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Guias e Dicas
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Importância da Educação Intercultural para Ambiente Inclusivo e Respeitoso, Manuais, Projetos, Pesquisas de Religião

Este texto discute a importância da educação intercultural na construção de um ambiente inclusivo e respeitoso em escolas. Ele aborda a necessidade de educadores e estudantes se enfrentarem com as diferenças culturais e sexuais, promovendo a análise de linguagens e produtos culturais e favorecendo experiências de produção cultural. Além disso, ele contrapõe a perspectiva de uma educação intercultural aos processos radicalizados de afirmação de identidades culturais específicas e as perspectivas assimilacionistas que não valorizam as diferenças culturais.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Samba_Forever
Samba_Forever 🇧🇷

4.6

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Baixe Importância da Educação Intercultural para Ambiente Inclusivo e Respeitoso e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Religião, somente na Docsity! UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO IGUALDADE, DIFERENÇA E DESIGUALDADE: GÊNERO, RAÇA-ETNIA E RELIGIÃO EM SALA DE AULA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL SIMONE RIBEIRO TEMPESTA CROCIARI SÃO CARLOS – SP 2017 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO IGUALDADE, DIFERENÇA E DESIGUALDADE: GÊNERO, RAÇA-ETNIA E RELIGIÃO EM SALA DE AULA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL SIMONE RIBEIRO TEMPESTA CROCIARI Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profa. Dra. Emília Freitas de Lima Linha de Pesquisa: Educação Escolar: Educação Escolar, Teorias e Práticas São Carlos - SP 2017 Agradecimentos Sempre gostei de ler os agradecimentos de dissertações e teses. Sinto-me próxima do(a) autor(a) daquele estudo, de sua subjetividade e tenho oportunidade de conhecer, mesmo que minimamente, as pessoas que lhe são importantes. É comum agradecerem aos amigos e familiares que estiveram presentes no decorrer da pesquisa, auxiliando direta ou indiretamente e hoje tenho clareza da legitimidade deste ato, visto que precisamos abdicar de alguns prazeres, como a companhia de pessoas queridas, para a realização de um estudo como este. Inicio agradecendo pela minha vida e saúde, bem maiores e imprescindíveis concedidos por Deus. A Ele ainda, agradeço pela força e confiança concedidas na hora e medida certa. Obrigada! À Emília, minha doce e tão querida professora e orientadora, que acreditou em mim quando nem eu acreditava. Agradeço por ser acessível, por quebrar meus estereótipos quanto ao que é ser uma professora universitária e oportunizar este enriquecimento grandioso que o mestrado me proporcionou. Acredito que você, Emília, não tem dimensão do quanto sua sutileza, seu carinho, acolhimento e paciência com minhas - tantas! - angústias foram significativas para mim. Obrigada! Aos meus pais, agradeço a educação que me deram e a compreensão pelo meu afastamento neste período intenso de trabalho e estudos. Agradeço o modo como me amam e demonstram nos detalhes, na nítida alegria em me ver, nos mimos que me presenteiam, no orgulho que transparecem ao falar de mim (das filhas) aos outros, no respeito às minhas escolhas e no exemplo de seres humanos honestos, humildes e altruístas que são. Obrigada! Agradeço às minhas irmãs que, no decorrer de nossas vidas, me enriqueceram de possibilidades de ser, sentir e estar no mundo, validando a relevância que a diversidade tem na constituição de nossa individualidade. Sendo tão elas, pude descobrir como ser tão eu. Obrigada! Agradeço aos meus dois sobrinhos, quatro sobrinhas e minha afilhada por trazerem um colorido à minha vida, me apresentarem uma outra forma de amar e tornarem ainda mais lícita a luta por uma educação de maior qualidade a fim de que construamos uma sociedade mais democrática e boa de se viver. Obrigada! Ao meu marido, que sempre me incentivou a estudar, que acredita na minha capacidade e orgulha-se dela, que fez concessões para me acompanhar, que se interessa pelo que estudo a ponto de mergulhar comigo nos próprios preconceitos, sendo um exemplo de que podemos nos transformar: minha imensa gratidão. Obrigada também por assumir mais responsabilidades domésticas quando precisei deixá-las, sendo um dono de casa exemplar. Obrigada! Agradeço por fim, às imprescindíveis contribuições oferecidas pela Profa. Dra. Muriane Assis e Prof. Dr. Celso Conti no exame de qualificação desta dissertação. Seus apontamentos guiaram o percurso da pesquisa e ajudaram-me a apurar meu olhar. Obrigada! TEMPESTA CROCIARI, Simone Ribeiro. Igualdade, diferença e desigualdade: gênero, raça-etnia e religião em sala de aula nos anos iniciais do Ensino Fundamental. São Carlos, estado de São Paulo. Dissertação de Mestrado. São Carlos: UFSCar, 2017. 122 p. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar como professoras dos anos iniciais do ensino fundamental se manifestam sobre o tratamento dos temas gênero, raça-etnia e religião em sala de aula, com vistas à discussão dos conceitos de igualdade, diferença e desigualdade. Concebemos que os universos da cultura e da educação são interligados sendo necessário que as escolas e seus/suas profissionais tenham sensibilidade para as culturas (no plural) presentes neste espaço tendo em vista a construção de pontes, o estímulo ao diálogo igualitário e a visão de que as diferenças culturais são constitutivas da democracia, e não um problema a ser superado em busca da homogeneidade. Diante deste propósito, nossa questão de pesquisa é “Como se manifestam professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental sobre diferenças culturais de gênero, raça-etnia e religião em sala de aula?” Utilizamos a abordagem metodológica qualitativa, realizamos entrevistas semi- estruturadas como instrumento para coleta de dados e adotamos a interculturalidade como perspectiva teórica. Para realizarmos nossa pesquisa, selecionamos dez professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, de uma escola pública municipal, em uma cidade localizada no interior do estado de São Paulo. Com base nas análises dos dados, notamos que as discriminações no espaço escolar são pouco percebidas pelas professoras entrevistadas e, mesmo quando visíveis, as docentes tendem a omitir-se e/ou oferecer o discurso da igualdade como princípio democrático. Sob essa ótica, notamos que é comum considerarem as crianças inocentes e desprovidas de preconceito, tornando dispensável promover debates com a problemática da diversidade. Tais análises evidenciam a necessidade de que a formação inicial e continuada aborde questões relativas à diversidade cultural a fim de afinar o olhar desses (as) profissionais, o que muitas vezes pressupõe assumir os próprios preconceitos para poder lidar com eles. Defendemos que este será um meio possível para que o tratamento aos conflitos escolares advindos da diversidade seja realizado, de modo a colaborar para a constituição de uma sociedade justa e democrática. Palavras-chave: igualdade, diferença, desigualdade, gênero, raça-etnia, religião, interculturalidade. 10 1 Introdução Esta seção introdutória está organizada da seguinte maneira: inicia-se com uma descrição das razões pelas quais o tema desta pesquisa foi escolhido, com base em dados de minha trajetória pessoal e profissional. Em seguida, apresenta a questão de pesquisa e o objetivo geral, além de uma breve explanação sobre a perspectiva teórica e a abordagem metodológica da dissertação. Finaliza-se com a explicação de como este relatório de pesquisa está estruturado. Descrever as situações que me fizeram sensível ao tema das desigualdades é uma tarefa que se revelou difícil ao longo da escrita deste trabalho, visto que o processo estimulou que viessem à tona histórias já esquecidas. Buscarei indicar pontos que acredito serem pertinentes para o que me constituiu como pedagoga, educadora de educação infantil (nomeada de “agente educacional”), professora, diretora de escola e estudante de mestrado, interessada em sanar angústias relacionadas ao trato com a diversidade cultural da escola. Uma das recordações que trago como estudante dos primeiros anos do ensino fundamental é a importância da figura docente, do peso que as palavras ditas por elas (foram todas professoras mulheres) tinham, desde uma bronca até o mais trivial elogio. Quando eram convidadas para uma festa – privilégio de alguns(mas) colegas – eram aguardadas como a presença ilustre e, curiosamente, morríamos de vergonha de estarmos próximas delas fora do ambiente escolar. A professora era uma celebridade, a nossa celebridade, tendo ela assentido ou não para tal prestígio. Também não me passavam despercebidas as predileções que tinham por determinados alunos. Embora meu aborrecimento fosse muitas vezes motivado por ciúmes, posso assegurar que também me perguntava o porquê dos “privilégios” de colegas por serem as crianças que faziam favores à professora, sempre recebendo elogios, e se fosse necessário receber uma inevitável bronca, esta era amena, e outras situações que, a meu ver, os(as) tornavam “os queridinhos” ou “as queridinhas”. Com relação à religião, cresci sob os preceitos católicos e por vezes eu não entendia porque minha religião era considerada a certa. Mas isso não me impedia de discriminar, com piadas banhadas em superioridade, as religiões alheias 11 à minha. Preconceito este findado (assim acredito) quando adulta, por meio da racionalidade e atenção a estas indesejáveis atitudes. Em casa, minha mãe, graduada e independente, sempre trabalhou e mantinha uma relação não inferiorizada com meu pai. Somos três irmãs e não tivemos convivência com familiares, pois residem em outro estado; fato que considero ter limitado nossas referências da variedade e diversidade na constituição de família. Talvez por tais razões, deparar-me com diferenciações na educação de meninos e meninas causava-me tanta estranheza: por que minha amiga precisava limpar a casa enquanto seu irmão podia brincar? Por que ele pôde treinar vôlei e ela, mesmo sinalizando que também gostava deste esporte, precisou fazer balé? E assim por diante. Mais tarde, deparar-me com a inferioridade feminina, o descrédito de minhas opiniões e o assédio frequente e naturalizado, também me perturbou muito, principalmente por não saber lidar com tais situações, não estar empoderada e fortalecida de minhas capacidades. Considero-me, desde pequena, sensível às coisas que considero injustas: um animal preterido por ter na casa outro mais querido, o julgamento das atitudes alheias baseando-se no que é certo ou errado para si mesmo, piadas que humilham (principalmente quando a vítima não tem consciência daquilo a que está sendo submetida), a superioridade nas relações pessoais, a bajulação interesseira e os privilégios. Certamente não sou ilesa ou desprovida de preconceitos. Na realidade, estou mais sensível às minhas discriminações, veladas, invisíveis ou cobertas de solidariedade e boas intenções, após entrar em contato com algumas leituras realizadas neste programa de mestrado. Em relação ao ensino superior, cursei Pedagogia na UNESP de Araraquara no período noturno, pois trabalhava oito horas por dia como educadora de Centro de Educação e Recreação (educação infantil). Terminei a graduação no final de 2007 e em 2008 fui trabalhar como professora substituta de uma escola municipal de ensino fundamental em uma cidade próxima, tendo sido admitida por meio de processo seletivo, contrato de um ano. No terceiro dia de trabalho, substituí uma professora e deparei-me com um problema: eu não sabia o que fazer na sala de aula! Desde a organização da lousa, a dinâmica da aula (passar uma atividade e corrigir? Passar tudo e corrigir depois? Corrigir na lousa? Não corrigir de caneta vermelha?), até a administração 12 das saídas ao banheiro. Lembro-me da vergonha que senti ao devolver a folha de almaço que a professora havia deixado com quatro exercícios de português para eu passar, escrito embaixo “pode acrescentar algumas continhas de matemática na lousa” e ter que assumir que não havia conseguido nem fazer aqueles quatro primeiros exercícios. Ainda nesta escola, passei a dar aulas de reforço para crianças com dificuldade de aprendizagem. Tive grandes parceiras que me ajudaram com atividades e em como aplicá-las com os alunos e alunas. No ano seguinte, 2009, efetivei-me como docente neste município, contudo não mais na escola central em que trabalhei inicialmente e sim em uma escola de bairro, bem maior, com cerca de 1.200 alunos, já que atendia crianças do primeiro até o nono ano. Minha primeira turma foi de um 3º ano e eu já estava mais segura com a dinâmica da sala de aula, porém deparei-me com o fator que mais tarde me encaminharia ao mestrado: a diversidade. Nesta sala havia um aluno com Síndrome de Down e dois outros com muita defasagem de aprendizagem, mas sem diagnóstico ou acompanhamento especializado. A professora de educação especial (sala de recursos) me ajudava com o aluno com Síndrome de Down e eu separava atividades para trabalhar com ele. Porém, não conseguia dar-lhe atenção individualizada todos os dias, o que me angustiava bastante. Esse sentimento de impotência, incompetência e vergonha agravava-se quando eu encontrava sua mãe na saída. Com os dois outros alunos, com dificuldades imensas em todos os conteúdos, eu não sabia o que fazer, além de trabalhar a socialização. Mas as descobertas estavam só começando. Percebi que, mesmo os que não estavam tão defasados, ou não tinham diagnóstico de problemas cognitivos, tinham ritmos de aprendizagem diferentes, com facilidades e dificuldades diferentes uns dos outros, personalidades e valores singulares. No dia a dia, sentia-me sozinha e até desamparada pela equipe diretiva da escola. Mesmo contando com a ajuda das demais professoras, eu “cobrava” (somente com críticas pessoais) o apoio e o respaldo da diretora, vice-diretora e coordenadora. Atualmente, no cargo de diretora de escola, entendo a dimensão da responsabilidade e do pouco tempo que, infelizmente, se tem para tratar de assuntos pedagógicos, angústias e despreparo das professoras. Acho válido reiterar que se tratava de uma escola grande, com muitos alunos e com profissionais bem antigos, o que lhes conferia conforto na profissão. 15 Hoje, depois de quatro anos trabalhando como agente educacional na educação infantil, sete como professora e um ano como diretora, percebo que muitas vezes foquei nos problemas, nas minhas fragilidades e em tudo que eu não conseguia fazer, o que me impedia de ver o que eu estava (e estava!) fazendo pelas crianças como educadora. Tenho certeza de que procurei ser justa, sorteando o ajudante do dia, chamando atenção e/ou elogiando todos ou todas na mesma intensidade, conversando sobre piadas ou chacotas inadequadas, sendo atenciosa com o que eles queriam partilhar comigo e não colocando apelido ou taxando algum aluno. Em relação ao aprendizado, procurava problematizar os conteúdos oferecidos, estimular a participação e a criticidade, além de buscar aprimoramento profissional para promover o avanço. Embora considere que estava no caminho adequado, ao me aprofundar nos estudos com a temática das desigualdades para realização desta dissertação, muitas das minhas atitudes “inocentes” se mostraram cheias de significado, de preconceito e de “verdades” estereotipadas. Isso me traz a imperiosa obrigação de refletir sobre minha “alienação diária” com o propósito de “tomar a vida em nossas [minhas] próprias mãos e começar a exercer o controle” (FREIRE, 1990, p. 138). Esta narrativa pessoal elucida algumas vivências que me trouxeram à escrita deste trabalho cujo objetivo geral é analisar como professoras dos anos iniciais do ensino fundamental se manifestam sobre o tratamento dos temas gênero, raça-etnia e religião em sala de aula, com vistas à discussão dos conceitos de igualdade, diferença e desigualdade. Diante deste propósito, nossa questão de pesquisa é: Como se manifestam professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental sobre diferenças culturais de gênero, raça-etnia e religião em sala de aula? Partimos do princípio de que os universos da educação e da cultura estão intimamente articulados e alegamos a indiferença à diferença diante de tantos trabalhos denunciando o caráter monocultural, homogeneizador e padronizador da educação. Concordamos com Candau (2012b, p. 70) que fica evidente a necessidade de se romper com ele “e construir práticas educativas em que as questões da diferença e do multiculturalismo se façam cada vez mais presentes”. Perrenoud (apud PALOMINO, 2009, p. 112) entende que a maior produtora do fracasso escolar é a “indiferença à diferença”. 