho. Não sei o que acontece com a cabeça das pessoas.” A lição a extrair disso é seguir em frente depois dos erros do dia a dia. Embora vivam cometendo erros, os mágicos os deixam para lá, seguem adiante e a plateia raramente nota. Você deve fazer o mesmo. Tal como um mágico, vá levando como se nada tivesse acontecido e seu erro também passará despercebido, na maioria das vezes. Não se aborreça. Não fique constrangido. Apenas se refaça da melhor maneira que puder e trate de enfiar na boca outro peixinho dourado tirado da maleta. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! A pedra pesava uns 2,5kg e era do tamanho de um mamão. Para demonstrar que fazer o mesmo truque duas vezes é um erro, Mac o executou pela segunda vez, exatamente igual. Dessa vez, foi possível ver com mais clareza como ele o faz. Mac inclina o sapato e cai o pacotinho de mel. É um despiste clássico. Mas agora você está de olho. Em vez de fixar a atenção no pacotinho de mel, você o vê enfiar a mão no bolso traseiro e deixar a pedra escorregar para o sapato. Quando ela cai, você já não se surpreende. Mac perguntou quantas pessoas o tinham visto enfiar a pedra no sapato. Cerca de metade das mãos no salão se levantou. – Fico muito feliz por alguns de vocês terem notado – disse ele. – Eu estava com certo medo de que não ficasse mais fácil para ninguém, mesmo da segunda vez! E então perguntou se deveria repetir o truque pela terceira vez. Murmúrios de assentimento. Nesse momento, porém, Mac mudou de método e produziu outra surpresa. Não meteu a mão no bolso traseiro para tirar a já conhecida pedra. Ao contrário, simplesmente se inclinou e sacudiu o sapato e, quando não saiu nada, enfiou a mão e… tirou uma pedra enorme! Só que, agora, ela se revelou uma pedra de espuma. Estava enfurnada em seu sapato o tempo todo. FIM DO ALERTA DE SPOILER A demonstração de Mac ilustra a que ponto a repetição aparente, mas não real, é uma aliada poderosa dos ilusionistas. A pessoa se habitua aos atos que parecem ser repetidos e passa por cima dos detalhes. Para um mágico, o segredo está nesses detalhes. O público tem uma tendência arraigada a supor que efeitos que parecem iguais são produzidos da mesma maneira. Isso é da natureza humana. Na vida cotidiana, deduzimos como as coisas funcionam ao observál-as diversas vezes. Os martelos cravam pregos. As xícaras comportam líquidos. Os fornos de micro-ondas aquecem a comida. Não precisamos pensar neles. Os mágicos usam esse nosso hábito mental contra nós, para ocultar o método que está por trás de muitos de seus truques. Eles sabem que, ao vermos um efeito se repetir – como a pedra caindo do sapato –, naturalmente presumimos que a repetição foi produzida pelo mesmo método. Mas então vem a surpresa: agora a pedra é de espuma. Mac usou um método diferente na terceira repetição para desorientar a plateia, provocando uma grande surpresa. Lembre- se da história do Capítulo 2 em que Danny Hillis tapeou Richard Feynman com o mesmo truque, dia após dia. Isso ocorria não porque Feynman fosse incapaz de adivinhar corretamente o método depois de examiná-lo por um dia (ele conseguia), mas porque Hillis modificava o método, e, assim, as explicações do cientista se mostravam erradas. Feynman foi confundido pela repetição aparente. Ao usar a repetição aparente, o mágico pode levantar suspeitas, de propósito, sobre um possível método, e então, bem no final, mostrar que a única teoria que o espectador possui está errada. Esse princípio, conhecido como teoria das soluções falsas, foi formulado por Juan Tamariz, o mágico espanhol dos chapéus malucos que apresentamos no Capítulo 5. Johnny Thompson dá a isso o nome de “fechar todas as portas”, o que significa reduzir a zero todas as explicações possíveis de um efeito, até restarem apenas as explicações impossíveis (mágicas). ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! A ideia da repetição aparente é criar falsas expectativas. O mágico mostra um truque, usando o método número um, e você cria uma teoria de como ele o fez. Em seguida, ele aparentemente repete (porém não de verdade) o truque, mas espere – agora que você estava observando, em busca do sinal revelador de que sua teoria estava certa, percebe que ela é impossível. Hmm. Tudo bem, você concebe uma nova teoria. O mágico faz o truque de novo (não, na verdade não faz, dá só a impressão de fazê- lo), e, puxa vida, que droga, sua segunda teoria também está errada, pois, agora que você tenta ver se ela se sustenta, percebe que o mágico não está escondendo a carta no dorso da mão (embora tenha sido exatamente isso que ele fez da segunda vez). O mágico fica um passo à sua frente, criando expectativas a cada iteração e destruindo-as assim que você começa a compreender. FIM DO ALERTA DE SPOILER Uma das maiores armas de que os ilusionistas dispõem é o fato de que a mente funciona por meio de previsões. Para apreender o significado disso, imagine o que você “sabia” quando era um bebê recém-nascido. Sabia procurar um mamilo e espichar a língua, mas, afora isso, o mundo era basicamente um pano de fundo, feito de visões, sons e sensações sem sentido. Você era capaz de sentir a atração da gravidade e os padrões de luz e escuridão, porém nada fazia sentido. Você nem sequer tinha consciência de possuir um corpo. É duvidoso que pudesse ser chamado de consciente no dia em que nasceu. Felizmente, os recém-nascidos saem depressa dessa zona crepuscular para construir representações do mundo externo, de seu corpo, das outras pessoas e de suas sensações e afetos. Toda experiência é gravada nos circuitos neurais do cérebro em desenvolvimento, por meio da plasticidade – a capacidade vitalícia que o cérebro tem de se reorganizar conforme as novas experiências. Desse modo, cada pessoa vai construindo modelos do que esperar pela vida afora. Desde cedo, você aprendeu que os pés e as mãos que gostava de pôr na boca eram os seus; ensinou-se a rolar de lado, sentar-se, engatinhar e ficar de pé, até que seus movimentos se entranharam nas áreas do cérebro que planejam e executam os movimentos. Depois, você andou, correu e – se tiver treinado muito – passou a praticar um esporte, sem pensar nos movimentos necessários nem planejá-los. Mas agora imagine que você vai andando por uma rua da cidade e está tão absorto olhando uns cartazes que não nota um meio-fio de quinze centímetros logo adiante. Seu cérebro distraído prevê que a calçada é plana e que a rua é quinze centímetros mais baixa. Você dá um passo, com a precisão exata para que o seu pé pouse na calçada. E o que acontece? Surpresa! Seu pé bate com força na pavimentação da rua. Você deixou de prever uma característica comum de uma calçada corriqueira. Você aprendeu a reconhecer rostos e vozes desde cedo. Descobriu como manipular os adultos que cuidavam de você para conseguir aquilo de que precisava. Se tinha pais carinhosos, aprendeu que seus gritos seriam acolhidos com amor e atenção. Se seus pais eram instáveis em termos emocionais, aprendeu que seu choro poderia ser recebido com indiferença ou castigos. Se tinha pais que passavam por bons e maus dias (quem não os tem?), aprendeu a lidar com os altos e baixos afetivos. E, o que é mais importante, muito antes de saber falar, aprendeu o que esperar dos relacionamentos íntimos na vida. Aprendeu a falar com base em expectativas. As crianças pequenas extraem o sentido de sua língua materna de um fluxo de sons silábicos e, pouco a pouco, vão dominando o vocabulário e a sintaxe. Assim, se alguém diz “how now brown”, o cérebro prevê, em uma fração de segundo, a palavra “cow”.1 Por isso, se em vez dela uma pessoa diz “wolf” [lobo], a previsão do ouvinte falha e ele fica surpreso. O mesmo princípio se aplica à visão, à audição, ao tato e a toda a cognição, incluindo as crenças, que, afinal, são constructos de previsões aprendidas. Em outras palavras, a percepção não é um processo de absorção passiva, mas de construção ativa. Ao vermos, ouvirmos ou sentirmos alguma coisa, as informações que chegam são sempre fragmentadas e ambíguas. À medida que vão sendo filtradas, ao ascenderem na hierarquia cortical, cada área, dotada de seu próprio conjunto especializado de funções, analisa o fluxo de dados e indaga: é isso que espero, com base na minha experiência mais recente? Preciso preencher alguma lacuna no fluxo de dados? Isso combina com minhas outras experiências passadas? Está em conformidade com o que já conheço do mundo? O cérebro faz comparações constantes das informações que chegam com o que ele já sabe, com aquilo que espera ou com aquilo em que acredita. Toda experiência é cotejada com crenças anteriores e suposições a priori. Aliás, toda arte de alta qualidade se baseia na violação das previsões. Quando vamos ao cinema, vemos as mesmas vinte tramas se desenrolarem repetidamente. Muitas vezes, o filme é chato por ser previsível. Mas um diretor de talento desafia nossas previsões. Ficamos surpresos, aquilo nos entretém. O mesmo se aplica à pintura, à poesia, aos romances e aos grandes números de ilusionismo. Infelizmente, o automatismo das previsões pode nos deixar em maus lençóis. Por exemplo: a Nasa colocou pilotos de aviões comerciais em um simulador de voo e lhes pediu que fizessem um conjunto de aterrissagens rotineiras. Em algumas aproximações, havia um enorme avião comercial largado na pista de pouso. Um quarto dos pilotos pousou em cima do avião. Eles não o viram em momento algum, por terem sido levados a crer que não haveria nada de inusitado e que a pista estaria livre. James, o Incr!vel Randi, é um homem baixo, com uma barba comprida de Papai Noel e uma personalidade gigantesca. Foi ele quem mostrou que a arqueação de colheres de Uri Geller podia ser feita com métodos comuns, e foi também ele quem nos apresentou a Teller e a outros grandes mágicos. Aonde quer que vá, Randi sempre domina o ambiente. Não admira que exerça o papel de grande estadista da comunidade norte-americana de mágicos. Como fundador da Fundação Educacional James Randi, ele protege a sociedade de charlatães e impostores da paranormalidade. A fundação oferece um prêmio de um milhão de dólares a qualquer pessoa capaz de provar poderes paranormais de qualquer natureza. Após mais de vinte anos e inúmeros desafios, ninguém se habilitou a receber o dinheiro. Randi subiu devagar ao palco de nosso simpósio. Está envelhecendo, mas o brilho de seus olhos é jovial e sedutor. Ele explicou que aceitamos facilmente suposições não verbalizadas e tendemos a acreditar em informações que aprendemos por nós mesmos, em contraste com as que nos são ditas. É a previsão em ação. – Meu objetivo aqui, hoje, é lhes mostrar que