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Guias e Dicas
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Tupi, Tapuias e Historiadores - John MONTEIRO , Notas de estudo de História

Sobre índios e a história

Tipologia: Notas de estudo

2011
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Compartilhado em 23/12/2011

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Baixe Tupi, Tapuias e Historiadores - John MONTEIRO e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! TUPIS, TAPUIAS E HISTORIADORES Estudos de História Indígena e do Indigenismo John M. Monteiro Departamento de Antropologia IFCH-Unicamp Tese Apresentada para o Concurso de Livre Docência Área de Etnologia, Subárea História Indígena e do Indigenismo Disciplinas HZ762 e HS119 Campinas, agosto de 2001 SUMÁRIO Introdução Redescobrindo os Índios da América Portuguesa: Incursões pela História Indígena e do Indigenismo .................................1 Capítulo 1 As “Castas de Gentio” na América Portuguesa Quinhentista: Unidade, Diversidade e a Invenção dos Índios no Brasil........................12 Capítulo 2 A Língua Mais Usada na Costa do Brasil: Gramáticas, Vocabulários e Catecismos em Línguas Nativas na América Portuguesa ................................................36 Capítulo 3 Entre o Etnocídio e a Etnogênese: Identidades Indígenas Coloniais ..............................................................53 Capítulo 4 Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios: Sal, Justiça Social e Autoridade Régia no Início do Século XVIII ........................................................................79 Capítulo 5 Os Caminhos da Memória: Paulistas e Índios no Códice Costa Matoso .............................................97 Capítulo 6 A Memória das Aldeias de São Paulo: Índios, Paulistas e Portugueses em Arouche e Machado de Oliveira .......................................................112 Capítulo 7 Entre o Gabinete e o Sertão: Projetos Civilizatórios, Inclusão e Exclusão dos Índios no Brasil Imperial ..............................................129 Capítulo 8 As “Raças” Indígenas no Pensamento Brasileiro do Império.............................................................................170 Capítulo 9 Tupis, Tapuias e a História de São Paulo: Revisitando a Velha Questão Guaianá ..................................................180 Capítulo 10 Raças de Gigantes: Mestiçagem e Mitografia no Brasil e na Índia Portuguesa ..................194 Referências Citadas .......................................................................................................217 Redescobrindo os Índios da América Portuguesa 3 infância não há história: há só etnografia” (Varnhagen, 1980 [1854], 1:30). Esta afirmação ecoava, sem dúvida, algumas visões já francamente em voga no Ocidente do século XIX, que desqualificavam os povos primitivos enquanto participantes de uma história movida cada vez mais pelo avanço da civilização européia e os reduzia a meros objetos da ciência que, quando muito, podiam lançar alguma luz sobre as origens da história da humanidade, como fosséis vivos de uma época muito remota. Varnhagen também tomava como ponto de partida a sugestiva, porém claramente pessimista, postura de Carl Friedrich Philippe von Martius que, poucos anos antes, havia vencido o concurso de “Como Escrever a História do Brasil”, patrocinado pelo recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Parcial às teorias sobre a decadência dos nativos americanos, von Martius considerava os índios como populações que em breve deixariam de existir. O “atual indígena brasileiro”, segundo ele, “não é senão o resíduo de uma muito antiga, posto que perdida história” (Martius, 1982 [1845], 91-92). O pessimismo foi mais contundente num texto anterior, de 1838, sobre “O Estado de Direito entre os Autóctones dos Brasil”. Escreveu von Martius que “não há dúvida: o americano está prestes a desaparecer. Outros povos viverão quando aqueles infelizes do Novo Mundo já dormirem o sono eterno” (Martius, 1982 [1838], 70). Povos sem história e sem futuro: desta feita, instalava-se no bojo dos estudos praticamente fundadores da história do país, uma vertente pessimista com fortes desdobramentos na política indigenista que se esboçava no Império. Cumpre lembrar, entretanto, que não se tratava da única vertente, muito embora fosse a tendência dominante. De fato, os índios foram objeto de um intenso debate que atravessou o século XIX, antepondo a postura de Varnhagen a uma vertente mais filantrópico, inspirada sobretudo em José Bonifácio. Se a tensão entre aqueles que promoviam a assimilação e os que patrocinavam a exclusão dos índios remetia aos conflitos que brotaram entre agentes coloniais já no século XVI, foi certamente aprofundada pelas mudanças institucionais introduzidas na década de 1840, com a implantação das Diretorias Provinciais e com o apoio imperial ao projeto missionário dos capuchinhos. Fosse nos elegantes recintos das academias e institutos ou no ambiente mais rude dos sertões do Redescobrindo os Índios da América Portuguesa 4 Império, tornaram-se cada vez mais ácidas as disputas entre partidários da “catequese e civilização” e os defensores do afastamento e mesmo extermínio dos índios.4 Mesmo assim, parecem prevalecer entre os historiadores brasileiros ainda hoje duas noções fundamentais que foram estabelecidas pelos pioneiros da historiografia nacional. A primeira diz respeito à exclusão dos índios enquanto legítimos atores históricos: são, antes, do domínio da antropologia, mesmo porque a grande maioria dos historiadores considera que não possui as ferramentas analíticas para se chegar nesses povos ágrafos que, portanto, se mostram pouco visíveis enquanto sujeitos históricos. A segunda noção é mais problemática ainda, por tratar os povos indígenas como populações em vias de desaparecimento. Aliás, é uma abordagem minimamente compreensível, diante do triste registro de guerras, epidemias, massacres e assassinatos atingindo populações nativas ao longo dos últimos 500 anos. Por estes motivos, pelo menos até a década de 1980, a história dos índios no Brasil resumia-se basicamente à crônica de sua extinção. Dois bons exemplos deste tipo de abordagem, misturando um tom de denúncia com a pesquisa em fontes históricas, são os livros de John Hemming (sobretudo Red Gold, de 1978, que permanece a única obra que busca apresentar de modo sistemático a experiência de todas as sociedades indígenas da América portuguesa), e de Carlos Moreira Neto (Índios da Amazônia: de maioria a minoria). Vítimas da terrível onda de destruição desencadeada pela expansão européia, sociedades antes vigorosas e independentes foram radicalmente diminuídas ou simplesmente deixaram de existir e seus rastros foram apagados. Um dos perigos destas abordagens é que investem numa imagem cristalizada – fossilizada, diriam outros – dos índios, seja como habitantes de um passado longínquo ou de uma floresta distante. A esfera da sociabilidade nativa é aquela que está totalmente externa à esfera colonial, em parte porque o recurso da “projeção etnográfica” frequentemente isola a sociedade indígena no tempo e no espaço, mas também porque nas percepções marcadas pela perspectiva de aculturação, os índios assimilados ou 4 Ao comentar esta tensão persistente no pensamento brasileiro sobre a temática indígena, Luís Castro Faria (1993, 68-70), aponta para o interessante paralelo entre a célebre polêmica Varnhagen-João Francisco Lisboa e os desentendimentos posteriores entre proponentes do racismo científico e outras correntes, sobretudo a positivista. O contexto mais global destes debates e suas implicações para a formulação da política e da legislação indigenistas encontra-se esboçado em Manuela Carneiro da Cunha (1992a, 133-154). Redescobrindo os Índios da América Portuguesa 5 integrados à sociedade que os envolve seriam, de alguma maneira, “menos” índios. Trata- se de um processo paralelo à arqueologia brasileira que, por muitos anos, exaltava a antiga “tradição tupi-guarani”, porém desprezava a cerâmica colonial como algo empobrecido técnica e esteticamente pela mistura (Morales, 2000). De certo, a poderosa imagem dos índios como eternos prisioneiros de formações isoladas e primitivas tem dificultado a compreensão dos múltiplos processos de transformação étnica que ajudariam a explicar uma parte considerável da história social e cultural do país. Novos Rumos Este quadro vem mudando graças ao esforço crescente – sobretudo de antropólogos porém também de alguns historiadores, arqueólogos e linguistas – que tem surgido em anos recentes em elaborar aquilo que podemos chamar de uma “nova história indígena”. Deve-se observar, de imediato, que o tema não é nada novo nem para a historiografia, que desde o século XIX enfocou o índio Tupi como matriz da nacionalidade, nem para a etnologia indígena, que construiu uma parte importante de seu edifício nos alicerces colocados por Alfred Métraux e por Florestan Fernandes, que se valeram das fontes escritas nos séculos XVI e XVII para elaborarem sofisticados modelos para as sociedades tupi-guaranis.5 Mas as questões postuladas a partir do final dos anos 1970 introduziram duas inovações importantes, uma prática e outra, teórica. Surgiu, de fato, uma nova vertente de estudos que buscava unir as preocupações teóricas referentes à relação história/antropologia com as demandas cada vez mais militantes de um emergente movimento indígena, que encontrava apoio em largos setores progressistas que renasciam numa frente ampla que encontrava cada vez mais espaço frente a uma ditadura que lentamente se desmaterializava. A reconfiguração da noção dos direitos indígenas enquanto direitos históricos – sobretudo territoriais – estimulou importantes estudos que buscavam nos documentos coloniais os fundamentos históricos e jurídicos das demandas atuais dos índios ou, pelo menos, dos seus defensores. De fato, figuram com certa proeminência entre os primeiros exemplos deste renovado interesse pela história dos índios alguns dossiês e laudos 5 Uma breve discussão das obras antropológicas encontra-se em Viveiros de Castro (1984-85). Redescobrindo os Índios da América Portuguesa 8 segundo, no contexto historiográfico no qual apareceu a sua edição definitiva (meados do século XIX). Introduzido neste capítulo, um primeiro grande tema que perpassa o conjunto de estudos diz respeito à defasagem e aos deslizamentos temporais que marcam as maneiras pelas quais o passado indígena tem sido pensado ao longo dos últimos cinco séculos. O estudo sobre Gabriel Soares sugere que o panorama etnográfico do Brasil no seu marco zero é produto de uma dupla refração: a defasagem entre o período do descobrimento e a produção de conhecimentos sistemáticos, por um lado e, por outro, uma segunda defasagem entre a produção de obras coloniais e sua efetiva publicação e circulação, eventos muitas vezes separados por séculos. Este movimento envolvendo a circulação e a reapropriação de idéias e imagens em momentos muito distintos também marcou a trajetória de um padrão bipolar que condicionou as maneiras de perceber e interpretar o passado indígena, constituindo um segundo grande tema que está no centro de vários capítulos. Inscrito inicialmente no binômio Tapuia/Tupi, este padrão foi reciclado em várias conjunturas distintas, reaparecendo em outros pares de oposição, tais como bravio/manso, bárbaro/policiado ou selvagem/civilizado. Mas essas percepções e interpretações não ficaram apenas nas divagações historiográficas ou nos debates antropológicos em torno da unidade e diversidade dos índios, pois tiveram um impacto profundo sobre a formulação de políticas que afetaram diretamente diferentes populações indígenas. Mais do que isso, também foram recicladas e reapropriadas entre alguns segmentos indígenas, o que torna esta história mais complicada ainda. O Capitulo 2, ao abordar as obras jesuíticas em línguas nativas, aprofunda a noção de que a construção de modelos para compreender o universo indígena está intrinsecamente ligada aos processos e às experiências coloniais, bem como à interpretação desses processos e experiências no período pós-colonial. O terceiro capítulo também avança nessa direção, fornecendo alguns subsídios para caracterizar melhor os índios sob o domínio colonial. Este é o capítulo que mais se aproxima à “história indígena” no sentido mais estrito da expressão, ao problematizar a produção das identidades nas manifestações e práticas sociais registradas na documentação colonial. Mas o passado indígena também alimentou, de modo muito particular, a formação de outras identidades coloniais e as maneiras pelas quais se reconstituiu essas identidades Redescobrindo os Índios da América Portuguesa 9 em tempos posteriores. Os Capítulos 4, 5 e 6 exploram a construção de uma identidade paulista em três momentos diferentes. O estudo sobre o famoso régulo Bartolomeu Fernandes de Faria e seus capangas indígenas e mestiços permite adentrar o universo violento e ambíguo dos paulistas numa conjuntura de mudanças marcantes, diante de uma escravidão indígena que desmaterializava e de uma autoridade externa que se mostrava cada vez mais próxima. Em relação aos índios, os paulistas demarcavam a sua identidade pela dominação característica do mando senhorial. Paradoxalmente, recorriam a marcadores indígenas para estabelecer a distinção entre eles e os colonos de outras regiões e, sobretudo, dos portugueses: isso se manifestava não apenas por meio do uso da língua geral, como também nos conteúdos simbólicos dos ataques à autoridade da coroa e dos assassinatos praticados e apurados numa longa investigação criminal. Já o Capítulo 5 enfoca esta mesma época do início do século XVIII através das lentes da memória, comentando a extraordinária “Coleção das Notícias dos Primeiros Descobrimentos das Minas na América”, compilada pelo ouvidor-intelectual Caetano da Costa Matoso em 1752. Nesse documento, vários povoadores antigos rememoram os velhos bons tempos nos quais os paulistas se aventuravam pelos sertões e fornecem preciosos indícios para a compreensão dos jogos de identidade que ora distanciavam, ora aproximavam os paulistas de suas origens indígenas. No Capítulo 6, estas questões são recontextualizadas por meio das obras indigenistas de José Arouche de Toledo Rendon e José Joaquim Machado de Oliveira que, em suas respectivas propostas voltadas para a definição de novas diretrizes para a política indigenista, lançaram mão de uma análise histórica. Este sexto capítulo, que estabelece uma ponte entre a Colônia e o Império, introduz um outro conjunto de questões que marcam os capítulos subsequentes. A mais importante destas diz respeito à relação entre as interpretações históricas que ganharam fôlego no decorrer do século XIX e as políticas referentes aos índios ensaiadas nas diversas províncias da nova nação. Se o Capítulo 6 enfoca particularmente a Província de São Paulo, o Capítulo 7 expande essa perspectiva para vários outros casos, com uma certa ênfase nas províncias de Minas Gerais e Santa Catarina. Nesse capítulo, busca-se compreender o vai-vem de idéias e experiências entre o gabinete – referência tanto ao gabinete científico quanto ao político – e o sertão, com o intuito de esclarecer como as discussões em torno dos índios durante o Império não só dialogavam explicitamente com Redescobrindo os Índios da América Portuguesa 10 as experiências coloniais como também informariam de maneira significativa a moderna política indigenista a ser implantada já no século XX. A relação entre o sertão e o gabinete também se faz presente nos capítulos 8 e 9, só que introduzindo, para além da história e dos historiadores, a antropologia e os antropólogos. O Capítulo 8 é construído em torno da Exposição Antropológica de 1882, em certo sentido marcada pelo forte contraste entre o Tupi histórico e o Tapuia contemporâneo, papel esse representado exemplarmente pelos Botocudos. No Capítulo 9, este mesmo contraste é estudado para o caso particular de São Paulo nos anos iniciais da República. Ao reinvocar o velho debate sobre se os Guaianás de Piratininga eram Tupis ou Tapuias, o estudo busca mostrar o complexo jogo entre a construção de uma mitografia paulista – na qual os Tupi ocuparam um papel central – e a destruição dos Kaingang nos sertões que se tranformavam rapidamente em cafezais e nas terras “desocupadas” que valorizavam da noite para o dia com a implantação das estradas de ferro. O último capítulo aprofunda a questão das mitografias, confrontando dois autores que elaboraram numerosas obras sobre as remotas origens coloniais de dois conjuntos de população “eugênicos”. Escrevendo na fronteira entre a história e a antropologia – decerto não a mesma fronteira que se reexplora hoje em dia – Alfredo Ellis Jr. em São Paulo e Alberto Carlos Germano da Silva Correia em Goa construíram duas “raças de gigantes” a partir da incorporação ou não de elementos indígenas. Se a parte sobre Alfredo Ellis fecha um ciclo de estudos sobre história e identidade indígenas e paulistas, a incursão pela história da Índia portuguesa marca um novo rumo nas minhas pesquisas, que pretendem recuperar um elo perdido na história da expansão portuguesa, trazendo questões que muito podem nos ensinar sobre o passado brasileiro. Escritos em momentos diferentes e para finalidades distintas, alguns dos capítulos foram publicados em revistas e coletâneas especializadas no país e no exterior. O Capítulo 1 foi publicado apenas em inglês, ao passo que os capítulos 3, 6, 7 e 10 são inéditos. Capítulo 2 fez parte de um catálogo de exposição publicado em Portugal. Os demais apareceram em revistas brasileiras, conforme se detalha no início de cada um deles. Todos eles sofreram revisões, correções e acréscimos – sobretudo na forma de notas de rodapé – inclusive para garantir uma coerência maior entre eles. Também foi Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 13 no que diz respeito a um universo indígena que se apresentava tão vasto e variado quanto incompreensível.3 Este capítulo enfoca os escritos de Gabriel Soares de Sousa em dois momentos distintos: primeiro, dentro do contexto histórico do final do século XVI e, segundo, no contexto historiográfico do século XIX, quando suas descrições detalhadas e suas classificações esquematizadas foram absorvidas na qualidade de fatos etnográficos pelas primeiras gerações de historiadores nacionais. Um dos problemas que isso apresenta reside na tendência dos historiadores projetarem para a data emblemática de 1500 – às vésperas do descobrimento – um retrato da diversidade indígena e das relações interétnicas que na verdade se consolidou mais tarde, já refletindo as profundas transformações que atingiram muitas das sociedades ao longo do litoral. Ainda assim, a semelhança de outras tradições historiográficas nas Américas, tanto os relatos em si quanto a sua interpretação posterior pelos historiadores buscavam estabelecer uma imagem estática de sociedades prístinas, como se não tivessem sido atingidos pelo contato com os europeus. Ademais, esta abordagem tende a elidir o papel de atores e de unidades políticas indígenas em resposta à expansão européia, papel esse que foi de suma importância para a articulação das configurações étnicas que na bibliografia convencional sempre aparecem como povos “originais”, atemporais e imutáveis, pelo menos até que o contato com os europeus levou à sua dilapidação e, em muitos casos , sua destruição por completo. Avanços recentes nos estudos etno-históricos, no entanto, vêm minando estas perspectivas arraigadas desde há muito, introduzindo uma nova conjugação entre pesquisa documental e perspectivas antropológicas para produzir um renovado retrato das respostas ativas e criativas dos atores indígenas que, apesar de todas as forças contrárias, 3 A obra do padre Cardim, Tratados da Terra e da Gente do Brasil, título esse atribuído no século XX, na verdade compreende três textos distintos: Do Clima e Terra do Brasil e de algumas coisas notáveis que se acham na terra como no mar (uma descrição da flora e fauna), Do Princípio e Origem dos Índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias (descrevendo os costumes e a diversidade dos índios), e a Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão Jesuítica (um registro da prolongada viagem do visitador jesuíta Cristóvão de Gouveia pelo Brasil entre 1583 e 1590). Os primeiros dois textos foram publicados em inglês por Samuel Purchas em 1625, porém a autoria foi atribuída erroneamente a um outro jesuíta. Sobre Cardim, ver a introdução e notas de Ana Maria de Azevedo à edição mais recente (Cardim, 1997 [1583- 90]), bem como o excelente estudo de Charlotte de Castelnau-L’Estoile (2000). Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 14 conseguiram forjar espaços significativos na história colonial, de modo que não é mais admissível omiti-los do registro histórico.4 Gabriel Soares de Sousa, Etnógrafo Em 1587, o senhor de engenho e sertanista português Gabriel Soares de Sousa empreendeu a longa viagem de Salvador a Madri, com o intuito de granjear o apoio régio a seu projeto de devassar o vasto sertão em busca de minas de prata. Para se credenciar junto à coroa, apresentou três manuscritos ao Dom Cristóvão de Moura, oferecendo informações preciosas e perspicazes sobre a terra, a gente e a história das colônias portuguesas que brotavam na América.5 O primeiro texto, intitulado Roteiro Geral, com largas informações de toda a costa do Brasil, proporcionou uma descrição sucinta do litoral desde a “terra dos Caribes”, ao norte do rio Amazonas, até o estuário do Prata. O segundo e seguramente o mais importante texto é o Memorial e Declaração das Grandezas da Bahia de Todos os Santos, de sua fertilidade e das notáveis partes que tem, uma descrição pormenorizada da topografia, das plantas, da fauna e das populações nativas da Bahia, um texto tão rico e evocativo em seus detalhes que é considerado por muitos como a maior obra sobre o Brasil escrita no século XVI.6 Finalmente, o terceiro texto constituiu-se numa pesada invectiva contra os jesuítas da Bahia, no qual se criticava os missionários não apenas pelas suas atividades supostamente gananciosas, mas também e sobretudo pela interferência dos padres no que tocava à mão-de-obra indígena. Bastante contrastante em relação aos outros textos, este ataque aos jesuítas proporciona uma visão mais clara dos contextos histórico e político nos quais Gabriel Soares de Sousa construiu as suas impressões dos Tupinambá.7 4 Uma ótima discussão desta questão com respeito ao Caribe encontra-se em Sued Badillo (1995). Veja-se, também, Sider (1994), Boccara (1999) e Whitehead (1993a e 1993b), todos enfocando o contexto de transformação nas primeiras relações entre europeus e indígenas em diferentes partes das Américas. Especificamente no que diz respeito ao Brasil, as novas perspectivas estão representadas em Carneiro da Cunha (1992). 5 De acordo com Dauril Alden (1996, 87-88, 480), D. Cristóvão de Moura (1538-1613) teve um papel de relevo nesta fase inicial da União Ibérica, como “an ignoble Portuguese quisling in Philip’s pay”. 6 Por exemplo, Rodrigues (1979, 439) refere-se aos textos como “a enciclopédia do século XVI, o maior livro que se escreveu sobre o Brasil dos quinhentos”. 7 Serafim Leite, S.J., o mais importante historiador jesuíta do Brasil, desenterrou uma cópia deste documentos no arquivo da ordem em Roma e a publicou sob o título “Capítulos de Gabriel Soares de Sousa Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 15 Se os relatos de Soares de Sousa têm sido amplamente utilizados desde o século XIX na consolidação de uma tradição de estudos tupis no Brasil, são relativamente poucos os estudos sobre o autor propriamente dito ou sobre as condições nas quais ele conduziu as suas observações. A bem da verdade, pouco se sabe da vida do autor além daquilo que se encontra em seus escritos, acrescidos do testamento que ele redigiu em 1584, posteriormente reproduzido por Francisco Adolfo de Varnhagen em sua edição crítica do texto.8 Nascido em Portugal em data ignorada pelos historiadores, Gabriel Soares de Sousa partiu para o além-mar no início de 1569, possivelmente com destino às cobiçadas minas de Monomotapa, na África Oriental, integrando a poderosa frota comandada por Francisco Barreto, antigo governador da Índia, que pretendia expulsar os muçulmanos daquela região e tomar posse das minas.9 Não se sabe exatamente porque resolveu desembarcar em Salvador quando a frota fez escala, ao invés de seguir para o Estado da Índia, destino de outros escritores de talento contemporâneos seus. Junto com seu irmão João Coelho de Sousa, Gabriel Soares de Sousa se radicou no Brasil, estabelecendo um engenho no rio Jiquiriçá, próximo a Jaguaripe, uma zona açucareira em franca expansão ao sul do Recôncavo. Depois de receber algumas cartas geográficas junto com amostras de pedras preciosas provenientes do sertão, objetos estes legados pelo seu falecido irmão, Gabriel Soares resolveu partir para a corte filipina em 1586 em busca de favores e mercês. Enquanto aguardava audiência, concluiu os textos sobre o Brasil, os quais certamente ajudaram ele a atingir seu objetivo principal de assegurar concessões para procurar e eventualmente explorar minas de prata no sertão, recebendo em 1590 a nomeação de Capitão-mor e Governador da Conquista e Descobrimento do Rio São Francisco. Ao assumir este novo cargo, voltou à América na urca flamenga Abraão, que buscava uma carga de açúcar e pau brasil. A embarcação naufragou na barra do rio contra os Padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil” (Soares de Sousa, 1940 [1587]), seguindo o conselho do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Leite, no entanto, editou este documento um pouco a contragosto, conforme se pode inferir do prefácio, onde ele rotula o texto como “o documento mais antijesuítico” que se escreveu sobre o Brasil. Deve-se observar, ainda, que o exemplar do Arquivo do Jesuítas não é o original, sendo uma cópia aliás enriquecida pelas respostas escritas por uma comissão de padres a cada “capítulo” e intercaladas ao texto. 8 Utilizo aqui a edição de 1971, com o texto estabelecido e anotado por Francisco Adolfo de Varnhagen. Foi esta baseada na edição de 1851, considerada como a mais correta. Vale dizer que esta obra se ressente de uma nova edição crítica, algo na linha do bom trabalho executado por Ana Maria de Azevedo com os textos de Cardim. Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 18 Ao tratar dos índios em seu texto, a primeira tarefa que enfrentava Gabriel Soares de Sousa foi o de conferir algum sentido à intrigante sociodiversidade que tornava o litoral brasileiro tão difícil para descrever.14 A exemplo de vários outros autores quinhentistas, Soares de Sousa estabeleceu de início uma grande divisão entre duas categorias maiores, a de Tupi e Tapuia. Se os Tupinambá da Bahia, descritos em detalhes por vezes saborosos, proporcionaram o modelo básico para a discussão da sociedade tupi, mostrava-se bem mais vaga a caracterização dos Tapuia. “Como os tapuias são tantos e estão tão divididos em bandos, costumes e linguagem, para se poder dizer deles muito, era de propósito e devagar tomar grandes informações de suas divisões, vida e costumes; mas, pois ao presente não é possível...” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 338). Fiando-se basicamente naquilo que seus informantes tupis lhes passavam, escritores coloniais como Gabriel Soares costumavam projetar os grupos tapuias como a antítese da sociedade tupinambá, portanto descrevendo-os quase sempre em termos negativos. Ainda assim, em sua descrição dos Aimoré no Roteiro geral, o autor introduziu uma variante interessante, sugerindo que as diferenças básicas na vida e nos costumes desses índios possuíam fundamentos históricos: Descendem estes aimorés de outros gentios a que chamam tapuias, dos quais nos tempos de atrás se ausentaram certos casais, e foram-se para umas serras mui ásperas, fugindo a um desbarate, em que os puseram seus contrários, onde residiram muitos anos sem verem outra gente; e os que destes descenderam, vieram a perder a linguagem e fizeram outra nova que se não entende de nenhuma outra nação do gentio de todo este Estado do Brasil (Soares de Sousa, 1971 [1587], 78-79). Se o autor foi bem sucedido ao montar uma descrição bastante detalhada dos costumes bárbaros dos Aimoré, Soares de Sousa reconhecia as limitações de sua apresentação, inclusive deslizando próximo à classificação destes índios como não atlântico. Sobre a “expansão” ou “migração” tupi, debate aliás antigo na etnologia e arqueologia brasileiras, ver o artigo de Francisco Noelli (1996), com comentários de Eduardo Viveiros de Castro e Greg Urban. 14 Este dilema foi compartilhado pelo Gabriel Soares de Sousa com vários outros escritores quinhentistas, que buscavam conciliar aquilo que de fato testemunharam com as imagens dos povos do Novo Mundo que circulavam nos textos e gravuras da época. Veja-se a discussão em Carneiro da Cunha (1990), oferecendo um estimulante contraste entre as visões francesa e portuguesa. Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 19 humanos, uma vez que “[c]omem estes selvagens carne humana por mantimento, o que não tem o outro gentio que a não com senão por vingança de suas brigas e antiguidade de seus ódios”. Concluindo, o autor sublinhava a diferença desta “casta” das demais, por serem “tão esquivos inimigos de todo o gênero humano” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 79-80). Ao estabelecer categorias básicas para diferentes segmentos da população indígena, Gabriel Soares buscou várias referências distintas. A principal abordagem residia no contraste com as instituições européias, descrevendo as sociedades indígenas a partir daquilo que lhes faltava. Lançando mão de uma frase amplamente disseminada pelo gramático Pero de Magalhães Gândavo na década anterior, Gabriel Soares apresentava uma variante para o ditado sem fé, sem lei, sem rei. Apesar de impressionado pela “graça” da língua tupi, o autor observou que “faltam-lhes três letras do ABC, que são F, L, R grande ou dobrado”. A primeira letra, “f”, referia-se à fé, indicando que os Tupinambá não possuíam religião alguma e, pior ainda, “nem os nascidos entre os cristãos e doutrinados pelos padres da Companhia têm fé em Deus Nosso Senhor”. Continuando, Soares de Sousa explicou que eles não pronunciavam a letra “l” porque “não tem lei alguma que guardar” e que “cada um faz lei a seu modo e ao som da sua vontade”. Finalmente, a ausência da letra “r” denotava a falta de um “rei que os reja” e que não “obedecem a ninguém, nem ao pai o filho, nem o filho ao pai” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 302). Oscilando entre a inconstância e a insubordinação, os índios de Gabriel Soares de Sousa mostravam-se pouco promissores enquanto súditos, apesar de que, paradoxalmente, era nessa condição que a maioria dos índios que ele conheceu vivia.15 Para além do binômio Tupi-Tapuia, surgiram outros pares de oposição com a função de introduzir alguma ordem numa situação às vezes confusa e imprevisível. O contexto colonial produziu outras distinções importantes, como a oposição entre povoado e sertão, o que representava mais do que uma referência espacial pois, na verdade, delimitava dois universos distintos, um ordenado pela lei e pelo governo, o outro livre de tais constrangimentos – sem fé, nem lei, nem rei, enfim. Pode-se vislumbrar um bom 15 Uma reinterpretação bastante criativa da “inconstância”, vista como muito mais do que uma simples projeção européia, encontra-se em Viveiros de Castro (1992). Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 20 exemplo desta diferença na experiência dos sertanistas mamelucos, que transitavam entre a ordem rígida do povoado colonial e a liberdade desenfreada do sertão.16 A distinção entre índios cristãos e gentios proporcionava uma outra divisão crucial, ainda que eivada de implicações ambíguas. Para além de suas origens bíblicas, o termo gentio, com efeito, ganhou força como uma categoria intermediária no campo da diversidade religiosa que adquiria novos contornos com a expansão européia. Os portugueses quinhentistas usavam este termo tanto para descrever hinduístas no subcontinente asiático, com suas elaboradas tradições religiosas, quanto para designar populações africanas e sul-americanas, consideradas como destituídas de qualquer religião. Após um certo tempo, no entanto, o contexto semântico passou a sublinhar a distinção entre nativos convertidos para o catolicismo e aqueles não convertidos – gentios neste caso seriam convertidos potenciais, por assim dizer. Em seu Roteiro geral, Gabriel Soares de Sousa expressou esta distinção, apesar de se mostrar um tanto cético quanto à eficácia da conversão. No capítulo sobre Garcia d’Ávila, o autor fez menção da aldeia jesuítica de Santo Antônio, habitada por “índios forros tupinambás” que, a despeito da sua conversão, “é este gentio tão bárbaro que até hoje não há nenhum que viva como cristão” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 70). Esta observação ganhou um reforço mais agudo nos Capítulos contra os Padres. Se os primeiros missionários tiveram um êxito fenomenal na conversão, batizando “aos milhares cada dia”, este êxito se mostrou ilusório, uma vez que “assim com facilidade se faziam cristãos, com ela mesma se tornavam a suas gentilidades, e se foram todos para o sertão, fugindo da sua doutrina”(Soares de Sousa, 1940 [1587], 370). Embora não tenha feito menção explícita no texto, é possível que Gabriel Soares estivesse se referindo aos movimentos sociorreligiosos organizados por índios Tupinambá egressos das aldeias missionárias ou fugidos dos empreendimentos coloniais, com destaque para a Santidade que grassava na época nos arredores de Jaguaripe, próxima portanto ao engenho do próprio Gabriel Soares.17 Mas o autor certamente também conhecia outras formas de resistência – o que ele considerava uma propriedade natural dos índios e não algo 16 Veja-se, por exemplo, as declarações do mameluco Tomacaúna perante o visitador do Santo Ofício, em Vainfas (1997). O mesmo autor traz uma abordagem bastante inovadora dos mamelucos em obra anterior (Vainfas, 1995, capítulo 6). Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 23 relatos de índios aldeados, escravizados e cristianizados, as descrições nos fornecem uma auto-imagem dos Tupinambá através da lente da situação colonial que os oprimia e, lentamente, os destruía. Ainda assim, estabelecendo um exemplo que seria seguido por etnógrafos num futuro distante, o texto do Memorial buscava abstrair os Tupinambá deste contexto, como se os europeus não os tivessem encontrado. Entretanto, o relato contém muitos elementos que sugerem que este “modo de ser” dos Tupinambá, apesar de reafirmar tradições e estruturas pré-coloniais, também tinha algo a ver com as condições concretas da expansão colonial. Assim, a descrição da vida e dos costumes dos índios foi o produto de construções coloniais não apenas dos portugueses como também dos Tupinambá. Em certo sentido, o Memorial destoava de outros relatos que buscavam projetar a situação de primeiro contato, situação essa que, segundo Neil Whitehead, tinha mais a ver com a “auto-representação dos ‘descobridores’” ou conquistadores do que com a efetiva interação envolvendo o autor-observador e seus objetos nativos.21 Se é verdade que Soares de Sousa se apresentava como descobridor de sertões desconhecidos e da almejada riqueza mineral do mesmo interior, seus objetos nativos configuravam, antes de tudo, índios que já haviam experimentado o contato com os Europeus por um bom tempo. O próprio autor, visivelmente constrangido ao tratar da presença de muitos mamelucos entre os Tupinambá, acabou reconhecendo que “ainda que pareça fora de propósito o que se contém neste capítulo, pareceu decente escrever aqui o que nele se contém, para se melhor entender a natureza e condição dos tupinambás...” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 331). Uma leitura mais atenta deste mesmo capítulo, no entanto, evoca um constante receio que os escritores coloniais cultivavam no que diz respeito à mestiçagem: Gabriel Soares parece ter se preocupado menos com o impacto que os brancos e seus descendentes mestiços poderiam ter sobre os Tupinambá e mais com a terrível possibilidade de que os brancos também podiam tornar-se selvagens. Ao buscar, deste modo, melhor entender a natureza e condição dos Tupinambá, Gabriel Soares implicitamente captou a necessidade de se reconhecer que as sociedades indígenas encontravam-se imbricadas numa trama histórica, na qual a determinação de 21 Sobre a questão da representação destes “pristine contacts with unspoiled indigenes”, ver Whitehead (1995, 55). É interessante observar que este tipo de representação permaneceu como tema constante na literatura e iconografia do contato nos séculos a seguir. Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 24 identidades específicas se mostrava tão flexível quanto variável.22 Os Potiguar, Tupiniquim, Tememinó e Tupinaé todos eram Tupinambá num certo sentido, porém no contexto colonial, nitidamente não o eram. Neste sentido, para se entender este “Brasil indígena”, é preciso antes rever a tendência seguida por sucessivas gerações de historiadores e de antropólogos que buscaram isolar, essencializar e congelar populações indígenas em etnias fixas, como se o quadro de diferenças étnicas que se conhece hoje existisse antes do descobrimento – ou da invenção – dos índios. Tão demorado quanto intrincado, o processo inicial de invenção de um Brasil indígena envolveu a criação de um amplo repertório de nomes étnicos e de categorias sociais que buscava classificar e tornar compreensível o rico caleidoscópio de línguas e culturas antes desconhecidas pelos europeus. Mais do que isso, o quadro produzido passou a condicionar as próprias relações políticas entre europeus e nativos, não apenas na medida em que fornecia a base para a elaboração de uma legislação indigenista, mas também porque esboçava um conjunto de representações e de expectativas sobre as quais se pautavam estas relações. Neste sentido, as novas denominações espelhavam não apenas os desejos e as projeções dos europeus, como também os ajustes e as aspirações de diferentes populações nativas que buscavam lidar – cada qual à sua maneira – com os novos desafios postos pelo avanço do domínio colonial. A Reinvenção dos Tupi: Gabriel Soares de Sousa no Século XIX Apesar do grande interesse que poderia ter suscitado na época em que foi elaborada, a obra de Gabriel Soares de Sousa permaneceu inédita por mais de duzentos anos. Ainda assim, a exemplo de tantos outros tratados descritivos e históricos escritos em português sobre o Brasil durante o período colonial, os textos de Soares de Sousa circularam em cópias manuscritas, sendo que diferentes trechos foram parafraseados ou mesmo plagiados por escritores que o sucederam. Ao preparar a edição definitiva desta obra no século XIX, Francisco Adolfo de Varnhagen chegou a identificar 17 cópias 22 Sobre o contexto colonial para a formação das identidades, ver o artigo instigante de Sider (1994). Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 25 distintas em várias bibliotecas e arquivos na Europa, em acervos públicos e privados.23 De fato, para além dos relatos publicados em várias línguas européias orientados para um público não lusófono, a única obra sobre o Brasil a ser editada em português durante o século XVI foi a História da província de Santa Cruz, de Pero Magalhães Gândavo, impressa em 1576. Esta ausência de publicações destoava de outras situações coloniais, como a da América Espanhola ou mesmo a dos portugueses na Ásia, que haviam disponibilizado aos leitores europeus uma quantidade considerável de obras impressas, englobando narrativas de conquista e crônicas políticas, bem como descrições minuciosas dos povos e costumes do Oriente. Relegada ao esquecimento, a obra de Soares de Sousa reapareceu nos primeiros anos do século XIX, inicialmente como parte da vasta e eclética coleção de obras raras e inéditas, organizada pelo frei Veloso e impressa na famosa casa editorial do Arco do Cego em Lisboa. Incompleta, esta primeira edição também deixou de atribuir a autoria a Gabriel Soares. A primeira edição completa de uma cópia dos manuscritos existentes apareceu em 1825, publicada pela Real Academia das Ciências de Lisboa, como parte de seu projeto ambicioso de compilar narrativas de viagem e outros relatos numa ampla coleção sobre as posses ultramarinas portuguesas, inclusive aquela recém separada da metrópole. Adotando o título de Notícias do Brasil, a edição da Academia foi tão mal feita que moveu o então jovem historiador paulista Francisco Adolfo de Varnhagen a escrever um longo e pioneiro exercício de crítica histórica, o que não apenas confirmou a autoria de Gabriel Soares como também apontou para a premente necessidade de uma nova edição crítica e anotada, cotejando criteriosamente as diferentes cópias manuscritas existentes.24 O interesse de Varnhagen pelos textos de Gabriel Soares foi muito além desse mero exercício acadêmico. Como membro de destaque do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, Varnhagen situava-se na linha de frente de uma geração de intelectuais e estadistas que enfrentava a tarefa de inaugurar uma tradição 23 De acordo com Varnhagen, dentre os vários autores que utilizaram partes do relato de Gabriel Soares para elaborar suas próprias obras, encontram-se Pedro de Mariz, Frei Vicente do Salvador, Simão de Vasconcelos, S.J. e Frei Antônio Jaboatão (Soares de Sousa, 1971 [1587], 13). Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 28 se mostrou ainda mais explícito num texto anterior, onde fez a seguinte previsão: “não há dúvida: o americano está prestes a desaparecer. Outros povos viverão quando aqueles infelizes do Novo Mundo já dormirem o seu sono eterno” (Martius, [1838] 1982, 70). Adotando estes pressupostos, Varnhagen desenvolveu uma profunda “aversão às populações brasileiras” (palavras de seu arquiinimigo João Francisco Lisboa), o que aliás não se limitava às populações indígenas como também se estendia a todas as camadas populares da América portuguesa. Se esta aversão certamente alguma coisa devia às preferências teóricas do autor, ela pode igualmente ser atribuída à experiência pessoal de Varnhagen ou mesmo à situação política do Império em meados do século XIX, quando várias províncias conduziam guerras não declaradas contra povos indígenas. É provável que Varnhagen já alimentasse sentimentos depreciativos referentes aos índios quando empreendeu uma viagem para o sul da Província de São Paulo em 1840, porém após presenciar de perto o estado de conflito e de medo que predominava na região, consolidou o seu ponto de vista marcadamente negativo. “Confesso”, escreveu ele alguns anos mais tarde, “que desde então uma profunda mágoa e até um certo vexame se apoderou de mim, ao considerar que apesar de ter o Brasil um governo regular, em tantos lugares do seu território achavam-se (e acham-se ainda) um grande número de cidadãos brasileiros à mercê de semelhantes cáfilas de canibais” (Varnhagen, 1867, 38). De maneira bastante consciente, Varnhagen inscreveu esta aversão aos índios em sua História Geral do Brasil, na qual a sua descrição dos “antigos” Tupi foi capaz apenas de captar, “no triste e degradante estado da anarquia selvagem, uma idéia do seu estado, não podemos dizer de civilização, mas de barbárie e de atraso. De tais povos na infância não há história: há só etnografia” (Varnhagen, [1854] 1981, I:30).30 Se esta perspectiva negativa encontrou um lugar seguro na raiz dos estudos históricos brasileiros, ela não constituiu a única perspectiva. De fato, um intenso debate em torno dos índios agitava os círculos intelectuais e políticos do século XIX, onde vozes agressivas como a de Varnhagen encontravam a oposição de tendências mais 30 Suas observações referentes à viagem para o sul aparecem em Varnhagen (1867, 36-37). Ver, também, Oliveira (2000, 47-48). Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 29 filantrópicas, sobretudo aquela inspirada em José Bonifácio de Andrada e Silva.31 Até certo ponto, desde os primórdios do período colonial, o conflito de interesses entre diferentes agentes coloniais criou tensões entre as políticas que buscavam ou assimilar ou excluir as populações indígenas. As mudanças institucionais da década de 1840, que delegaram às províncias a gestão da política indigenista e promoveram o estabelecimento de novas missões capuchinhas, introduziram um novo período de tensão. Fosse nos confortáveis recintos das academias ou nas rudes condições do sertão, acirrava-se a disputa entre aqueles que defendiam a “civilização e catequese” dos índios e aqueles parciais ao afastamento ou mesmo extermínio de populações nativas.32 Não restava dúvida quanto à posição de Varnhagen neste conflito, posição essa que buscava sustentação nas evidências históricas, inclusive no relato de Gabriel Soares de Sousa. Em suas leituras de fontes quinhentistas, uma das primeiras operações empreendidas pelos historiadores do Império foi a de reconfigurar a dicotomia Tupi- Tapuia, acrescentando um novo eixo temporal à análise. Como vimos, este binômio tornava o problema da diversidade linguística e étnica mais fácil de administrar, tanto para os escritores coloniais quanto para as autoridades da coroa. No contexto do século XIX, ganhou uma nova feição. Os Tupi foram relegados a um passado remoto, quando contribuíram de maneira heróica à consolidação da presença portuguesa através das alianças políticas e matrimoniais. Mas as gerações subsequentes cederam o lugar para a civilização superior, deixando algumas marcas para a posteridade, inscritas nos topônimos, nos descendentes mestiços e na persistência da língua geral que, no século XIX, ainda vigorava entre algumas populações regionais e era cultivada por setores das elites imperiais como a autêntica língua nacional. Nessa ótica do Oitocentos, os Tupi do litoral pareciam ter perecido por completo desde há muito, sendo retratados cada vez mais em tons românticos e nostálgicos, como no quadro emblemático de Rodolfo Amoedo, O Último Tamoio, que mostra um Tupinambá literalmente morrendo na praia e 31 Sobre a influência de José Bonifácio’s sobre o pensamento indigenista no Brasil, ver sobretudo Carneiro da Cunha (1986); Boehrer (1960); e Hemming (1987). 32 Sobre este assunto, ver Capítulo 8, abaixo. O contexto geral para este debate e suas implicações para a política e legislação indigenista está minuciosamente exposto em Carneiro da Cunha (1992). Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 30 recebendo a extrema unção de um padre capucho, antes de ser levado pelo mar para sempre.33 Os Tapuia, por seu turno, situavam-se no pólo oposto, apesar das abundantes evidências históricas que mostravam uma realidade mais ambígua. Retratados no mais das vezes como inimigos e não como aliados – dos portugueses, bem entendido – representavam o traiçoeiro selvagem, obstáculo no caminho da civilização, muito distinto do nobre guerreiro que acabou se submetendo ao domínio colonial. Se esta última opção teria custado os Tupi a sua existência enquanto povo, a resistência e recusa dos Tapuia acabaram garantindo a sua sobrevivência em pleno século XIX, mesmo tendo enfrentado brutais políticas visando o seu extermínio. Varnhagen e outros historiadores traduziam as lições da história num discurso que condenava os grupos indígenas contemporâneos, sobretudo os Botocudos no leste, os Kaingang no sul e vários grupos jê do Brasil central. Desta feita, estes grupos adquiriram um duplo estigma: primeiro, como o anti-Tupi nos textos históricos e, segundo, como obstáculos à civilização pelos padrões da época. Se a tendência predominante estabeleceu um nítido contraste entre o nobre Tupi, ancestrais primordiais dos modernos brasileiros, e os grupos indígenas contemporâneos, representados em termos negativos, Varnhagen destoava um pouco ao traçar semelhanças entre os guerreiros tupinambás, com suas características traiçoeiras e vingativas, e sua contrapartida não-tupi do século XIX. Para tanto, sua leitura dos textos de Gabriel Soares de Sousa foi instrumental, como se pode perceber em seus “comentários”, que transitavam livremente entre o século XVI e o XIX. Para Varnhagen, o relato de Gabriel Soares confirmava aquilo que considerava ser o caráter covarde de todos os povos indígenas, o que justificava as represálias violentas por parte de colonos e de autoridades, política essa sancionada pelo historiador em várias ocasiões. Comprimindo as distâncias no tempo e no espaço, Varnhagen tomou o exemplo dos Tupinambá para lembrar aos leitores que “[é] o que ainda sucede com os dos nossos sertões. Os bugres recebem presentes de ferrinhos que no ano seguinte enviam contra o benfeitor mui aguçados, nas pontas de suas flechas; ou assassinam aqueles que, depois de lhes fazer presentes, neles confiam” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 386, n. 246). 33 Exibido pela primeira vez num salon parisiense em 1883, O Último Tamoio faz parte da coleção permanente da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Em sua análise da literatura indianista, Graça (1998) Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 33 Seria um erro crasso, contudo, afirmar que este historiador do século XIX simplesmente ignorava a dimensão histórica do panorama etnográfico que ele traçava para o Brasil do século XVI. Parcial aos postulados pessimistas de von Martius, que considerava os índios como os descendentes degradados de alguma antiga civilização, a leitura que Varnhagen fez da diversidade étnica entre os Tupi, embora baseada fundamentalmente no relato de Soares de Sousa, sugeria que o fracionamento étnico não era mais do que outro indício do declínio, desintegração e destruição de um grande povo anterior, processo esse desencadeado bem antes da chegada dos portugueses. Varnhagen apenas arranhou esta hipótese em seus comentários ao texto de Gabriel Soares, porém a desenvolveu mais plenamente na História Geral e, de maneira mais contundente, num de seus últimos estudos, L’origine tourainienne des américains tupi-caribes et des ancien égyptiens, obra publicada em Viena em 1876. Um dos pontos mais controversos certamente foi aquele que dizia respeito às origens “estrangeiras” dos Tupi, o que distanciava este autor não apenas de Gabriel Soares de Sousa, como também de grande parte de seus contemporâneos. Para a maioria dos escritores oitocentistas, os Tupi representavam os brasileiros mais autênticos e originais, apesar da circulação de teorias sobre migrações intercontinentais que teriam ocorrido num passado tão distante quanto nebuloso. Se Gabriel Soares mostrava-se um tanto impreciso quanto a esta questão, simplesmente afirmando que os Tupi iniciaram o seu movimento rumo ao litoral a partir de algum lugar no remoto sertão, Varnhagen buscou as origens dos Tupi fora mesmo das Américas, chegando a caracterizá-los como um povo invasor. Levou esta idéia a seu ponto máximo em L’origine tourainienne. Exercício meticuloso de filologia e etnologia comparada, L’origine tourainienne busca semelhanças explícitas nas línguas e na cultura material dos Tupi e dos antigos egípcios, os quais teriam sido ambos influenciados por uma civilização centro-asiático anterior.36 Ao invés de procurar, conforme alguns comentaristas têm sugerido, as origens arianas dos antigos Tupi – estratégia essa compartilhada por outros escritores latino-americanos no século XIX – Varnhagen parece 36 Oliveira (2000, 90-100) apresenta uma análise bastante interessante desta obra. Odália (1997, 98-103) também fornece uma discussão estimulante da abordagem comparativa do autor, enfocando mais especificamente sua História Geral. Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 34 ter perseguido um propósito bem diferente.37 De fato, ao invés de “branquear” os Tupi, Varnhagen procurou identificar uma remota civilização não-ariana, a partir da qual os índios brasileiros teriam iniciado o seu declínio, num longo processo de decadência e degeneração. Poucos estudiosos parecem ter levado a sério a tese turaniana no Brasil, porém a idéia de Varnhagen de rebaixar e excluir os índios da história pátria permaneceu firme no pensamento histórico brasileiro por gerações e gerações. Ainda assim, vozes dissonantes surgiram tão logo que saiu publicado a História Geral do Brasil; por exemplo, o poeta indianista e historiador Domingos José Gonçalves de Magalhães reagiu de modo virulento num longo ensaio publicado na Revista Trimensal do Instituto, buscando “reabilitar o elemento indígena”, como elemento fundamental na composição da população brasileira (Magalhães, 1860, 3). Do mesmo modo, já é muito bem conhecida a polêmica entre Varnhagen e João Francisco Lisboa, o liberal maranhense cuja defesa da liberdade e dignidade dos índios estava assentada em seus próprios estudos históricos (Janotti, 1977 e Carvalho, 1995). Mas para a maioria dos historiadores brasileiros, tornou-se corriqueiro o pressuposto de que o início da história do Brasil significava o fim dos índios. Conclusão Ao remodelar a descrição feita por Gabriel Soares de Sousa dos Tupinambá para situá-la no contexto do século XIX, o historiador pioneiro Francisco Adolfo de Varnhagen afastou este grupo mais ainda do contexto histórico que produziu o mesmo relato. Mais importante, Varnhagen praticamente consolidou o abismo que iria prevalecer nos estudos sobre as populações indígenas até um período bem recente, circunscrevendo os índios a uma distante e nebulosa pré-história ou ao domínio exclusivo da antropologia. Os Tupinambá de Gabriel Soares alcançariam novamente um lugar de destaque no século 37 José Vieira Couto de Magalhães, em seu capítulo sobre “As Línguas Arianas da América” (1975 [1876], 51-54), refere-se ao estudioso argentino Fidel López, cujos estudos comparados entre sânscrito e quéchua foram publicados em Paris no decorrer dos anos de 1860. Couto de Magalhães também especulava sobre as possíveis afinidades entre o sânscrito e algumas línguas indígenas no Brasil, sobretudo o guaicuru. De acordo com este autor, os antepassados centro-asiáticos dos povos americanos haviam se misturado com alguma “raça ariana” antes da migração para o novo continente. Capítulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 35 XX, quando o eminente americanista Alfred Métraux os enfocou em seus estudos sobre as migrações, os movimentos proféticos e a religião tupi-guarani, juntando os antigos relatos com registros etnográficos modernos, sobretudo o importante estudo de Curt Nimuendaju sobre a escatologia dos Apapocuva-Guarani.38 No entanto foi Florestan Fernandes que transformou os Tupinambá numa referência central à etnologia brasileira, pois sua meticulosa reconstituição e análise da organização social e do complexo da guerra-sacrifício-canibalismo entre os Tupinambá compõe um dos mais sofisticados exemplos de antropologia funcionalista em qualquer língua.39 Mas os historiadores continuaram a evitar os índios, como se a sentença de Varnhagen que condenava os índios à etnografia perpétua fosse ainda válida.40 Com efeito, ainda hoje a maioria dos historiadores parece acreditar que a história dos índios se resume à crônica de sua extinção. Esta perspectiva guarda um fundo de verdade, é claro, quando se considera o triste registro de guerras, epidemias, massacres e assassinatos que contribuíram para a dizimação de populações indígenas ao longo dos últimos cinco séculos. Para além deste rol de iniquidades, contudo, mesmo uma rápida releitura de documentos coloniais como os de Gabriel Soares de Sousa pode revelar uma história muito mais complexa, interessante e significativa do que aquela proposta pela tradição inaugurada por Varnhagen. 