16 Falar de multiculturalismo implica considerar o conceito de cultura, para o que, neste trabalho, apropriamo-nos da definição de Paulo Freire (1980, p. 108- 109). Para ele, cultura é: o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. [...] tanto é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um grande músico, ou de um pensador. Que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu País, como também a poesia de seu cancioneiro popular. Que cultura é toda criação humana. É também com esta visão de cultura como toda criação humana que vamos abordar o referencial teórico do multiculturalismo interativo ou interculturalidade defendida por Candau (2012a). Esta perspectiva questiona as desigualdades construídas ao longo da história e aponta para a construção de sociedades que valorizem e reconheçam as diferenças como constitutivas da democracia, empoderando aqueles que foram historicamente inferiorizados. Propõe o reconhecimento do outro, o diálogo igualitário entre os diferentes grupos sociais/culturais e a construção de um projeto comum. Assim, buscar uma educação inter/multicultural é ter em vista o desenvolvimento de uma postura étnica e racial positiva. Assim como Candau (2002, p. 147), concebemos que “reduzir o preconceito é outra das dimensões que caracterizam uma educação multicultural”, pois, ao se relacionar lúcida e criticamente com o outro, faz-se necessária a construção da própria identidade cultural, um autoconceito e autoestima positivos. Um diálogo intercultural cosmopolita é aquele em que nos tratamos como cidadãos de um mundo compartilhado e, portanto, digno de respeito mútuo. Isso não significa que não podemos discordar. Por um lado, não podemos ser relativistas generalizadores e achar que tudo que acontece na humanidade é correto e bom. Por outro, não podemos achar que nós temos todas as respostas, seja lá quem seja esse “nós”. Temos que nos colocar em um diálogo no qual imaginemos que podemos aprender com o outro. (APPIAH apud MOREIRA e CANDAU, 2014, p. 33) Algumas características especificam a perspectiva intercultural. Uma primeira é a promoção deliberada da inter-relação de diferentes grupos culturais, presentes em uma determinada sociedade (CANDAU, 2002). Neste sentido, essa 17 posição situa-se em confronto com todas as visões diferencialistas que favorecem processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas, assim como com as perspectivas assimilacionistas que não valorizam a explicitação da riqueza das diferenças culturais (SAMPAIO e ANDRADE, 2009, p. 2). O trato com as questões relativas à diferença nas escolas iniciou-se na primeira metade do século XX, quando a área da psicologia passou a abordá-la. Porém, referia-se basicamente às características físicas e emocionais das pessoas. A sociologia da educação olhou para as variáveis socioeconômicas e sua incidência nos processos pedagógicos, notando, então, que as questões de acesso à escola e distribuição da educação não poderiam estar separadas da discussão da forma e do conteúdo do currículo. Ampliou-se o olhar para o cotidiano escolar, as dimensões sociais e econômicas que incidem nos processos pedagógicos e na própria concepção do sujeito da aprendizagem. Destacamos o currículo multicultural como caminho para informar conteúdos presentes em todas as áreas do conhecimento ilustrando conceitos e princípios de culturas diversas. Constitui-se como um diálogo norteador de uma prática multiculturalmente orientada que necessariamente precisa estar envolvido na formação docente, inclusive no plano afetivo, visto que entendemos o currículo como todo tipo de prática escolar e não um objeto estático. Conscientes da gama de categorias que a perspectiva intercultural dispõe-se analisar – tantas quantas forem as diferenças geradoras de desigualdades – este trabalho tem como foco olhar para questões de gênero, raça-etnia e religião, categorias essas observadas como sendo as mais frequentes na sala de aula, de acordo com minha experiência na área da educação pública. Concordamos com Ladson-Billings (GANDIN et al, 2002), professora e pesquisadora americana, uma das responsáveis pela introdução da teoria racial crítica na educação, que, mesmo focando em determinadas temáticas, nossa preocupação está na problemática das desigualdades, dos preconceitos, das injustiças sociais de toda e qualquer natureza. A referida autora responde a críticas sobre um “privilégio” dado por ela à temática racial dizendo: não peço desculpas por usar a noção de raça como uma maneira de olhar para as desigualdades sociais, porque sei muito bem que há várias pessoas que continuam a estudar gênero, a estudar sexualidade. Se, através de uma análise racial, eu encontro uma boa 20 2 Referencial teórico Esta seção inicia abordando o sujeito da pós-modernidade, derivado da globalização e a consequente interconexão do mundo. Essa aproximação dos povos e culturas toca a vida interior das pessoas e repercute nas relações sociais, nas tradições familiares, nos padrões de vida e no cotidiano. Estando inserida na sociedade, a escola incorporou essa nova demanda, mas tem se mostrado alheia às referidas diferenças culturais, pautando- se pela homogeneidade e a padronização. A esta perspectiva monocultural, contrapomos a intercultural que intenciona trabalhar os conflitos inerentes às relações humanas, intencionando a construção de pontes entre as culturas em que o diálogo igualitário, respeitoso e não hierárquico esteja presente. Explanaremos também neste capítulo, o avanço que os conceitos da diversidade e diferença obtiveram - no tocante à escola - e o potencial que têm como propulsores do progresso humano. Optamos por apresentar os referenciais específicos das categorias gênero, raça-etnia e religião concomitante à apresentação dos dados, na terceira seção deste trabalho. 2.1 Multiculturalismo e interculturalidade na educação O interesse pelo debate e estudo do tema do multiculturalismo se exacerbou nas últimas décadas do Século XX e neste início de Século XXI devido ao fenômeno da globalização que, embora não seja novo, vem tomando características muito particulares nesta época. Em sua versão mais recente, a globalização tem trazido muitos ganhos, como o avanço da medicina, dos meios de comunicação, do acesso às informações, bem como a possibilidade de o ser humano se tornar um cidadão cosmopolita, proporcionando diferentes leituras de mundo e enriquecendo suas vivências. Contudo, concordamos com Burbules (2004, p. 18) que “o impacto e o significado da ‘globalização’ não apenas são duvidosos como também podem operar de maneira diferente em várias partes do mundo e, em certos contextos, ter pouco impacto”. 21 Referindo-se aos sujeitos, há muito “não estamos sob o domínio das tradições e estruturas divinamente estabelecidas, quando o indivíduo era submetido à ordem secular e divina das coisas” (LIMA, 2009, p. 66). Entre o século XVI e XVIII, essa concepção foi substituída pela do sujeito moderno e singular. No final do século XIX e no século XX, uma concepção mais social do sujeito emerge, coerente com o funcionamento do Estado moderno, articulando um conjunto mais amplo de fundamentos conceptuais para o sujeito moderno, principalmente sob influência da biologia darwiniana – sujeito humano biologizado – e do surgimento de novas ciências sociais, em sua forma disciplinar atual (LIMA, 2009, p. 66). O sujeito atual e pós-moderno distingue-se de duas identidades anteriores a ele: o sujeito do iluminismo – centrado e unificado – e o sujeito sociológico. Ao longo do tempo, tais sujeitos modernos foram descentrados, resultando no indivíduo pós-moderno, fragmentado, globalizado, passando a ser definido historicamente e não mais biologicamente e as estruturas de sua identidade tornaram-se líquidas, descentradas de um “eu” coerente decorrente de uma sociedade de mudanças constantes e rápidas (HALL, 2006). O autor diz que A “globalização” se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço- tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado (HALL, 2006, p. 67). Boaventura Souza Santos, (apud ENES, 2010, p. 3) exorta a necessidade de considerar a globalização de maneira plural, visto que não há globalização genuína, “aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem-sucedida de determinado localismo. No global, sempre vamos encontrar uma raiz local, uma imersão cultural específica”. Um dos aspectos que caracterizam a globalização e pluralização é sua grande abrangência e velocidade, aproximando de maneira inédita, povos e culturas. “Eventos distantes, quer econômicos ou não, afetam-nos mais direta e imediatamente que jamais antes. Inversamente, decisões que tomamos como indivíduos são com frequência globais em suas implicações” (GIDDENS apud TEIXEIRA, 2012, p. 2). Não há apenas interdependência econômica, este fenômeno 22 toca o mundo interior das pessoas, mas impacta também nas dimensões íntimas e pessoais, repercutindo nas tradições familiares, nos padrões de vida e no tocante à vida cotidiana como um todo. Stuart Hall (apud MOREIRA e CANDAU, 2014, p. 8) localiza o século XX como o da “revolução cultural” uma vez que a cultura adquiriu grande importância na estruturação e organização da sociedade contemporânea quanto aos “processos de desenvolvimento do meio ambiente e a distribuição de recursos materiais e humanos. Em termos epistemológicos, a cultura tem favorecido a emergência de novas visões, explanações e teorizações do mundo”. Tornou-se também um dos “elementos mais dinâmicos e imprevisíveis das mudanças históricas na contemporaneidade”. Assim, as identidades passaram a ser mais plurais e mais fortemente configuradas no âmbito das culturas. Surge o conceito de culturas híbridas, em que as pessoas renunciam ao desejo de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural perdida e tornam-se resultantes de várias histórias e culturas interconectadas. García Canclini (2008, p. XIX) define hibridação como “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. Candau (2002, p. 136) diz que “os processos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores da construção de identidades abertas, em construção permanente”. A fim de preparar o indivíduo para viver neste mundo globalizado, heterogêneo, híbrido, a educação precisa ampliar seus limites para além da comunidade: As escolas de hoje confrontam uma série de expectativas instantâneas, conflitantes e mutáveis, dirigidas para imprevisíveis caminhos alternativos de desenvolvimento e para pontos de referência e identificação em constante alteração (BURBULES, 2004, p. 24). As alterações ocorridas no mundo em decorrência da exacerbação dos efeitos da globalização trouxeram, como uma de suas consequências, o agravamento das desigualdades e a ampliação da complexidade das relações entre igualdade e diferença, assim como a necessidade de desnaturalizar preconceitos e discriminações. Trataremos desses aspectos no presente trabalho, em especial no que concerne às escolas. 25 trabalho que possui leis oriundas da sociedade hegemônica “onde unicamente os saberes, valores e linguagens das classes dominantes são consideráveis como aceitáveis”. Há casos que a vivência cotidiana com a diversidade a torna tão familiar que acabam se “naturalizando”, sendo invisibilizada na prática educativa. (...) É toda a problemática (ou não será antes a riqueza?) que decorre de, nesta escola, naquela escola, estarem alunos mais ou menos misturados, mais ou menos isolados, de idades diferentes, de meios rurais, de zonas urbanas e sub urbanas, de classes abastadas, de bairros de lata, de meios piscatórios, do interior, de rapazes e raparigas, que dão corpo a muitas tonalidades de arco-íris cultural (CORTESÃO E STOER, 1996, p. 41). O multiculturalismo implica o reconhecimento e o direito à diferença. Tal conceito nasce no embate de grupos, “no interior de sociedades cujos processos históricos foram marcados pela presença e confronto de povos culturalmente diferentes” (GONÇALVES e SILVA, 2003, p. 111). Nessa mesma direção, Candau (2002) analisa que o multiculturalismo tem seu marco nas “lutas dos grupos discriminados e excluídos de uma cidadania plena, os movimentos sociais, especialmente os referidos às questões identitárias [...]” (p. 130). O multiculturalismo relaciona-se à constatação da existência da diversidade cultural. Ele pode ser compreendido na acepção intercultural, que implica o reconhecimento do outro, o diálogo igualitário entre os diferentes grupos sociais/culturais e a construção de um projeto comum. Assim, buscar uma educação multicultural é ter em vista o desenvolvimento de uma postura étnica e racial positiva. Concordamos com Candau (2002, p.147) que “reduzir o preconceito é outra das dimensões que caracterizam uma educação multicultural”, pois, ao se relacionar lúcida e criticamente com o outro, faz-se necessária a construção da própria identidade cultural, um autoconceito e autoestima positivos. Candau (2012) classifica o multiculturalismo em três abordagens: no multiculturalismo assimilacionista afirma-se que vivemos em uma sociedade multicultural no sentido prescritivo. Uma política nessa vertente vai favorecer a integração de todos na sociedade a fim de que sejam incorporados a uma cultura hegemônica. Na educação, adotam o universalismo em que todos são convidados a participar do sistema escolar, mas sem que se coloque em questão o caráter 26 monocultural da dinâmica (conteúdos do currículo, nas relações, estratégias, valores privilegiados, etc). O multiculturalismo diferencialista ou monoculturalismo plural parte da afirmação de que quando se enfatiza a assimilação termina-se por negar a diferença ou silenciá-la. Propõe-se colocar ênfase no reconhecimento da diferença e promover a expressão das diversas identidades culturais presentes em determinado contexto afirmando que só assim os grupos culturais poderão manter suas matrizes culturais de base. Algumas das posições nesta linha terminam por assumir uma visão essencialista da formação das identidades culturais. Já o multiculturalismo interativo ou interculturalidade, acentua a interculturalidade por considerá-la a mais adequada para a construção de sociedades democráticas e inclusivas que articulem políticas de igualdade com políticas de identidade. A última abordagem vai ao encontro do que Peter McLaren (2000) nomeia como multiculturalismo crítico ou multiculturalismo revolucionário e é a acepção considerada no presente trabalho. É indispensável esta concepção estar entrelaçada a uma agenda política de transformação, pois ela compreende a representação de raça, classe e gênero como resultado de lutas sociais mais amplas sobre signos e significações e (...) enfatiza a tarefa central de transformar as relações sociais, culturais e institucionais nas quais os significados são gerados (p. 123). Tendo nos apropriado deste referencial teórico, recorremos a Catherine Walsh (apud CANDAU, 2012) que complementa a ideia e diferencia três perspectivas da interculturalidade: a relacional, que se refere basicamente ao contato e intercâmbio entre culturas e sujeitos socioculturais e tende a reduzir as relações interculturais ao âmbito das relações interpessoais; a funcional, que não questiona o modelo sociopolítico dos países e assume a interculturalidade como uma estratégia de coesão social, assimilando os grupos às sociedades hegemônicas (não afeta a estrutura e as relações de poder vigentes); e, por último, a perspectiva crítica, na qual nos fundamentamos, que questiona as diferenças e desigualdades construídas ao longo da história e aponta para a construção de sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da democracia e sejam capazes de construir relações novas, igualitárias, empoderando aqueles que foram historicamente inferiorizados. 