as plateias aceitam, sem qualquer dificuldade, suas próprias suposições, mas não as afirmações feitas pelo mágico – disse. – Em outras palavras, quando lhes dizemos que uma coisa é assim ou assado, elas têm bons motivos para duvidar de nós, pois estamos ali para enganá-las. Por isso, na medida do possível, devemos procurar deixar que elas façam suposições. Os ilusionistas fazem bem em tirar proveito da confiança descabida do espectador em sua própria capacidade de chegar a soluções corretas. Randi fez a demonstração: – Já enganei vocês. Quando entrei no palco, vocês presumiram que eu estava falando neste microfone – disse, e afastou o microfone grande preso ao atril. O verdadeiro microfone era minúsculo, preso no alto de sua lapela. – Por que acreditaram nisso? Se lhes perguntassem, especificamente, “Ele usou o sistema de amplificação da casa?”, vocês diriam que sim, usou. E não estariam mentindo, ao reconstituírem essa experiência para outras pessoas mais tarde. Estariam dizendo o que acreditavam ser verdade. Mas não seria verdade. Outro exemplo: – Muitos de vocês acham que os estou olhando diretamente. Mas não, estou olhando para um borrão de rostos aí. Não consigo vê-los, porque em geral uso óculos com lentes corretivas. Tirou os óculos e enfiou os dedos pelos buracos da armação vazia. – Ora, por que alguém apareceria diante de vocês usando uma armação vazia? Para que serve isso? Para frisar uma ideia. A ideia é que as pessoas não questionam as mentiras que não têm razão para existir. Mas por que elas não questionam as suposições não verbalizadas? Porque essas suposições já foram questionadas e estabelecidas como fato. Quando crianças, tiramos os óculos de nossos avós do rosto deles, os colocamos na boca e testamos as lentes com a língua. Quando adultos, não sentimos necessidade de continuar a lamber o vidro. Habituamo-nos com o fato de que as armações de óculos têm lentes de verdade. Mas isso é apenas uma observação, não uma explicação. É crucial ir mais fundo na neurociência e indagar como o cérebro de fato realiza a habituação e por quê. O porquê é fácil: pensar é dispendioso. Requer atividade cerebral, que consome energia, que por sua vez é um recurso limitado. E, mais importante, pensar retira tempo e atenção de outras tarefas, como encontrar alimento e parceiros e evitar despenhadeiros e tigres-dentes-de-sabre. Quanto mais coisas podemos arquivar em segurança como fatos estabelecidos, mais • Os anunciantes usam a preparação para instigar o consumo de alimentos sem valor nutritivo. Em um experimento, crianças da escola primária assistiram a desenhos que continham propaganda de alimentos ou de outros produtos. Enquanto assistiam, receberam biscoitinhos de queijo. As crianças que viram a propaganda de alimentos comeram uma quantidade de biscoitos 45% maior. TRUQUES FAMOSOS DE MENTALISMO Os mágicos, em especial os mentalistas, usam com frequência a preparação para influenciar as respostas do espectador. Por exemplo, vejamos um truque de adivinhação de pensamento que em geral é feito com três ou sete espectadores, mas que também deve funcionar com você. Pegue uma caneta ou um lápis e siga as instruções abaixo, na ordem em que são apresentadas, fazendo-o o mais depressa possível. 1. Escolha um número entre 1 e 50. 2. Mas há algumas regras com respeito à sua escolha. 3. O número deve ter dois algarismos. 4. Os dois algarismos devem ser ímpares. 5. Um algarismo deve ser maior do que o outro. Anote isso rapidamente. Certo, agora vamos ler seu pensamento. Olhe para o número e se concentre intensamente no valor dele. Estamos começando a captar seu pensamento. Quando tivermos certeza do número, vamos escrevê-lo neste livro e mandar o manuscrito para a gráfica, para que você possa lê-lo aqui. Você pensou no número 37. Sim? Viva! Lemos seu pensamento de trás para a frente, bem na hora. Não, nós erramos? Bem, ou você não seguiu as instruções ou não se concentrou o bastante. Talvez você deva comprar outro exemplar deste livro e ver se o truque funciona melhor com ele. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Quer saber como o truque funciona? Em primeiro lugar, ninguém sabe de fato. Mas eis o que sabemos. Reduzimos o número de opções ao pedir um número de dois algarismos. Isso restringe a escolha aos que vão de 10 a 50. Depois, dissemos que os dois algarismos tinham que ser ímpares. Isso deixa apenas dez opções entre 11 e 39. Em seguida, dissemos que você não podia ter algarismos repetidos, o que lhe deixou apenas oito opções: 13, 15, 17, 19, 31, 35, 37 e 39. Certo, reduzir cinquenta opções a oito nos deixa com uma probabilidade de 12,5% de fazer a adivinhação correta, o que é melhor do que nossa chance original de 2%, mas ainda é muito baixo. Então, por que as pessoas tendem a escolher o 37? Bem, preparamos você para pensar no 3 e no 7, ao começar nossa conversa dizendo que o truque funciona melhor em grupos de três ou sete pessoas. Não é verdade. Em geral, o truque é feito com uma pessoa, não com um grupo. Com certeza existem outros fatores que contribuem para a razão de esse truque funcionar, visto que ele continua funcionando, na maioria das vezes, mesmo sem a preparação, mas esses outros fatores ainda não são bem compreendidos. FIM DO ALERTA DE SPOILER A preparação também pode levar a erros de interpretação perceptual sob a forma de expectativas falhas, o que pode criar problemas graves para o indivíduo. Por exemplo, nosso colega Peter Tse, do Dartmouth College, depôs como perito em um caso recente de um homem que atirou no que julgara ser um urso e, em vez disso, matou um homem. De acordo com Tse, o caçador de 21 anos fora preparado para ver um urso. Tinha visto seu irmão mais novo matar um urso nesse dia e queria pegar um também. A vítima estava colhendo amoras na floresta de Vermont durante a temporada de caça, sem a roupa laranja fluorescente que os caçadores usam para não atirar uns nos outros. (Isso quase dá margem ao Prêmio Darwin, mas deixemos para lá.) O caçador viu os arbustos se mexerem, mirou e, enxergando um urso pela mira, disparou uma bala que atravessou o ombro, os dois pulmões e o coração da vítima, saindo pelo outro ombro. O colhedor de amoras morreu em menos de um minuto. Ao perceberem o erro, o caçador e seu irmão fugiram do local. Mais tarde, seu tio os convenceu a se entregar. O veredicto foi de homicídio por negligência, com a sentença de um ano de prisão. Tse fundamentou seu testemunho na ideia de que a preparação – ver a caçada bem-sucedida do irmão no mesmo dia – tinha reduzido a capacidade do caçador de identificar alarmes falsos, o que, no caso, significou a identificação errônea de um urso. Segundo Tse, isso foi um exemplo da teoria da detecção de sinais. Ela foi inventada durante a Segunda Guerra Mundial a fim de ajudar a determinar quando os operadores de radar britânicos deveriam dar a ordem para que os pilotos levantassem voo para abater bombardeiros alemães. Os alarmes falsos eram péssimos, porque, se os caças decolassem para se defender de um ataque inexistente, o país ficaria vulnerável a um ataque real vindo de outra direção durante o longo período que os aviões levariam para voltar, aterrissar, ser reabastecidos, dar um descanso à tripulação e se preparar para outro evento de decolagem urgente. Os alarmes falsos eram caros e perigosos. Por outro lado, não decolar o mais rápido possível poderia significar a queda de bombas no coração de Londres. Os cientistas se referem a esse tipo de erro como um “malogro”. A questão era como determinar os critérios ideais para minimizar os alarmes falsos e os malogros. E de que modo os operadores de radar estabeleciam seus próprios critérios internos para decidir quando uma luz piscando na tela era um bombardeiro nazista? No caso do caçador de ursos, ele estava obstinadamente decidido a matar um urso naquele dia. Nem vamos levar em conta que nenhuma pessoa que porte uma arma deva estar obstinada em coisa alguma – a verdade é que nossos desejos nos levam a ver o que desejamos ver. A capacidade do caçador de detectar um urso fora intensificada em seu nível máximo, porém esse mesmo critério também aumentou sua capacidade de confundir um homem com um urso. Ele estava no clima perfeito de agressividade para agir com base em um alarme falso. No fim, foi exatamente isso que fez, e tudo se resumiu em como ele manejou a tensão inevitável entre os alarmes falsos e os malogros.2 Tal como a preparação, nossa tendência a alimentar preconceitos e estereótipos torna mais prováveis os alarmes falsos. Por exemplo, Keith Payne, psicólogo da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, pediu a algumas pessoas que distinguissem vários tipos de armas e secadores de cabelo, pistolas de calafetagem e outros aparelhos com formato de revólver. Usou uma técnica de medição da tendenciosidade defendida por Mahzarin Banaji, psicólogo de Harvard. Com esse método, o nível de preconceito (racial, sexual ou outro) da pessoa é determinado pela medição de seu tempo de reação a conceitos que entram em conflito com seu sistema de crenças. Payne constatou que os sujeitos experimentais norte-americanos ligavam mais facilmente os negros a armas, ao passo que associavam os brancos a ferramentas. Esse estereótipo tornou-se letal em 1999, quando um estudante africano de 23 anos, Amadou Diallo, foi morto na cidade de Nova York por ter tentado pegar sua carteira quando a polícia lhe ordenou que parasse. Na República da Guiné, sua terra natal, a pessoa tinha de exibir a carteira ao ser abordada pela polícia. Diallo foi alvejado 41 vezes e atingido por dezenove balas. Os guardas alegaram ter visto uma arma, não uma carteira, e foram absolvidos, o que resultou em tumultos. Dada a prevalência dos alarmes falsos, o que podemos fazer para diminuir sua ocorrência? Uma ideia é manipular as expectativas do observador. É essa a filosofia da campanha da Secretaria de Transportes de Londres para fazer os motoristas terem mais consciência dos ciclistas nas ruas. Os motoristas de automóveis estão o tempo todo atentos a outros carros, mas é comum não verem bicicletas e motocicletas. A Secretaria de Transportes usa demonstrações do tipo “um gorila entre nós” em comerciais de televisão, na tentativa de aumentar a conscientização dos motoristas e reduzir a probabilidade de atropelar ciclistas. Deve funcionar. Na demonstração de Simons e Chabris com o gorila, as pessoas têm maior propensão a vê-lo quando lhes é dito que talvez haja um gorila no filme. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Os mágicos usam a predisposição e a preparação para provocar alarmes falsos, o que, mais uma vez, se relaciona com a teoria das soluções falsas, de Tamariz. Lembre-se de que um dos modos de criar despistes marcantes é fornecer indícios de que está usando determinado método para fazer um truque, quando na verdade se trata de um método completamente diferente. Bem, os mágicos usam as preconcepções para conseguir detecções falsas. Lembra-se do falso arremesso da moeda de Mac King e da bola desaparecida de Kuhn? Quando você vê a moeda e a bola serem de fato jogadas para o alto, isso serve para implantar a ideia preconcebida de que o mágico sempre arremessa o objeto. Nesses truques, os ilusionistas empregam a repetição para aumentar a predisposição para um alarme falso (detectar uma moeda ou uma bola quando não existe nenhuma), mas também para reduzir a possibilidade de que você perca de vista um lançamento real da moeda. Imagine um perito em truques de baralho fazendo o jogo da vermelhinha – uma antiga trapaça na qual a vítima aposta que é capaz de encontrar a carta-alvo entre três cartas viradas para baixo. O mágico dá ao observador diversas chances de ver onde está o alvo – digamos, a rainha de espadas. Isso aumenta a confiança da vítima e faz o critério se acentuar (a sensibilidade da vítima à posição da rainha). E então, pimba, o trapaceiro usa um truque de prestidigitação para tirar a rainha, provocando um erro em uma tentativa em que a aposta é alta. FIM DO ALERTA DE SPOILER Quando nosso filho Iago tinha dois anos, Steve mostrou-lhe um truque de mágica. Achou que já tinha conseguido bastante desenvoltura no truque e quis se exibir para o filho. Mas Iago não se impressionou. Ali estava um garoto que se encantava e se entretinha por horas a fio com o fato de poder soprar uma vela, mas que achava completamente banal uma coisa impossível. Você já sabe por quê. O cérebro dele ainda era tão ingênuo com relação às leis da física e da causalidade que ele não tinha previsões em que basear a sensação de surpresa. Ainda era tão pequeno que poderíamos lhe mostrar como fazer um objeto atravessar um portal mágico no espaço-tempo e ele apenas o notaria, talvez brincasse um pouco com esse novo fato – da mesma forma como brincava de derramar líquidos de um recipiente em outro, ou de tirar e pôr as meias seguidas vezes –, e nada mais. Mac King concordou conosco. As crianças são mais difíceis de enganar, disse, porque não têm expectativas fortes em relação ao mundo. Acham que a mágica simplesmente existe: algumas pessoas de fato são capazes de fazer uma moeda se desmaterializar. Se você acredita em Papai Noel, o que há de inacreditável em um espetáculo de ilusionismo? É só um bando de adultos transportando magicamente uma moeda de um lado para outro, ou fazendo cartas sumirem no ar. O que as crianças realmente querem ver é alguma coisa difícil e engraçada, como uma cambalhota tripla cujo resultado é um rasgão no meio dos fundilhos das calças do saltador. Randi também concordou. As crianças são mesmo difíceis de enganar, diz ele, porque não são sofisticadas o bastante para serem tapeadas. Não construíram modelos infalíveis de probabilidade e impossibilidade. Portanto, podemos indagar: quando é que a mente da criança atinge um nível de maturidade que lhe permite se encantar ou se admirar com um truque de mágica? De que modo ela adquire expectativas? Aliás, o que sabem os bebês? Quando aprendem a prever o mundo? Quando suas expectativas se tornam violáveis? Essas perguntas suscitam dúvidas mais profundas. Quando os bebês nascem, quanto de seu cérebro vem previamente programado para adquirir conhecimentos sobre o mundo? Será que o cérebro deles é como uma tela em branco, ou possui estruturas inatas, já armadas e prontas para absorver os conhecimentos? Na década de 1920, o suíço Jean Piaget, um psicólogo do desenvolvimento, foi pioneiro nessa investigação e concluiu que os bebês com menos de nove meses não têm nenhum conhecimento inato do mundo. Piaget afirmou que eles não possuem nenhum senso da permanência do objeto – a ideia de que algo pode existir mesmo quando não o vemos. Também afirmou que os bebês constroem o conhecimento aos poucos, a partir da experiência, inclusive a capacidade de empatia, que o psicólogo sugeriu surgir bem tarde no desenvolvimento. Os atuais neurocientistas cognitivos questionam muitas das conclusões de Piaget e presumem que as crianças nascem com certo conhecimento do mundo físico. São “máquinas estatísticas de aprender”, com uma capacidade rudimentar para a matemática e a linguagem. Os bebezinhos têm ideias corriqueiras sobre psicologia, biologia e física. Como os bebês não sabem falar, os psicólogos do desenvolvimento conceberam diversas estratégias para obter informações sobre a cognição infantil. Nos “laboratórios de bebês”, estes se sentam em cadeiras altas ou no colo dos pais e observam cenários simples. Em seguida, o experimentador mede por quanto tempo o bebê olha para um objeto, comparado a outro ou a uma série de eventos. A ideia é que o olhar dessas crianças revela o quanto elas estão interessadas no objeto, ou se são capazes de detectar algo fora do comum – indícios de que elas dispõem de modelos simples de como o mundo funciona. Por exemplo, os bebês podem se mostrar menos interessados quando veem o mesmo fenômeno acontecer repetidas vezes. Eles se entediam. Quando aparece um novo fenômeno, olham para ele por mais tempo, desde que notem a diferença. Elizabeth Spelke, psicóloga do desenvolvimento em Harvard, fez dezenas de experimentos sobre a capacidade de raciocínio das crianças. Em um deles, Spelke mostrou que bebês de apenas três meses e meio olham mais demoradamente para eventos impossíveis (como um painel de madeira articulado se movendo através de uma caixa) do que para os possíveis. No dizer da cientista, eles têm uma compreensão básica dos fenômenos físicos que parecem violar a gravidade, a solidez e a contiguidade. Essas pesquisas também mostram que os bebês têm um senso da permanência do objeto muito antes da fase postulada por Piaget. Em determinado experimento, os bebês observavam um trenzinho de brinquedo descer uma linha férrea, desaparecer atrás de uma tela e ressurgir de trás dela, mais adiante, em outro ponto do trilho. Depois, os pesquisadores puseram um ratinho de brinquedo atrás da ferrovia, levantaram a tela e fizeram o trem rolar de novo. Nenhum problema. Por fim, puseram o ratinho nos trilhos, abaixaram a tela, retiraram disfarçadamente o ratinho e puseram o trem para andar. Bebês de apenas três meses e meio olharam por mais tempo para o possível evento de atropelamento do ratinho pelo trem, o que sugeriu que tinham senso da permanência do objeto. Sabiam que o ratinho existia e que ele estava colocado em um lugar em que o trem o atingiria. David Rakison, psicólogo da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, também usa brinquedos para investigar o que os bebês sabem. Ele estuda as aptidões dos bebês para categorizar objetos. Talvez você pense que as crianças pequenas juntam naturalmente vacas e cavalos em um grupo e carros e aviões em outro, mas porventura isso significa que elas sabem o que são esses objetos? Quando Rakison tirou as pernas e as rodas desses brinquedos, os bebês juntaram as vacas com os carros. Ele observou que os bebês sabem que os cães são diferentes dos carros aos três meses de idade, mas só sabem que cães e gatos são seres vivos ao chegarem aos três anos. Nosso filho Iago viu uma tartaruga-gigante pela primeira vez aos dezoito meses, em uma visita ao Jardim Zoológico de Phoenix. O enorme animal (do tamanho de uma piscininha infantil) ficou imóvel por um longo tempo e então começou a andar • 9 • Que a força esteja com você: a ilusão da escolha James, o Incr!vel Randi, estava de volta ao palco, só que, desta vez, no Naples Philharmonic Center for the Arts, na Flórida. Fazia-nos um favor, executando diversos truques de mentalismo na edição de 2009 do concurso Melhor Ilusão do Ano.1 Os mentalistas são mágicos que usam as probabilidades matemáticas, a natureza humana, a prestidigitação, estratagemas diversos e a confiança para dar a impressão de que são capazes de ler pensamentos. Seus números são sumamente teatrais, muitas vezes invocando poderes “místicos” de clarividência, telecinesia, telepatia, precognição, adivinhação e controle da mente. Ao contrário de muitos videntes da Nova Era, que afirmam possuir poderes sobrenaturais,2 mentalistas como Randi, Max Maven, Derren Brown e outros grandes artistas não manifestam a pretensão de ter faculdades paranormais. Suas ilusões provêm da capacidade de explorar a credibilidade humana e, como você verá, executar geniais manobras furtivas e traiçoeiras. Nesse dia, Randi ia apresentar o teste do livro. Trata-se de um número em que o mágico pede a um voluntário que exerça seu livre-arbítrio na escolha de uma revista, encontre uma palavra ao acaso em alguma página e pense nessa palavra, em silêncio. O mágico adivinha a palavra, lendo o pensamento do voluntário. Randi examinou a plateia, a mão protegendo os olhos dos refletores, como um marinheiro que bloqueia o sol ao mirar o horizonte. – Conheci uma moça lá fora, antes do show, que concordou em me ajudar no próximo truque. Você poderia se levantar, por favor? Uma jovem ficou de pé mais ou menos no centro da plateia, e Randi a apresentou como Zoe. – Bem, antes de começarmos, você pode ter a gentileza de confirmar que nunca nos encontramos antes da noite de hoje? – Correto – disse ela. – Que você não está sofrendo nenhuma coação minha, que não foi paga por mim e que qualquer decisão que venha a tomar não lhe foi fornecida por mim? – Sim, é verdade – respondeu Zoe. – Quando nos encontramos hoje, em frente ao salão, você escolheu uma palavra em uma revista, completamente aleatória e por sua livre e espontânea vontade? – Sim. – Era um outro exemplar desta mesma revista específica, que escolhemos na estante de literatura gratuita do lado de fora do prédio? – perguntou Randi, tirando do bolso de seu blazer azul-marinho um guia grátis de aluguel de apartamentos e abrindo devagar cada página, para mostrar à plateia que havia muito texto. – Sim. – E eu lhe pedi, não foi, para abrir a revista na página que quisesse, de preferência em uma que tivesse muito texto, e para escolher livremente qualquer palavra do seu agrado, enquanto eu me mantinha de costas para você? – Sim. – E depois disso você destruiu a revista, correto? – Sim. – Seria impossível eu saber que palavra você escolheu, certo? Muito bem. Você tem um pedaço de papel em que essa palavra foi escrita. Pode desenhar um círculo em volta dela agora, enquanto tento ler sua mente? – Está bem – disse Zoe, e circundou a palavra na