38 Métraux (1927 e 1979 [1928]). O estudo de Nimuendaju (1987 [1914]) apareceu inicialmente em Berlim em 1914 na Zeitschrift für Ethnologie, sendo finalmente publicado em português em 1987, com uma introdução muito esclarecedora de Eduardo Viveiros de Castro. 39 Fernandes (1948 e 1980 [1952]). Quando elaborava seus estudos sobre os Tupinambá, Florestan desenvolveu uma tabela complexa que classificava os dados etnográficos extraídos das fontes dos séculos XVI e XVII. Se é verdade que esse autor retirou muitas observações pontuais de seu contexto histórico mais abrangente, Florestan não ignorava o valor e as armadilhas presentes na crítica das fontes, o que acabou sendo sacrificado em função de sua opção metodológica (cf. Fernandes, 1975). 40 Mesmo na notável História Geral da Civilização Brasileira, iniciada em 1960 sob a coordenação de Sérgio Buarque de Holanda, coube a Florestan Fernandes um capítulo preliminar sobre os antecedentes indígenas. O capítulo, no entanto, reproduziu o importante estudo sobre a “reação tupi à conquista” que, infelizmente, teve pouca repercussão nas discussões posteriores sobre a constituição da Colônia. Capítulo 2: A Língua Mais Usada na Costa do Brasil 38 índios, valendo-se do conhecimento do tupi pois, segundo Manuel da Nóbrega, tratava-se de um homem “virtuoso e sábio e o melhor língua do Brasil”. Só não teve maior destaque porque a sua atuação foi abreviada em 1554, devido à sua morte junto com outro jesuíta entre os Carijós.4 Reconhecendo a necessidade de dominar as línguas nativas, vários jesuítas recém chegados da Europa também se dedicaram ao aprendizado desde cedo. A exemplo dos pioneiros na Índia ou na China, aprendiam rapidamente as línguas da terra – não apenas o tupi, diga-se de passagem – sobretudo através de situações de imersão total, quando se encontravam sozinhos ou em duplas no meio de multidões de indígenas por períodos prolongados. Para alguns deles, familiares com uma situação multilíngue em suas terras de origem, não se tratava de um desafio tão considerável. Este foi o caso de Juan de Azpilcueta Navarro que, de acordo com o padre Nóbrega, “já [em 1549] sabe a língua de maneira que se entende com eles e a todos nós traz vantagem porque esta língua parece muito à biscaia”. Anchieta também trazia vantagem, por assim dizer, porque ele havia nascido na ilha de Tenerife, filho de pai basco. A despeito da facilidade que tinham em aprender línguas, ainda assim dependiam do auxílio de intérpretes. Azpilcueta teve a ajuda de “um homem de boas partes, antigo nesta terra [da Bahia], que tem o dom de escrever a língua dos índios”. Este tradutor pioneiro ajudou os padres a verter “sermões do Velho e Novo Testamento, mandamentos, pecados mortais e obras de misericórdia, com todos os artigos da fé”.5 Os missionários precisavam aprender as línguas vernáculas por vários motivos. Um primeiro problema, frequentemente lembrado nos relatos jesuíticos, dizia respeito à confissão, posto que muitos padres com pouco conhecimento da língua ouviam-na através de intérpretes. O bispo D. Pedro Fernandes Sardinha estranhou, em 1552, que os jesuítas ouviam a confissão não só de índios como também de mestiços por meio de intérpretes, “o que a mim me foi muito estranho, e deu o que falar e murmurar por ser uma coisa tão nova e nunca usada na Igreja”.6 O problema se agravou, evidentemente, 4 Veja-se as informações biográficas sobre Pero Correia em Leite (1938-50, II:236-241 e VIII:175- 76). 5 Carta de Manuel da Nóbrega ao Dr. Martín Azpilcueta Navarro, 10 de agosto de 1549 (Leite, 1956-60, I:141); Juan de Azpilcueta Navarro aos Padres e Irmãos de Coimbra, agosto de 1551, I:279. 6 D. Pedro Fernandes [Sardinha], bispo, a Simão Rodrigues, julho de 1552 (Leite, 1956-60, I:361). Capítulo 2: A Língua Mais Usada na Costa do Brasil 39 com o transcorrer do século, quando a desconfiança que os jesuítas tinham dos línguas mestiços e indígenas desautorizava a mediação destes em matérias religiosas. Ainda assim, o padre Fernão Cardim, em sua Narrativa Epistolar da década de 1580, procurou ser otimista diante dessas limitações: “Tive grande consolação em confessar muitos índios e índias, por intérprete; são candidíssimos, e vivem com muito menos pecados que os Portugueses. Dava-lhes sua penitência leve, porque não são capazes de mais, e depois da absolvição lhes dizia, na língua: xe rair tupã toçô de hirunamo, sc. ‘filho, Deus vá contigo’” (Cardim, 1997 [1583-90], 234). Uma segunda questão refere-se àquilo que o historiador Vicente Rafael chama da “dimensão oral da conversão” (Rafael, 1988, 39-42). Diferentemente das missões orientais, onde a tradução da doutrina em línguas nativas permitia a sua leitura pelos conversos, no Brasil a escrita não cumpria esta mesma função, antes colocando à disposição dos leitores missionários as fórmulas e os diálogos a serem postos em ação no encontro entre abarés, ou padres, e índios. A prática da evangelização, afinal de contas, repousava sobretudo na oralidade. Entre os índios das missões, conforme se verifica nos relatos dos jesuítas, a palavra falada em voz alta predominava sobre a palavra escrita, muito embora os índios se mostrassem fascinados com o ato de escrever. De fato, os jesuítas prestavam atenção às formas retóricas adotadas pelos “índios principais” e, em muitos casos, até imitavam este estilo na pregação do Evangelho. Cardim descreveu com admiração a maneira pela qual os índios principais “pregavam da vida do padre [visitador] a seu modo”: começando na madrugada, “o pregar também é pausado, freimático, e vagoroso; repetem muitas vezes as palavras por gravidade, contam nestas pregações todos os trabalhos, tempestades, perigos de morte que o padre padeceria, vindo de tão longe para os visitar...” (Cardim, 1997 [1583-90], 222-223). Ao adotar estes métodos, no entanto, os missionários ficavam expostos a censuras, à semelhança dos jesuítas no Oriente que se apropriaram de estilos nativos.7 Acusados pelo bispo D. Pedro Fernandes de assumirem o estilo dos gentios em suas 7 Veja-se, a respeito, Zupanov (1999), onde se discute a notável atuação do jesuíta Roberto de Nobili na missão de Madurai, cujo estilo de evangelização, denominado accommodatio pelas autoridades da Igreja, assimilava várias práticas nativas, para o desespero dos jesuítas em Goa. No caso do Brasil quinhentista, esta questão é abordada em Toledo (2000, 97-118). O exemplo do jesuíta Francisco Pinto é discutido de maneira instigante em Carneiro da Cunha (1996), Castelnau-L’Estoile (2000, 410-425), Pompa (2001, 150-164). Capítulo 2: A Língua Mais Usada na Costa do Brasil 40 pregações, os jesuítas rebateram com a argumentação reveladora do padre Manuel da Nóbrega: Se nós abraçarmos com alguns costumes deste gentio, os quais não são contra nossa fé católica, nem são ritos dedicados a ídolos, como é cantar cantigas de Nosso Senhor em sua língua pelo tom e tanger seus instrumentos de música que eles usam em suas festas quando matam contrários e quando andam bêbados; e isto para os atrair a deixarem os outros costumes essenciais (...); e assim o pregar-lhes a seu modo em certo tom andando passeando e batendo nos peitos, como eles fazem quando querem persuadir alguma coisa e dizê-la com muita eficácia; e assim tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a seu modo. Porque semelhança é causa de amor. E outros costumes semelhantes a estes.8 A conversão através do amor e a persuasão pela semelhança certamente constituíam estratégias importantes nos anos iniciais, porém foram sendo substituídas ao longo da segunda metade do século XVI por métodos que se pautavam pelo uso da força. As tentativas de estabelecer missões entre as comunidades nativas mostraram-se pouco viáveis ou frutíferas, e os jesuítas frustravam-se cada vez mais com a “inconstância” dos novos cristãos e com a instabilidade das aldeias nativas, sobretudo nesses tempos de rápidas mudanças demográficas e de frequentes deslocamentos espaciais. Escrevendo da Bahia em 1556, o irmão Antônio Blázquez ressaltava a necessidade da força além da persuasão na obra de conversão. Ao elogiar o esforço do governador Duarte da Costa em reprimir algumas lideranças indígenas, tirou a seguinte conclusão: “Assim que por experiência vemos que por amor é muito dificultosa a sua conversão, mas, como é gente servil, por medo fazem tudo; e, posto que nos grandes, por não concorrer sua livre vontade, presumimos que não terão fé no coração, os filhos criados nisto ficarão firmes cristãos, porque é gente que, por costume e criação com sujeição, farão dela o que 8 Manuel da Nóbrega a Simão Rodrigues, 17 de setembro de 1552 (Leite, 1956-60, I:407-408). Capítulo 2: A Língua Mais Usada na Costa do Brasil 43 envergonha, que há 12 anos que cá ando e não sei nada. Agora começo pelos nominativos por a arte para poder aprender”.12 Também é certo que o manual primitivo foi lapidado e retrabalhado ao longo das quatro décadas entre a primeira notícia e versão final. Foi um período, aliás, de avanços notáveis no estudo e ensino da língua geral da costa. Em 1565, o General dos Jesuítas sugeriu ao Provincial de Portugal, padre Leão Henriques, que encomendasse vocabulários em línguas nativas para que os missionários pudessem estudar antes mesmo de sair da Europa. Pouco depois, instituiu-se, no Colégio da Bahia, uma cadeira de “língua brasílica”, cujo lente mais marcante foi o padre Leonardo do Vale, “príncipe dos línguas”, de acordo com o provincial Marçal Beliarte, ao noticiar a morte do padre Leonardo em 1591. “Eloquentíssimo como Túlio, (...) até os índios se admiravam do seu talento e graça singular, com a qual serviu excelentemente a Deus e à Companhia”, escreveu Beliarte. Ao padre do Vale se atribui o famoso Vocabulário na Língua Brasílica, copiado e recopiado para o uso de aprendizes em todos os cantos da colônia e mesmo nos colégios inacianos da metrópole (Vale, 1952 [1622]). Segundo Beliarte, o padre Leonardo “compôs o ‘Vocabulário’ daquela língua, ótimo, abundante, e muito útil, com que é fácil aprender; e muitos sermões, a explicação do catecismo, e outros utilíssimos avisos para a educação e instrução dos Índios”.13 A despeito de sua popularidade entre os catequistas, o Vocabulário permaneceu inédito até a década de 1930. No entanto, quase foi ao prelo no final do século XVI, por iniciativa do mesmo provincial Beliarte, porém não chegou sequer a ser encaminhado aos censores, passo obrigatório para qualquer publicação na época. Pode-se aventar a hipótese da falta de recursos, uma vez que cabia aos “padres do Brasil” os custos da edição, conforme vem estampado no frontispício do Catecismo do padre Antônio de Araújo. Com poucas propriedades rentáveis – estas desenvolver-se-iam mais plenamente no decorrer do século XVII – os colégios alegavam uma crônica falta de recursos. 12 João de Melo a Gonçalo Vaz de Melo, 13 de setembro de 1560 (Leite, 1956-60, III:283); Rui Pereira aos Padres e Irmãos de Coimbra, 15 de setembro de 1560, III:306; Antônio Pires aos Padres e Irmãos de Coimbra, 22 de outubro de 1560, III:310-311. 13 Estas informações constam das introduções de Serafim Leite à Monumenta Brasiliae (Leite, 1956-60, II:51*-53* e III:90*). Capítulo 2: A Língua Mais Usada na Costa do Brasil 44 Ao que tudo indica, o Vocabulário circulou em múltiplas cópias manuscritas, cada qual introduzindo novos vocábulos e revisando as entradas originais. Obra contínua, o aprendizado das línguas indígenas exigia tanto a paciência quanto o engenho dos religiosos, que buscavam sistematizar um conhecimento sempre incompleto. Constituía também uma obra coletiva, como esclareceu Antônio de Araújo no prefácio de seu Catecismo na Língua Brasílica: o trabalho era “composto a modo de Diálogos por Padres Doutos e bons línguas da Companhia de Jesus” (Araújo, 1618). No final do século XVII, o padre Luís Mamiani descreveu a árdua tarefa de revisão de suas obras, um verdadeiro trabalho artesanal: “Quanto ao Catecismo e Vocabulário da língua dos bárbaros, a cuja impressão benignamente anuiu Vossa Paternidade, ainda o não pude enviar este ano para Lisboa, por lhe faltar a última demão; para isso veio muito a propósito a minha volta à Missão, pois fora dela dificilmente o poderia concluir. Ando a limá-lo com a ajuda de Deus, para sua glória e salvação das almas”. No que diz respeito ao processo de trabalho, contou com a ajuda de outros: “Além da experiência de doze anos de língua entre os índios (...) conferi com os nossos Religiosos línguas mais antigos e examinei índios de diversas aldeias e por derradeiro fui conferindo o presente Catecismo sentença por sentença com índios que tinham bastante capacidade para entender o meu significado e para conhecer a frase correspondente na sua língua”.14 Os instrumentos de tradução também serviam para entender o significado de práticas e percepções indígenas, conhecimento necessário para a obra missionária. Antônio de Araújo enxertou em seu Catecismo Brasílico uma “Tabuada dos nomes do parentesco que há na língua Brasílica”, explicando que se tratava de uma “anotação sobre os nomes do parentesco, para inteligência das circunstâncias que podem ocorrer na Confissão” (Araújo, 1618, fls. 113-117). Outro exercício de grande utilidade foi executado pelo jesuíta sertanista Pero de Castilho, que em 1613 redigiu um extenso glossário Tupi-Português e Português-Tupi das partes do corpo humano. Chamou a atenção para as diferenças de abordagem, uma vez que os Tupi adotavam palavras diferentes de acordo com a primeira, segunda e terceira pessoa, além de outras inflexões particulares, como o vocábulo canguera, traduzido como “osso que já foi do corpo”. A 14 Carta de Luís Mamiani ao Padre Geral, 1695, citada no prefácio de Rodolfo Garcia a Mamiani (1942 [1698], xix-xx). Este mesmo processo de lapidação dos textos acontecia no Oriente, conforme Capítulo 2: A Língua Mais Usada na Costa do Brasil 45 exemplo da tabuada do padre Araújo, este pequeno dicionário se declarava “muito necessário aos confessores que se ocupam no ministério de ouvir confissões” (Castilho, 1937 [1613]). Novas Searas Limando, repintando, aperfeiçoando, os jesuítas dedicavam-se como verdadeiros artesãos em seu esforço coletivo de desenvolver instrumentos para preparar novas gerações de missionários que iriam dar sequência à obra da conversão dos povos indígenas. No entanto, o balanço que deste se podia fazer no alvorecer do século XVII não figurava como muito promissor. Ao publicar seu extraordinário Catecismo na Língua Brasílica, Antônio de Araújo mostrou-se um tanto ambivalente em sua avaliação do resultado de mais de meio século de intensas relações entre missionários e índios ao longo do litoral brasileiro, da Paraíba à Capitania de São Vicente. Resultado misto, pois, se a “comunicação dos nossos com os naturais em todas as partes do mundo” foi importante na sistematização e mesmo na conservação de línguas nativas, no litoral brasileiro este processo de construção contrastava com o processo de destruição da população indígena, que sofreu um declínio vertiginoso neste mesmo período. Graças aos esforços dos padres, escreveu Araújo, “já não são os línguas de todo acabados, como quase o são os Índios em as mais das Capitanias”. Por outro lado, o autor também se mostrava esperançoso porque, com “o novo descobrimento do Maranhão”, se abria uma nova seara, onde os missionários iriam espalhar o Evangelho munidos não apenas da palavra de Deus, como também de uma língua indígena e de uma larga experiência de tradução (Araújo, 1618, prólogo). Em quase todas as frentes, foi a língua geral que serviu para estabelecer um campo de mediação entre índios das mais diversas origens étnicas e linguísticas e os missionários. A rápida expansão da língua pela Amazônia nos séculos XVII e XVIII constituiu um elemento crucial nos projetos coloniais portugueses, tanto na sua dimensão missionária quanto nas atividades conduzidas por interesses particulares. Afinal de contas, durante este período houve o deslocamento maciço de populações nativas através das tropas de resgate egressas de São Luís e Belém e dos “descimentos” organizados descreve Lach (1965, 436-437). Capítulo 2: A Língua Mais Usada na Costa do Brasil 48 na memória, dizendo que ele rogava muitas vezes que criasse os mantimentos para o sustento de todos, mas que pensava que os trovões eram este Deus, embora agora que sabia existir outro Deus verdadeiro sobre todas as coisas, que rogaria a ele chamando-lhe Deus Padre e Deus Filho. Porque dos nomes da Santa Trindade, estes dois somente pude tomar, porque se lhe podem dizer em sua língua, mas o Espírito Santo, para este nunca achamos um vocábulo próprio nem circunlóquio bastante, e apesar de que não o sabia nomear porém sabia crer...”18 Os catecismos para os índios Kariri também