27 Diante desta proposta de empoderamento, julgamos pertinente refletir acerca do que é considerado qualidade na educação. A esse respeito, Candau (2012, p. 64-66) apresenta as três principais concepções vigentes na atualidade: 1ª) A educação como um produto capaz de responder às exigências do desenvolvimento econômico e do mercado tendo como foco a formação de sujeitos empreendedores e consumidores. Enfatiza o domínio das tecnologias de informação e comunicação e intenciona capacitar o “capital humano”; 2ª) Defende a volta dos aspectos tradicionais da educação. Afirma que movimentos renovadores têm favorecido processos superficiais e de pouca consistência nas escolas. Ambas as propostas se situam em uma perspectiva que reforça o modelo dominante na sociedade ou propõem algumas mudanças que não afetam sua lógica básica. Já a terceira concepção, na qual nos localizamos, assume a perspectiva crítica e intercultural e tem a convicção profunda de que a educação pode colaborar com processos de transformação estrutural da sociedade. Ao professor lança-se a tarefa de desafiar o viés monocultural do currículo, desestabilizar a hegemonia da cultura ocidental no currículo, a destacar o caráter relacional e histórico do conhecimento escolar, a questionar representações, as imagens e os interesses expressos em diferentes artefatos culturais, buscando explicitar as relações de poder nela expressas. (MOREIRA e CANDAU, 2014, p. 14) Olhar para o conteúdo e metodologia nessa perspectiva envolve duas premissas: a de que conhecimento é uma construção social, que envolve lutas e relações de poder no seu processo de definição e a de que a metodologia deve buscar a superação dos mecanismos excludentes no interior das práticas cotidianas. Reiteramos que se faz necessário questionar as “verdades” intocáveis, os livros didáticos, os heróis e a forma como acontece a construção do conhecimento pelas crianças (frequentemente por transmissão), vendo o ensino como processo que desafia, desperta a busca e desejos. Diferentes níveis e modalidades de ensino envolvem diferentes especificidades e é no currículo que se concretiza a escola como um sistema social; os conteúdos e formas são traduzidos nele. Portanto, é no currículo que se consolidam os fins sociais, culturais e de socialização que se atribui à escola, não 30 sobretudo em relação a grupos da população sistematicamente penalizadas pela escola (minorias étnicas, camponeses, proletariado não especializado). Não há dúvida de que a formação de uma atitude multicultural entre os professores, capacitando-os a tirar partido da heterogeneidade social e cultural para ensinar, representa um passo fundamental na construção de uma escola que defenda e promova os direitos sociais e culturais dos indivíduos. A dificuldade, ou talvez o risco, parece residir na forma como a escola se apropria da ‘cultura de origem’ dos aprendizes, devolvendo-a depois em enunciados que, ou testemunham a sua marginalidade face à ‘cultura legítima’, ou a folclorizam, num processo de mobilização que reformula a escala de prestígio das culturas em presença (...) (REIS apud CORTESÃO E STOER, 1996, p. 37) Cortesão e Stoer (1996, p. 37) lembra-nos do quanto este alerta é importante, pois sem compreender o processo de reprodução “(i) envolvendo a recontextualização das culturas locais (...) não existirá possibilidade de mudança e (ii) porque nos obriga a aprofundar o processo de construção dos dispositivos pedagógicos”. Assim, os dispositivos pedagógicos que defendemos têm por objetivo que os alunos e alunas dominem um “bilinguismo cultural” como estratégia de sobrevivência e “de acesso ao poder por parte dos grupos ‘minoritários’ e usufruto ativo de cidadania numa sociedade baseada na economia de mercado” (CORTESÃO E STOER, 1996, p. 38). Estes dispositivos não podem apenas significar um instrumento metodológico para a aquisição da cultura erudita imposta pela escola, mas têm de constituir uma proposta de trabalho que corporize preocupações de contribuir para uma construção, eventualmente conflitual, negociada, de uma comunidade de comunidades culturais que se reconhecem, se respeitam e se interagem. Neste sentido, as aprendizagens que suscita não poderão nunca ser obtidas sob a destruição da imagem do seu grupo de pertença, contribuindo assim para o esvaziamento da cultura local. Ao contrário, as “boas pontes”, que tomam em conta as margens a que se apoiam, terão de valorizar também outras culturas para além da escola, estimulando, simultaneamente, atitudes reflexivas face aos processos globais de educação (CORTESÃO E STOER, 1996, p. 42). De modo coerente, Cortella (2008, p. 115) ressalta que Não há conhecimento que possa ser apreendido e recriado se não se mexer, inicialmente, nas preocupações que as pessoas detêm; é um 31 contra-senso supor que se possa ensinar crianças e jovens, principalmente, sem partir das preocupações que eles têm, pois, do contrário, só se conseguirá que decorem (constrangidos e sem interesse) os conhecimentos que deveriam ser apropriados (tornados próprios). Como o autor, acreditamos que democratizar o saber é o objetivo da escola pública embasada nos princípios de uma “sólida base científica, formação crítica de cidadania e solidariedade de classe social” (CORTELLA, 2008, p. 15). Tais diretrizes vão ao encontro da garantia de que os alunos e alunas acessem o conhecimento universal acumulado e possam dele se apropriar (tornarem-se proprietários), sem que esse acesso seja impositivo nem restrito a uma formação erudita (sem relação com sua existência social e individual); de outro lado, essa relação do conhecimento científico com o universo vivencial dos alunos demanda evitar o pragmatismo imediatista que entente deverem as classe trabalhadoras frequentar escolas apenas para aprender a trabalhar. Portanto, não é uma escola pública na qual o trabalhador simplesmente aprenda o que iria utilizar no dia ou semana seguinte no seu cotidiano (em uma dimensão utilitária e redutora), mas aquela que selecione e apresente conteúdos que possibilitem aos alunos uma compreensão de sua própria realidade e seu fortalecimento como cidadãos, de modo a serem capazes de transformá-la na direção dos interesses da maioria social. (CORTELLA, 2008, p. 15- 16) Em relação a críticas associando o pensamento pós-moderno à perspectiva intercultural, Candau e Leite (s/d, p. 11) argumentam “que a exacerbação do relativismo cultural e o rompimento com o horizonte de emancipação são opções políticas e não riscos constitutivos da perspectiva multi/intercultural.” Adotar a perspectiva intercultural “não significa uma desvalorização do conhecimento nem pretende restringir o(a) aluno(a) aos seus referencias culturais” (MOREIRA e CANDAU, 2014, p. 14). A escola precisa problematizar o conhecimento escolar e reconhecer os diversos saberes produzidos pelos diferentes grupos socioculturais “favorecendo o diálogo entre o conhecimento escolar socialmente valorizado e esses saberes” (CANDAU, 2014, p. 35). Adotar um currículo multicultural não se limita a uma disciplina, mas informa conteúdos presentes em todas as áreas do conhecimento ilustrando conceitos e princípios de culturas diversas; é um diálogo norteador de uma prática multiculturalmente orientada. Não se trata somente de ensinar tolerância e respeito, 32 mas analisar os processos pelos quais as diferenças são produzidas por meio de relações assimétricas e de desigualdade. Para desenvolvê-lo, a escola toda precisa estar envolvida abarcando desde a seleção de conteúdos até a interação com a comunidade “e os movimentos sociais, sobre as situações vivenciadas no dia a dia da sala de aula e fora dela, etc” (CORSI, 2008, p. 172). Educadores e educadoras que assumam a perspectiva da interculturalidade precisam vislumbrar a educação como direito humano, que não pode ser reduzido a um produto baseado na lógica do mercado; devem defender “o papel do Estado na democratização da educação” e se opor “às formas diretas e indiretas de privatização da escola pública” (CANDAU, 2012, p. 66); devem favorecer dinâmicas participativas, utilizar diferentes linguagens e estimular a construção coletiva. Faz-se urgente a reinvenção da escola norteada pelo princípio: a serviço de quem e do que estou? A questão fundamental é política: que conteúdos ensinar, a quem, a favor de quê, de quem, contra quê, contra quem, como ensinar. Tem a ver com quem decide sobre que conteúdos ensinar, que participação têm os estudantes, os pais, os professores, os movimentos populares na discussão em torno da organização dos conteúdos programáticos (FREIRE, 1996, p. 44-45). Adriana Maria Corsi (2008, p. 30) acrescenta que “definir nossas identidades, saber quem somos e decidir a que grupos nos filiar são necessidades imperiosas”. Reinventar a escola atentando-se à cultura requer tornar esta instituição um espaço de crítica cultural; pretende olhar o intelectual com uma função crítica, embasado “por um espírito livre e não conformista, pela ausência de temor diante dos poderosos, pelo sentido de solidariedade com as vítimas” (MOREIRA e CANDAU, 2014, p. 13). A escola, sendo um “espaço vivo, fluido e de complexo cruzamento de culturas” deve articular diferentes saberes, conhecimentos e culturas. A condição para que qualquer processo seja considerado como intercultural é que “ele seja marcado pela intenção de promover uma relação democrática entre os grupos e não unicamente uma coexistência pacífica num mesmo território” (CORSI, 2008, p. 71). Consideramos que os educadores e educadoras precisam compreender como acontecem as relações de poder, 35 transformá-la em desigualdade. Corsi (2007, p. 40) acrescenta que “a diferença é sempre um produto da história, cultura, poder e ideologia”. É recorrente associar a diferença com a questão do déficit de aprendizagem, ancorada principalmente em aspectos psicológicos e articulada ao nível socioeconômico, ou seja, um problema a ser superado. Neste sentido, igualdade e diferença são vistas como contrapontos e não como dimensões que existem mutuamente. A partir do referencial teórico aqui adotado, a diferença é vista como um processo social e opõe-se à padronização e uniformidade, enquanto que a igualdade opõe-se à desigualdade, a toda forma de discriminação e/ou preconceito. Assim, defendemos a necessária atenção e cuidado na produção de desigualdade pela diferença. Candau (2002, p.128) referencia Boaventura Souza Santos para sintetizar essa ideia: “As pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”. O empenho consistente em uma visão de alteridade permite identificar nos outros (e em nós mesmos!) o caráter múltiplo da Humanidade, sem cair na armadilha presunçosa de tachar o diferente como sendo esquisito, excêntrico, esdrúxulo e, portanto, assimilar a postura prepotente daqueles que não entendem que se constituem em um dos arranjos possíveis do ser humano, mas não o único ou, necessariamente, o correto (CORTELLA, 2008, p. 51). No artigo Currículo, diferença cultural e diálogo, Antonio Flávio Barbosa Moreira (2002) entrevista pesquisadores da perspectiva multicultural a fim de discutir suas visões de diferença e diálogo. Consideramos pertinente o excerto em que um(a) deles(as) define diferença: O que caracteriza propriamente os seres humanos não é uma similaridade, mas a própria diferença. Ou seja, ao procurar entender a singularidade de cada grupo, de cada cultura, você vai compreender mais a humanidade. Porque a essência do ser humano é a produção, é a elaboração de significados, portanto a produção de cultura, cada uma com sua lógica, sua estrutura própria. Ao entender a singularidade de cada cultura, você está entendendo mais o específico do humano (E2) (MOREIRA, 2002, p. 22). O autor Robert Rowland citado na obra de Cortesão e Stoer (1996, p. 36) lembra-nos que não podemos considerar inferior o que é meramente diferente e 36 salienta que é na diversidade que estão as possibilidades de progresso humano “uma vez que o progresso deriva da colaboração entre culturas diferentes”. Ele continua seu pensamento expondo que por meio da diversidade “torna-se possível a compreensão das culturas – na medida em que só a compreensão das diferenças enquanto sistema permitirá atribuir a qualquer cultura individual o seu sentido verdadeiro”. Assim, aprender a cultura alheia é um constante esforço de tradução, um desafio para compreender sua racionalidade e frequentemente nos obriga a “esticar” “a nossa própria racionalidade para conseguir o necessário contato com uma outra”. No entanto, as diferenças têm sido invisibilizadas, negadas e silenciadas na escola uma vez que a igualdade é concebida como processo de uniformização, homogeneização, padronização, orientado à afirmação de uma cultura comum a que todos e todas têm direito a ter acesso. Desde o uniforme até os processos de avaliação, tudo parece contribuir para construir algo que seja ‘igual’, isto é, o mesmo para todos os alunos e alunas (MOREIRA e CANDAU, 2014, p. 29). Em estudos relacionados à temática, nota-se que a hierarquização das diferenças também está no âmbito da visibilidade; “diferenças da ordem das possibilidades físicas e mentais seriam mais facilmente identificadas, assim como aquelas que ‘incomodam’ a escola” (CANDAU e LEITE, 2012, p. 153). As diferenças socioculturais permeiam todas as relações e são perpassadas por assimetrias de poder que provocam a construção de “hierarquias, processos de subalternização, afirmam preconceitos, discriminações e violências em relação a determinados atores sociais” (MOREIRA e CANDAU, 2014, p. 24). Faz-se necessário olhar com sutileza para este embate cultural. Há que perceber os modos como se constrói e se reconstrói a posição da normalidade e a posição da diferença, porque, afinal, é disso que se trata. Em outras palavras, é preciso saber quem é reconhecido como sujeito normal, adequado, sadio e quem se diferencia desse sujeito. As noções de norma e de diferença tornaram-se particularmente relevantes na contemporaneidade. É preciso refletir sobre seus possíveis significados (LOURO, 2008, p. 21-22). 37 Burbules e Torres (2004, p. 24) consideram como imperativos educacionais, objetivos flexíveis e adaptáveis que suscitem como viver em espaços públicos diversos e ajudem a formar “um senso de identidade que possa permanecer viável dentro de contextos múltiplos de afiliação”. Cada criança deverá contar com uma ajuda proporcional às suas necessidades. Deve-se também colocar em questão as dinâmicas dos processos educativos, muitas vezes padronizadores e uniformes, desvinculados dos contextos dos sujeitos que deles participam e baseados no modelo frontal de ensino-aprendizagem, “desengessar a sala de aula, multiplicar espaços e tempos de ensinar e aprender” (MOREIRA e CANDAU, 2014, p. 36-37). Assumir a perspectiva intercultural propulsiona a construção de identidades plurais, “potencia processos de empoderamento, principalmente de sujeitos e atores inferiorizados e subalternizados e a construção da autoestima” (MOREIRA e CANDAU, 2014, p. 32), impulsiona o desenvolvimento da autonomia, de emancipação social, respondendo à necessidade urgente de reconhecer e valorizar as diferenças culturais na escola. Concordando com Candau (2012d, p. 110), estes não são objetivos secundários ou que se justaponham às finalidades básicas da escola, mas são inerentes a elas. Cortella (2008, p. 138) alerta-nos para os perigos de se idealizar uma criança e deparar-se com outro tipo: Qual o resultado concreto (mesmo não conscientemente desejado) se não nos qualificamos para atuar junto aos vários modos de ser criança em nossa realidade social? O aprofundamento das diferenças e a manutenção da injustiça. Reafirmemos o óbvio: há um fortíssimo reflexo das condições de vida dos alunos no seu desempenho escolar. Há décadas e décadas isso é discutido sem que, necessariamente, acarrete mudanças significativas na nossa ação coletiva. Acreditamos que a construção de práticas pedagógicas atentas ao direito à diferença depende, de alguma forma e em alguma medida, da formação do docente. Bartolomé (apud PALOMINO, 2009, p. 180) diz que muitas vezes essa construção exige uma “autopercepção mais honesta (por parte dos professores) que às vezes, supõe mudanças pessoais importantes”. Lima (2009, p. 73) afirma que a formação de professores intermulticulturais precisa envolver três domínios: o dos conteúdos, das 40 precisam ler jornais, livros, revistas especializadas; precisam ter acesso aos bens tecnológicos –minimamente ao computador e à internet; precisam ter acesso a bens culturais dos mais diversos tipos; precisam dialogar com seus pares, quer nas suas próprias instituições, quer em eventos específicos; precisam de respaldo financeiro. Enfim, intelectuais necessitam de um conjunto de condições que lhes permita constituírem-se como tais. Uma sólida e exigente formação constitui apenas uma parte de tal conjunto. A outra é, certamente, constituída pelo provimento de adequadas condições de trabalho e de carreira, pois não é lícito exigir que tudo corra por conta apenas da disposição e do empenho pessoal do docente (LIMA, 2009, p. 79). Nesta seção abordamos algumas mudanças decorrentes de uma sociedade pós-moderna, constitutiva de indivíduos híbridos e cosmopolitas, sendo, portanto, imprescindível que a escola aprenda a lidar com os novos alunos que estão recebendo, contemplando seus aspectos culturais, no plural, uma vez que acreditamos que a educação e a cultura são universos interligados. Fizemos uma breve trajetória histórica em relação ao trato com a diferença ressaltando que a Nova Sociologia da Educação lançou luz sobre as relações entre as variáveis socioeconômicas, os processos educacionais e os determinantes do fracasso escolar sua incidência nos processos pedagógicos. Expressamos a perspectiva teórica adotada no trabalho: do interculturalismo crítico que questiona as desigualdades construídas ao longo da história e aponta para a construção de sociedades que valorizem e reconheçam as diferenças como constitutivas da democracia, empoderando aqueles que foram historicamente inferiorizados. Consideramos que a escola pode contribuir para a transformação da sociedade reconhecendo o papel dos educadores e educadoras para que assumam algumas tarefas, entre as quais a de desafiar o aluno a ampliar seus horizontes. Um dos caminhos que apontamos é o de uma formação docente que os ajude a compreender como acontecem as relações de poder, preconceito e discriminação, a fim de que o trabalho esteja voltado para superar a desigualdade e a exclusão social. Também consideramos indispensável que estes profissionais tenham dignas condições de trabalho, com possibilidades de aprimorar tendo acesso aos veículos, materiais e formações que viabilizem isso. A seção subsequente explicitará a trajetória da pesquisa, os critérios para a escolha das participantes, da escola e das três categorias de gênero, raça- 41 etnia e religião. Explicaremos como elaboramos o roteiro e como as entrevistas foram realizadas. 