página. Randi começou então a andar. Percorreu o palco, indo de um lado para o outro. A sombra lançada por ele, em função da luz do refletor, saltava animadamente contra as pregas da cortina de veludo vermelho às suas costas, que tinha a altura de uns dois andares. Seu cenho se franziu em vincos fundos, enquanto ele esfregava a testa e as têmporas. Randi então resmungou consigo mesmo, de um modo levemente desconcertante, porém divertido. Por fim, parou diante de um cavalete em que havia um grande bloco de papel, ao lado do tablado. Tirou a tampa de uma enorme caneta Sharpie, levantou os olhos para as luzes, com a mão direita pressionando as pálpebras, o braço estendido, a caneta destampada, pronta para atacar, e falou: – Estou começando a captar alguma coisa – e escreveu um N no papel. – Agora está vindo tudo. – Continuou recebendo as vibrações mentais de mais oito caracteres e escreveu a expressão NθI+d3)3P. Feito isso, e visivelmente esgotado pelo esforço, Randi tirou a mão do rosto. Olhou para o bloco por um longo tempo, em completo silêncio, e então se virou para o público. Os presentes começaram a ficar irrequietos, sentindo-se embaraçados pelo pobre velhote. – A revista está escrita na língua inglesa? – ele acabou perguntando, sem conseguir disfarçar a decepção na voz. – Sim – respondeu Zoe com um risinho, e outras risadas nervosas brotaram da plateia. Zoe continuava de pé, e estava tão sem jeito por Randi que, ao responder, teve de abaixar o papel que vinha usando como máscara para esconder o rosto. –Você é matemática? – indagou Randi, com uma esperança tristonha. – Não – disse a moça. –Certo; bem, então acho que não adivinhei – concluiu o mágico, com os ombros e o queixo caídos. – Qual era a palavra? –Engodo.3 – O quê? Hein? Desculpe, não a ouvi – disse o octogenário, subitamente frágil, curvando-se para aproximar mais o ouvido, agora com a mão em concha e espremendo os olhos contra o brilho dos refletores. – Engodo! – gritou Zoe. – Hmm. É, bem… às vezes essas coisas não funcionam – disse ele, com ar desolado. Erguendo os olhos para o bloco pela última vez, deu uma segunda espiada e disse, animado: – Ah, espere um minuto! Acho que estou vendo o que aconteceu! Já parecendo trinta anos mais jovem, ele deu um verdadeiro pulo ao levantar a página do bloco e arrancá-la. Virou-se para a plateia com a página arrancada e, devagar, imprimiu-lhe um giro de 180 graus, enquanto dizia: – Devo ter recebido o sinal de você de cabeça para baixo e de trás para a frente! Uma vez concluída a rotação, a página revelou a mensagem, agora legível: dε(εP+IθN. A multidão rugiu, e Randi recebeu a ovação de pé. Na manhã seguinte, Randi voltou para sua casa em Fort Lauderdale, a Fundação Educacional James Randi, ou JREF, na sigla em inglês, Susana e eu ficamos encantados por levá-lo de carro no trajeto de duas horas, saindo de Naples. Já viajamos com mágicos pelo mundo inteiro e, no verão de 2009, chegamos até a andar de avião, de carro e de barco pela China com duzentos mágicos espanhóis, e por isso sabemos do que estamos falando: se um dia você tiver vontade de fazer uma viagem turbulenta pela estrada, vá com um mágico. A JREF é uma instituição que promove a desmistificação de fraudes e afirmações bombásticas de paranormais, curandeiros, hipnotizadores e até cientistas iludidos. Chegamos ao prédio da fundação, uma casa reformada e cercada de pavões, a tempo de encontrar a equipe comemorando a notícia de que acabara de esgotar a venda de ingressos para a edição seguinte da Reunião Incr!vel (TAM, na sigla em inglês), a ser realizada em Londres naquele outono. Fomos conduzidos à biblioteca Isaac Asimov, a farta coleção de literatura sobre ilusionismo da Fundação, cujos livros revestem todos os lados de um amplo salão de conferências, sem janelas e com acabamento de madeira, que inclui uma imensa mesa central de reunião de causar inveja a qualquer presidente de empresa. Anotações e uma miscelânea de acessórios referentes ao próximo livro de Randi, A Magician in the Laboratory [“Um mágico no laboratório”], espalhavam-se por ela. Na viagem, Randi nos dissera que o teste da revista que ele tinha feito com Zoe era uma de muitas variantes de um truque clássico, conhecido como teste do livro. – Todo mentalista faz – disse-nos na biblioteca. – Fundamentalmente, é uma ilusão da escolha. Permitam-me demonstrar. Minha cara – dirigiu-se a Susana –, tenha a bondade de pegar qualquer livro que lhe agradar na estante. Susana voltou com um livro de mágica escolhido ao acaso e o mostrou a Randi. – Ótimo, ótimo – disse ele –, mas vamos nos certificar de que ele não tem ilustrações demais. Você precisa ter opções abundantes de texto. – Pegou o livro e folheou rapidamente as páginas. – Muito bem, esplêndido – comentou, devolvendo-o. – Este livro servirá perfeitamente. – Agora vou escolher um livro mais ou menos do mesmo tamanho – continuou, tirando outro volume da estante. – Em seguida, lerei seu pensamento, mas primeiro você precisa escolher uma página mais ou menos no meio deste livro aqui, enquanto eu folheio suas páginas. Segurou o livro pela quarta capa, deitada sobre a mão esquerda, e levantou a capa e todas as páginas em um ângulo de 45 graus. Deixou-as descerem em cascata, folheando-as com o polegar, e aproximadamente na metade delas Susana disse: – Aí. – Página 174 – disse Randi. – Então, vamos rever as coisas. Você escolheu livremente um livro, certo? –Sim. – Escolheu a página que queria, certo? –Correto. –Agora, você vai escolher livremente a palavra que quiser, nessa página, no livro que está segurando. – Ahã – confirmou Susana. – Portanto, não há meio de eu saber que palavra você está prestes a escolher, não é? – Bem, tenho certeza de que você vai saber, só não sei como o fará! Randi deu um risinho. – Bem, nisso você tem razão. Então, minha cara, por favor, abra seu livro na página 174 e escolha uma palavra na primeira linha. Não escolha um artigo nem uma palavra sem substância, pegue uma palavra boa, significativa, robusta. Susana foi à página 174 do livro, leu a primeira linha, escolheu uma palavra – “estelar” –, e o resto da história você já sabe. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Mas como ele fez isso? Randi não tinha como saber que palavra Susana escolheria, ou tinha? Ele explicou que os testes do livro são uma ilusão da escolha, pois as escolhas são conhecidas pelo mágico ou forçadas por ele. Nesse caso, o modo como Randi descreveu o truque e as escolhas de Susana foram… bem, não queremos dizer desonesto, mas não foi muito preciso. Tratemos de reexaminá-lo. Primeiro, Susana de fato escolheu um livro. Nisso não houve nada forçado. No entanto, porventura ela escolheu a página 174? Não realmente. Foi Randi quem folheou as páginas, não Susana, e ela, na verdade, nem chegou a ver que página estava aparecendo quando disse “Aí”. Randi mentiu ao lhe dizer que era a página 174. Portanto, agora a pergunta é: como ele podia saber a primeira linha da página 174 de um livro que Susana escolhera de maneira aleatória? Teria decorado a primeira linha de todos os livros, dos milhares que havia em sua biblioteca? Não. Quando Randi folheou rapidamente as páginas do livro para “verificar as ilustrações”, na verdade não estava à procura destas. Estava procurando um vislumbre de qualquer página em que pudesse se decidir por uma palavra na primeira linha e enxergar o número de página no canto superior direito. Aconteceu que ele leu “estelar” na página 174, enquanto as páginas voavam. Isso é um desafio, com todo o borrão causado pelo movimento, pois ele folheia as páginas muito depressa. Mas, com a prática, é algo que se pode fazer, e Randi só precisava de uma palavra e do número da página dela para fazer o truque funcionar. Como ele sabia qual palavra exatamente Susana escolheria? Não sabia. Mas há um limite para o número de palavras complexas e robustas ou estelares em uma única linha de qualquer livro normal. Mesmo que Susana escolhesse uma palavra complexa diferente, Randi poderia se recuperar, dizendo: “Ah, mas a palavra ‘estelar’ está mesmo aí, não está? De modo inconsciente, você deve ter achado ‘estelar’ uma palavra mais interessante do que a outra que escolheu, e foi por isso que eu a captei em suas ondas cerebrais.” Randi usou truques de mentalismo para restringir as escolhas de Susana a uma única palavra, ou a apenas algumas palavras possíveis. Assim, quando “leu o pensamento dela”, na verdade só estava fazendo uma conjectura bem-fundamentada, com baixa probabilidade de erro. E, na eventualidade de um erro, poderia corrigi-lo com facilidade. FIM DO ALERTA DE SPOILER Voltemos ao concurso de ilusionismo da noite anterior. Randi acabara de receber uma ovação de pé por ter lido o pensamento de Zoe. Mas de que maneira o fez? Qual foi o método por trás desse teste específico do livro? As escolhas de Zoe pareciam essencialmente infinitas. Será mesmo que o Incr!vel Randi (ele dissera aos membros da plateia que, já que eram todos amigos, agora eles deviam chamá-lo por seu prenome, Incr!vel) tinha adivinhado, de algum modo, a palavra “engodo”, dentre todas as palavras possíveis, e de uma forma espetacular, ainda por cima? Não. Decididamente, Zoe foi tapeada. Talvez sentisse que dispunha de milhares de opções secretas e não estava sendo orientada por outra coisa senão seu livre-arbítrio, mas não é bem assim. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! que objeto pegaremos entre vários artigos em uma mesa. Eles detêm o controle completo. Quando um mentalista nos prende em suas garras, nosso senso de livre-arbítrio é uma ilusão. Um método clássico para forçar é chamado de escolha do mágico. Você é solicitado a fazer uma escolha livre entre objetos, mas, seja qual for a sua escolha, é o mágico quem dá as ordens, por meio da maneira como responde verbalmente a suas escolhas. ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Por exemplo, se o mágico põe na mesa duas cartas viradas para baixo e quer que você escolha a da direita, ele lhe diz: “Escolha qualquer uma.” Se você escolhe a da direita, ele dá continuidade ao truque. Se escolhe a da esquerda, ele diz: “Ótimo, fique com essa carta, usarei a que sobrou.” Com isso, ele força a carta que quer. FIM DO ALERTA DE SPOILER A “força”5 não é diferente da versão cinematográfica que você talvez tenha visto no filme Guerra nas estrelas, de George Lucas. Há uma cena em que o mestre Jedi Obi-Wan Kenobi e o herói Luke Skywalker, acompanhados pelos robôs R2-D2 e C- 3PO, tentam deixar o planeta Tatooine. No caminho para o espaçoporto, eles são parados por dois soldados da tropa de choque imperial, vestidos com armaduras e munidos de armas. Obi-Wan dá um sorriso matreiro e acena, enquanto lhes diz: “Estes não são os androides que vocês estão procurando.” Os soldados parecem confusos. Um deles repete, feito um papagaio: “Estes não são os androides que estamos procurando.” Obi-Wan domina a mente deles, forçando-os a acreditar em tudo que ele lhes diga, e a repetir isso. Depois que os soldados fazem sinal para nossos heróis passarem pelo posto de controle, Obi-Wan explica ao jovem Luke Skywalker: “A Força pode exercer grande influência nos que têm a mente fraca.” Só que, no universo real, todos temos a mente fraca, e os mágicos são os mestres Jedi. Forçar é uma prática que funciona porque nosso cérebro vive uma busca constante e ativa de ordem, padrões e explicações, e tem uma ojeriza intrínseca ao aleatório, ao sem padrão e ao inarrável. Na falta de explicação, nós a impomos. Quando pensa estar optando por algo mas a escolha é modificada ou distorcida de algum modo, mesmo assim você sustenta sua posição e justifica sua “opção”. Você fabula. Fabular é um termo sofisticado para a invenção descarada de fantasias. É mais um dos processos cerebrais potentes e ubíquos que ocorrem o tempo todo, mas dos quais raras vezes temos consciência. Em geral, esse processo é benéfico. Por exemplo, é a fabulação que nos permite “ver” pessoas e objetos em desenhos, em vez do emaranhado de linhas escuras para o qual efetivamente olhamos. É também o que nos permite “ver” rostos em nuvens; permite que a percepção seja flexível e criativa. No entanto, quando esse tipo de imposição de padrões se dá em níveis superiores da cognição, as implicações podem se tornar meio incômodas. A mente chega a extremos surpreendentes para preservar seu senso de ação, escolha e continuidade do eu. Ao ser influenciado por terceiros, você racionaliza a influência deles como uma boa tomada de decisão de sua parte. A amplitude e a profundidade da fabulação se revelam depois de certos tipos de lesão cerebral, quando o sistema normal de verificação e equilíbrio da mente fica perturbado. Por exemplo, quando há uma lesão no hemisfério cerebral direito, podem surgir ilusões espantosas sobre o estado do corpo. Vejamos o que a dra. Anna Berti, neurocientista da Universidade de Turim, na Itália, obteve ao entrevistar uma de suas pacientes, “Carla”, cujo braço esquerdo paralisado estava pousado em seu colo, junto ao braço direito saudável: – Você pode levantar o braço direito? – Sim – diz Carla, levantando o braço. – Pode levantar o braço esquerdo? –Sim. O braço permanece imóvel. Berti tenta outra vez: – Você está levantando o braço esquerdo? – Sim – responde Carla, cujo braço continua a não se mexer. – Pode bater palmas? Carla leva a mão direita à linha mediana do corpo e a agita em um movimento de palma. A mão esquerda permanece imóvel. – Você tem certeza de estar batendo palmas? –Sim. – Mas não estou ouvindo som algum. – Nunca faço barulho ao fazer alguma coisa – responde Carla. Durante muito tempo, acreditou-se que a negação insistente da paralisia era um problema psicológico, diz Berti. Era a reação a um derrame: Estou paralítico, isto é terrível demais, vou negá-lo. Contudo, não se trata de um dilema freudiano. Trata-se, antes, de uma forma da chamada síndrome da negligência, na qual uma área cerebral envolvida na estimulação dos movimentos, a área motora suplementar, é danificada. Quando você fecha os olhos e simplesmente imagina uma jogada de golfe ou um movimento de esqui, põe em atividade essa parte do cérebro. Quando Berti pede a Carla que levante o braço esquerdo ou bata palmas, a região que imagina esses movimentos produz um padrão conhecido de atividade no cérebro da paciente. Mas as regiões que executam esses movimentos e também mantêm a consciência de executá-los não funcionam. O conflito é esmagador. A sensação que Carla tem de ter se movido, por meio da estimulação, é intensa. A apercepção está ausente. A paralisia é completa. A solução do cérebro da paciente é fabular. Se instigados, os pacientes inventam histórias para explicar sua inação, no dizer de Berti. Uma mulher disse que seu braço tinha “saído para passear”. Um homem afirmou que seu braço imóvel não lhe pertencia. Quando o braço foi colocado em seu campo visual direito, o paciente insistiu em dizer que não era o dele. – De quem é esse braço? – perguntou Berti. –Seu. – Tem certeza? Olhe aqui, eu só tenho duas mãos. O paciente retrucou: – O que eu posso fazer? Você tem três pulsos. Deve ter três mãos. Os neurocientistas também podem desmascarar a natureza fabuladora em laboratório. Dois jovens cientistas suecos desenvolveram um novo método científico que emprega técnicas de ilusionismo para examinar o fascinante modo de funcionamento da fabulação no cérebro intacto, saudável e aparentemente racional. Estávamos em Benasque, uma cidade espanhola aninhada no coração dos Pireneus, no Centro de Ciências Pedro Pascual, um refúgio destinado a reunir cientistas de todas as disciplinas para debaterem ideias, na esperança de inspirarem novas abordagens interdisciplinares. Miguel Ángel, o mágico espanhol que conhecemos no Capítulo 5, havia acabado de fazer sua demonstração da cegueira para a mudança. Nesse momento, estavam no palco dois neuropsicólogos da Suécia, Petter Johansson e Lars Hall, da Universidade de Lund. Esses dois jovens de vinte e tantos anos são hoje os xodós louros da ciência cognitiva, e não apenas por serem suecos. Eles ofereceram à sua disciplina um verdadeiro smörgasbord de métodos. Um acepipe especialmente delicado apareceu em um artigo publicado em 7 de outubro de 2005 na revista Science, descrevendo a invenção de um novo e poderoso método para o estudo da cognição, da racionalização e do processo decisório dos seres humanos, chamado cegueira para a escolha. E os dois o fizeram usando o ilusionismo. Johansson explicou que os experimentos da dupla foram inspirados na chamada ilusão da introspecção. A introspecção, disse ele, não fornece um canal direto para nossos processos mentais inconscientes. Em vez disso, é um processo mediante o qual usamos o conteúdo da mente consciente para construir uma narrativa pessoal, que pode ou não corresponder ao estado inconsciente do indivíduo. Quando lhe perguntam por que você tem determinada preferência, ou como chegou a ela, o seu autorrelato sobre seus processos mentais internos é fabulado. Para falar sem rodeios, você não tem consciência do seu inconsciente. Johansson e Hall descreveram seus incríveis experimentos em um estilo acelerado de alternância em equipe. Mostraram um curta-metragem deles próprios, feito pela BBC no ano anterior, para ilustrar sua nova abordagem. O filme começa com um deles mostrando duas fotografias de duas moças a sujeitos masculinos ou femininos. As fotos foram previamente equiparadas em termos de atrativos, e por isso as moças tinham belezas similares. Quando o investigador levanta as fotos, o sujeito experimental, sentado do outro lado da mesa, aponta para a mulher que considera mais atraente. Em seguida, as fotos são colocadas na mesa, viradas para baixo, e a foto escolhida é empurrada pelo tampo até o sujeito, aparentemente para que ele possa apanhá-la e examiná-la mais de perto. “Tome, dê uma olhada mais de perto e nos diga por que você a escolheu”, pedem os pesquisadores, incentivando cada pessoa a considerar as razões que levaram à escolha. Johansson e Hall fizeram esse experimento dezenas de vezes com cada sujeito e registraram aplicadamente a opinião abalizada de cada juiz de beleza, sempre com um novo par de fotografias equiparadas em termos de atratividade. O que Johansson e Hall só disseram a seus sujeitos experimentais depois de encerrado o experimento foi que, em segredo, haviam trocado as fotos em 1/5 das tentativas, depois de cada sujeito ter feito sua escolha inicial, mas antes que desse suas explicações sobre a razão da escolha. A maioria não percebeu a troca. Assim, em vez de explicarem por que tinham escolhido o rosto que agora tinham nas mãos, essas pessoas explicaram por que tinham escolhido o rosto que, na verdade, haviam rejeitado. E, puxa vida, como mentiram! ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS! Johansson e Hall conseguiram isso usando o que os mágicos chamam de teatro negro (semelhante ao de Omar Pasha no Capítulo 1), só que, nesse caso, em vez de uma cortina preta, usaram uma toalha preta e fotografias com o verso preto. Para enganar os sujeitos experimentais, pediram que eles apontassem a foto preferida e a puseram na mesa, virada para baixo. O verso dessa fotografia era preto, e, em cima dela, os pesquisadores haviam colocado uma segunda foto – a do rosto rejeitado. O verso dessa foto era vermelho. Na hora de empurrar a fotografia para o sujeito, os cientistas lhe passaram a de verso vermelho (o rosto rejeitado), deixando sobre a mesa a de verso preto (o rosto preferido), que ficou invisível sobre a toalha. Em momento algum as pessoas perceberam a troca. Enquanto o cérebro de cada sujeito inventava para si mesmo uma história, a fim de racionalizar a “escolha”, Johansson e Hall (que se alternavam no papel de experimentador) tiravam sub-repticiamente da mesa a foto escolhida e a jogavam no colo. Nesse meio-tempo, o sujeito presumia que a foto deslizada pela mesa era a mesma que ele havia escolhido. Essa suposição não verbalizada funcionou como um método poderoso de dissimulação. FIM DO ALERTA DE SPOILER As trocas foram descobertas em menos de das vezes. Nas tentativas em que a troca foi feita com êxito, os sujeitos de fato fabularam suas razões para terem escolhido a foto substituta. Um dos homens disse: “Preferi essa porque prefiro as louras”, quando, na verdade, sua escolha inicial fora uma mulher de cabelo preto. Uma mulher escolheu uma moça sem brincos e, quando a foto foi disfarçadamente trocada pela de uma moça de brincos, ela disse ter escolhido esta última porque gostava de brincos. Mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo! Os sujeitos não haviam escolhido as pessoas cujas fotos seguravam nas mãos, porém achavam que sim. Então, o que faz a pessoa ao ser levada a justificar uma escolha que acredita ter feito? Ela fabula. Sustenta sua posição. Em um experimento de acompanhamento, clientes de um supermercado provaram dois tipos de geleia e explicaram suas escolhas enquanto provavam outras colheradas do pote “escolhido”. Os potes tinham sido manipulados, de modo que os sujeitos elogiaram de modo efusivo a geleia que antes haviam rejeitado. Um experimento similar foi feito com chá. Atualmente, os pesquisadores começaram a examinar a cegueira para a escolha no âmbito das opiniões morais e