eram salpicados de neologismos, não só em português, como na própria língua geral. Em sua explicação da pronúncia, Mamiani chamava a atenção para a introdução de neologismos: “Advirto por último, que por faltar nesta língua vocábulos que expliquem com propriedade o significado de algumas palavras que se usam nas Orações, Mistérios da Fés e outras matérias pertencentes a ela, usamos das mesmas vozes portuguesas ou latinas, como se introduziu nas outras línguas de Europa; pois da hebréia e grega passaram aos latinos, dos latinos passaram às outras nações da Europa como são Ave, Salve, Sacramentos, Trindade, etc.” (Mamiani, 1942 [1698], prefácio sem paginação). Ademais, ao invés da adaptação de um termo proveniente da cosmologia kariri, optou-se pelo vocábulo Tupã para designar o Deus cristão, anhí para designar alma, karaí para designar branco, tapwinhua (de tapanhuno, na língua geral) para designar escravo africano, entre outros. Outros termos faziam ligeiras adaptações do português para acomodar a pronúncia nativa: é o caso de cruçá (cruz), padzú (pai ou padre), missá (missa) e santuá (santos). Chama a atenção, ainda, algumas diferenças entre os catecismos jesuítico e capuchinho que, apesar de muito semelhantes em seu respectivo conteúdo, fizeram opções semânticas diferentes para alguns conceitos de fundamental importância. Assim, ao passo que Mamiani optou por um vocábulo kariri para designar anjos (idzeró), frei Bernardo preferiu usar o termo em português. Ambos os catecismos, contudo, traçaram equivalências nativas para o Paraíso (Arákié) e o inferno (nhewó) e, a exemplo da experiência com os Tupi, fizeram questão de nativizar o Demônio. Quanto ao modo de usar seu catecismo, Mamiani esclareceu que lançou mão de diálogos, “por ser o modo mais usado e fácil para ensinar a Doutrina Cristã”. No entanto, 18 Carta de José de Anchieta a Diego Laynes, 16 de abril de 1563 (Leite, 1956-60, III:561). Capítulo 2: A Língua Mais Usada na Costa do Brasil 49 “não é necessário que os índios aprendam todas as respostas, pois não são capazes disso, mas somente as orações e as respostas das perguntas gerais da Doutrina...” Grande parte dos diálogos seguia o modelo ibérico, porém o autor incorporou várias adaptações interessantes para tornar o conteúdo mais palpável para os índios, correndo o risco no entanto de estimular a emergência de cultos nativos com agenda própria. Por exemplo, num diálogo voltado para a explicação da crença em Deus (itú Tupã), Mamiani buscava deixar claro a distinção entre a adoração do salvador e a adoração de objetos: Mestre: É bom que adoreis a Cruz? Discípulo: Sim. Mestre: A quem adorais? Por ventura a mesma cruz de pau? Discípulo: Não. Vendo a Cruz lembramo-nos de JESU Cristo, que nela morreu por amor nosso, por isso adoramos nela a JESU Cristo (Mamiani, 1942 [1698], 30). Esta censura da adoração dos objetos tem base nas Escrituras, sem dúvida, porém guarda um significado especial no contexto das missões americanas, nas quais cultos a paus e pedras surgiam a contrapêlo dos ensinamentos jesuíticos. Mamiani retomou esse lembrete nos diálogos, fazendo o catecúmeno afirmar que entendia o conteúdo simbólico das imagens sacras: “Não adoro o pau, a pedra, ou o barro; mas unicamente adoro aos Santos figurados naquelas imagens de pau, de pedra e de barro” (Mamiani, 1942 [1698], 31). Uma parte importante dos ensinamentos dos mistérios da fé detinha-se em diálogos mais abstratos trazendo elementos da cosmogonia e escatologia cristãs. O diálogo sobre os mandamentos, no entanto, era bem mais explícito em sua repressão ao modo de ser tradicional dos Kariri, mostrando que a conversão implicava não apenas na abertura para o novo como também e sobretudo no abandono das práticas culturais precoloniais. Assim, quando o Mestre pede ao Discípulo uma explicação do primeiro mandamento, não fica satisfeito com uma simples resposta cristã. Pede mais, recebendo a seguinte resposta: “Manda também que não demos crédito às observâncias vãs e abusões dos nossos avós porque havemos de crer em um só Deus”. Atiçada a curiosidade do Mestre, o diálogo continua: Capítulo 2: A Língua Mais Usada na Costa do Brasil 50 Mestre: Contai-me algumas destas abusões para guardamo-nos delas. Discípulo: Curar os doentes com assopro; Curar de palavra, ou com cantigas; Pintar o doente de genipapo, para que não seja conhecido do diabo e o não mate; Espalhar cinza à roda da casa aonde está um defunto, para que o diabo daí não passe a matar outros; Botar cinzas no caminho, quando se leva um doente, para que o diabo não vá atrás dele; Esfregar uma criança com porco do mato e lavá-la com Aloá, para que, quando for grande, seja bom caçador e bom bebedor; Não sair de casa de madrugada, para não se topar com a bexiga no caminho; Fazer vinho, derramá-lo no chão e varrer o adro da casa para correr com as bexigas (Mamiani, 1942 [1698], 84-85). É interessante este diálogo porque denuncia um mundo em pleno rebuliço, onde a desordem instaurada pela presença européia, com a introdução de contágios e de uma mortalidade exacerbada, colocava em confronto sistemas de cura e de crença. Os detalhes sobre as práticas rituais ligadas à doença e à morte não se referem, obviamente, a coisas do passado, superadas pela nova comunidade cristã que desabrochava nas aldeias missionárias. Pelo contrário, constituíam traços persistentes que mostram alguns dos limites do processo de conversão. O padre Mamiani também aproveitou outros mandamentos para comentar aspectos da transformação dos Kariri em índios. No caso do terceiro mandamento, por exemplo, a explanação do discípulo mostra um esforço em caracterizar atividades cotidianas em categorias de trabalho. “No Domingo e dia santo não se trabalha na roça; não se levanta nem se cobre a casa; não se cortam paus no mato; não se cose; não se fia; enfim se deixa todo o trabalho.” O que se faz nesses dias, em suma, é ouvir missa, rezar e escutar a pregação do padre. “Tudo isso é melhor do que beberem vinho e fazerem seus folguedos”. Contudo, a questão do trabalho era determinada não apenas no âmbito da missão mas no contexto mais amplo da colonização, como ensina o diálogo: diferentemente dos brancos, os índios não “são obrigados a deixar de trabalhar todos os dias santos”, porque na primeira metade do século XVI o papa Paulo III “concedeu [uma bula] aos índios para que possam trabalhar em alguns dias santos”. CAPÍTULO 3 Entre o Etnocídio e a Etnogênese Identidades Indígenas Coloniais1 EM SUA HISTÓRIA DO BRASIL, ESCRITA EM 1627 porém impressa apenas no início do século XX, Frei Vicente do Salvador faz menção à obra de um certo D. Diego de Avalos, “vizinho de Chuquiabue no Peru”, que traçava as origens dos índios americanos à Península Ibérica, mostrando as possibilidades e os limites das fantasias que o descobrimento do Novo Mundo suscitava. Existia uma gente bárbara, segundo D. Diego, integrada por comedores de carne humana, que habitavam uma região serrana da Andaluzia. Dizimados pelos espanhóis em guerras, alguns poucos remanescentes deixaram aquela terra e “embarcaram para onde a fortuna os guiasse”, passando primeiro pelas Canárias, depois Cabo Verde e, finalmente, Brasil. “Saíram dois irmãos por cabos desta gente, um chamado Tupi e outro Guarani; este último, deixando o Tupi povoando o Brasil, passou a Paraguai com sua gente e povoou o Peru” (Salvador, 1982 [1627], 77).2 Frei Vicente não deu o menor crédito a este relato fantástico, mas aproveitou para afirmar que tinha a certeza de que os povos indígenas originaram de outro lugar que não a América, “porém donde não se sabe, porque nem entre eles há escrituras, nem houve algum autor antigo que deles escrevesse”. Ao localizar a origem dos índios em algum recanto remoto da Espanha, D. Diego talvez procurasse dizer alguma coisa a respeito da unidade da espécie humana, refletindo sobre a proximidade antiga entre os índios e os colonizadores. Ao mesmo tempo, no entanto, fornecia uma narrativa – de forma 1 Texto inédito, uma versão muito diferente foi preparada para o Colóquio “Tempo Índios”, realizado no Museu Nacional de Etnologia em Lisboa em 2000. Agradeço o convite de Joaquim Pais de Brito que ocasionou a elaboração deste trabalho. 2 Não consegui localizar outras referências a este autor. Possível erro do copista, Chuquiabue deve ser uma referência a Chuquisaca, no Alto Peru (Bolívia), local próximo ao Paraguai: daí a referência aos Guarani. De qualquer modo, a menção pelo frei Vicente certamente decorre do fluxo de notícias que acompanhavam as mercadorias dos peruleiros, comerciantes portugueses que frequentavam o Peru e o Alto Peru neste período (cf. Alencastro, 2000, 110-112). Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 54 encapsulada – da conquista dos povos ameríndios, mais precisamente dos Tupi do Brasil e dos Guarani do Paraguai, entre os quais o canibalismo, o despovoamento e a migração foram elementos marcantes. De qualquer modo, a versão do colono espanhol é tão interessante pelo seu conteúdo específico quanto pela sua explicação da origem dos nomes étnicos para os povos indígenas da América colonial. Perseguidos, dizimados, seus remanescentes afugentados, os povos que se recompuseram no Novo Mundo tomaram o nome de seus chefes como autodenominação. Ademais, a composição específica das etnias, no aval de D. Diego, havia sido fruto de um processo histórico de contato e de conquista. Na exata contramão desse registro europeu, surgiu um relato mais ou menos coêvo na História da Missão dos Padres Capuchinhos, do francês Claude d’Abbeville, reproduzindo o notável discurso de Momboré-uaçu, um ancião tupinambá na ilha de São Luís: Vi a chegada dos portugueses em Pernambuco e Potiú (... ) De início, os portugueses não faziam senão traficar sem pretenderem fixar residência. Nessa época, dormiam livremente com as raparigas, o que os nossos companheiros de Pernambuco reputavam grandemente honroso. Mais tarde, disseram que nós devíamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e edificar cidades para morarem conosco. E assim parecia que desejavam que constituíssemos uma só nação. Depois, começaram a dizer que não podiam tomar as raparigas sem mais aquela, que Deus somente lhes permitia possuí-las por meio do casamento e que eles não podiam casar sem que elas fossem batizadas. E para isso eram necessários paí [isto é, padres]. Mandaram vir os padres; e estes ergueram cruzes e principiaram a instruir os nossos e a batizá-los. Mais tarde afirmaram que nem eles nem os paí podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem. E, assim, se viram constrangidos os nossos a fornecer-lhos. Mas não satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nação; e com tal tirania e crueldade a trataram, que Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 55 os que ficaram livres foram, como nós, forçados a deixar a região (Abbeville, 1975 [1614], 115, ênfase minha). Do mesmo modo que o frei Vicente contestou a veracidade das afirmações de D. Diego, poder-se-ia duvidar da autenticidade do relato de Momboré-uaçu: afinal de contas, segundo o historiador capuchinho que transcreveu a narrativa, o ancião era velho mesmo, contando nada menos que 180 anos de idade. Chama a atenção, no entanto, a maneira pela qual se reconstituía a conquista a partir de uma perspectiva indígena. “[P]arecia que desejavam que constituíssemos uma só nação”: esta foi a leitura que os Tupinambá fizeram nos primórdios do contato, quando as relações pareciam obedecer a lógica da sociedade indígena. Não contentes com isso, os novos aliados começaram a subverter as expectativas dos índios, interferindo diretamente nos domínios do parentesco, da guerra e, com a presença cada vez maior dos padres, no do sagrado. A busca insaciável por escravos – aqui, de maneira significativa, a missão jesuítica é apresentada como forma de escravidão – primeiro envolvia os índios como fornecedores de escravos através da guerra e depois submetia os membros do próprio grupo ao cativeiro. Para preservar a liberdade, restava-lhes apenas a opção de “deixar a região”. Este mesmo tipo de análise já foi realizado, há bastante tempo, por Florestan Fernandes (1975a). Entretanto, prisioneiros das estruturas que o etnólogo construiu em seu meticuloso modelo funcionalista, os Tupinambá de Florestan só sobreviveriam ao impacto da conquista através da migração, como haviam feito os grupos egressos de Pernambuco que teriam reconstituído a coesão tribal em lugares distantes da presença européia. Nesse sentido, davam as costas à história para não ser vítima dela. Mas há outras leituras possíveis. Cresce, na bibliografia etnohistórica das Américas, a idéia de que o impacto do contato, da conquista e da história da expansão européia não se resume apenas na dizimação de populações e na destruição de sociedades indígenas. Esse conjunto de choques também produziu novas sociedades e novos tipos de sociedade, como bem apontam Stuart Schwartz e Frank Salomon (1999, 2:443). De acordo com Guillaume Boccara (2000), “vêm sendo amplamente reconhecidos o caráter construído das formações sociais e das identidades, assim como o dinamismo das culturas e ‘tradições’”. Desta feita, esse autor busca desmantelar a radical oposição entre “pureza originária/contaminação pós-contato”, binômio que teima em resistir, sublinhando-se o Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 58 chama de “etnificação” ou, para outros, “tribalização”. Aspecto fundamental na formação de alianças e na determinação das políticas coloniais – mesmo em áreas “centrais” como no México ou no Peru, diga-se de passagem – a tendência de definir grupos étnicos em categorias fixas serviu não apenas como instrumento de dominação, como também de parâmetro para a sobrevivência étnica de grupos indígenas, balizando uma variedade de estratégias geralmente enfeixadas num dos pólos do inadequado binômio acomodação/ resistência. Isto vem obrigando os estudiosos a tratar o cipoal de etnônimos com mais cautela e rigor, sobretudo no que diz respeito à relação entre as formas sociais pré- coloniais e as unidades sociais posteriores à instalação de populações européias e africanas nas Américas. Neste sentido, há uma relação intrínseca entre a classificação étnico-social imposta pela ordem colonial e a formação de identidades étnicas. É importante lembrar, no entanto, que as identidades indígenas se pautavam não apenas em relação às origens pré-coloniais como também em relação a outras categorias – indígenas ou não – que gestaram no contexto colonial das Américas. Pode-se começar pelos próprios europeus, tão unos e diversos: faz-se necessário sublinhar não apenas os jogos identitários que diferenciavam as potências européias no Novo Mundo (cf. Seed, 1995 e Perrone-Moisés, 1997) como também as clivagens internas a cada unidade “nacional”. Na América Portuguesa – não diferente da América Espanhola – pesavam as distinções definidas a partir das origens religiosas (com a presença importante de cristãos novos), da noção de pureza de sangue e da condição social. Do mesmo modo, outro fenômeno pouco estudado de um ponto de vista antropológico diz respeito às origens étnico-nacionais diversas entre os jesuítas que atuavam nas missões, objeto de uma acirrada controvérsia no século XVII e condição subjacente a práticas de catequese distintas.3 Finalmente, é preciso prestar mais atenção às novas categorias sociais que foram constituídas no bojo da sociedade colonial, sobretudo os marcadores étnicos genéricos, tais como “carijós”, “tapuios” ou, no limite, “índios”. Se estes novos termos no mais das 3 No Brasil, esta diferença se manifestava claramente nas missões entre os Kariri nos séculos XVII e XVIII (Pompa, 2001), e merece ser estudado em outros lugares, sobretudo na Amazônia da primeira metade do século XVIII. A disputa entre missionários portugueses e “estrangeiros” também foi central à história das missões orientais, nas quais alguns jesuítas italianos chocavam a ortodoxia dos portugueses com práticas “transculturais”, isto é, adotando costumes nativos. Ver, entre outros, Alden (1996, esp. 267- 272). Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 59 vezes refletiam as estratégias coloniais de controle e as políticas de assimilação que buscavam diluir a diversidade étnica, ao mesmo tempo se tornaram referências importantes para a própria população indígena. Assim, os índios coloniais buscavam forjar novas identidades que não apenas se afastavam das origens pré-coloniais, como também procuravam se diferenciar dos emergentes grupos sociais que eram frutos do mesmo processo colonial, o que se intensificou com a rápida expansão do tráfico transatlântico e o correspondente aumento de uma população africana e afrodescendente. Com o crescimento destes outros setores populacionais, parece ter havido uma crescente estigmatização dos índios, separados de e opostos a outras categorias étnicas e fenotípicas, tais como brancos, mestiços, negros (Sider, 1994, 112). Seria precipitado, no entanto, chegar a uma conclusão definitiva sobre este processo na América Portuguesa, mesmo porque ainda sabemos pouco sobre as relações tão ambíguas quanto complexas que existiam entre sociedades indígenas e quilombos, por exemplo, ou entre escravos índios e escravos africanos.4 Etnocídio Na época em que Diego de Avalos, Momboré-uaçu e frei Vicente do Salvador narraram as suas histórias, o litoral brasileiro já havia passado por uma terrível hecatombe. A exploração, comércio e colonização dos europeus na América desencadearam transformações profundas nas sociedades indígenas através de diversos mecanismos, alguns implementados conscientemente, outros introduzidos sem a mesma intencionalidade. No Brasil, o tríplice avanço dos soldados d’el Rei, dos soldados de Cristo e, sobretudo, dos soldados microscópicos de uma invasão de patógenos afetou radicalmente a inúmeras sociedades, sobretudo os diferentes grupos Tupi da Costa. Certamente o fator que mais atingiu as sociedades da orla marítima no decorrer do século XVI foi o alastramento de doenças antes desconhecidas nas Américas, manifestando-se de maneira mais brutal e impiedosa nos repetidos surtos epidêmicos que ceifavam a vida de milhares de vítimas. 