42 3 Trajetória da pesquisa Nesta seção descreveremos a trajetória da pesquisa, os critérios para a escolha das participantes e das três categorias por nós definidas para este trabalho: gênero, raça-etnia e religião. Explicaremos como chegamos ao roteiro, como as entrevistas foram realizadas e descreveremos o envolvimento das participantes. 3.1 Participantes e categorias de análise Consideramos importante reiterar a questão de pesquisa – Como se manifestam professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental sobre diferenças culturais de gênero, raça-etnia e religião em sala de aula? – e o objetivo deste trabalho, que é o de analisar como professoras dos anos iniciais do ensino fundamental se manifestam sobre o tratamento dos temas gênero, raça-etnia e religião em sala de aula, com vistas à discussão dos conceitos de igualdade, diferença e desigualdade. Uma vez delimitado o problema da pesquisa, entrei em contato com a diretora e coordenadora da escola municipal onde intencionava realizar a pesquisa, explicando a elas a intenção do meu estudo e perguntando se me autorizavam a realizá-lo com algumas professoras. Quando obtive o consentimento, submeti o trabalho ao Comitê de Ética e Pesquisa e fiz um levantamento dos anos de experiência de todas as docentes daquela escola. Com estes dados, constatamos que as cinco mais novas na profissão eram docentes dos primeiros anos e as cinco mais antigas dos quintos anos. Pensamos, então, em utilizar como critério de escolha, o tempo na profissão: as mais antigas e as mais novas no magistério e a concordância em participar, o que nos levou a dez profissionais. Contudo, após a coleta dos dados, percebemos que não havia consideráveis diferenças entre as respostas dessas participantes segundo o tempo de experiência na carreira e alteramos o percurso, analisando as respostas das dez professoras em conjunto. De modo a preservar a identidade das professoras, atribuí uma numeração para identificá-las e farei uso dessa nomenclatura no trabalho. Organizei seus nomes em ordem alfabética e chamarei de P1 a primeira professora, P2 a segunda e assim sucessivamente até a décima, P10. 45 orientações específicas da escola, se tais discussões estão previstas no currículo e se aparecem nos livros didáticos. Quando realizei o convite, senti que as professoras demonstraram receio em participar, mesmo tendo explicado que não as exporia e que não haveria certo ou errado. Ao concordarem, combinamos que eu retornaria em algum Horário de Trabalho Pedagógico, chamado de HTP. Após fazermos o levantamento dos dias e horários disponíveis de cada professora, fui até a escola em seus horários livres para nossa conversa acontecer. As entrevistas foram gravadas em áudio com a autorização de todas, uma vez que ficou esclarecida a importância deste recurso para assegurar a fidedignidade de nossa conversa. Todas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, TCLE (o modelo do formulário está no Apêndice 2). Em média, cada entrevista durou vinte minutos. Apenas duas delas foram mais longas e levamos trinta e cinco minutos para concluirmos nossa conversa. Mesmo algumas estando envergonhadas inicialmente, a maioria delas terminou a entrevista interessada na temática e confortável com nossa conversa, o que me deixou bastante satisfeita por ter tocado em assuntos tão importantes e por vezes esquecidos. Anotei o e-mail de todas e enviei as entrevistas transcritas literalmente para que fizessem alterações caso julgassem necessário. Nenhuma optou por fazê-las. Como primeiro passo para o tratamento dos dados, fiz a transcrição literal de todas as entrevistas. Após essa etapa, aprofundei-me nas leituras específicas das categorias gênero, raça-etnia e religião, a fim de apurar meu olhar para os dados. Isso possibilitou realizar agrupamentos de alguns relatos cujos pontos convergiam e possibilitavam uma mesma perspectiva de abordagem dos diferentes assuntos tratados. A presente seção apresentou a trajetória desta pesquisa que teve abordagem qualitativa e que se utilizou de entrevistas semi-estruturadas como instrumento de coleta de dados. Expusemos que o critério para a escolha das dez professoras participantes deu-se inicialmente pelo tempo de profissão, as mais novas e as mais antigas por levantarmos a hipótese de que haveria significativas divergências nas 46 respostas. Como isso se mostrou infundado, resolvemos analisar as respostas sob a mesma perspectiva: professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Comentamos sobre a insegurança inicial das participantes, mas que houve uma boa repercussão após a realização das entrevistas, que ficaram confortáveis e interessadas na temática. Relatamos que todas as professoras assinaram o TCLE, que o projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Pesquisa e que as entrevistas foram gravadas em áudio. A seção quatro apresentará e analisará os dados obtidos junto às dez entrevistadas, referentes a cada categoria – gênero, raça-etnia e religião. Iniciaremos cada subseção apresentando a perspectiva teórica adotada e, ao longo delas, faremos nossas análises a partir dos relatos trazidos pelas professoras. 47 4 Apresentação e análise dos dados Nesta seção apresentaremos os referenciais teóricos específicos das categorias de gênero, raça-etnia e religião-religiosidade que utilizamos para análise dos dados coletados das entrevistas realizadas com as dez professoras apresentadas na seção anterior. Aprofundar na teoria permitiu-nos afinar o olhar para estes dados, agruparmos as respostas segundo suas proximidades e discrepâncias, de modo a analisarmos os relatos a partir das perspectivas das respostas dadas por elas. Conforme combinado com as participantes, suas identidades foram mantidas em sigilo e os elementos das entrevistas serão expressos de acordo com a disposição informada anteriormente. Primeiramente serão apresentados os dados e análises da categoria gênero, seguida de raça-etnia e terminando com religião-religiosidade. 4.1 Gênero Para definirmos as categorias de análise para este estudo, baseamo- nos na frequência com que geralmente ocorrem na sala de aula de acordo com minha experiência como docente – não previmos que, ao falar de gênero, as professoras trouxessem, junto, a questão da sexualidade. Diante disso, julgamos importante diferenciarmos nosso entendimento sobre tais conceitos. As desigualdades entre mulheres e homens são habitualmente atribuídas às distinções de sexo e suas conotações biológicas em que “sexo remete às diferenças físicas entre homens e mulheres” (VIANNA e RIDENTI, 1998, p. 96- 97). Tais características são usadas também na “construção de um conjunto de representações sociais e culturais, valores e atribuições sociais. Isso é o que chamamos de gênero”. Não pretendemos negar que o gênero se constitui “com ou sobre corpos sexuados, ou seja, não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas” (LOURO, 1997, p. 22). 50 representados como o outro e, usualmente, experimentam práticas de discriminação ou subordinação” (LOURO, 1997, p. 48). os sujeitos são, ao mesmo tempo, homens ou mulheres, de determinada etnia, classe, sexualidade, nacionalidade; são participantes ou não de uma determinada confissão religiosa ou de um partido político... Essas múltiplas identidades não podem, no entanto, ser percebidas como se fossem "camadas" que se sobrepõem umas às outras, como se o sujeito fosse se fazendo "somando-as" ou agregando-as. Em vez disso, é preciso notar que elas se interferem mutuamente, se articulam; podem ser contraditórias; provocam, enfim, diferentes "posições". Essas distintas posições podem se mostrar conflitantes até mesmo para os próprios sujeitos, fazendo-os oscilar, deslizar entre elas – perceber- se de distintos modos (LOURO, 1997, p. 51). Masculinidade e feminilidade não são configuradas naturalmente e as maneiras de ser “masculino” ou “feminino” são plurais, cambiantes, históricas e dependentes de fatores exógenos. Assim, as construções das identidades são instáveis e múltiplas devido à diversidade de características individuais - religião, posição social, renda, idade etc. - e suas variadas formas de combinação. Carvalho (2009, p. 19), acrescenta que “nem todos os homens são masculinos de uma mesma forma e nem todas as mulheres são femininas de uma mesma forma”. Assim, devemos “conceber gêneros plurais e mutantes, expressões femininas de homens, expressões masculinas de mulheres, uma menina masculina, um menino feminino (...)” (CARVALHO, 2009, p. 22). A autora sustenta este raciocínio ao afirmar que os estereótipos de sexo e gênero (forte x fraco, ativo x passiva, agressivo x delicada, racional x emocional) negam as diferenças individuais e culturais, visto que a diversidade não cabe em dois gêneros opostos. Os homens e as mulheres, ainda que pertencentes a um mesmo grupo social, “não são iguais entre si, ou seja, há inúmeras diferenças entre indivíduos do mesmo sexo, de modo que as supostas diferenças de gênero são irrelevantes” (CARVALHO, 2009, p. 27). Louro (1997, p. 23-24) adverte para não reduzir o conceito de gênero à simples construção de papéis que “seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar”. Assim, 51 entendemos gênero, igualmente à autora, como “constituinte da identidade dos sujeitos”. Ao afirmar que o gênero institui a identidade do sujeito (assim como a etnia, a classe, ou a nacionalidade, por exemplo) pretende-se referir, portanto, a algo que transcende o mero desempenho de papéis, a ideia é perceber o gênero fazendo parte do sujeito, constituindo-o. O sujeito é brasileiro, negro, homem, etc. Nessa perspectiva admite-se que as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são, também, constituintes dos gêneros. Estas práticas e instituições "fabricam" os sujeitos (LOURO, 1997, p. 25). Esperamos ter demonstrado as concepções que tomamos como referência teórica para analisar as respostas dadas pelas professoras, que serão apresentadas a seguir. Embora a categoria apriori que elegemos tenha sido a de gênero, os dados nos levaram a considerar também a categoria de sexualidade, pois observamos que as professoras parecem empregar as ideias de gênero e sexualidade de forma indiscriminada. Isso pode ser revelado nos seguintes excertos, por exemplo: P4: Já me aconteceu várias vezes de ter crianças... homossexuais, assim. Homossexuais assim que, as outras crianças bulinavam essa, essa que já apresentava homossexualismo (...). Assim, já era uma criança assumida. Mas ele sofria muito preconceito das outras crianças. Pesquisadora: Era da sua sala? P4: Era de uma sala que eu substituía. Mas na minha sala também tinha, porque eu substituía muito. Mas na minha sala também tinham crianças que apresentavam muito a femini... o lado feminino. Principalmente menino. Menina eu não tinha muito, mas menino eu tinha bastante. E ele sofria muito preconceito das outras crianças. Isso já aconteceu várias vezes nas escolas que eu trabalhei. E..., para mim, lidar com essa situação foi meio complicado (...). Mas assim, eu tive muito esse lado do homossexualismo. Que eu me lembre foi mais do homossexualismo. Pesquisadora: E você conversava de que maneira? Como você trabalhava esse tema? P4: Eu não entrava muito no assunto. Porque eu achava, eu acho um assunto muito delicado pra trabalhar com criança. E... eu me impunha como professora. “Não pode maltratar outra criança, cada um tem seu jeito, tem sua maneira de ser”, eu explicava isso pra eles. Mas... não entrava no assunto. (...) 52 P10: No Fundamental não, no Infantil eu tive um aluninho que ele já tinha uma... uma tendência já, ele já era mais delicado. Então a gente... eu trabalhava assim de uma forma diferenciada porque as crianças já estavam numa fase assim, já era o prezinho já, que eles já estavam percebendo. Já tinha aquelas malícias entre os meninos que ficavam meio que debochando. Eu não abordei diretamente, eu passei pela situação, mas eu trabalhei que cada pessoa era de um jeito, cada uma gosta de uma coisa, cada ser é único, não são todos iguais, mas de uma forma branda, não tão profunda. Pesquisadora: Com a turma toda, você fala? Com a turma toda. Nunca expus nada, mas trabalhei de uma forma geral. Não direcionando para aquela criança. Por meio da grafia de reticências, evidencia-se a hesitação e o receio em mencionarem a palavra homossexual para se referirem a garotos que tinham comportamentos diferentes do padrão esperado para meninos, comportamentos associados por elas ao homossexualismo. A autora Jane Felipe (apud BÍSCARO, 2009, p. 34) nos diz ser frequente a vigilância das professoras a respeito da orientação sexual das crianças, principalmente quando se refere aos meninos, o que fica evidente na fala de P4 ao afirmar ser mais frequente o homossexualismo no menino. Estar com o sexo feminino parece denegrir a imagem masculina hegemônica. Dessa forma, meninos aprendem desde cedo, que a companhia de garotas pode ser algo que os inferioriza, desvalorizando-os socialmente. Em muitos casos, as escolas acabam por reforçar essa separação, na medida em que propõem atividades diferenciadas para ambos. Assim, meninos e meninas seguem suas vidas aprendendo que devem estar em mundos separados, que suas experiências não devem ser compartilhadas com o sexo oposto. Comportamentos considerados transgressores do padrão estabelecido passam a ser vistos (não só pelas professoras, como também pela equipe pedagógica em geral e pelas famílias) como um problema que precisa ser, o quanto antes resolvido. Não percamos de vista que a escola está inserida em uma sociedade sexista e reproduz essa ideologia. Mesmo que o pensamento feminista tenha sido construído por “uma história de recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e feminino; (...) uma tentativa de reverter ou deslocar seus funcionamentos” (SCOTT, 1989, p. 19), é frequente a aceitação da inferioridade feminina em relação aos meninos. Assim, “homossexuais não são, pela ótica do 55 Whitaker (1995) nomeia de “didática da gravidez”: mecanismos que comumente são acionados na gravidez correspondendo a “um jogo de expectativas em relação às diferenças de comportamento que se deseja para os dois sexos” (p. 34). Resguardadas as peculiaridades de cada contexto, nota-se a constante associação de características positivas na gravidez como saúde, bem estar, bom humor, como prenúncio de nascimento de meninos, enquanto que o mau humor, o aumento da frequência cardíaca, inchaço e ganho excessivo de peso indicaria o nascimento de uma menina. Para a autora, a “didática da gravidez” objetiva ensinar, mesmo sutilmente, que, biologicamente, a mulher vale menos. Tal convenção reforça o preconceito no seio da família e que repercute o da/na sociedade como um