políticas. Usando uma nova ferramenta – um “questionário mágico” –, eles conseguiram manipular as respostas das pessoas a perguntas apresentadas sob a forma de uma pesquisa. Pediu-se aos participantes que classificassem até que ponto concordavam com determinada afirmação moral – por exemplo: “É repreensível, em termos morais, pagar por serviços sexuais, mesmo em sociedades democráticas em que a prostituição é legal e regulamentada pelo governo” – e, em seguida, pediu-se que explicassem por que concordavam ou não com essa afirmação. Mais uma vez, os resultados mostraram que a maioria dos participantes ficou cega para as mudanças introduzidas e que é frequente as pessoas construírem argumentos complexos para sustentar uma opinião inversa à sua posição inicial. Esses estudos nos ajudam a compreender como racionalizamos muitas de nossas decisões. A questão não é tanto a natureza do processo decisório, mas das repercussões das decisões que afetam nossa vida. A CEGUEIRA PARA A ESCOLHA COMO UM ESTILO DE VIDA A cegueira para a escolha pode ser devastadora na vida cotidiana. Você já foi vítima daquele tipo de propaganda enganosa em que acredita estar comprando uma coisa mas chega em casa com outra? Se você de fato tivesse livre-arbítrio, a propaganda e a conversa dos vendedores não surtiriam qualquer efeito. Por exemplo, quando Steve era pesquisador pós-doutoral e dividia o tempo entre dois laboratórios, ele precisava de um carro para circular entre a Faculdade de Medicina de Harvard, em Boston, e o Laboratório de Cold Spring Harbor, em Long Island. Assim, comprou um Dodge Intrepid ES preto, novo e reluzente, com teto solar, assentos reguláveis com revestimento de couro, rodas especiais, sistema de som Infiniti e controles automáticos de temperatura. Era um automóvel caro para o salário dele e foi um dreno em seus recursos, mas Steve racionalizou sua decisão, dizendo tratar-se de um carro incrivelmente seguro, com air bags laterais (que eram uma novidade, na época), controle de tração, sistema de freios automáticos e outros itens avançados de segurança. Afinal, os longos trajetos entre Massachusetts e Nova York exigiam uma medida adicional de segurança, certo? É claro que sim. A decisão de Steve nada teve a ver com ele achar que as garotas gostam de carros chiques. Para sermos justos, ele realmente foi à revendedora de automóveis com uma lista de itens de segurança desejados. Chegou ao estacionamento movido por um forte senso de responsabilidade. O vendedor deu uma espiada na lista, percebeu que os modelos mais caros eram os únicos que vinham de fábrica com as características que ele queria e, em “Eles são bem-dotados”, disse González-Garcés aos repórteres. Deu um sorrisinho e se corrigiu: “Estão bem-dotados em termos de recursos materiais.” Mas então se deu conta de ter piorado a situação e deu um sorriso ainda maior, que procurou reprimir. O pobre sujeito tentou esconder o rosto, baixando os olhos e virando de lado para a fileira de microfones. “Aliás, este ano foi feito um investimento concreto…” – e neste momento já dava risadas francas, pontuadas por risinhos. “Eu o fiz sem querer”, disse, e começou a balançar de um lado para outro, como que para evitar urinar nas calças. A essa altura, sua equipe ria com ele. “Não foi premeditado”, garantiu aos jornalistas. González-Garcés recuperou momentaneamente o controle, mas tornou a perdê-lo, enquanto se ouviam gargalhadas dos repórteres ao fundo. “Bem, vamos ver”, disse ele, antes de mais uma tentativa fracassada de prender o riso. Agora, já enxugava as lágrimas dos olhos. “Nunca… isso nunca me aconteceu.” Tornou a enxugar os olhos e tentou seguir em frente. “Bom, a questão é que… comprou-se um caminhão específico…”, porém não conseguiu evitar outra gargalhada, “…para a parte antiga da cidade.” E recomeçou a gargalhar. “Ai, ai, ai”, disse, fungando, pois o nariz já começava a escorrer, e de novo não conseguiu reprimir o riso. Como uma marionete em uma corda, o político se jogou no encosto da cadeira em uma convulsão de riso. “Isso parece infantil… é um acesso de riso.” Deu uma bufadela, enxugando os dois olhos. “Ai, ai, ai. Perdoem-me.” Pigarreou, aproximou a cadeira da mesa, fungou, tornou a pigarrear e abafou as gargalhadas. “Bem, vocês têm aqui o número de veículos…”, começou, mas ainda estava totalmente fora de controle. Atirou-se de novo no encosto da cadeira, rindo sem parar. “Não dá para explicar mais”, disse, rendendo-se. “Se vocês quiserem fazer alguma pergunta sobre a dotação dos bombeiros”, acrescentou, entre gargalhadas, “o homem responsável pelo assunto poderá respondê-las.”7 O riso descontrolado do político não foi um reflexo, que, por definição, é um processo que ocorre na rota mais curta possível por determinado trajeto neural. Quando o médico bate no joelho do paciente com um martelo e a perna se sacode, isso é um reflexo. Não há necessidade do cérebro. O riso, por outro lado, envolve uma série sumamente complexa de atos afetivos, cognitivos e motores que o indivíduo pensa poder controlar. Sempre temos a opção de não rir quando não queremos, certo? Temos o controle de nosso corpo e nosso comportamento, certo? Errado. Esse exemplo do pobre sujeito que riu tanto que quase se urinou nas calças na televisão mostra que, embora tenhamos a sensação de exercer o controle, na verdade, só fazemos ir na onda. Um colega nosso, John-Dylan Haynes, do Instituto Max Planck, em Berlim, Alemanha, reproduziu recentemente o trabalho de Libet, mas usando a ressonância magnética funcional. Ele queria ver o que acontece no cérebro quando as pessoas fazem escolhas conscientes. Se você participasse do estudo, se deitaria em um aparelho de ressonância magnética e Haynes lhe diria que você poderia apertar um botão com a mão direita ou com a esquerda. Você teria a liberdade de tomar essa decisão quando quisesse, mas precisaria se lembrar do momento em que tivera a sensação de haver se decidido. Os pesquisadores usaram um sofisticado programa de computador, elaborado para reconhecer padrões típicos de atividade cerebral anteriores a cada uma das duas escolhas. Haynes fixou perplexo ao constatar que certos sinais cerebrais – minúsculos padrões de atividade nos lobos frontais – preveem a decisão do indivíduo (isto é, se ele apertará o botão com a mão esquerda ou com a direita) até sete segundos antes de ele fazer a escolha consciente. Isso significa que, às vezes, partes de nosso cérebro podem saber que escolhas faremos vários segundos antes de nos apercebermos delas de modo consciente. Como essas áreas cerebrais claramente entram em ação, com informações indicativas da escolha que o sujeito está prestes a fazer, bem antes do momento em que ele tem a sensação consciente de ter tomado uma decisão, parece provável que essas áreas cerebrais sirvam para influenciar a decisão iminente. Você pode ter a convicção de que sua decisão foi uma escolha livre e franca, mas isso simplesmente não é verdade. Se seus atos são determinados pela atividade neural prévia que ocorre em seu cérebro de forma inconsciente segundos antes de você tomar uma decisão conscientemente, será que você tem escolha em alguma coisa? Será que é responsável pelo que faz? No livro The Illusion of Conscious Will [“A ilusão da vontade consciente”], Daniel Wegner, um psicólogo de Harvard, aprofunda-se nessas questões, comparando a ilusão do livre-arbítrio com a percepção da mágica. Discernimos a mágica, diz ele, quando uma sequência causal aparente (o mágico serrando sua assistente ao meio) obscurece uma sequência causal real (a caixa é preparada, de maneira que a lâmina da serra não toca a assistente em momento algum). Não percebemos a coisa real, muito embora a sequência aparente viole o bom senso e saibamos que é impossível. Wegner afirma que o “eu” é mágico nesse mesmo sentido: “Quando olhamos para nós, percebemos uma sequência causal aparente que é simples e muitas vezes espantosa – pensei em tal coisa e ela aconteceu –, ao passo que a sequência causal real subjacente a nosso comportamento é complexa, multiprogramada e desconhecida por nós enquanto acontece.” Wegner se pergunta de que modo as pessoas desenvolvem esse senso mágico, aquilo a que o filósofo Daniel Dennett chama “um amontoado concentrado interno de peculiaridades”. Por que vivenciamos nossos atos como fruto da vontade livre, misteriosamente surgidos do eu? E também por que resistimos às tentativas de explicar esses atos em termos de sequências causais reais, de eventos que se passam atrás da cortina da mente? Temos a impressão de ser dotados de livre-arbítrio por termos pensamentos e desejos independentes, sobre os quais nosso corpo age com exatidão. Nossos cérebros são máquinas de correlacionar, como nos provam repetidamente os mágicos ao nos apresentar eventos causais impossíveis. Por termos a capacidade de ligar causa e efeito, não há uma pressão evolutiva para desenvolvermos as vias sensoriais necessárias para rastrear cada informação que nos flui pelo cérebro. Lembre-se de que os nossos recursos neurais são limitados e de que não podemos prestar atenção a tudo que há em nosso campo visual. Bem, esse limite da atenção seria ainda mais lamentavelmente deficiente se também tivéssemos que atentar para cada pequeno processo isolado no cérebro. Você quer mesmo conhecer cada pequeno detalhe das informações que os neurônios de seu córtex préfrontal enviam ao córtex motor primário para que você estenda a mão e pegue um copo d’água? Basta dizer que, quando tenho sede, meu braço consegue alcançar um copo d’água e levá-lo à boca. Concluímos que é o nosso livre-arbítrio que orienta essa ação, por não termos falado com mais ninguém sobre nossos desejos internos. Wegner concebeu um experimento para ver se poderia preparar pessoas para vivenciarem pensamentos compatíveis com um evento não causado por elas e se poderia convencê-las de que elas o tinham causado. Retroceda o relógio e finja que você é um participante. Pedem-lhe para ajudar em um estudo sobre as influências psicossomáticas na saúde. Sua tarefa é fazer o papel de um curandeiro que faz um feitiço contra outro participante, uma vítima, espetando alfinetes em um boneco. Na realidade, essa pessoa é uma associada do estudo (trabalha para Wegner). Não muito depois de você espetar os alfinetes no corpo do boneco que a representa, ela finge estar com dor de cabeça. Você acreditaria que causou essa dor? Muitos participantes do estudo acreditaram que sim. Além disso, quando a “vítima” agia de maneira antipática, o nível de pensamento mágico do curandeiro aumentava. Mas, na realidade, não foi causado prejuízo algum. Essa presteza para estabelecer