4 Embora não tenha atingido o patamar dos estudos sobre o Caribe e as Guianas, este tema tem sido objeto de vários trabalhos interessantes recentemente. Ver, por exemplo, a coletânea organizada por Gomes (1999). No que diz respeito à aproximação entre antropologia e história no estudo de comunidades indígenas e de “remanescentes” de quilombos, veja-se o instigante artigo de Arruti (1997). Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 60 Conforme lembra Neil Whitehead (1993b, 288-291), é preciso matizar as ondas destrutivas das doenças epidêmicas em termos temporais e espaciais. Segundo ele, os autores que enfatizam tão somente a dimensão trágica do despovoamento tendem a “imputar um caráter demasiadamente uniforme ao alastramento das epidemias”, deixando de lado fatores importantes que ora intensificavam, ora amenizavam a transmissão de patógenos. Dentre esses fatores, as diferenças ecológicas, os padrões de alimentação e, sobretudo, as “respostas ativas” dos indígenas às epidemias podiam determinar diferenças significativas no desfecho dos contágios. Do mesmo modo, diferentes regimes de trabalho ou de missionação condicionaram a ação e o impacto das doenças, produzindo escalas bastante diferenciadas de mortalidade (Newson, 1985). Um ponto crucial apontado por Whitehead diz respeito à defasagem entre os primeiros contatos e os principais episódios epidêmicos que assolaram as populações do litoral. Ao mesmo tempo, porém, é admissível supor que o inverso fosse verdadeiro também, isto é, que algumas sociedades indígenas conheceram as doenças antes do contato direto com portadores europeus, mestiços ou africanos. Seja como for, no litoral brasileiro do século XVI o contato direto já havia atravessado cinco décadas antes da eclosão das primeiras pandemias. Longe de constituir um variável independente no despovoamento do litoral, a mortalidade provocada por doenças contagiosas atingiu seus pontos mais altos quando conjugada com outras mudanças importantes nas relações entre colonizadores e índios. Afinal de contas, foi na esteira das ofensivas bélicas promovidas pelo governador Mem de Sá e do processo concomitante de deslocamento das populações indígenas para as aldeias missionárias que ocorreram as primeiras grandes epidemias, com destaque para o alastramento da varíola pelo litoral de Pernambuco a São Vicente em 1562-63 (Dean, 1984; Alencastro, 2000, 127-133; e Monteiro, 1999, esp. 996-1009). As doenças letais semearam a desordem entre a população nativa, sobretudo naquela subordinada aos missionários e aos colonos. Anchieta, rememorando este grande surto epidêmico, escreveu em 1584: No mesmo ano de 1562, por justos juízos de Deus, sobreveio uma grande doença aos Índios e escravos dos Portugueses, e com isto grande fome, em que morreu muita gente, e dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos Portugueses e se fazer escravos, vendendo-se Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 63 em guerras coloniais, em rivalidades intra-européias ou no crescente tráfico de cativos indígenas mostrou-se uma importante estratégia para vários grupos que buscaram resguardar a sua autonomia, paradoxalmente através desta “colaboração”. Os fenômenos de “ethnic soldiering” (especialização bélica de alguns grupos étnicos ou, ainda, a incorporação de determinadas etnias nas tropas coloniais), estudado por Neil Whitehead (1990), ou do comércio envolvendo intermediários indígenas que forneciam cativos (Monteiro, 1994a; Farage, 1991) implicavam em muito mais que a mera manipulação de rivalidades pré-coloniais; antes estes processos sinalizavam muitas vezes a emergência de novas unidades sociopolíticas, apesar de identificados pelos primeiros escritores coloniais em termos cada vez mais fixos e estáticos. Em seu interessante estudo sobre a etnogênese mapuche no Chile, Guillaume Boccara traça a transformação da guerra de sua forma pré-colonial para a forma pós- contato da maloca, um empreendimento de pilhagem voltado para a aquisição de bens de origem européia e para o fortalecimento dos caciques que exerciam um “novo tipo de poder” (Boccara, 1999, 442). Este deslocamento da atividade guerreira também se desdobrava em ataques constantes aos índios “amigos”, isto é, aliados aos espanhóis, que constituíam uma importante fonte de cavalos. Neste sentido, a exemplo de tantos outros grupos em situações de fronteira nas Américas, os Mapuche articulavam a sua identidade de modo algo paradoxal, valendo-se da imbricação com a esfera colonial para se manter efetivamente independente dela. Com referência ao Brasil, muito tem sido escrito sobre a guerra Tupinambá, porém praticamente nada sobre a sua transformação. Florestan Fernandes chegou a esboçar um plano de trabalho sobre a “função social da guerra” na sociedade colonial, porém o seu engajamento no projeto da Unesco acabou adiando o trabalho que nunca chegou a ser concretizado plenamente.6 A documentação colonial de fato aponta para um processo de reorientação da guerra, qual seja através dos testemunhos que reclamavam da venda dos cativos de guerra – aí incluídos Momboré-uaçu, como vimos acima – seja através da especialização de certos grupos como fornecedores de escravos. Há também situações análogas ao caso dos Mapuche mencionado acima. São muito bem 6 Estou desenvolvendo este tema num ensaio ainda inconcluso, com o título “O Livro que Florestan Fernandes Não Escreveu”. Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 64 documentados os exemplos Guaicuru e Paiaguá no extremo oeste da América Portuguesa no final do século XVII e atravessando o século XVIII (Vangelista, 1991), bem como de outros grupos de “corso” – o melhor exemplo é dos temíveis Muras, estudados por Marta Amoroso (1992) e por David Sweet (1992) – que orientavam as práticas guerreiras para os frequentes ataques aos portugueses e seus aliados indígenas. Assim, grupos provavelmente pouco expressivos – ou mesmo inexistentes – no período pré-colonial atingiram uma proeminência no contexto colonial (Whitehead, 1993b, 297). Mesmo etnias que tiveram uma presença destacada no panorama pré-conquista passaram por mudanças significativas ao reformular a guerra diante do novo quadro de alianças e inimizades, como no caso dos Tupinambá que se deslocaram para o Médio Amazonas. O holandês Maurício de Heriarte, que acompanhou a grande expedição de Pedro Teixeira pelos rios Amazonas e Napo em 1637-38, descreveu os habitantes da Ilha Tupinambaranas como descendentes dos Tupis do litoral: O princípio destes índios Tupinambaranas não foi de naturais desse rio. Dizem que, no ano de 1600, saíram seus antepassados do Brasil em três tropas, em busca do Paraíso Terreal (coisa de bárbaros) rompendo e conquistando terras, e que havendo caminhado muito tempo chegaram àquele sítio, que acharam abundante e cheio de índios naturais; e por ser bom o sitiaram e conquistaram os seus naturais, avassalando-os, e com o tempo se casaram uns com os outros, e se aparentaram; mas não deixam de conhecer os naturais a superioridade que os Tupinambaranas têm neles (apud J. Fernandes, 1997, 136). Continuando, Heriarte fez uma outra observação preciosa: “São os mais belicosos índios destas partes, mui senhores e liberais, bem dispostos, mas muito traidores, carniceiros, e era a gente que mais carne humana comia nesse rio, do que a comunicação dos Portugueses os tem tirado em muita parte”. Nesse caso específico, a antropofagia foi lida pelo viajante holandês como uma expressão importante da identidade do grupo, tanto em referência às demais etnias da Amazônia quanto no que diz respeito aos descendentes dos antigos Tupinambá que ainda viviam no litoral. Nesse sentido, a reinstituição do canibalismo por um grupo que muito Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 65 provavelmente fora obrigado a abandoná-lo quando passou pelas missões de Pernambuco, talvez se assemelhasse aos casos estudados por Whitehead na Guiana (1993b, 297), nos quais surgiram cultos canibais como expressão de um radicalismo étnico que embasava a resistência e a autonomia desses povos. Os Tupinambá do litoral, sob o controle dos colonizadores, parecem ter seguido um caminho diferente, como mostram de maneira convincente Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha (1985). Ainda assim, há algumas evidências para outros grupos que teriam lançado mão do canibalismo para demarcar as relações com os brancos: este seria o caso dos Botocudos nos séculos XVIII e XIX (ver capítulo 7, abaixo) ou, de uma maneira curiosa, dos Cambeba no século XVIII. Em sua “Memória sobre o gentio Cambeba que habitava as margens e nas ilhas do rio Solimões”, Alexandre Rodrigues Ferreira registrou uma interessante observação: Há dúvida, se os Cambebas eram antropófagos. Crêem muitos que o eram e são ainda os que vivem no mato. Todos os desta Nação, que examinei neste particular, me afirmaram que era falsa semelhante imputação, antes dizem os que descendem dos Cambebas, que eles usam do artifício das suas cabeças para mostrarem que não comem carne humana, podendo assim escapar à escravidão, que por igual delito os submetiam os Europeus (Ferreira, 1974 [1783-92], 52).7 Nos séculos XVI e XVII, ao longo do litoral, uma sequência de guerras contribuiu para o estabelecimento e, por conseguinte, congelamento de grupos étnicos. A sequência é longa: a guerra dos Tamoios, as guerras movidas por Mem de Sá na Bahia e no Rio de Janeiro, a conquista da Paraíba, a conquista do Maranhão e do Pará, a guerra luso- holandesa, o conjunto de conflitos conhecido na historiografia como a Guerra dos Bárbaros, a destruição dos Palmares, para ficar apenas nos episódios mais marcantes. Guerreiros potiguares, inimigos duros na conquista do Rio Grande do Norte, mais tarde serviram aos portugueses contra os Aimoré de Porto Seguro e Ilhéus e chegaram mesmo 7 Para uma discussão interessante dos pressupostos que embasavam as imagens produzidas pelo naturalista baiano, veja-se Carvalho Jr. (2000). Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 68 Se o narrador capuchinho errou na etimologia – tabajara quer dizer “aldeia vizinha” – ele acertou o sentido do termo. De fato, em várias partes do litoral brasileiro no século XVI, o significado atribuído ao termo tabajara – ou tobajara – oscilou entre aliado e inimigo, dependendo do ponto de vista do observador. Talvez o melhor exemplo do caráter relacional e historicamente específico dos nomes étnicos resida no par de inimigos Tamoio e Tememinó, este primeiro referindo-se a “avós” ou antepassados, o segundo “netos” ou “descendentes”. Ao que tudo indica, o termo Tamoio surgiu no bojo da revolta dos Tupinambás que ocupavam o litoral entre São Vicente e a Baía de Guanabara no final da década de 1540. Este movimento ganhou fôlego com a chegada, na década seguinte, dos franceses que estabeleceram uma colônia no Rio de Janeiro. É curioso notar que no relato de Hans Staden, escrito na primeira fase do conflito, não se menciona nem o termo Tamoio, nem Tememinó. O artilheiro alemão descreveu o seu cativeiro entre os Tupinambá e, ao se referir aos inimigos setentrionais destes, menciona os Maracajás. Gatos selvagens, este etnônimo cedeu lugar para Tememinó, termo que se consolidou enquanto grupo étnico aliado dos portugueses na tomada de Guanabara e nos combates contra os Tamoio, sendo premiados com terras e honrarias, suas lideranças conservando pelo menos até o século XVIII os privilégios outorgados a D. Martim Afonso de Souza Araribóia (M. R. Almeida, 2000). A trajetória de algumas lideranças potiguares também é ilustrativa dos processos de consolidação étnica no contexto das guerras coloniais. O próprio etnônimo suscita discussão: seriam Petiguares – povo do fumo – ou Potiguares – povo do camarão? Com o tempo, o segundo nome vingou, sendo inclusive aportuguesado na dinastia que se instalou. Mas até os anos finais do século XVI, constituíam o mais duro inimigo dos portugueses, ainda mais porque contavam com o apoio de alguns franceses que forneceram chumbo e pólvora como reforço para os já temíveis arcos desse povo. Duramente castigados pelos portugueses e seus aliados tabajaras, acabaram acertando um acordo de paz em 1599. Aceitando o batismo e a aliança com os portugueses – e, estranhamente, com os Tabajara – concordaram em reorientar os atributos bélicos para a supressão das rebeliões dos Aimoré em Ilhéus e Porto Seguro. Sob o comando do chefe Zorobabé, embarcaram seis caravelas com 1300 guerreiros potiguares e tabajaras, que surpreendentemente conseguiram derrotar e escravizar vários grupos Aimoré. Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 69 Após uma volta triunfal, Zorobabé foi mobilizado pelo governador para assolar um mocambo de “negros de Guiné fugidos (...) nos palmares do Rio Itapicuru”, vários dos quais ele capturou e vendeu para os brancos, para depois comprar uma “bandeira de campo, tambor, cavalo e vestidos para entrar triunfante em a sua terra”. Chegou a pedir aos franciscanos que “lhe mandassem uma dança de curumins (...) e lhe enramassem a igreja e abrissem a porta, porque havia de entrar nela”. Mas se a pompa européia o atraía, Zorobabé também queria continuar a “tomar a vingança” de seus inimigos e preparou-se para “ir dar guerra ao Milho Verde, que era um principal do sertão que lhe havia morto um sobrinho cristão”; mais provavelmente, também visava conseguir escravos para os portugueses. O presidente da congregação advertiu “que já eram vassalos de el-rei e não podiam fazer guerra justa sem ordem sua e do seu governador geral”. Figura prestigiada, recebia presentes e vinhos dos brancos da Paraíba, “ou por seus interesses de índios por seus serviços e empreitadas, ou por temor que tinham da sua rebelião”. Este último temor era compartilhado pelo governador, que acabou prendendo Zorobabé. Tentaram matá-lo diversas vezes dando-lhe veneno, porém ele não morria, “porque dizem que receoso [da peçonha] bebia de madrugada a sua própria câmara e que com esta triaga se preservava e defendia do veneno”. Cada vez mais perigoso, foi enviado para o Reino, primeiro a Lisboa mas, “por ser porto de mar do qual cada dia vêm navios para o Brasil em que podia tornar-se”, seguiu para Évora onde faleceu (Salvador, 1982 [1627], 287-292). A trajetória seguida pela família Camarão demonstra um outro caminho para os Potiguar após a conquista. Se a participação de Antônio Felipe Camarão como fiel aliado dos portugueses na guerra contra a ocupação holandesa é bem conhecida, é preciso contextualizar esta figura num plano mais amplo, num mundo colonial onde a aliança, a vassalagem e o privilégio constituíram elementos importantes na projeção de lideranças indígenas. Seu pai foi um poderoso chefe potiguar que, no final do século XVI, lutou ao lado de aventureiros franceses contra a expansão dos interesses portugueses para o norte do rio São Francisco. Potiguaçu – Camarão Grande – foi principal dos Potiguar da margem esquerda do Rio Potengi, no Rio Grande do Norte, e acabou concordando com a paz firmada no Forte dos Reis Magos em 1599. Também admitiu a entrada de missionários franciscanos entre a sua gente, sendo ele próprio batizado com o nome cristão de Antônio Camarão em 1612. Estes acontecimentos não significaram, contudo, Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 70 que estes guerreiros potiguares deixariam de lado as armas. Muito pelo contrário, agora aliados aos portugueses que continuavam a marcha da conquista para o norte com o objetivo de tomar o Maranhão, os potiguares do Potengi se mostraram indispensáveis para o êxito dos portugueses e luso-brasileiros em vários conflitos que marcaram o conflagrado século XVII. Potiguaçu seguiu para o Maranhão no comando de seus guerreiros por volta de 1614, porém parece ter morrido no caminho. Nascido por volta de 1601, Antônio Felipe Camarão foi despachado ainda criança para a aldeia de parentes no Pernambuco, provavelmente na companhia de outros Potiguares do Rio Grande que foram deslocados para missões na esteira do acordo de paz de 1599. Foi “criado e doutrinado” – nas palavras de um escritor jesuíta – na missão franciscana de São Miguel, aprendendo a ler e escrever. A exemplo do pai, destacou-se nas atividades bélicas no comando de guerreiros que residiam nas missões, mobilizados para extirpar as ameaças à presença portuguesa: franceses, holandeses, quilombolas e, sobretudo, inimigos indígenas. Estes últimos incluíam outros grupos Potiguar, como o da Baía da Traição, na Paraíba, que auxiliou os holandeses quando estes tomaram a Bahia de Todos os Santos em 1625. Pelos serviços prestados, o rei Felipe II (IV da Espanha) agraciou este líder indígena com o Hábito de Cristo com 40.000 réis de renda anual, além de outros 40.000 réis de soldo pelo patente de Capitão-Mór dos Índios Potiguares. Fiel vassalo da coroa portuguesa, Antônio Felipe Camarão foi assim premiado com cargos, honras e rendas em caráter não só vitalício como também hereditário. Neste sentido, Francisco Pinheiro Camarão, Diogo Pinheiro Camarão, Sebastião Pinheiro Camarão e Antônio Domingos Camarão sucederam-no como Governador dos Índios de Pernambuco e Capitanias Anexas, instaurando uma verdadeira dinastia nativa (Lopes, 1999). Em Busca do Índio Colonial Se, na América Portuguesa, a presença de dinastias indígenas com títulos de nobreza figurava como algo raro e geralmente ligado aos serviços militares prestados, esta, no entanto, permite vislumbrar um aspecto importante do papel desempenhado por atores indígenas no drama colonial. Com certeza, a inserção de diferentes grupos indígenas no interior do espaço colonial – ou às margens dele – permanece um tema- chave a ser explorado de maneira mais assídua, até porque grande parte da documentação Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 73 faziam seu motim de guerra e dava a sua grita, e pintados de várias cores, nuzinhos, vinham com as mãos levantadas receber a bênção do padre, dizendo em português, ‘louvado seja Jesus Cristo’” (Cardim, 1997 [1583-90], 222). O diabo, ao que parece, também era figura indispensável nas festas realizadas e no teatro representado nas aldeias cristãs. Numa festa descrita por Cardim, “nem faltou um