todo. A autora ressalva que, com a invenção do ultrassom, a tendência está em diminuir tais crendices. Porém, “o nascimento de meninos continua sendo – regra geral – mais celebrado do que o nascimento das meninas, mesmo em sociedades modernas marcadas pela crescente participação das mulheres no espaço público” (p. 35). Vale lembrar que meninas também são desejadas, mas acreditamos, assim como Whitaker, que esse desejo está entrelaçado à ideia de que servirão como companhia à mãe, “eufemismo interessante para expressar sua utilidade na execução dos trabalhos domésticos” (p. 35). Detenhamo-nos, então, na educação informal e nos mecanismos sutis que os modelos artificiais de gênero oferecem às crianças. Já nem é mais importante vesti-las de azul x rosa. Modelos unissex para roupas e cabelos podem até prevalecer. Os métodos de diferenciação atuam agora de maneira simulada, num terreno nebuloso, escondido pelos véus da suposta igualdade das leis, nos assim chamados países modernizados. Nesse terreno nebuloso da educação informal da primeira infância, estão encravadas raízes de muitos problemas que massacram homens e mulheres, obstaculizando realizações para muitos deles e criando entraves ao seu relacionamento. Nele se forma, com angústias específicas, aquele menino e aquela menina que a escola recebe sob o confortável rótulo de criança (WHITAKER, 1995, p. 35-36). Na fala das professoras, é notório também que elas procuram “acalmar” as mães e associam esses comportamentos, ditos femininos, ao convívio com a mãe e ao fato de ser filho único (P5). Já P10 esclarece que ser caprichoso, cuidadoso, delicado, gracioso e organizado faz parte do “jeitinho dele”. A questão está em justificar tais atitudes na tentativa de confortar a família e lhe assegurar que 56 os meninos são heterossexuais. Por meio de táticas e estratégias, a sociedade busca “fixar” uma identidade masculina ou feminina “normal” e duradoura. Esse intento articula, então, as identidades de gênero "normais" a um único modelo de identidade sexual: a identidade heterossexual (LOURO, 1997; 1998). Nesse processo, a escola tem uma tarefa bastante importante e difícil. Ela precisa se equilibrar sobre um fio muito tênue: de um lado, incentivar a sexualidade "normal" e, de outro, simultaneamente, contê-la. Um homem ou uma mulher "de verdade" deverão ser, necessariamente, heterossexuais e serão estimulados para isso. Mas a sexualidade deverá ser adiada para mais tarde, para depois da escola, para a vida adulta. É preciso manter a "inocência" e a "pureza" das crianças (e, se possível, dos adolescentes), ainda que isso implique no silenciamento e na negação da curiosidade e dos saberes infantis e juvenis sobre as identidades, as fantasias e as práticas sexuais. Aqueles e aquelas que se atrevem a expressar, de forma mais evidente, sua sexualidade são alvo imediato de redobrada vigilância, ficam "marcados" como figuras que se desviam do esperado, por adotarem atitudes ou comportamentos que não são condizentes com o espaço escolar. De algum modo são indivíduos "corrompidos" que fazem o contraponto da criança inocente e pura (LOURO, 2000, p. 17). Ambas as professoras revelam visões estereotipadas dos gêneros masculino e feminino, ao exporem que meninos não deveriam querer limpar a mesa ou ter o caderno mais lindo que o das meninas (característica aceita como individual neste menino, mas evidenciada a partir da normativa de que meninas sempre têm o caderno mais bonito). Tais “regras” pautam-se em determinações habituais das expectativas dos gêneros advindas da sociedade: “meninos agressivos, ativos, rebeldes x meninas meigas, passivas, suaves, que a escola incorpora como naturais em suas manifestações” (WHITAKER, 1995, p. 38). A escola, em geral, não disponibiliza outras formas de masculinidade e feminilidade, preocupando-se apenas em estabelecer e reafirmar aquelas já consagradas como sendo a referência. Tudo o que se distanciar dela poderá ser considerado como anormal, desviante. (FELIPE apud BÍSCARO, 2009, p. 33) Vale lembrar que não só a família, mas a mídia, com destaque para a TV, “apresenta ideias estereotipadas com relação aos sexos, e os homens aparecem como mais agressivos e ativos que as mulheres” (SOUZA, 2006, p. 110). Mesmo alguns homens tentando combater esses “padrões de truculência e liberar a 57 suavidade e a sensibilidade que a socialização diferenciada bloqueou” (WHITAKER, 1995, p. 38), não é fácil desvencilharem-se das ideias já traçadas de gênero rompendo com modelos da ideologia dominante. Ao dizer que fazia “vista grossa” e depois afirmar a homossexualidade do menino, “O que é, é! A gente já sabia (...)”, P5 demonstra não saber como lidar com o tema da sexualidade, o que Maia e Ribeiro (2011, p. 80) já apontam para a necessidade de formação dos educadores e educadoras “para atuar em processos de educação sexual”, seja na graduação ou em projetos de formação continuada. No tocante à necessária Educação Sexual que a escola precisa adotar, julgamos pertinente um trabalho planejado, com tempos e objetivos limitados, “com ações que possibilitem informar, debater e refletir sobre as questões da sexualidade com os educandos” (MAIA e RIBEIRO, 2011, p. 77). A fim de que o trato ao tema seja realizado de modo “natural” pelos professores e professoras, é importante que se interessem por ele e sintam-se bem para falar sobre sexualidade, tendo uma atitude sadia e positiva em relação a ela. Maia e Ribeiro (2011) nos lembram que toda pessoa carrega valores sexuais que lhes foram transmitidos pela cultura, sendo influenciada pela família e grupo social a qual pertence. A educação sexual nas escolas deve fundamentar-se em uma concepção pluralista da sexualidade, ou seja, no reconhecimento da multiplicidade de comportamentos sexuais e de valores a eles associados. É preciso considerar cada indivíduo em sua singularidade e inserção cultural, e partir da ideia de que não há uma verdade absoluta sobre as concepções, atitudes e práticas de como viver a sexualidade (MAIA e RIBEIRO, 2011, p. 79). Consideramos que a referida formação dos profissionais também colaboraria para elucidar as diferenciações dos conceitos de gênero - P5 comenta que percebe o gênero para o qual a criança quer ir - e sexo - P10 fala para a mãe que a criança não vai querer mudar de sexo quando adulta referindo-se à garantia de que o menino não será homossexual - a fim de estimular a reflexão, visto que o conceito de gênero pode ser um conceito relevante, útil e apropriado para as questões educacionais. Pondo em xeque o  Termo adotado pelos autores Maia e Ribeiro (2011, p. 77) e por nós empregado por compartilharmos da concepção de “educação sexual como processo pedagógico que visa uma formação específica e intencional sobre sexualidade, e o que dela é decorrente: comportamentos e atitudes, ética e valores, práticas e concepções”. 60 exemplo: dou uma atividade, “pinta a camisa do primeiro menino de azul”, falam: “Ai tia, cor de menino”. Tem bastante ainda. Pesquisadora: E você tem algum tipo de conversa sobre isso? P7: Nós trabalhamos no livro de ciências da natureza, que é... são ciências, história e geografia num mesmo livro e tem um assunto que fala sobre isso, um tópico que fala sobre isso. Que era para a gente proporcionar uma roda de conversa e discutir sobre o que era de menino, o que era de menina e a o professor iria direcionando. Teve até uma que era para perguntar se tinha... se brincar de cozinha era só brincadeira de menina. A maioria, né? Os meninos todos responderam que sim. A gente tinha que falar que... eu perguntei para eles se eles também não ajudam a cozinhar, se o pai não cozinha em casa, que é normal, não é só de menina, não é só mulher que cozinha, homem também cozinha. Mostrei pra eles, eu imprimi algumas imagens pra mostrar de cozinheiro, de chefe de cozinha e durante a atividade toda... (...) E durante a atividade toda a gente ia mostrando que... menina pode brincar de carrinho porque menina dirige, menina pode trabalhar como motorista. Percebemos a presença de conceitos e valores marcados pelas diferenças estereotipadas dos sexos, tanto das crianças como dos (as) adultos (as). Dessa maneira, atitudes preconceituosas e/ou sexistas tendem a ser consideradas “normais” e até mesmo graciosas, ficando invisíveis, não causando estranhamento ou motivando intervenções. A norma, ensina-nos Foucault, está inscrita entre as “artes de julgar”, ela é um princípio de comparação. Sabemos que tem relação com o poder, mas sua relação não se dá pelo uso da força, e sim por meio de uma espécie de lógica que se poderia quase dizer que é invisível, insidiosa (Ewald, 1993). A norma não emana de um único lugar, não é enunciada por um soberano, mas, em vez disso, está em toda parte. Expressa-se por meio de recomendações repetidas e observadas cotidianamente, que servem de referência a todos. Daí por que a norma se faz penetrante, daí por que ela é capaz de se “naturalizar” (LOURO, 2008, p. 22). No relato de P4 notamos a preocupação com o comportamento considerado inadequado da menina: “Eu até fiquei “meio assim” com ela porque ela era muito moleque, mas era o jeito dela”. Vemos a tentativa de integrar a criança com as meninas, atendendo ao pedido destas: “Brinca um pouquinho com elas depois você brinca com os meninos...”. Embora haja certa inquietação em virtude dos padrões hegemônicos e expectativas criadas ao redor das atitudes relacionadas ao sexo feminino, a professora entende que “ser moleque” era um traço da identidade desta criança. 61 Sobre as brincadeiras, Whitaker (1995) faz alusão ao conceito de Selznick para afirmar que as meninas sofrem uma socialização para as desvantagens, contrapondo-se à socialização dos meninos para autonomia e independência. A fim de estimular esta última, alguns fatores “são imprescindíveis para a formação de uma personalidade apta à luta pela cidadania em nosso tipo de sociedade” (p. 39-40). Um deles, orientação para o domínio do meio, é mais bem desenvolvido em crianças que “brincam interagindo com todas as dimensões do espaço, do que por aquelas que passam o tempo arrumando panelinhas num universo restrito ou estático”. Não estou ignorando que meninos, às vezes, acompanham suas irmãs ou amiguinhas em brinquedos de casinha. E nem me esqueci de que as meninas também gostam de chutar bolas. O que importa aqui é a maneira como os adultos aprovam ou desaprovam tais transgressões, o que vai deixar claro os modelos prevalecentes. Quando chegam à escola, os pequenos atores carregam tais modelos, reforçados para a menina, hoje mais do que nunca, baseando-se em bonecas em série, cada vez mais desejadas nos desvarios da sociedade de consumo (WHITAKER, 1995, p. 40). Concordamos com a autora de que “o erro está na limitação dos padrões de brincadeiras para meninas, já que subir em árvores, jogar bolinha de gude ou chutar bola estimulam mais um certo tipo de inteligência. O raciocínio espacial (...)” (WHITAKER, 1995, p. 41). Bernardes (apud SOUZA, 2006, p. 106) observa que “as meninas se mostram mais propensas a inovar o papel de gênero imposto culturalmente e sentem-se atraídas por brincadeiras de meninos”, uma vez que normalmente contém mais aventura, liberdade, dinamismo e movimento. P4 relata um fato bem corriqueiro nas brincadeiras: que os meninos não pegam nas bonecas, mesmo enquanto brincam de casinha e “podemos reconhecer que os meninos são pressionados a não adentrarem o “mundo feminino”, surgindo uma resistência na modificação de uma organização social do gênero” (SOUZA, 2006, p. 114). Retomemos outro fator apontado por Whitaker (1995) como necessário para uma socialização para autonomia e independência: as aspirações e expansão do eu. Este aspecto diz respeito ao fato de que desde muito cedo as meninas são treinadas para o exercício da beleza e para a domesticidade, o recolhimento do lar e maternidade, e precisam equilibrar tal “programação” com as aspirações profissionais. 62 O paradoxal é que ambos [homens e mulheres] vão construir e morar em lares, ambos pretendem ter filhos (ou a sociedade assim pretende) e ambos devem ter uma profissão que a escola está cada vez mais encarregada de encaminhar. É preciso, no entanto, deixar claro que nada há de errado no estímulo à maternidade. O erro está em que não se estimulam os meninos à paternidade, erro este que, a meu ver, está na raiz de um dos problemas do nosso tempo: o abandono dos filhos pelo pai biológico (WHITAKER, 1995, p. 44). Desde cedo, por meio da socialização, as crianças já aprendem “os papéis sexuais de sua cultura, ou melhor, as ideias sobre os comportamentos apropriados para cada sexo (...) e é preciso considerar as influências culturais, familiares e da mídia” (SOUZA, 2006, p. 96). Curioso observar que as meninas, embora não permitam que os meninos participem da brincadeira, concordam que o garoto “afeminado” brinque diante do fato dele se comportar como as demais meninas, “(...) usava batom, pintava a unha (...)”. Verificamos que a atitude de não interferir nessas situações relatadas – como a escolha dos amigos para brincar e as cores determinadas para cada sexo – é justificada pelas professoras como um modo de respeitar as crianças. Contudo, acreditamos que ficar em silêncio corrobora a ideia errônea de que “falar do tema seria acordar preconceitos antes adormecidos, podendo provocar um efeito contrário: em vez de reduzir os preconceitos, aumentá-los” (BRASIL, 2009, p. 32). Contudo, É nos silêncios, no “currículo explícito e oculto”, vão se reproduzindo desigualdades. Quando a escola não oferece possibilidades concretas de legitimação das diversidades (nas falas, nos textos escolhidos, nas imagens veiculadas na escola etc) o que resta aos alunos e alunas, senão a luta cotidiana para adaptar-se ao que esperam deles/as ou conformar-se com o status de “desviante” ou reagir aos xingamentos e piadinhas e configurar entre os indisciplinados? E, por último, abandonar a escola (BRASIL, 2009, p. 32). Acreditamos que elas perderam a oportunidade de intervir orientadas “pelo dever de educar para a convivência segundo os princípios democráticos e igualitários (...)” (ANDRADE, 2009, p. 84), visto que a estereotipia dos papéis sexuais pode causar restrições em ambos os sexos. Defendemos uma educação que incentive tanto características consideradas “masculinas” quanto as “femininas” 65 mais na minha sala então eu não tenho mais contato com isso. Mas lá, a molecadinha tirava sarro dele. Quando a gente... tinha uma caixa lá de fantasias pra brincar durante a aula... toda vez ele pegava alguma coisa que era rotulado que é para menina, então ele sempre escolhia. Aí os meninos... As meninas nem tanto, pra elas era assim, era uma ou outra que falava alguma coisa, mas os meninos tiravam sarro, ele chorava, dava dó. Pesquisadora: E você conversava com eles? Só com essa criança? Ou deixava eles se resolverem? P7: Já teve situação que eu cheguei a ficar brava com os outros. Porque... quando a gente se deparou com aquilo, porque eu era professora de AMR, então eles tinham uma professora titular na sala e eu entrava na sala uma hora por dia. Então, quando ... era eu e a outra professora. Quando a gente se deparou com aquela situação, que ele chegou para nós e ele já chegou falando que ele era menina e a gente percebeu, a gente já começou a conversar com a turminha. De que era normal, de que cada um tem que fazer o que se sente bem fazendo, mas é uma coisa complicada para eles. Porque dentro de casa o assunto é outro. Então, para eles era difícil lidar com aquilo também. Mas teve situações assim, que quando eles deixavam ele muito chateado, ou faziam algum comentário agressivo... Claro que não era proposital, não era uma... uma maldade de criança. Mas... aí tinha situação que eu precisava ficar brava e conversar com a turma toda ao invés de chamar em particular o menino e a outra criança. Só que era bem difícil. Foi assim... a gente não conseguiu mudar a cabecinha da turminha, entendeu? Porque em casa o assunto é tratado totalmente diferente e comentário dos pais também quando vinha buscar os alunos era totalmente preconceituoso... Aqueles comentários “Ah! Eu não tenho preconceito, mas não deixa meu filho ficar perto dele”. P2: Se eu for parar para pensar, eu já elogiei muito caderno, “nossa olha o caderno de fulano e ciclano” independente do sexo, olha a organização, olha a letra. Mas com pai sim, principalmente em época de festa junina, época de dança, muito pais dizem “Eu não quero”. Eu gosto muito de trabalhar com teatro. Pesquisadora: Ah é? Que legal! P2: Na escola que eu trabalhava no ano passado, tinha um projeto de uma peça de teatro e ali eu deixei livres os personagens. Porque, assim, a gente ia usar as máscaras, as roupas, então: “Quem vai ser esse? Quem quer ser esse?” E veio, a escolha de um aluno e a mãe veio conversar no final do dia que não queria. Pesquisadora: Ele quis ser... P2: Ele ia fazer um papel feminino e a mãe não permitiu. Ele era, assim, muito desenvolto. Eu me lembro da gargalhada da madrasta, e ele fazia o papel da maldade, da forma dela agir. E a classe não demonstrou nada quando ele falou que queria fazer esse papel, foi hiper normal. Eles estavam entendendo que era personagem, eu trabalhei assim, falei: “Vamos lá!”