correlações ilustra os processos gerais pelos quais as pessoas sucumbem à crença no paranormal, sobretudo na clarividência, na precognição e na psicocinese, diz Wegner. O corpo responde sem esforço aos nossos desejos, e assistimos ao resultado como uma correlação entre esses desejos e a reação corporal. Assim, não é muito absurdo desejarmos o improvável e, quando ele acontece, acreditarmos que o causamos com nossas esperanças e orações. Por estarmos tão habituados a conseguir o que queremos na vida (por exemplo, pôr um pé à frente do outro ao andar), não conseguimos deixar de desejar o que é fisicamente proibido. Talvez uma exceção tenham sido os antigos gregos, que acreditavam que cada uma de suas motivações e sentimentos lhes eram concedidos por um deus. Chuck Palahniuk, romancista norte-americano, explica: “Apolo lhes dizia para serem corajosos. Atena mandava que se apaixonassem. Agora, as pessoas ouvem um comercial de batatas fritas com sabor de creme azedo e vão correndo comprá-las, mas chamam isso de livre- arbítrio. Os antigos gregos ao menos eram sinceros.” Você pode provar para si próprio com bastante facilidade que o universo não acede a todos os seus caprichos. Deseje tocar um estudo de Chopin ao piano sem nunca ter tido uma aula. Isso certamente não acontecerá. Mas Wegner explica por que, mesmo assim, exageramos a nossa propensão para tomar desejos por realidades: “Se nossos desejos parecem instigar uma gama de atividades em nossa esfera pessoal de influência, por que não ter a esperança de algo mais? Muitas formas de crenças sobrenaturais, inclusive a crença na oração, podem se desenvolver como um passo natural para além da magia que percebemos em nós mesmos. Se o mero desejo pode tirar a tampa de uma garrafa de cerveja, por que não desejar a Lua?” Dois outros efeitos psicológicos influenciam a ilusão do livre-arbítrio. No efeito de prioridade, nosso senso de atuação parece causal quando a ideia de um ato ocorre imediatamente antes da ação. Por exemplo, você pode ser levado a vivenciar os movimentos dos braços de outra pessoa como se fossem seus. Em nossa opinião profissional, como neurobiologistas, podemos dizer que esse efeito é absolutamente bizarro. Imagine-se envolto em um roupão, com os braços caídos junto ao corpo. Um ajudante para atrás de você e enfia os braços nas mangas. Ele usa luvas. Através de um fone de ouvido, você ouve instruções sobre como movimentar os braços. Quando o ajudante executa os movimentos, você tem a sensação de controlar os braços dele. É uma ilusão de ação. Alguém já lhe telefonou no exato momento em que você pensava nele? É uma coincidência, mas você tem a sensação de ser o autor da ação. Mas, afinal, todo sentimento de livre-arbítrio que você tem é uma ilusão de ação. No efeito de exclusividade, você percebe seus pensamentos como a causa de acontecimentos para os quais não há outras explicações plausíveis. No entanto, pode haver razões para escolhas das quais você não tem consciência. Wegner oferece um belo exemplo. Digamos que você está em um restaurante e a pessoa a seu lado pede o prato especial de camarão. Você estava prestes a fazer esse pedido, mas, espere, talvez pareça que está imitando essa pessoa. Assim, você modifica seu pedido, para não parecer influenciado por terceiros. Acha que está escolhendo por vontade própria e livremente, mas não é verdade. O fato de você poder ser influenciado a respeito de algo tão banal quanto um prato de camarão mostra que o seu livre-arbítrio é uma ilusão frágil. Na verdade, nenhuma ideia é uma ilha. Wegner diz que temos apenas o pensamento consciente e a percepção consciente para explicar nossos atos post hoc. Podemos crer que eles estão ligados ao livre-arbítrio, porém, ao fazê-lo, damos um salto mental sobre o poder demonstrável do inconsciente que guia nossos atos e concluímos que a mente consciente é o único ator. Nossos pensamentos conscientes fornecem meramente uma lógica para explicar o que acabamos de fazer, que foi motivado de maneira muito deliberada e pouco livre pelo cérebro inconsciente. Será que podemos quebrar esse encanto? Há quem tema que, se provarmos que o livre-arbítrio é uma ilusão surgida da carne, o espírito humano morrerá. No entanto, é improvável que ocorra essa mudança no pensamento popular. A ubiquidade da percepção da ação consciente na vida cotidiana é o bastante para reprimir o ceticismo íntimo que nos diz que nossos comportamentos são causados por mecanismos cerebrais, e não por nosso livre-arbítrio. A ilusão do eu mágico não é fácil de eliminar. Além disso, muitos filósofos e cientistas afirmam que a vontade consciente pode ser uma ilusão, mas a ação moral responsável é muito real. PODE UMA MÁQUINA LER SEUS PENSAMENTOS? Será que uma máquina pode ler seus pensamentos? E teriam os cientistas a capacidade de ler o conteúdo de sua mente por meio das imagens da ressonância magnética funcional? A resposta depende do que se queira dizer com “pensamentos”. A ressonância magnética funcional, ou RMf, avançou muito desde a sua invenção, no começo da década de 1990. Em síntese, a técnica mede a atividade cerebral pelo rastreamento do aumento do fluxo sanguíneo, pois a ideia é que as regiões ativas do cérebro usarão mais energia e “se acenderão” no escâner. Nos primórdios das pesquisas com a RMf, os cientistas localizaram regiões que se especializam em coisas como nossos processos sensoriais básicos, a fala, a leitura ou a experiência de emoções fortes. Mais recentemente, descobriram áreas especializadas no reconhecimento de rostos ou lugares. Mas será que esses aparelhos revelam o que estamos pensando? Na Unidade de Ciências da Cognição e do Cérebro do Conselho de Pesquisas Médicas, em Cambridge, na Inglaterra, os cientistas estão usando uma nova técnica de computação, chamada análise multivariada, para prever os pensamentos do indivíduo com base em padrões observados de atividade. Se você estivesse no aparelho deles, talvez lhe pedissem que se imaginasse jogando tênis e, em seguida, andando pelos cômodos de sua casa. Com base nos padrões observados, eles poderiam dizer em qual dessas atividades você estava pensando. Até o momento, esses estudos são bastante restritos. Apenas um punhado de estados mentais foi correlacionado a padrões cerebrais, que constituem medidas ruidosas e indiretas de atividade neural. Por exemplo, você poderia se imaginar jogando futebol e andando no seu escritório e o aparelho não saberia a diferença. Portanto, os pesquisadores não podem fazer uma leitura exata do pensamento – não sabem dizer se você está pensando em um hipopótamo, recitando em silêncio o discurso de Gettysburg ou pensando no que comerá hoje no jantar. Ler pensamentos continua sendo ficção científica. 1 Ver http://illusionoftheyear.com. 2 A comunidade do ilusionismo se divide entre mágicos que afirmam ter poderes paranormais (declaram de forma explícita suas habilidades sobrenaturais como parte de suas apresentações, ou levam implicitamente os espectadores a essa conclusão) e os que não fazem nenhuma afirmação desse tipo. Como não é de surpreender, essas duas tradições de ilusionistas não se entendem. Os mágicos apresentados neste livro são firmes defensores da tradição da não declaração de poderes paranormais e admitem fazer “truques” em seus números. 3 Para o que virá a seguir, é importante saber que engodo, trapaça, burla etc. é deception na língua inglesa. (N.T.) 4 Em inglês, o nome do país é Dominican Republic. (N.T.) 5 É comum ouvirmos os mágicos designarem o substantivo do verbo forçar como force, quando, a rigor, force deveria traduzir-se por forçação. E vale lembrar que, na língua inglesa, essa também é a palavra correspondente a força. (N.T.) 6 Não podemos descrever exatamente como foi feito porque Mead nos pediu que não revelássemos seus segredos. Mas com certeza foi um truque. 7 Ver http://sleightsofmind.com/media/laughattack. Teller confia no despistamento e na agilidade manual para criar uma ilusão chamada de “sonho do avarento”. (Fotografias © Misha Gravenor) Teller diz que a primeira moeda faz surgir uma pergunta na cabeça: de onde ela veio? Após quatro moedas, você acha que sabe. Ele só pode estar empalmando-as na mão direita. É nesse momento que Teller revela que a mão direita está completamente vazia, a não ser por uma única moeda, presa entre o polegar e o indicador. Você conclui que não há moedas ocultas. Mas espere. Ele continua a jogá-las no balde, tlim, tlim, só que agora elas vêm da mão esquerda. – Toda vez que vocês pensam que sabem o que está acontecendo, eu mudo o método – disse ele. Cada moeda é uma nova pequena explosão de visão e som – você a vê e a ouve, e tudo acontece tão depressa que se deixa enganar. Você pensa que toda repetição é real. FIM DO ALERTA DE SPOILER Teller prosseguiu: – A inclinação natural de vocês, como observadores, é presumir que o que estou fazendo é a mesma coisa, uma vez após a outra. Presumimos que uma repetição é uma repetição [mesmo] quando ela não o é. Todos inferimos causa e efeito na vida cotidiana. Quando A precede B, concluímos que A causa B. O mágico habilidoso se aproveita dessa inferência, certificando-se de que A (a jogada falsa da moeda) sempre preceda B (um tinido alto). Na verdade, porém, A não causa B. A apresentação do sonho do avarento feita por Teller revela a compulsão humana por descobrir padrões no mundo e os impor, mesmo quando eles não existem de fato. O mágico se utiliza desse instinto de inferir relações de causa e efeito. Isso se assemelha ao modo como os mágicos usam nossas expectativas contra nós (como discutimos no Capítulo 8). Aqui, no entanto, estamos falando de como os mágicos nos fazem ver correlações que não existem de verdade. Eles se apropriam de nossa poderosa capacidade de identificar padrões no mundo natural e nos induzem a extrair correlações, de maneira errônea, entre o inesperado, o ridículo e o absurdo. Depois, jogam nossos processos cognitivos no chão enquanto nos debatemos com as contradições que nossas mentes inventaram. Como você viu no incidente do tabuleiro Ouija, esse é o efeito da correlação ilusória. Na maioria das situações, nosso instinto inato de inferir relações de causa e efeito nos é muito útil. Você quer um ovo? Procure em um ninho de pássaro. Há nuvens escuras se acumulando no céu? É provável que chova, vá procurar abrigo. Até aí, tudo bem, mas a inferência causal é uma faculdade sumamente imperfeita e eminentemente falível. Erra o tempo todo e nos leva a acreditar em toda sorte de coisas. A correlação ilusória está na raiz do motivo por que algumas pessoas acreditam, sinceramente e com toda a boa-fé, que têm poderes