anhangá, [isto é], diabo, que saiu do mato; este era o índio Ambrósio Pires, que a Lisboa foi com o padre Rodrigo de Freitas. A esta figura fazem os Índios muita festa por causa de sua formosura, gatimanhos e trejeitos que faz; em todas as suas festas metem algum diabo, para ser deles bem celebrada” (Cardim, 1997 [1583-90], 222). Assim, a música sacra, os diálogos da fé e os rituais cuidadosamente encenados pelos jesuítas marcavam a vida dos índios aldeados. No entanto, de acordo com o padre Cardim e para o desgosto de muitos padres, isto não significava o fim dos cantos e ritos que eles tanto queriam extirpar. Após uma festa descrita na Narrativa Epistolar, os índios deram continuidade aos festejos à moda gentílica, movidos “ao som de um cabaço cheio de pedrinhas (como os pandeirinhos dos meninos em Portugal)” e coordenados “por tal compasso que não erram ponto com os pés, e calcam o chão de maneira que fazem tremer a terra” (Cardim, 1997 [1583-90], 234-35). Não obstante a sua tentativa de relativizar a cena com comparações metropolitanas, Cardim com efeito estava diante de um ritual ao som do maracá, relembrando as glórias da guerra intertribal e da vingança. “Não se lhes entende o que cantam, mas disseram-me os padres que cantavam em trova quantas façanhas e mortes tinham feito seus antepassados” (Cardim, 1997 [1583-90], 235). Em outra ocasião, “a procissão foi devotíssima com muitos fachos e fogos, disciplinando-se a maior parte dos índios, que dão em si cruelmente, e têm isto não somente por virtude, mas também por valentia, tirarem sangue de si e serem abaetê, sc. valentes” (Cardim, 1997 [1583-90], 247). Exatos dois séculos depois, nas vilas pombalinas visitadas por Alexandre Rodrigues Ferreira, o misto entre o pré-colonial e o novo apareceu para o desgosto do naturalista. A “Memória sobre as cuias que fazem as índias de Monte Alegre e de Santarém” é sumamente interessante pois descreve as técnicas e a produção em detalhes. A produção anual era de 5 a 6000 cuias, do fabrico das quais “é que se vestem a maior parte das índias de Monte-Alegre”. Cada cuia alcançava de 100 a 120 réis, “conforme o Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 74 tamanho, a pintura, a qualidade, se é lisa ou de gomos”. A produção destinava-se aos brancos: “as índias que sabem que os brancos as compram, tratam de as trabalhar e aperfeiçoar”. Porém Alexandre Rodrigues se deteve num detalhe muito importante: as índias reservavam uma parte da produção para fins próprios, com implicações não apenas materiais como também simbólicas. As cuias são os pratos, os copos e toda a baixela dos índios. Cada um tem em sua casa uma delas reservada para dar a beber, ou água ou os seus vinhos ao Principal, quando o visita, ou casualmente, ou em algum dia de convite. Consiste o distintivo dela, em ser ornada de algum búzio, seguro por uma bola de cera, toda cravada de miçanga, e sua muiraquitã, em cima, que lhe serve de asa em que pega o Principal. Oferece-se ao dito, em cima de uma salva que é feita de ponteiros de patauá... Por mais diligência que fiz por comprar uma destas, à satisfação da sua dona, não foi possível, tanto é o apreço que fazem da taça por onde bebe o seu Principal (Ferreira, 1974 [1783-92], 36-39, grifo do autor). Construindo a Própria História Assim como a reflexão de Momboré-uaçu serviu, antes de tudo, para instruir as relações que se desenrolavam entre os índios de São Luís e a nova leva de europeus, muitas outras lideranças e outros pensadores indígenas mobilizavam os seus conhecimentos para se posicionar diante da história. Num outro trecho bastante conhecido da mesma História das Missões Capuchinhas no Maranhão, o líder tupinambá Japiaçu narrava as origens da radical separação entre índios e brancos: Éramos uma só nação, nós e vós; mas Deus, tempos após o dilúvio, enviou seus profetas de barbas para instruir-nos na lei de Deus. Apresentaram esses profetas ao nosso pai, do qual descendemos, duas espadas, uma de madeira e outra de ferro e lhe permitiram escolher. Ele achou que a espada de ferro era pesada demais e preferiu a de pau. Diante disso o pai de quem descendestes, mais arguto, tomou a de ferro. Desde então fomos miseráveis, pois os profetas vendo que os de nossa nação não queriam acreditar neles, subiram para o céu, Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 75 deixando as marcas dos seus pés cravadas com cruzes no rochedo próximo de Potiú (Abbeville, 1975 [1614], 60-61). Este interessante discurso dá margem para diversas interpretações. À primeira vista, trata-se da transformação da trágica história do contato em mito, fornecendo uma explicação nativa – dentro de um gênero discursivo indígena – da situação de subordinação e de inferioridade na qual os Tupinambá do Maranhão se encontravam no início do século XVII. Mas o aspecto mais importante disso reside no deslocamento do sujeito, onde é a ação do índio que determina a marcha da história. Para Manuela Carneiro da Cunha, comentando este e outros exemplos de mitologias que tematizam a gênese do homem branco, o que deve ser salientado “é que a opção, no mito, foi oferecida aos índios, que não são vítimas de uma fatalidade mas agentes de seu destino. Talvez escolheram mal. Mas fica salva a dignidade de terem moldado a própria história” (Carneiro da Cunha, 1992a, 19). É, certamente, um avanço para a historiografia brasileira reconhecer as lideranças indígenas enquanto sujeitos capazes de traçar a sua própria história. No entanto, é necessário considerar que as escolhas pós-contato sempre foram condicionadas por uma série de fatores postos em marcha com a chegada e expansão dos europeus em terras americanas. A catástrofe demográfica que se abateu sobre as sociedades nativas, estreitamente ligada às estratégias militares, evangelizadoras e econômicas dos europeus, deixou um quadro desesperador de sociedades fragmentadas, imbricadas numa trama colonial cada vez mais envolvente. Diante de condições crescentemente desfavoráveis, as lideranças nativas esboçavam respostas das mais variadas, frequentemente lançando mão de instrumentos introduzidos pelos colonizadores. A resistência, neste sentido, não se limitava ao apego ferrenho às tradições pré-coloniais mas, antes, ganhava força e sentido com a abertura para a inovação. Esta característica da política dos índios nem sempre foi percebida pelos observadores europeus, que tendiam a retratar os índios recalcitrantes como verdadeiros selvagens, que hostilizavam os brancos em função da sua natureza bruta. O reverso desta imagem residia no índio que colaborava com os projetos coloniais. Um curioso documento de meados do século XVIII, provavelmente escrito por um jesuíta, elencou 25 exemplos de “Índios Famosos em Armas que neste Estado do Brasil concorreram para Capítulo 3: Entre o Etnocídio e a Etnogênese 78 inovação, que se esboçava – e se esboça hoje – a história dos índios diante da pesada realidade da dominação colonial. Conclusão À medida que a poeira da agitada e confusa comemoração/anticomemoração do quinto centenário cabralino se assenta, podemos afirmar que permanece um enorme desafio encarar a história de uma perspectiva a partir da qual as populações nativas têm um papel tão crítico quanto crucial. Diferentemente de muitos países nas Américas, onde a presença indígena se mantém forte na articulação das identidades nacionais, o lugar dos índios no Brasil continua sendo conjugado, no mais das vezes, no tempo passado. Hoje uma minoria absoluta, a população indígena atual mal chega a 0,20% da população do país como um todo de acordo com a estatística oficial, que ainda a trata como “remanescente”. Ainda assim, por trás desta cifra ínfima floresce um rico painel de diversidade – mais de 200 grupos étnicos que conservam mais de 170 línguas distintas – e um legado histórico do qual o país ainda não se deu conta. Apesar de fundamentada em algumas verdades, a crônica da destruição e do despovoamento já não é mais aceitável para explicar a trajetória dos povos indígenas nestas terras. O que se omite com tal abordagem são as múltiplas experiências de elaboração e reformulação de identidades que se apresentaram como respostas criativas às pesadas situações historicamente novas de contato, contágio e subordinação. O caminho ainda é longo e bastante incerto; mas vários antropólogos e historiadores já vêm dando passos na direção certa. CAPÍTULO 4 Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios Sal, Justiça Social e Autoridade Régia no Início do Século XVIII1 NO FINAL DE OUTUBRO DE 1710, o poderoso proprietário de terras e de escravos Bartolomeu Fernandes de Faria saiu da sua fazenda Angola, próximo a Jacareí, e desceu a Serra do Mar, acompanhado por cerca de 200 índios administrados e escravos africanos, fortemente armados. Ao chegar na vila de Santos, este paulista mandou arrombar os locais onde o sal do monopólio estava armazenado, levando este valioso gênero de volta para a Serra Acima, onde teria sido repartido entre os consumidores tão carentes do produto. Rápido e fulminante, o assalto não encontrou nenhuma resistência, apesar do recente reforço da guarnição local que, paradoxalmente, estava sendo custeado por um imposto sobre a venda do sal. Se a guarnição tinha a tarefa específica de defender a praça contra eventuais visitas de corsários e outros aventureiros estrangeiros – pesadelo que se concretizou, brevemente, na invasão do Rio de Janeiro comandado por Duguay-Trouin – o invasor interno mostrava-se uma ameaça muito mais perigosa. Diante daquele troço armado e agressivo, com a sua caótica e variada composição de todos os tipos étnicos que a mestiçagem foi capaz de produzir, os defensores da praça, prudentes, só esboçaram uma fraca reação quando os invasores haviam se retirado para as matas da Serra do Mar. Ocorrida justamente num momento em que a coroa buscava impor a sua autoridade nas capitanias do sul, a ação acabou desencadeando uma das maiores perseguições levadas a cabo durante o período colonial, culminando, oito anos mais tarde, na prisão e morte de 1 Publicado na revista Tempo, Niterói, vol. 8, 1999, pp. 23-40, este texto sofreu algumas pequenas modificações e correções na atual versão. Uma versão muito preliminar deste trabalho – na verdade, algumas notas esparsas – foi apresentada na IX Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, Rio de Janeiro, em 1989. A pesquisa original teve apoio do Center for Latin American Studies da University of Chicago e da Comissão Fulbright-Hayes. A versão publicada na revista, corrigida e acrescida a partir de sugestões de Mary Karasch, foi apresentada no XXI Congresso Internacional da LASA, Chicago, 1998. O autor também agradece ao parecerista anônimo da revista Tempo pelas observações perspicazes, que foram levadas em conta para a revisão final. Capítulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios 80 Bartolomeu Fernandes e de seus principais capangas e na transferência dos seus subordinados indígenas para os aldeamentos da região. No folclore histórico paulista, o episódio do sal ocupa, sem dúvida, um lugar de destaque, merecendo uma menção detalhada por genealogistas, memorialistas e historiadores, atingindo o seu ponto máximo no romance histórico de Afonso Schmidt, O Assalto. Todos estes autores, obviamente parciais no que diz respeito a assuntos paulistas, tomaram o evento como exemplo emblemático do caráter dos paulistas da época colonial: independentes, auto-suficientes e, sobretudo, resistentes à autoridade externa. Esta figura heróica, tipificada no destemido bandeirante, contracena com os detestados arrematantes do contrato do sal que, segundo o historiador paulista Antônio de Toledo Piza, “em regra, eram homens ambiciosos, desalmados e cruéis, que faziam tal monopólio do sal que o seu preço se tornava excessivo, ficando este gênero de primeira necessidade acima do alcance da massa geral da população”.2 Nesta luz, o assalto de 1710 se caracteriza enquanto caso de justiça social, onde os colonos oprimidos apelavam para a violência coletiva para reverter uma situação abusiva e nitidamente injusta. O que se pretende, neste texto, é reavaliar este episódio à luz de uma documentação inédita, com destaque para a devassa criminal feita em 1717-18 na vila de Iguape, no litoral sul da Capitania de São Paulo, quando a justiça metropolitana apertou o cerco e prendeu Bartolomeu Fernandes de Faria por ser o mandante do brutal assassinato de dois homens.3 Bastante extenso e detalhado, o documento infelizmente sequer menciona o assalto de 1710. Em compensação, proporciona uma raríssima janela para o mundo ambicioso, desalmado e cruel dos paulistas no início do século XVIII, período marcado pelo intenso conflito entre um poder local, de caráter privado, assentado numa tradição de conquista e de mando sobre a população indígena e mestiça, e um poder régio que buscava subordinar esta “La Rochelle do Brasil” à autoridade da administração colonial.4 2 Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo (doravante Documentos Interessantes), vols. 3, 1895, p. 69, nota de A. Toledo Piza. 3 Arquivo do Estado de São Paulo, Autos Cíveis (doravante AESP-AC), caixa 6, documento 98. Trata-se, na verdade, de duas devassas, uma primeira tirada para investigar as mortes de José Preto e João da Cunha Lobo, a segunda contra o próprio Bartolomeu Fernandes de Faria. 4 Sobre a tradição de conquista, ver Monteiro (1994a, cap. 4). Capítulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios 83 que entendo que os contratadores (ou enganadores) farão grande negócio também quem correr com ele nesta cidade, pois tem grandes conveniências em mandar às minas e para outras partes aonde o não há o vendem pelo que querem.9 Os consumidores de São Paulo, evidentemente os maiores prejudicados pelas atividades dos atravessadores em Santos, em diversas ocasiões ameaçavam ações mais decididas para resolver a situação. Em 1670, um grupo de “lavradores e criadores desta terra” apareceu perante a Câmara Municipal de São Paulo para se queixar dos abusos cometidos pelos comerciantes de Santos, em particular os fornecedores de sal. Após lembrar que “estão atualmente mandando carnes e todos os mais mantimentos para o sustento deste Estado assim para as frotas e armadas”, os colonos exigiram que a Câmara instigasse o seu congênere santista a observar o “reto juízo de Sua Alteza e façam cumprir as condições do estanco do sal para que se não venda por mais que pela pataca e meia [480 rs.]”. Caso a Câmara de Santos não cooperasse – ameaçava a multidão revoltada – “iria o dito povo assim junto como estava à dita vila a repartir todo o sal que se achar pelo preço do dito estanco”.10 Portanto, quarenta anos antes do assalto de 1710, um segmento significativo dos produtores rurais reivindicava uma ação coletiva radical. Não por coincidência, o próprio Bartolomeu Fernandes encontrava-se entre os muitos que participaram desta agitada reunião. A situação agravou-se consideravelmente nos últimos anos do século XVII, com a abertura das minas de ouro. O sal, aliás, não foi o único gênero a experimentar grandes aumentos neste período. Em seu estudo de preços a partir de documentos beneditinos da década de 1690, Afonso Taunay mostrou que, ao passo que o sal – cujo preço era controlado – subiu de 480 reis para 1$200, outros produtos de origem portuguesa, tais como o vinagre e o azeite, sofreram aumentos (em valores nominais) de 500 e 320 por cento, respectivamente. Gêneros produzidos na própria capitania, como o feijão e o açúcar, subiram de 200 a 300 por cento ao longo desta mesma década e a carne de porco salgada sofreu uma variação de 520 por cento (Taunay, 1927, 399-400). A carestia e a 9 J. D. Azevedo a Francisco Pinheiro, 18-7-1716, in Lisanti (1973, I:580). 10 Ata de 3-11-1670, Atas da Câmara, 6:217-18. Capítulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios 84 inflação de fato formavam uma dupla terrível que se alastrava por todas as áreas afetadas pelas jazidas auríferas para o sofrimento geral da população, como é bem conhecido pelo relato arguto do jesuíta Antonil, porém também ocasionaram o acúmulo meteórico de fortunas em níveis antes desconhecidos na capitania.11 A crise mais aguda de abastecimento, contudo, ocorreu precisamente em torno de 1709-10, quando o preço do sal atingiu proporções absurdas e os abusos chegaram a chocar a própria coroa. Se o preço fixado pelo contrato era de 960 reis por alqueire, cada alqueire estava sendo comercializado em valores entre 12$000 e 16$000. Se isso não bastasse, os colonos de São Paulo espalhavam a notícia de que 500 ou 600 alqueires que estavam na vila de Santos aguardavam para ser re-embarcados para o Rio de Janeiro por falta de compradores na Capitania.12 Ao mesmo tempo, segundo relatava o Governador da Praça de Santos José Monteiro de Matos, a culpa pela falta podia ser atribuída singularmente ao contratador que, além de subabastecer a praça com apenas a metade da quantia estipulada pelo contrato, vendia o resto por preços exorbitantes mediante a conivência dos franciscanos, que ocultavam o sal no convento.13 Alguns anos depois, em 1725, foi feita uma investigação sobre a má administração do contrato do sal, que resultou na prisão do sócio do contratador. Nos papéis, incluiu-se uma relação das quantias de sal postas em Santos entre 1701 e 1724, demonstrando a gravidade da crise: nos anos entre 1708 e 1711, os contratadores “não meteram sal” na praça de Santos.14 Assim, em 1710, existiam todas as condições para favorecer a concretização da ameaça de 1670. Mas não houve uma ação conjunta dos colonos em defesa dos direitos comunitários. Muito pelo contrário, foi a ação de um só homem com seu séquito de subordinados indígenas, mestiços e negros. Este fato revela algo importante das características da sociedade e do poder local. 11 Ver Antonil (1969 [1711], 139-145) e Monteiro (1994a, cap. 7). Este quadro “híperinflacionário” postulado por Antonil e repetido por muitos historiadores foi relativizado recentemente a partir da pesquisa minuciosa por Carrara (1997). 12 Ata de 8-3-1709, Atas da Câmara, 8:186-87. 