. Aí veio a mãe e barrou. Pesquisadora: E não teve acordo?  Professora efetiva da Unidade Escola responsável pelas disciplinas de Arte, Música e Recreação. Circulam em todas as salas de aula nos momentos destinados ao planejamento do (a) docente previstos na Lei Federal, 11.738/08 que prevê 1/3 da jornada para desenvolvimento de atividades. 66 P2: Não teve acordo. Porque ia ser aberto e os pais iam assistir e ela se sentiu incomodada. E hoje também na minha sala, hoje eu tenho um aluno que ele adora dançar, a gente já fez essa questão de pesquisa. Ele adora dançar, ele queria ser bailarino e o pai colocou na aula de judô, ele veio contar, se podia ser [bailarino], que ele já pesquisou. Então, eu estou conversando bastante com esse meu aluno esse ano. Pesquisadora: O que conversam? P2: Eu procuro não passar para ele a ideia de que ele tem que bater de frente com o pai. Então eu falo assim: “Você já mostrou isso que você pesquisou?”, “Ai que bonito! Olha que lindo a história do menino que vai para fora do país, que vai estudar. Conversa com o pai, você viu ele vai ter, a família vai, a dança, a expressão”. Assim, nessa fala, dessa forma, para ele não chegar e não querer impor, mas eu percebo que é muito rígida a questão. Tanto é que quando ele queria fazer aula de dança, e era sapateado, o pai colocou no judô, pra fazer, vai fazer o karatê ou judô e não deixou. E aqui na escola ele dança, ele gosta, sabe? Ele teve uma Festa Junina, o professor fez uma dança que misturava ali dança menino e menina juntos, ele [professor] foi até a gente e falou: “Olha como ele gosta”. Ele tem jeito para dança, mas a família não aceita. Pesquisadora: E aqui entre os alunos, gera algum incômodo, algum desconforto? P2: Não. Porque desde o início do ano eu trabalhei bem essa questão, a questão do respeito com eles. Sou muito criteriosa nesse ponto, não admito apelido, é sempre pelo nome que vai chamar. E acho que por isso não teve. E mesmo os alunos vendo ele dançando, o único comentário é “Nossa professora, fulano gosta de dançar, né? Você viu? Ele faz os passos”. Mas não teve nada depreciativo. Esses relatos evidenciam que, nas situações em tela, as professoras P2 e P7 lidaram com as diferenças driblando adversidades, não expondo seus alunos, mas sem se confrontarem com as decisões das famílias. Trata-se, portanto, de tarefa transdisciplinar, pela qual todos os educadores e educadoras são responsáveis. Cada área do conhecimento pode e tem a contribuir para que as realidades de discriminação sejam desveladas, seja recuperando os processos históricos, seja analisando estatísticas, seja numa leitura crítica da literatura ou na inclusão de autores de grupos discriminados ou que abordem o tema. Seja, ainda, na análise das ciências biológicas e naturalização das desigualdades. Espera-se, portanto, que uma prática educativa de enfrentamento das desigualdades e valorização da diversidade vá além, seja capaz de promover diálogos, a convivência e o engajamento na promoção da igualdade. Não se trata, simplesmente, de desenvolver metodologias para trabalhar a diversidade e tampouco com “os diversos”. É, antes de tudo, rever as relações que se dão no ambiente escolar na perspectiva do respeito à diversidade e de construção da igualdade, contribuindo para a superação das assimetrias nas relações entre homens e mulheres, entre negros/as e brancos/as, entre brancos/as e indígenas entre homossexuais e 67 heterossexuais e para a qualidade da educação para todos e todas (BRASIL, 2009, p. 34). No relato de P2, o garoto enfrenta a proibição do pai para fazer balé. Reconhecemos que as concepções desse pai estão submetidas ao contexto de sua formação em que os papéis de gênero são bem definidos e distintos de acordo com o sexo. Ao se discutir a respeito de gênero, enfoca-se muito a inferioridade feminina, contudo Nessa socialização diferenciada, o menino está sofrendo o processo em outra direção, com o bloqueamento da sensibilidade e da ternura, o que vai se refletir gradativamente numa série de couraças ao longo do corpo do pequeno ator – rígido em sua expressão corporal, enquanto as meninas dançam... (WHITAKER, 1995, p. 39). Os dados coletados evidenciam a forma indiscriminada com que são tratados os conceitos de gênero e sexualidade, a preocupação na manutenção dos estereótipos presentes na sociedade e a invisibilidade dos preconceitos e discriminações, o que se reflete nas cobranças e nas expectativas destinadas às crianças. Os últimos relatos demonstram algumas possibilidades no trato com as questões de gênero na escola, visto que as docentes comportam-se de uma maneira considerada por nós como assertiva e não discriminatória. Como bem salienta Louro (1997) não há “receitas adequadas” para uma ação educativa não sexista diante da multiplicidade das diversidades sociais. Se existe algo que pode ser comum a essas iniciativas talvez seja a atitude de observação e de questionamento – tanto para com os indícios das desigualdades como para com as desestabilizações que eventualmente estão ocorrendo. Esse "afinamento" da sensibilidade (para observar e questionar) talvez seja a conquista fundamental para a qual cada um/uma e todos/as precisaríamos nos voltar. Sensibilidade que supõe informação, conhecimento e também desejo e disposição política. As desigualdades só poderão ser percebidas – e desestabilizadas e subvertidas – na medida em que estivermos atentas/os para suas formas de produção e reprodução. Isso implica operar com base nas próprias experiências pessoais e coletivas, mas também, necessariamente, operar com apoio nas análises e construções teóricas que estão sendo realizadas (p. 120-121). De acordo com o que apresentamos até agora, reafirmamos a necessária consciência do direito à diferença, visto que somos seres humanos 70 2 Raça - etnia Consideramos válido pontuar que embora muitas vezes confundidos, vemos raça e etnia como conceitos diferentes o primeiro “engloba características fenotípicas, como a cor da pele” enquanto que “etnia também compreende fatores culturais, como a nacionalidade, afiliação tribal, religião, língua e as tradições de um determinado grupo” (SANTOS et. al., 2010, p. 121). O termo raça tem uma variedade de definições geralmente utilizadas para descrever um grupo de pessoas que compartilham certas características morfológicas. A maioria dos autores tem conhecimento de que raça é um termo não científico que somente pode ter significado biológico quando o ser se apresenta homogêneo, estritamente puro; como em algumas espécies de animais domésticos. Essas condições, no entanto, nunca são encontradas em seres humanos. O genoma humano é composto de 25 mil genes. As diferenças mais aparentes (cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz) são determinadas por um grupo insignificante de genes. As diferenças entre um negro africano e um branco nórdico compreendem apenas 0,005% do genoma humano. Há um amplo consenso entre antropólogos e geneticistas humanos de que, do ponto de vista biológico, raças humanas não existem (SANTOS et. al., 2010, p. 122). Raça tem sido relacionada ao âmbito biológico, refere-se aos seres humanos e foi utilizada “historicamente para identificar categorias socialmente definidas" (p. 124). As diferenças humanas mais comuns são referentes “à cor da pele, tipo de cabelo, conformação facial e cranial, ancestralidade e genética”, sendo, portanto, a cor da pele apenas uma das características que compõem uma raça. A cor da pele não determina sequer a ancestralidade. Isso é especialmente verídico nas populações brasileiras, pelo seu alto grau de miscigenação. Estudo sobre a genética da população brasileira revelou que 27% dos negros de uma pequena cidade mineira apresentavam uma ancestralidade genética predominantemente não africana. Enquanto isso, 87% dos brancos brasileiros apresentam pelo menos 10% de ancestralidade africana (p. 123). Então, utilizamos raça e etnia juntos por entendermos que “enquanto raça está objetivamente baseada na comunidade de origem, etnia baseia-se na crença subjetiva na comunidade de origem” (BARROS et al., 2012, p. 20). 71 Acreditamos que o conceito de etnia seja mais amplo do que raça e que grupos étnicos podem compreender grupos raciais. Assim, raça só poderia ser “corretamente utilizado em referência à ideia que fundamenta o racismo e não como uma categoria útil à classificação dos distintos grupos humanos” (p. 23). Na presente pesquisa focamos as desigualdades que provêm das diferenças e detivemos nosso olhar nas crianças negras, pelas recorrentes denúncias de racismo, preconceito e discriminação que os indivíduos de tez escura carregam. Pensamos que um dos motivos da invisibilidade do preconceito esteja na crença de que no Brasil não há discriminação racial. A esse respeito, Gilberto Freyre valia-se da expressão “democracia étnica”, procurando denotar a existência de um tipo específico de relação entre brancos e negros no Brasil (...) tal democracia expressar-se-ia, de acordo com Freyre (1989) na mobilidade existente entre as pessoas de diferentes cores e origens sociais (AGUIAR, PIOTTO e CORREA, 2015, p. 376). Daí originou-se a expressão democracia racial, ainda presente no imaginário social nacional. Florestan Fernandes critica este termo, pois considera que após a abolição da escravidão, nenhuma instituição ficou incumbida de preparar os libertos para o novo regime de organização de vida e de trabalho o que acabou por imprimir “à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel. Ela se converteu, como asseverava Rui Barbosa dez anos depois, numa “ironia atroz” (FERNANDES, 2008, p. 29). Assim se configura o que ele denomina de mito da democracia racial. Tal mito não possuía sentido na sociedade escravocrata e senhorial. A própria legitimação da ordem social, que aquela sociedade propunha, repelia a ideia de uma “democracia racial”. Que igualdade poderia haver entre o “senhor”, o “escravo” e o “liberto”? A ordenação das relações sociais exigia, mesmo a manifestação aberta, regular e irresistível do preconceito e da discriminação raciais – ou para legitimar a ordem estabelecida, ou para preservar as distâncias sociais em que ela se assentava (AGUIAR, PIOTTO e CORREA 2015, p. 309-310). Outro legado do escravismo está no fato de que após a abolição da escravidão brasileira, “os negros ocuparam posições subalternas, quando 72 comparadas àquelas ocupadas pelos imigrantes, e se concentraram em regiões do país menos dinâmicas economicamente, como o Norte e Nordeste” (p. 377). A suposta democracia racial esconde o preconceito na sociedade brasileira e cria situações paradoxais, como o orgulho nacional em exaltar a pluralidade racial e as produções culturais e intelectuais, serem guiadas por valores euro-ocidentais. “Ao mesmo tempo em que nossa miscigenação e pluralidade étnica se transformam em magníficas metáforas e alegorias literárias, negros, índios e mestiços vivem a mais brutal discriminação em todos os lugares em que vivem (...)” (GONÇALVES e SILVA, 2000, p. 74). No tocante à sala de aula, a crença na democracia racial justifica a dificuldade que as pessoas têm de reconhecer e identificar atitudes discriminatórias até mesmo para poder lidar com elas. Convivemos com reflexos da representação negra herdada de uma educação escravista em que as crianças foram educadas para submissão ao pensamento europeu, ao senhor branco. Há muitas “representações de negros, feitas por não negros, por meio de fotografias, desenhos e de outras formas, que expõem submissão, negação da própria existência, assimilação” (SILVA, P., 2015, p. 163). Um dos principais mecanismos de opressão de determinado grupo é a ausência ou reconhecimento indevido de sua história, visto que o processo de formação da identidade é dialógico; ou seja, a identidade é formada por meio da interação com outros grupos sociais. Nesse sentido, o indivíduo ou o grupo poderá sofrer verdadeiro dano se as representações associadas a ele forem depreciativas. A ausência ou o reconhecimento indevido pode se transformar na principal estratégia para exclusão desses grupos. No caso brasileiro, a ausência pode se manifestar no desconhecimento da história de resistência de negros e indígenas contra a opressão resultante do processo de colonização (TAYLOR apud AGUIAR, PIOTTO e CORREA, 2015, p. 384). Na visão de Glória Ladson- Billings (in: GANDIN et al., 2002), os poucos estudos com a temática racial legitimam a relevância da teoria racial crítica que foca na recuperação da história e da memória, questionando os fatos tidos como empíricos. No livro Os guardiões de sonhos: o ensino bem sucedido de crianças afro-americanas, Ladson-Billings (2008) apresenta exemplos de eficazes situações de ensino em escolas de baixa renda e com predominância de afro-americanos, a 75 Neste último relato, fica evidente a negação do garoto a respeito da sua cor negra. Educar é um processo que está presente na vida inteira das pessoas e por meio do convívio com outras pessoas é que se constitui a cidadania. Para as pessoas negras, imersas em uma sociedade que considera o branco como superior, a formação da consciência racial fortalece-se “no engajamento em iniciativas do combate ao racismo” (SILVA, P., 2015, p. 164), tendo a família um papel de grande importância na configuração desta autoimagem positiva. De acordo com Silva, P. (2015), reconhecer e manifestar a própria negritude é uma preocupação constante (dentre outras) do Movimento Negro brasileiro. Isso exige afirmar-se como pertencente ao Mundo Africano que se constitui da vida, experiências, conhecimentos, espiritualidade, produções dos africanos do Continente e da Diáspora. É conhecendo, respeitando e adotando as raízes africanas, tendo elas em conta, que mulheres e homens negros se fortalecem para entrar em diálogo com pessoas de outras raízes étnico-raciais e, com essas, construir uma sociedade definitivamente mais democrática. (...) Para tanto, buscam, diferentes entidades do Movimento Negro, prover as famílias negras, suas crianças e jovens, de materiais, informações que os orgulhem das raízes originárias africanas, que os auxiliem a elaborar a linguagem e atitudes de libertação de estereótipos criados a respeito dos negros, linguagem que explicite emancipação, equidade, igualdade, colaboração, criatividade e também protestos consistentes quando necessários (SILVA, P., 2015, p. 166). Na mesma perspectiva de compreensão, P6 considera o uso do termo “moreno” como uma maneira de amenizar o preconceito de que o negro é alvo, o que corrobora a ideia de Itani (1998) de que Alguns subterfúgios para não se dizer aquilo que uma coisa realmente é, para evitar uma conotação de preconceito, é, em si, a própria prática do preconceito. Quando utilizamos o termo “pessoa de cor” para nos referirmos a uma pessoa de descendência africana negra, negamos a existência de negros como parte da composição de uma sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que transformamos o negro num grupo social sem identidade clara. O que é uma “pessoa de cor”? Qual a origem e a cor que se lhe atribui? Por que temos dificuldade em dizer simplesmente um negro, da mesma forma que dizemos alemão? Se nossa atitude se apoia no fato de que dizer a palavra negra ou negro pode estar contendo alguma ideia ou alguma expressão que possa representar uma ofensa, estamos praticando uma forte diferença com base no 76 preconceito. Misturam-se cor e etnia. Essa dificuldade é dissimuladora do preconceito latente e a prática do discurso esconde o conteúdo (p. 122). Essa é uma prática comum, visto que “é um árduo caminho para as famílias e seus filhos construírem sua negritude”. Assim, “ser negro, no Brasil, é uma escolha política que vai sendo construída ao longo da vida” (ITANI,1998, p. 167). Nogueira, referenciado na obra de Aguiar et. al. (2015, p. 379), diz-nos que o preconceito de marca atua na interação com outras pessoas e na autoconcepção e autoavaliação dos indivíduos que são vítimas de discriminação. Mesmo abrangendo grande variedade de cores, quanto mais escuras as tonalidades das peles e os cabelos mais encarapinhados, “maiores as chances de baixa autoestima e autoaceitação”. Isso dificulta a delimitação das cores das pessoas, observada na preferência muito presente “no senso comum pela utilização do termo ‘moreno’ ao se referir a pessoas negras”. Assim, ser branco ou não branco acaba por depender da cor do próprio espectador. “O preconceito de marca é relacional, dependendo da natureza dos contatos de suas vítimas. Além disso, ele cria a preocupação com o branqueamento, tornando-se um mecanismo de ascensão social (...)”