mediúnicos. O telefone toca e, naquele exato momento, você estava pensando na pessoa que ligou. Você se senta diante do computador para enviar um e-mail para um amigo e descobre que ele acabou de lhe escrever sobre o mesmo assunto. Talvez você conheça alguém que acredite ter previsto o futuro em um sonho – um desastre de avião, digamos. Mas o que ele não lhe conta é que tem premonições sobre desastres de avião várias vezes por semana. Tende a não notar ou a não se lembrar dessas falsas previsões, mas aquela que coincide com um acidente de verdade dispara sinetas desvairadas de alerta no cérebro dele. Seu detector mental de correlações grita Certo! Verdadeiro! Válido! Em casos extremos, a correlação ilusória pode levar a convicções extraordinárias, como a antiga teoria asteca de que era preciso fazer um sacrifício humano todas as manhãs para que o sol nascesse. Pode parecer macabro, e é fácil de condenar em retrospectiva, mas funcionava todas as manhãs, conforme anunciado. Na segunda temporada do seriado de televisão Lost, os sobreviventes do desastre aéreo presos em uma ilha tinham de apertar um misterioso botão a cada 108 minutos para “salvar o mundo” (impedir a ocorrência de um evento catastrófico em escala mundial). Como o fim do mundo ainda não chegou, o botão deve estar funcionando. Contudo, ninguém jamais deixa de apertá-lo para descobrir ao certo. Um efeito semelhante no cérebro é chamado de viés de disponibilidade. Essa ilusão, causada por uma falha da memória, surge com frequência na vida cotidiana. Por exemplo, segundo Steve, “Eu troco muuuito mais as fraldas do nosso bebê do que Susana. Evidentemente, porque ela é mais preguiçosa que eu”. O intrigante é que Susana pensa exatamente o inverso. Acha que troca as fraldas do Brais mais do que Steve. A verdade é que nós dois estamos errados. Trocamos as fraldas do Brais com uma frequência mais ou menos igual. Em nossa mente, porém, nossas contribuições e sacrifícios são ampliados pelo fato de nos lembrarmos melhor de nossos atos do que dos de outras pessoas. De modo incorreto, traçamos correlações mais fortes entre os fatos de que nos recordamos do que entre os fatos fornecidos por terceiros. Os mágicos têm plena ciência dessas pequenas fraquezas do cérebro e as exploram como um rato de laboratório apertando uma alavanca que libera cocaína. “Grande parte da nossa vida é dedicada à compreensão de causa e efeito”, diz Teller. “O ilusionismo proporciona um parque de diversões para essas habilidades racionais. Ele é a vinculação de uma causa a um efeito que não tem base na realidade física, mas que, no fundo, achamos que tem que ter. É muito parecido com uma piada. Há uma progressão lógica, mesmo que absurda. Quando se chega ao clímax de um truque, há uma pequena explosão de prazer que dá calafrios, no instante em que aquilo que vemos se choca com o que sabemos da realidade física.” Essa “pequena explosão de prazer que dá calafrios” pode ser estudada em laboratório. Em 2009, uma equipe de neurocientistas cognitivos, chefiada por Ben A. Parris e Gustav Kuhn, das universidades de Exeter e Durham, na Inglaterra, usou truques de mágica para investigar os correlatos neurais de relações causais gravadas no cérebro pela experiência. No estudo, eles assinalaram que o mágico confunde a cabeça do observador quando põe uma moeda na mão direita, fecha-a, abana a mão esquerda sobre o punho fechado e em seguida abre lentamente a mão direita. A moeda, que você sabe que ainda devia estar lá, desapareceu. Seu sistema implícito de conhecimento de causa e efeito lhe diz que as moedas não podem desaparecer assim. Então, o que acontece no cérebro das pessoas que assistem a truques desse tipo? Para descobrir a resposta, os pesquisadores escanearam o cérebro de 25 pessoas, usando a ressonância magnética funcional, enquanto elas assistiam a videoclipes de vários truques de mágica e a duas situações de controle estreitamente correlatas. Por exemplo, o truque podia ser como o que acabamos de mencionar: moeda na mão, mão fechada, aceno da outra mão, abertura da mão em que a moeda foi vista pela última vez, desaparecimento da moeda. A situação de controle seria: moeda na mão, mão fechada, aceno da outra mão, abertura da mão em que a moeda foi vista pela última vez, moeda ainda presente nela. Uma situação de surpresa seria: moeda na mão, mão fechada, mão aberta, mágico mostra a moeda na boca. A principal descoberta foi que duas regiões cerebrais cujos nomes parecem palavrões – córtex pré-frontal dorsolateral (CPFDL) e córtex cingulado anterior esquerdo (CCAE) – se acendiam quando as pessoas assistiam aos truques de mágica. As pesquisas mostraram que uma dessas áreas, o CCAE, identifica o conflito, ao passo que a outra, CPFDL, tenta resolver conflitos – exatamente o que se esperaria ao ser violada uma relação de causa e efeito. Na situação de surpresa, a área identificadora de conflitos, CCAE, acende-se junto com outra região do córtex pré-frontal, chamada faixa ventrolateral, que se constatou registrar a surpresa. Na situação simples de controle, nenhuma dessas áreas exibiu um aumento de atividade. Os pesquisadores concluíram que nossa capacidade de identificar informações que contradizem ou questionam nossas crenças estabelecidas é crucial para aprendermos coisas sobre o mundo. O circuito que se iluminou parece desempenhar uma função importante na neurobiologia da incredulidade. Carolina, irmã de Susana, já crescida e transformada em uma beldade esguia de cabelos castanhos, é supervisora de crupiês no cassino de León, na Espanha. Ela já viu um sem-número de clientes cujo pensamento é dominado por uma ilusão cognitiva peculiar, que é adorada por mágicos e charlatães do mundo inteiro: a falácia do jogador. “É comum os clientes perguntarem quanto tempo faz desde a última vez que deu o número 20”, diz Carolina. “Bem, como crupiês, nós ficamos de olho em cada giro da roleta, e, como não há nenhuma regra contra isso, respondemos com veracidade: faz 96 bolas.” E por que isso seria contra as regras? É benéfico para a casa que os clientes sejam levados pela ilusão de que conhecer o passado os ajudará a prever o futuro. Carolina explicou que as roletas modernas são equipadas com contadores que, de maneira conveniente, fornecem vários dados estatísticos “em benefício” dos jogadores, como os números correspondentes às últimas quinze bolas, a percentagem de números pretos versus vermelhos, os números “quentes” ou mais frequentes, ou as dúzias mais frequentes (números de 1 a 12, 13 a 24 ou 25 a 36). É claro que nenhum desses dados estatísticos altera o fato de que a bola tem exatamente uma chance em 36 de cair em determinado número na próxima rodada.2 Não é à toa que Carolina, assim como muitos crupiês, não joga. A falácia do jogador é a crença equivocada de que a probabilidade de um evento aumenta quando se passa um longo período desde que ele ocorreu pela última vez. Quando se está em um período de seca, parece mais provável que deva chover amanhã. Se você e seu cônjuge tiveram quatro filhas em sucessão, parece provável que tenham um menino da próxima vez. E, se o sujeito é jogador e faz muito tempo desde que a bola caiu no número 20 da roleta, a probabilidade de um 20 iminente parece alta. Um dos exemplos mais memoráveis da falácia do jogador ocorreu no suntuoso cassino de Monte Carlo, em 1913. Jogadores vestidos com elegância viram a bola cair no preto 26 vezes seguidas. Com empolgação crescente, alguns clientes começaram a apostar no vermelho. Ele simplesmente tinha que sair da próxima vez. A roleta era aleatória, é claro, mas tinha que “se corrigir”, certo? Errado. Todos sucumbimos à superstição de que, quando observamos um processo aleatório com um desvio, é lógico que o desequilíbrio terá que se desfazer. Por exemplo, pergunte a si mesmo: se você jogar uma moeda sete vezes, qual será o resultado mais provável – cara, cara, cara, cara, cara, cara e cara? Ou coroa, coroa, coroa, coroa, coroa, coroa e coroa? Ou cara, coroa, coroa, cara, coroa, cara e cara? Resposta: é tudo a mesma coisa. Todo lance é independente. A moeda não tem memória. Se você jogar vinte coroas, a probabilidade de tirar outra coroa é de uma em duas. Você pode escolher os mesmos números da loteria todas as vezes, ou mudá-los em todas as apostas, mas, de um modo ou de outro, terá a mesma probabilidade de acertar um sorteio. Você poderia usar os números que saíram na véspera e ter a mesma probabilidade de ganhar. O universo não guarda uma recordação de resultados passados que favoreçam ou desfavoreçam resultados futuros. DUAS CABRAS E UM CARRO Em setembro de 1990, a coluna de conselhos “Ask Marilyn”, da revista Parade, publicou o quebra-cabeça a seguir. Digamos que você está em um programa de disputa de prêmios e lhe oferecem uma escolha entre três portas. Atrás de uma delas há um carro; atrás das outras, cabras. Você escolhe uma porta – a número 1, digamos –, e o apresentador, que sabe o que está atrás de todas elas, abre outra porta – digamos, a número 3 –, que ele sabe esconder uma cabra. Você olha para a cabra e ele lhe diz: “Quer continuar com a porta número 1 ou trocar pela número 2?” O que você deve fazer? Será vantajoso alterar sua escolha? Esse quebra-cabeça, conhecido como o problema de Monty Hall, graças ao nome do apresentador de um programa televisivo popular nos Estados Unidos chamado Let’s Make a Deal [“Vamos fazer um trato”], testa a sua capacidade de avaliar probabilidades. Você não sabe qual das duas portas restantes esconde o prêmio e em função disso talvez pense: ei, a chance é meio a meio. Vem a sensação de que é bom ficar com a porta número 1. Mas você estaria errado. De acordo com os especialistas em probabilidade, você sempre deve trocar. Escolher a porta número 2 duplica a probabilidade de tirar o carro, fazendo-a passar de 1/3 para 2/3. O problema de Monty Hall surge porque o candidato acredita, corretamente, que há uma chance em três de escolher a porta do carro na escolha inicial. Mas, em seguida, o apresentador retira uma porta com uma cabra das duas restantes. Ora, se o candidato tivesse realmente escolhido a porta do carro na rodada inicial (uma probabilidade de um em três), a porta restante teria uma cabra. Mas, se ele tivesse escolhido uma porta com uma cabra na rodada inicial (uma probabilidade de dois em três), a porta restante conteria o carro. Portanto, é duas vezes maior a probabilidade de que sua escolha original tenha sido uma cabra e não o carro, e, como é certo que uma das portas restantes tem que esconder o carro, é sempre de interesse do candidato fazer a troca.
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