13 Consulta do Conselho Ultramarino, 25-6-1709, AHU, Códice 232, fls. 256-256v. 14 “Conta do Sal que tem metido os Contratadores nesta Vila de Santos”, relação anexa à carta do governador Rodrigo César de Menezes à Coroa, 16-4-1725, AHU-SP, Aditamentos, caixa 249. Capítulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios 85 Entre a Justiça Social e o Crime Sobre o assalto em si, além da breve troca de correspondência entre o ouvidor Antônio de Souto Maior e o rei D. João V, existe pouquíssima documentação coeva. O relato mais detalhado do assalto foi elaborado algum tempo depois, pelo genealogista Pedro Taques de Almeida Pais Leme, fornecendo informações interessantes sobre esta “briosa, posto que indiscreta ação”. Segundo o genealogista, Bartolomeu Fernandes de Faria mandou “chamar o contratador do sal com o seguro da palavra de homem de bem de lhe não fazer mínima ofensa”, pagou pelo sal no preço do contrato, isto é, 1$280 por alqueire, e garantiu que deste dinheiro fosse pago o tributo de 400 réis por alqueire para a fazenda real. Em seguida, “fez extrair e evacuar o sal”, que foi levado para a Serra Acima nas costas de “uma multidão de Carijós”. Tudo isto foi feito sem a menor oposição – o povo de Santos teria ficado em pânico, receando as “hostilidades, roubos e outras insolências que costuma praticar qualquer corpo tumultuoso” –, já que o corpo de infantaria paga iniciou a perseguição apenas quando os invasores estavam bem longe, desistindo logo em seguida, quando toparam com uma ponte que fora derrubada pelos fugitivos. Concluindo, Pedro Taques escreveu que Bartolomeu Fernandes “[d]eixou nesta ação estampado o seu nome, que em todo o tempo seria recomendável se o não manchara com a nota indesculpável de tantas mortes, que se executaram por seu auxílio e consentimento” (Leme, 1980, 2:12-13). Desde o início, portanto, confundem-se as imagens de um justiceiro social e de um justiceiro comum, o “terror da vila de Jacareí”, segundo Pedro Taques. A coroa, obviamente pouco interessada em alimentar a primeira imagem, procurou realçar os outros feitos criminais deste “homem régulo e facinoroso”.15 Em sua carta ao ouvidor Antônio da Cunha Souto Maior ordenando a prisão urgente de Bartolomeu Fernandes, o rei ressaltava os “enormes delitos em que estava culpado Bartolomeu Fernandes de Faria da vila de Jacareí, não só pela assuada que se deu na vila de Santos de que lhe mandei devassar, mas também pela que havia dado na vila de Mogi [das Cruzes] em que termo se 15 É curioso notar que estes epítetos tiveram uma sobrevida considerável pois, anos depois da morte de Bartolomeu Fernandes, alguns velhos soldados de Santos, em suas solicitações de cargos, soldos, sesmarias e outras benesses da coroa, gabavam-se da sua participação na prisão do fora-da-lei. Capítulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios 88 diligências da justiça régia. Porém, ao que parece, a escolha deste local também estava ligada à proximidade das minas de ouro do sul.22 De qualquer modo, não se sabe se a proteção do Bom Jesus se afrouxou ou se o cerco do ouvidor se apertou mas, em 1718, o célebre fora-da-lei acabou sendo preso numa diligência comandada pelo ouvidor Rafael Pires Pardinho, que investigava a morte de dois homens que foram assassinados pelos prepostos de Bartolomeu Fernandes. Escrevendo para o rei em agosto de 1718, o governador da Praça de Santos, Luís Antonio de Sá Quiroga, relatou a captura de Bartolomeu Fernandes “e muitos dos seus sequazes”, embora alguns outros tenham fugido para o mato com a conivência dos franciscanos do convento de Itanhaém. Foram confiscadas todas as posses do preso e os índios sob a sua administração foram remetidos aos aldeamentos de São Paulo. Infelizmente não sabemos mais detalhes pois as cartas enviadas para o Conselho Ultramarino foram extraviados do arquivo.23 Sabemos que o ouvidor geral recebeu ordens para remeter o prisioneiro para Salvador, para ser julgado no Tribunal da Relação, porém ele não chegou a ser ouvido: a 2 de julho de 1719, o governador do Rio de Janeiro informava sobre a morte de Bartolomeu Fernandes Faria, preso em Salvador, acometido pelo desânimo, pela idade e por uma doença grave.24 Mais do que o simples cumprimento da justiça, a ordem régia sintetizava a submissão simbólica de São Paulo à autoridade da coroa: ordenava a remessa para a Relação da Bahia – junto com as devassas de seus crimes – deste “paulista ... um dos mais insultuosos homens e maior régulo que houve na dita capitania e que nela tem cometido muitas mortes e terríveis delitos chegando a assaltar a praça de Santos...” O ouvidor, Dr. Rafael Pires Pardinho, recebeu 100$000 “de ajuda de custo para que este prêmio não só seja em parte satisfação do esforço com que procedeu, mas também um exemplo que sirva de estímulo para os mais, vendo que se sabe atender aos que se 22 AESP-AC, caixa 6, no. 98, depoimentos de Pedro Papudo e Antonio Fernandes Ramalho. A devoção do Bom Jesus em Iguape teve início em 1647, quando uma imagem de Cristo apareceu para dois índios na praia. Com a divulgação do milagre, Iguape tornou-se centro de peregrinação para os pagadores de promessas. Ver, a respeito, B. Machado (1997). 23 Gov. Sá Quiroga à Coroa, 6/8/1718, AHU-SP doc. 125. As outras cartas são relacionadas em Castro e Almeida (1913-36, vol. 6, docs. 3635-37), porém não se encontram nas respectivas capilhas no Arquivo Histórico Ultramarino. 24 Carta do governador do Rio de Janeiro de 2-7-1719, Documentos Interessantes 49:249-251. Capítulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios 89 empenham a fazer a sua obrigação em semelhantes casos”.25 Pode-se perceber, no desenrolar do caso, uma disputa de imagens, com o esforço de denegrir a imagem do criminoso e de rosear a do ouvidor Pires Pardinho. Depois da morte do réu preso, o Conde de Vimieiro, governador geral do Brasil, chamou a atenção para o bom trabalho de Rafael Pires Pardinho, que “fez a prisão de Bartolomeu Fernandes de Faria, régulo, e seus sócios facinorosos, com particular cuidado, e ânsia”.26 A Violência de uma Sociedade Remetido em correntes para o calabouço da Relação da Bahia, Bartolomeu Fernandes de Faria faleceu, já bastante idoso, sem ter sido anotada uma única palavra sua. Ainda assim, a polpuda devassa criminal conduzida pelo ouvidor Rafael Pires Pardinho em 1717 e 1718, investigando as mortes de João da Cunha Lobo e José Preto, fornece preciosas informações sobre a sociedade que fez deste personagem um homem poderoso e temido, capaz de cometer o assalto com a expectativa de permanecer impune. A partir dos autos, a força e a violência surgem como elementos constitutivos na composição da base de poder deste e de muitos outros paulistas no eclipse do “século das bandeiras”. De fato, as atividades de apresamento e de disciplinamento de uma força de trabalho indígena contribuíram sobremaneira para aquilo que se tem chamado de “hipertrofia do poder privado” nesta parte da colônia.27 Um primeiro indício disto aparece na lista das 98 “peças de administração” – isto é, índios e mestiços sob o domínio senhorial do réu – que foram confiscados após a prisão de Bartolomeu Fernandes. A relação incluía quatro bastardas forras – filhas de índias, sujeitas ao serviço obrigatório, porém alforriadas – “apanhadas pelo velho para servirem”; 23 carijós – termo que se usava para índios administrados, independente das origens étnicas específicas – com suas respectivas famílias, todos que pertenciam formalmente à capela de N. S. da Penha, instituída por Brígida Sobrinha e invadida por 25 Provisão Régia de 25-12-1718, Documentos Interessantes 49:250-251. 26 Conde de Vimieiro à Coroa, 16-9-1719, AHU-SP, doc. 143. 27 Vejam-se diversos artigos em Mello e Souza (1997), especialmente o de Fernando Novais, “Condições da Privacidade na Colônia”. Sobre a composição da escravidão indígena em São Paulo, ver Monteiro (1994a). Capítulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios 90 Bartolomeu Fernandes; uma bastarda forra que foi obrigada a casar com um mulato, escravo do velho; e diversos outros tirados a força de seus legítimos donos.28 Este quadro é completado pela composição do grupo de capangas de Bartolomeu Fernandes de Faria, formando uma espécie de radiografia não apenas dos traços escravistas do regime de administração particular, como também da intensa mestiçagem que marcou os primeiros dois séculos de São Paulo colonial. Os termos mameluco, bastardo, mulato – aqui uma referência aos filhos de africanos com índias – e carijó ocupavam lugares de destaque neste regime. O principal capanga era José Grande que, segundo o depoimento de um dos delatores de Faria, “é um carijó bixigoso maior de 50 anos a quem o dito Bartolomeu Fernandes de Faria criou, que o tem servido em todas suas insolências e mortes que tem mandado fazer”. Os demais integrantes do bando vinham de várias procedências, o que atesta à complexidade das estruturas étnica e social de São Paulo no início da época do ouro. O grupo abrangia desde o branco Inocêncio de Veras, o mameluco João Fernandes (filho ilegítimo de Faria), até a chamada “gente de serviço” que incluía Damião Carijó, Pascoal Mulato, Manuel Mulato, Pedro Mulato Papudo, Manuel Ruivo Bastardo e Francisco Malhado, este último um escravo africano. Para além da caracterização étnica, os termos descritivos registrados no processo também dizem algo sobre o estado de saúde da população paulista, que trazia as marcas de doenças inscritas nos corpos e nos nomes. O índio “bixigoso”, por exemplo, é figura comum na história e na literatura das Américas, numa memória visível dos terríveis episódios de varíola. Curiosamente, o mulato “papudo” talvez tenha adquirido este apelido a partir das manifestações de uma aflição associada à carência do sal: o bócio.29 Na devassa, os depoimentos de testemunhas e de participantes também fazem referência ao clima de medo e intimidação que cercava as atividades do criminoso. Na primeira apuração dos assassinatos de João da Cunha e José Preto, com Bartolomeu 28 AESP-AC, caixa 6, doc. 98, “Auto de Sequestro de Bens”. 29 Agradeço a Mary Karasch por esta informação, baseada em suas pesquisas sobre o Rio de Janeiro e Goiás, referente às populações negras e indígenas. De fato, a falta crônica do sal levou os colonos a buscar outras soluções que, segundo um juiz, comprometia a saúde do povo. Na crise de 1734, a população estava produzindo sal “de água do mar cozida em tachos de cobre, coisa tão perniciosa que além da sua inutilidade para o tempero faz prorromper em vários gêneros de enfermidades, como de lepra e outros semelhantes, que a experiência tem mostrado nascerem do uso do dito sal”. Francisco Correia Pimentel à Coroa, 20-8-1734, AHU-SP, Aditamentos, caixa 237. Capítulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios 93 uma caixa de guerra e dando muitos tiros e salvos e o dito Bartolomeu Fernandes os recebeu com grandes festas e alegrias dando banquetes e aplaudindo muito as ditas mortes”. Outra testemunha, filha foragida de um dos participantes no assassinato, também afirmou que o delito foi motivo de festa, especialmente entre “os negros”. Juntando os depoimentos, fica claro que o móvel da história toda foi uma bastarda de Mogi das Cruzes, Joana de Siqueira, que estava tendo um caso com João da Cunha Lobo. Seu comparsa José Preto, de acordo com uma testemunha, “lhe disse por muitas vezes e com grandes instâncias deixasse o diabo da bastarda e fosse fazer vida com sua mulher e filhos”. Mas o diabo da bastarda, que estava presa por ordem do juiz ordinário da vila, insistiu: “lhe tinha pedido a tirasse dali e a levasse para o seu sítio onde lhe faria uma casinha”. Isto, ao que consta, contrariou a Lourenço Pereira, “genro” e protegido de Bartolomeu Fernandes. Como no caso do sal, mais uma vez Bartolomeu Fernandes tomava a justiça nas próprias mãos, pelo menos aos olhos de alguns, como o alcaide Salvador de Louzada, que afirmou que estas mortes foram encomendadas “em defesa da Igreja e da Justiça”, porque as vítimas haviam sequestrado a bastarda. Cumprindo este papel de justiceiro, portanto, Bartolomeu Fernandes de Faria reafirmou em Iguape a reputação que tinha cultivado nas vilas de São Paulo, Mogi das Cruzes e Jacareí ao longo dos anos. Antes de morrer, possivelmente de maus tratos, no calabouço da Fortaleza da Barra em Santos, José Fernandes – vulgo, José Grande Carijó – rememorou uma vida de crimes a mando do seu “amo”, cujo sobrenome adotou. Ainda em Jacareí, havia matado diversos desafetos de Bartolomeu Fernandes, por diferentes motivos. Quando seu amo começou a ser perseguido pela justiça – curiosamente, ninguém menciona o episódio do sal – fizeram uma “casa forte” no bairro rural de Caguaçu (no caminho de São Paulo a Mogi das Cruzes), o que explica, talvez, a presença de índios vinculados à capela da Penha na lista dos “carijós” sequestrados pela justiça.32 O ouvidor Souto Maior, segundo lembrava José Carijó, fez um esforço grande para prender o criminoso, chegando a prender um amigo dele que foi remetido a Rio de 32 Este não foi o único caso neste período envolvendo índios que pertenciam à administração de uma capela. Outro potentado paulista, Amador Bueno da Veiga, também foi acusado de explorar indevidamente a mão-de-obra vinculada à capela de Bonsucesso (próximo a Guarulhos) num demorado e complicado litígio (AESP-AC, caixa 9, doc. 133, 1721). Discuto esta questão em maior detalhe em Monteiro (1994a, 218-220). Capítulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios 94 Janeiro e enforcado naquela cidade, porém no fim das contas foi o próprio ouvidor que quase entregou a vida no ataque de 1713. Mas o que sobressai no depoimento é a idéia de que Fernandes servia como uma espécie de justiceiro que usava a força de seus capangas para acertar as contas entre partes. José Carijó deteve-se num caso que ocorreu em Mogi das Cruzes por volta de 1700, quando Tomé Moreira apareceu no Sítio Angola em Jacareí para pedir a proteção de Bartolomeu Fernandes, pois estava sendo ameaçado por um antigo sócio de uma expedição para as minas.33 Se ele reafirmou este papel no caso das mortes de José Preto e João da Cunha, Bartolomeu Fernandes aproveitou também para restabelecer o principal fundamento do poder privado ao recolocar, simbólica e socialmente, a tal bastarda no seu devido lugar. Assim, o depoimento mais dramático de toda a devassa foi o de Joana de Siqueira, de 28 anos, a bastarda de Mogi das Cruzes que estava no centro dos eventos ocorridos. Embora uma outra testemunha tenha afirmado que ela pertencera a uma viúva da qual fugiu, Joana deu uma versão bastante diferente para o seu interrogador, mostrando tanto a instabilidade quanto a incerteza que marcavam a vida dos descendentes de índios nessa sociedade. Vivia, segundo ela, “sobre si” na vila de Mogi das Cruzes até que um tio, Antonio Martins, buscou “obrigar e vender [ela] para a cativar”. Isto porque tinha “trato ilícito” com um tal de Sebastião Ribeiro, que resolveu ir com ela para as minas de Curitiba. Na vila de Paranaguá, conheceu Antônio Fernandes e seu irmão João da Cunha Lobo, que desejava levá-la para sua casa em Iguape, “para servir sua mulher”. Pouco depois, as pessoas começaram a comentar que ela “andava amancebada com João da Cunha Lobo, que era homem casado”, o que ocasionou a sua prisão, por ordem do vigário geral de Iguape. Visitada na cadeia por João da Cunha, que implorava através das grades para ela voltar para a roça dele, ela dizia que queria voltar para a terra dela. Inconformado, João da Cunha, com a ajuda de José Preto, de um outro bastardo e do tapanhuno (isto é, africano) Amaro, arrombou a casa do juiz ordinário e sequestrou Joana. Apesar de seus protestos, Joana teve que seguir para o Ribeira diante das ameaças e das surras que recebia de Cunha. Ao que parece, estava junto com as vítimas quando caíram na cilada, pois após o crime, que ela descreveu, ela foi levada “pelos negros de Bartolomeu Fernandes”, que conduziram-na para o senhor, “que disse a ela testemunha 33 AESP-AC, caixa 6, doc. 98, interrogatório de José Fernandes. Capítulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Índios 95 venha você cá que a quero levar para me servir e lhe mandou levantar a saia e meter-lhe um pau entre as pernas e a mandou açoitar por seu filho João Fernandes e por Antônio Fernandes ... irmão do dito João da Cunha o que lhe fizeram até lhe correr quantidade de sangue dizendo o dito Bartolomeu Fernandes de Faria que lhe fazia aquilo para daí por diante o conhecer por seu senhor e depois dela testemunha se vir curar a esta vila a levou o dito Bartolomeu Fernandes para a sua roça e lhe vestiu uma tipóia e dela esteve servindo até agora como sua cativa”.34 Conclusão O depoimento de Joana Bastarda, além de fornecer um exemplo raro da voz destes “figurantes mudos”, realça o segundo elemento mencionado por Pedro Taques na constituição da memória da célebre figura de Bartolomeu Fernandes de Faria: o gênio violento do senhor despótico, a “nota indesculpável de tantas mortes”. Embora fosse o incidente do sal que assegurou para este personagem um lugar na memória dos paulistas, dentro do contexto imediato de seu tempo, ele era mais conhecido como um justiceiro com muitas mortes nas costas, cuja autoridade se afirmava a partir das dezenas de índios sob seu comando, os mesmos que foram mobilizados para resolver o problema do sal em 1710. Com certeza, as noções de justiça que vigoravam em São Paulo naquela época estavam inextricavelmente atreladas à autoridade senhorial. A intromissão da justiça metropolitana, no caso, não visava apenas punir os culpados pelas suas transgressões como também procurava subverter a base do poder local, minando na medida do possível a instituição do cativeiro indígena, já em franco declínio com o recuo das atividades de apresamento. Não é por acaso que neste mesmo período surgiram inúmeros litígios na justiça envolvendo a liberdade dos índios, acompanhado por um esforço das autoridades coloniais em revigorar os aldeamentos, que se encontravam praticamente abandonados. No desfecho do caso de Iguape, as autoridades distribuíram as 98 “peças de 34 AESP-AC, caixa 6, doc. 98, depoimento de Joana de Siqueira.
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