. Acreditamos que os estabelecimentos de ensino devem/podem criar situações em que todos os seus integrantes possam ser igualmente valorizados e respeitados nas suas diferenças étnico-raciais. Um primeiro passo seria desconstruir a crença de que no Brasil vivemos uma democracia racial, descortinando e assumindo os próprios preconceitos. Trabalhar as histórias do Brasil, no plural, valorizando igualmente nossas raízes indígenas, africanas, asiáticas e europeias, também se configura como uma medida para desconstruir padrões eurocêntricos amplamente difundidos e adotados. Em contrapartida a esta negação, P1 comenta sobre a aluna que, contrariando o padrão de beleza que a mãe quer lhe impor, vai com os cabelos soltos e armados para a escola. Este fato dá um indício de que a identidade “se constrói nos caminhos de socialização ao longo de toda a vida que incluem nossas relações familiares, de vizinhança, os círculos de amizade, a escola, o trabalho e também nas relações conflituosas entre as raças (...)” (BASTOS, 2015, p. 625). Dessa forma, trabalhar a identidade dos alunos, como P2 relata, vai ao encontro da ideia defendida por Bastos (2015, p. 620) de que “a escola é um espaço 77 privilegiado no complexo devir da construção das identidades”. Concordamos que o reforço aos estereótipos e representações negativas atribuídas aos negros e negras marcará suas trajetórias escolares e pessoais. Diante disso, os sujeitos acabam por desenvolver estratégias para lidar com os preconceitos e racismos oriundos de tais estereótipos. É na escola que ocorre um dos mais marcantes confrontos de pertencimentos, e é neste território, para além da família, que as identidades de gênero e raça são também construídas. Não que esse processo de constituição de identidades tenha fim, mas a escola, com suas práticas socializadoras, aparece como especial lugar de embates entre o reconhecer-se e o ser reconhecido/a nas suas diferenças (BASTOS, p. 621). Retomando a noção de “relevância cultural” defendida por Ladson- Billings (2008), é válido pontuar que tal proposta ultrapassa a língua e inclui aspectos dos alunos e da escola, usando a cultura das crianças para preservá-la e transgredir os efeitos negativos da cultura dominante. Tais efeitos são notados, dentre outros fatores, quando o padrão de atribuições da equipe escolar tiver, por exemplo, só porteiros(as), faxineiros(as) e cozinheiros(as) negros(as). Assim, no relato de P2, percebemos o quanto é importante para os alunos terem essa representante negra no corpo docente. Vale ressaltar a pertinência de sua intervenção ao apelido pejorativo/xingamento atribuído a uma criança negra e seu consequente posicionamento a respeito, de modo que a criança ofensora reconhecesse que a professora – que detém a admiração e respeito de seus alunos e alunas – também tem a pele escura e não aceita ser inferiorizada por isso. A educação de crianças negras é responsabilidade de todos os negros. Responsabilidade essa sustentada tanto pela herança africana, lida e relida, feita e refeita no seio das famílias consanguíneas afetivas, no âmbito da comunidade negra, nos propósitos e iniciativas do Movimento Negro. Quanto mais se observa e conhece em profundidade o Mundo Africano, nas suas diversas manifestações e enraizamentos, mais se descobre e compreende nosso pertencimento étnico-racial de negros e mais firmeza sentimos para compreender e dialogar com outros universos (SILVA, P., 2015, p. 166 - 167). Certamente, este exemplo não intenciona dispensar a necessária atenção e intervenção da escola e da família no que se refere às manifestações de 80 de conhecimento e sejam considerados tão necessários quanto conceitos matemáticos e linguísticos. É essa compreensão sobre currículo e o modo como devemos construí-lo que nos leva a (re)pensar a educação das relações étnico-raciais, deslocando-a da silenciosa e efetiva reprodução da hierarquização para o empoderamento das crianças discriminadas por seu pertencimento étnico-racial. Esse tema ganha força com o surgimento, no cenário nacional, de pesquisadores e pesquisadoras preocupados em acrescentar à reflexão acerca do currículo escolar questões pertinentes à comunidade negra, sendo cada vez mais significativa essa contribuição (DIAS, 2015, p. 578). Nos excertos a seguir são descritas situações em que os estereótipos depreciativos em relação à raça negra estavam presentes. P4: Já aconteceu uma vez, em uma escola que eu trabalhei, em que um menino não queria namorar a menina que era da “cor da noite”. Ele não falava nem preto, nem marrom, era “da cor da noite”. Eu achava muito engraçado, sabe? Mas acho que era porque ele não entendia, eu não sei qual era o problema. Mas conforme ele ia crescendo, eu o conhecia, ele era sobrinho de uma amiga minha e ele mudou muito. Foi só quando ele era pequenininho mesmo, foi só isso, eu não tive muito problema não. P5: As meninas, as meninas são mais cruéis em relação a isso. Ao cabelo, que não penteou direito ou que não está bem arrumado. As meninas do cabelo enrolado já fazem progressiva, já fazem escova, para elas a visão do bonito é do cabelo liso. Por exemplo, a gente teve o PROERD e só uma só, eu tenho várias do cabelo bem enrolado, uma só veio com o cabelo bem enrolado, no dia da formatura do PROERD. As demais vieram todas com o cabelo escovado. Essa é a visão do bonito pra elas. Pesquisadora: E tem-se algum tipo de conversa sobre isso? P5: Não, não tem. Pesquisadora: Nem está previsto em aula? P5: Não, não está previsto em nada de conteúdo em relação a isso. Mas, por exemplo, eu explico que não... Teve um caso de um aluno, um menino que a mãe fez a progressiva nele pra ele poder ficar com o cabelo arrepiadinho, esse ano. Aí eu expliquei que não pode ficar fazendo, que são crianças. Que não pode pintar o cabelo... Pesquisadora: Explicou pra mãe? P5: Não, para as crianças. Pra eles, na sala. Peguei o tema e falei: “Olha, isso não é legal, tem muita química, faz mal, não pode, vocês são muito novos para isso”. Eu expliquei assim... que eu aproveitei o criadas leis e resoluções. O tema da educação ambiental é o mais antigo desse repertório, que inclui também “o combate às drogas, a educação sexual, a inclusão de pessoas com necessidades educacionais especiais na rede regular de ensino, o combate ao preconceito de gênero e, claro, o combate ao racismo”. 81 gancho ali e mandei ver, mas do tema assim, nada específico. Às vezes pode até ter alguma coisa no livro. Porque a gente mudou o livro esse ano, pode até ter, mas eu não olhei ainda nesse bimestre. P10: Em relação à cor também a gente, agora tem, pelo menos na minha sala tem bastante alunos negros, morenos, do cabelo mais, como que fala? Pesquisadora: Afro? P10: É, acho que é afro... aqueles bem cacheados, tóin-inhoi-inhoi mesmo. Então falam: “Ah! Fulano tem cabelo ruim”. Tem sim... acontece bastante. Pesquisadora: E você tem algum tipo de abordagem ou eles acabam resolvendo? P10: Não. Se acontece e eu estou presente no momento, faço a intervenção sim, eu abordo eles sempre de uma forma mais branda, mais leve. Mas eu abordo sim, não deixo passar não. Notamos que as professoras percebem os sinais da discriminação, mas parecem desconhecer o modo de lidar com elas e, possivelmente, o quão significativas poderiam ser suas intervenções. É preciso que reconheçamos os preconceitos que privilegiam as pessoas brancas pelo simples fato de serem assim, desfavorecendo outras, as negras. “É necessário que educadores se preparem e se empenhem para combater o racismo que nas escolas, não diferente de outras instituições, marca as relações entre as pessoas” (SILVA, P., 2015, p. 170). Apontamos a abordagem dessa temática na formação docente como um caminho para enfrentarmos o racismo, as desigualdades raciais presentes na realidade brasileira, promovendo a reflexão sobre os problemas historicamente enfrentados pelos negros, negras e indígenas, valorizando suas contribuições para a nação de modo a romper com as “imagens depreciativas usualmente associadas a esses povos” (AGUIAR et. al. , 2015, p. 384). “Teorias racistas norte-americanas e europeias que foram legitimadas pelo pensamento científico brasileiro durante o século XIX para justificar a escravidão e exclusão negra” (BASTOS, 2015, p. 622) atribuíram inferioridade a determinados grupos sociais postulando a existência de hierarquia das raças, estando a branca na posição mais alta e a negra mais baixa. Assim, “atribuíram-se características comportamentais e intelectuais às pessoas de acordo com seus traços fenotípicos” (p. 623) constituindo o racismo como ideologia. A escola, orientada por valores da cultura ocidental hegemônica, habitualmente postula como universais os valores dos grupos sociais dominantes, 82 reproduzindo preconceitos e validando estereótipos negativos em relação à raça negra. As discriminações aparecem especialmente nos discursos, nas profecias autorrealizadoras dos professores, nas expectativas em relação ao desempenho escolar de seus filhos/as, na ausência de referenciais negros, nas festas, no livro didático, na organização da sala de aula, na regulamentação dos corpos femininos, entre outros (...). Se a escola não oferecer o tempo e espaço em seu currículo e práticas para a desconstrução de certas ideologias que atualizam e perpetuam as desigualdades, essa mesma menina [que nega ser como a personagem negra do livro dizendo ter nascido branquinha] pode ser mais uma mulher negra a ter na sua trajetória de escolarização já uma marca de desvantagem. Se a escola não proporcionar conhecimentos que abordem a diversidade étnico-racial de nosso país, que problematizem as posições sociais historicamente construídas de cada grupo social, não oferecer elementos que positivem a imagem do ser negro e ser mulher, muitos alunos e alunas ainda serão estigmatizados e carregarão ressentimentos sobre a sua própria identidade (BASTOS, 2015, p. 626). P5 percebe que as crianças alisam os cabelos quando se arrumam, mas conversa com a turma apenas sobre os malefícios dos produtos químicos. Reiteramos a necessidade de que os docentes e discentes entrem em contato com referenciais culturais afro-brasileiros positivos e valorizem a “corporeidade como uma dimensão muito importante para a construção da igualdade étnico-racial” (DIAS, 2015, p. 592). Os cabelos negros são foco de estereótipos negativos difundidos amplamente pelos meios de comunicação. Assim, cria-se e difunde-se a ideia de um corpo feio, promíscuo, sujo, malcheiroso e portador de um cabelo ruim. Isso gera vergonha na criança negra, afeta sua autoestima (SILVA e DIAS apud CRUZ, 2015, p. 267). P7 demonstra enxergar a legitimidade do trabalho que busca problematizar “verdades”. P7: Na hora de pintar que eles: “Empresta o cor de pele?”, “Eu quero o cor de pele”. Então, eu peguei lá todas as cores que a gente considera como cor de pele do material e conversei com eles. Foi até um trabalhinho que eu peguei na internet que era bacana fazer, e a gente conversou em relação a isso. 85 Associamos essa negação da cor negra à hierarquização das raças, visto que a “cor da pele e o tipo de cabelo reproduzem os valores de uma sociedade marcada pela brancura” (AGUIAR et al., 2015, p. 379). Os padrões de beleza e higiene são usualmente associados às pessoas de tez clara e cabelos lisos, enquanto que negros e negras, com “cabelos de origem afro podem estar associados à falta de higiene e cuidado”. P3 relata que, quando percebe algum sinal de discriminação, intervém alegando que todos somos iguais. Este recorrente discurso da igualdade, observado aqui e relatado em variadas pesquisas, demonstra o desconforto docente em lidar com as diferenças individuais. Concordamos com Ladson-Billings (2008) de que tais tentativas de daltonismo marcam um racismo inconsciente. Contudo, entendemos a escola “enquanto espaço para gestar possíveis transformações” (CRUZ, 2015, p. 271) sendo necessário oferecer “reais oportunidades para profissionais e estudantes refletirem sobre esse tema no contexto da educação como direito humano”. Nessa perspectiva, Dias (2015) nos diz que Antes de julgarmos a criança branca que apresenta esse tipo de atitude ou de transferirmos a responsabilidade para sua família, devemos nos questionar quanto à contribuição efetiva das interações e experiências que estão sendo proporcionadas a essas crianças para que construam atitudes solidárias entre si, para que questionem as referências desumanizadoras presentes na sociedade que privilegia um determinado tipo físico (p. 588). Nos quatro fragmentos seguintes, conversamos a respeito da sistematização do tema étnico-racial no currículo. Pesquisadora: No currículo está previsto esse tema, das diferenças culturais? P3: Tem sim. Mesmo que não tenha, a gente sempre acaba falando. Porque sempre acaba tendo algum fato, como esse negócio de cor, do lápis, cor de pele eu falei: “Ó, mas espera um pouquinho, porque que é cor de pele?”. Eu já pergunto porque, aí eles vão falando e eu pergunto “Mas existe só esse tom de pele?”, “Nãaao! Existe mais!” E vai, você vai explicando, você vai falando... “Da onde surgiu...” Então você vai, vai catando lá da época do descobrimento do Brasil, lá atrás, explicando. P5: Faz um tempinho que não está tão previsto... tão nítido. Eu lembro que logo quando saiu o dia da consciência negra, pegaram bastante no pé da gente que tinha que pôr no currículo. Alguns livros têm. Eu não vi se esse ano tem alguma coisa falando sobre. Mas na época, eu lembro que a gente trabalhava bastante. Hoje já é mais tranquilo. Não se pega... se fala de uma maneira geral isso. 86 Pesquisadora: Não fala só nessa data? P5: É, não fica batendo nessa tecla. Como eu sempre falo desde o começo que todo mundo é igual, não tem bonito, não tem feio, então eles já sabem que não pode ficar debochando do outro por ser diferente ou não. P6: Já faz algum tempo [referindo-se a abordagem do tema em sala de aula], tanto o índio como o negro. Já faz parte, a gente trabalha os contos e essa semana que passou eu trabalhei sobre um conto africano e a gente vai trabalhando com eles, não esperando só chegar aquela data como antigamente que esperava cada momento para cada coisa. Pesquisadora: E esse tema está previsto no currículo? P10: Está. Pesquisadora: Em que momento? P10: Acho que entra na parte de Ciências da Natureza? Acho que tem uma parte de.... mas a gente ainda não chegou. Pesquisadora: Quando fala sobre escravizados, sobre o dia da Consciência Negra? P10: Sim, nessa parte também. Mas... eu acho que no livro também, mas ainda não foi trabalhado. Mas previsto para o final, agora? Pesquisadora: E em outros anos, você tem alguma metodologia específica para trabalhar, uma maneira que... já determinada que você aborda esses temas, ou não, cada ano você faz de uma forma? P10: Ah, eu trabalho dentro do que está previsto mesmo. Eu sigo o que está no livro, eu acrescento coisas referentes ao dia da consciência negra. Na parte de história eu trabalho a escravidão, a gente trabalha assim. Pelo menos eu trabalho assim. Pesquisadora: E tem algum tipo de desconforto por parte deles? P10: Não. Eu percebo que é assim, que nem, quando a gente trabalha... que agora é tudo junto ciências, história e geografia. Então quando eu trabalho e tem alguma atividade relacionada a pessoa morena, negra, quem na sala, tipo assim, você falando, abordando aquilo ali, a criança se oprime um pouco, tipo assim: “Ah... negro”, ele já assim... “É comigo”, sabe? Já tem aquela coisa, “Está falando de negro, está falando de mim”. Eu percebo sim... Pesquisadora: Que tem um constrangimento!? P10: Tem, tem um pouco, mas não da maneira que eu abordo, por estar tocando no assunto. Pesquisadora: E entre eles, você acha que tem algum tipo de preconceito racial? P10: Eu acredito que não, nessa faixa etária não. Acho que com os maiores pode ser. A Lei no 10.639/2003 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e instituiu como obrigatório no currículo das escolas o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira, complementada posteriormente com a Lei 11.645/2008 que incluiu o ensino da Cultura e História Indígena (BASTOS, 2015). 87 Sabemos que a escola desempenha papel importantíssimo ao incluir um determinado conteúdo de ensino em seus programas, pois desta forma, integra-o definitivamente à instituição, garantindo seu reconhecimento e conservação (SILVA apud SILVA, P. 2015, p. 172). Entretanto, a existência de legislação específica é importante, mas não garante o consistente debate nas escolas, sendo, por vezes, negligenciada a importância de abordarem esta temática para contribuir com a supressão das desigualdades étnico-raciais na sociedade. Reafirmamos que a “conscientização dos preconceitos raciais presentes em nosso país, por meio da formação, seja inicial ou continuada, pode ser um importante primeiro passo na construção de uma educação antirracista” (AGUIAR et al., 2015, p. 385). Notamos (por meio da entrevista toda com esta professora) que a perspectiva de educação de P5 está em cumprir o currículo formal e atender as demandas externas tradicionais, como obtenção de boas notas nas avaliações externas. Todavia, pensamos que para sermos educadores e educadoras, precisamos ter mais do que competências, pois nossa profissão incide sobre a formação de pessoas, sobre a construção da cidadania delas. Precisamos, então, valorizar e criar condições para que estudantes negros e negras “fortaleçam sua negritude e os demais reconheçam e respeitem as contribuições, para a nação brasileira, dos africanos e seus descendentes (...)” (SILVA, P., p. 175). Deparamo-nos outra vez com a justificativa da igualdade e consideramos pertinente a seguinte citação para demonstrar como encaramos essa afirmativa. A ideia de justiça como semelhança só faz sentido quando todos os alunos são exatamente iguais. Mas mesmo dentro do núcleo familiar, crianças nascidas dos mesmos pais não são exatamente iguais. Crianças diferentes têm necessidades diferentes, e voltar-se para essas necessidades diferentes é o melhor caminho para lidar com elas de maneira justa. O mesmo é verdade na sala de aula. Se os professores fingem não ver as diferenças raciais e étnicas dos alunos, eles realmente não veem os alunos de modo algum, e sua capacidade de enfrentar as necessidades educacionais dos alunos é limitada (LADSON-BILLINGS, 2008, p. 52). Quanto ao que P10 menciona sobre as crianças negras sentirem-se oprimidas em se trabalhar o tema da raça-etnia na sala de aula, associamos aos fatores já mencionados neste trabalho: a hierarquização das raças em que o branco é tomado como padrão, o desconhecimento - dos professores e alunos - das 90 de um preconceito que temos em relação ao outro. Como o comentário não pode ser público, porque pode ser tomado como uma ofensa, o preconceito é latente na fala, seja pela palavra, seja pelo tom da voz, seja pelo cochicho, a linguagem do corpo serve como um instrumento de distinção entre os diferentes, deixando suas marcas pela expressão. (ITANI, 1998, p. 122-123) Nesta seção, pudemos visualizar o quão vivo e nocivo é o mito da democracia racial, atuando de modo perverso na sociedade que, por conseguinte, reflete na escola. A crença de que no Brasil não existe preconceito, dificulta-nos a enxergá-lo, condição imprescindível para superá-lo. Notamos que o discurso da igualdade se faz presente para exemplificar o modo com que as docentes lidam com as diferenças e entendemos que o utilizam no intuito de serem justas. Mas, como já tratado aqui em outros momentos, defendemos que as pessoas têm o direito a serem diferentes e terem suas individualidades relevadas e respeitadas. Desconsiderar as diferenças, pressupondo que todos são iguais, legitima os preconceitos, uma vez que estão enraizados no imaginário social e tomam o homem, o branco e o heterossexual como padrões normativos, e quem discrepa deles é visto como inferior. Acreditamos que o trabalho docente orientado para recuperar a memória, história, cultura e contribuição dos negros e negras na constituição do país, colaborará para uma autoimagem positiva e a consequente construção de identidades negras empoderadas. Para tanto, um caminho que apontamos é de que o currículo da formação docente - inicial e continuada - inclua esta temática, a fim de conscientizar os profissionais da importância dela na formação de cidadãos responsáveis e justos. 4.3 Religião Tratando da categoria religião, iniciamos retomando a colonização portuguesa e sua tentativa de apagar o passado dos indígenas, propondo outra forma de compreensão de mundo ligada a hábitos, costumes e “entendimentos cristãos que fundam uma nação e passam a ser incorporados e apropriados pela população brasileira como uma ‘segunda pele’” (VALENTE, 2015, p. 14). 91 O catolicismo deixou de ser a religião oficial do país após a Proclamação da República, em 1889, porém a formação cristã ainda existe e está presente nos aspectos materiais, por meio de monumentos cristãos que representam o Brasil, como o Cristo Redentor na cidade do Rio de Janeiro e igrejas que contam a história do país; e imateriais, presentes nos feriados nacionais, datas comemorativas, linguagens e gestos. A religião católica faz-se presente também em nomes de escolas, crucifixos, imagens de santos, mensagens bíblicas, orações no início das aulas, de reuniões e da merenda. A Constituição Federal Brasileira de 1988 assegura a laicidade do Estado e sobre isso Cunha (2013) explica que O Estado laico é aquele que tem sua legitimidade radicada na soberania popular. Ele não só dispensa a legitimidade conferida pelas instituições religiosas como é imparcial em matéria de religião. O Estado laico respeita todas as crenças, religiosas e antirreligiosas, desde que não atentem contra a ordem pública. Ele não apoia nem dificulta a difusão das ideias religiosas nem das ideias que consideram a religião fruto da alienação individual e/ou social. Respeita, igualmente, os direitos individuais de liberdade de consciência e de crença, de expressão e de culto. Conceito correlato, que os anglo-saxões e os weberianos literais insistem em subsumir àquele, é o de secularização. Laico concerne ao Estado, ao passo que secular concerne à cultura. Distinguir ambos os processos é da maior relevância teórica e prática. Senão, como entender que Estados laicos existem em sociedades de intensas práticas religiosas, e são justamente os garantidores da liberdade de crença? (p. 927). Reconhecemos a importância jurídica de garantir a laicidade do Estado, mas nos preocupamos que o entendimento deste termo possa vir a se dar no sentido da necessidade de renunciar às crenças ou descrenças religiosas para estar na escola, o que não faria sentido, uma vez que a religião é constituinte da identidade das pessoas. Acreditamos que não nos despimos de quem somos para entrar na instituição escolar, entramos inteiros, com nossa orientação sexual,  Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II – recusar fé aos documentos públicos; III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. 92 convicções políticas e pedagógicas, cultura, cor, gênero e tudo o que nos identifica (BARCELLOS e ANDRADE, s/d). Vale ressaltar que, mesmo tendo esta liberdade garantida na Constituição, “os adeptos das religiões afro-brasileiras e de religiões minoritárias, os agnósticos e os ateus parecem aos professores e alunos filiados aos credos dominantes como seres exóticos” (CUNHA, 2013, p. 936) e, com frequência, alvo de estigmas violentos e chacotas. Cavaliere (2006) afirma que é frequente associar a religião à formação do homem, o que se lê no artigo 33 da Lei 9.394/1996. Isso induz a pensar que “os educandos sem religião são carentes de algo. Assim, as mazelas sociais poderiam estar relacionadas a essa ausência” (p. 7). Para a autora, A incapacidade do Estado e da instituição escolar moderna em realizar eficazmente suas tarefas de socialização das massas populares que a ela acorrem tem gerado, inclusive entre os profissionais da educação, um sentimento de capitulação e de aceitação de uma solução que vem de fora (CAVALIERE, 2006, p. 11). Cunha (2013, p. 937) completa o raciocínio dizendo que na prática, “as aulas de religião são justificadas pelos professores como uma ferramenta a mais na luta pelo fortalecimento do controle dos alunos e pela consequente preservação de sua autoridade”. Muitos estudos e pesquisas debruçam-se a respeito do ensino religioso como disciplina formal. Este trabalho buscou analisar de que modo a religião entra na escola independentemente de estar regulamentada no currículo. Peresson (apud SPRESSOLA, 2015, p. 37) diz-nos que a religião é em uma cultura “um sistema de símbolos e significados que dá às pessoas orientações  Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (Redação dada pela Lei nº 9.475, de 22.7.1997) § 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. (Incluído pela Lei nº 9.475, de 22.7.1997) § 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. (Incluído pela Lei nº 9.475, de 22.7.1997) 95 exemplo, os evangélicos crescem nos “bairros de imigrantes”, principalmente entre os latinos e árabes, no primeiro caso, e entre os portugueses e árabes, no segundo (CUNHA, 2008, p. 25). Mariano (2004, p. 121) nos diz que a expansão pentecostal ocorre há meio século tendo um avanço expressivo também “pelos campos midiático, político partidário, assistencial, editorial e de produtos religiosos”, mas sinaliza que seus fiéis não se restringem aos estratos pobres da população, havendo adeptos também nas classes médias “incluindo empresários, profissionais liberais, atletas e artistas”. Mesmo não sendo objeto do presente estudo, diante das falas das professoras consideramos importante pontuar que o Brasil está deixando de ser Católico Apostólico Romano e “mantendo-se as atuais tendências, deve passar por uma mudança de hegemonia religiosa nos próximos 20 a 30 anos (...). O Brasil vai se tornar exemplo de um fenômeno raro, que é a mudança na composição religiosa da população” (ALVES et al., 2012, p. 147). O fato de a professora P1 achar curioso um evangélico discriminar um católico demonstra ainda a hegemonia do catolicismo, mesmo com indícios da alteração religiosa no país. Talvez, se o comentário da criança fosse no movimento oposto, de um católico para um evangélico, não teria sido motivo de atenção ou estranhamento uma vez que “o catolicismo se tornou o referencial simbólico balizador das demais crenças religiosas, perante a qual as outras manifestações religiosas representam apenas o desvio” (CECCHETTI, 2012, p. 8). P5 diz não se identificar com a religião evangélica, pois considera que ela manipula as pessoas. Essa ideia corrobora a constatação de Cunha, citada anteriormente, de que os mais vulneráveis econômica e socialmente são a maioria dos fiéis desta religião. A professora ressalta o fato de não discriminar os adeptos desta religião, mas julgamos pertinentes as palavras de Teixeira (2012) sobre a diversidade religiosa não ser uma novidade. O novo é “a consciência mais viva dessa pluralidade, de sua presença recorrente no campo da observação, na dinâmica da urbanização mundial, nos modernos meios de comunicação e na facilidade de acesso ao seu patrimônio diversificado” (p. 183). Mesmo não sendo o caso da professora em questão, aproveitamo-nos deste raciocínio para destacar que essa pluralidade pode trazer “instabilidade, inquietudes e tensões, pois instaura um desequilíbrio no mundo objetivamente construído e conversado”, desestabilizando as identidades. 96 O impacto da diferença de crenças, acirrado pela globalização, suscita em situações concretas a preocupação, a suspeita, a repugnância e a altercação. Há uma violência potencial que circunda o campo das religiões. Se em alguns casos a resistência cognitiva ao pluralismo e à globalização pode se dar mediante um isolacionismo, em outros a reação pode ser diversa, suscitando um perigoso ciclo vicioso de animosidade, rancor e violência (TEIXEIRA, 2012, p. 188 - 189). P1 comenta sobre não ter adeptos de religiões não cristãs nas salas de aula o que nos traz a reflexão de que A religião/religiosidade apresenta-se na escola, na voz e no silêncio das crianças, na presença e na ausência de sua discussão. Sob o manto do discurso da tolerância, muitas vezes as diferenças são silenciadas, apagadas, invizibilizadas e prevalecem as posições hegemônicas (SPRESSOLA, 2015, p. 137). P6 relata que orienta os alunos e alunas em se informarem sobre a “feitiçaria” e “macumba”, antes de julgá-las. Tal atitude condiz com a perspectiva de buscar o entendimento entre culturas e religiões. Trata-se do desafio de acolher a “dignidade da diferença”. A pluralidade de opções religiosas e espirituais não deve ser vista como um mal, ou simplesmente um dado conjuntural, fadado a encontrar o seu acabamento ou remate numa pretensa ordem unitária. Há que resistir a essa “obsessão pela unidade” e saber celebrar com alegria a musicalidade de uma sinfonia que é sempre adiada (TEIXEIRA, 2012, p. 185). Ainda sobre as práticas religiosas afro-brasileiras, como estão associadas a negros e negras, grupo excluído e estigmatizado historicamente, esta religião sofre um consequente estranhamento das pessoas por esses cultos serem considerados contrários ao “normal e natural” cristianismo europeu. As religiões afro-brasileiras, no entanto, ainda enfrentam um profundo preconceito por parte de amplos setores da sociedade: há quem considere o candomblé como uma “dança folclórica”, negando, como consequência, seu conteúdo religioso; há também quem o caracteriza como uma “prática atrasada”. Em ambos os casos, seu caráter religioso é negado e não é tomado em pé de igualdade com outras práticas e crenças. Ora, tanto o candomblé quanto a umbanda são religiões extremamente complexas, são práticas rituais sofisticadas e fazem parte de um sistema mítico que – da mesma 97 forma que a Bíblia – explica a origem da humanidade, suas relações com o mundo natural e com o mundo sobrenatural. Os grupos que compõem as religiões afro-brasileiras possuem o conhecimento de um código – que se expressa por intermédio da religião – desconhecido por outros setores da população. Enquanto códigos e expressões culturais de determinados grupos, as diferentes religiões afro-brasileiras devem ser olhadas com respeito (BRASIL, 2009, p. 26). Os relatos a seguir demonstram, de modos ora distintos, ora muito parecidos, que não há orientações da escola e nem para a escola sobre possibilidades de abordagem da religião e religiosidade neste espaço. P2: Então a gente conversa. Então, eu trabalho a questão de como é importante a gente ter uma religião, a gente acreditar em Deus. (...) P2: Aquela mensagem [que tem o hábito de fazer diariamente] sempre vai na questão do próximo, do respeito ao próximo, do amor ao próximo, do cuidar daquilo que Deus me deu, ou no amor à família. Então quando a gente trabalha esse amor, esse amor a Deus, amor ao próximo, isso é universal pra todas as religiões. P3: (...) tem várias religiões, mas que o Deus, falo assim: ‘O Deusinho é um só. É único pra todos, só tem um para atender todo mundo. (...) P3: É muuuita coisinha que você tem que ir conversando... É uma coisa bem delicada esse negócio de religião, não é? E tem coisa que você vai falar e a criança já entende errado, já fala que é coisa do demônio, do capeta. P5: Eu prefiro não ficar fazendo oração. Eu acho que também... não sei... escola... Eu não tenho esse costume. Nem ler parte da Bíblia, essas coisas assim. (...) P5: Já aconteceu uma vez de eu estar dando aula e um menino, um trem [em sentido de indisciplinado], mas loirinho, dos olhos azuis, branquinho... ele veio com cinismo pra cima de mim “O que que eu estou fazendo? ”, falei: “Você não está fazendo nada, você é um anjo! ” A mãe no outro dia foi na direção como se eu tivesse xingado ele. Então, para ela, anjo era um xingamento, mas eu jamais ia pensar nisso. Tudo bem que eu não falei elogiando ele, mas para ela aquilo foi o cúmulo, mas por quê? Por causa da religião deles. P7: [comenta acerca de uma situação em que um aluno veio chateado porque um colega disse que a música que ele cantava era “do diabo”]: A música não estava falando nada, assim, que era para o diabo. Mas é uma coisa que eles escutam em casa e eles trazem. P9: Eu tenho como costume meu fazer uma meditação com os alunos e oração, antes de começar a aula, isso sempre foi o meu costume.
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