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Filosofia do Sujeito e Direitos Humanos: A Reflexão de Ernst Bloch, Provas de Direito

Teoria SocialDireitos HumanosFilosofia Política

Uma análise da filosofia do sujeito e dos direitos humanos através da obra de ernst bloch. O autor discute a relação entre a filosofia de hegel e marx, a crítica de bloch à teoria do direito natural e a importância dos movimentos sociais atuais para a questão dos direitos humanos.

O que você vai aprender

  • Qual é a relação entre a filosofia de Hegel e Marx sobre o sujeito e os direitos humanos?
  • Como Ernst Bloch definiu a dignidade humana?
  • Como Bloch criticou a teoria do direito natural?
  • Quais são as importâncias dos movimentos sociais atuais para a questão dos direitos humanos?
  • Qual é a importância da emancipação econômica para a questão dos direitos humanos?

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Nazario185
Nazario185 🇧🇷

4.7

(65)

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Baixe Filosofia do Sujeito e Direitos Humanos: A Reflexão de Ernst Bloch e outras Provas em PDF para Direito, somente na Docsity! Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 1 Utopia e Distopia em Nossos Tempos Utopia and Distopia in Our Times Seyla BenhaBiB1 Resumo Este capítulo foi entregue como meu discurso de aceitação do Prê- mio Ernst Bloch no Ernst Bloch Zentrum em Ludwigshafen, Ale- manha, em 25 de setembro de 2009. O discurso foi publicado em alemão como “Zur Utopie und Anti-Utopie in unseren Zeiten. Rede anlasslich der Verleihung des Ernst-Bloch Preises 2009”, in Bloch-Al- manach 28/2009, ed. Klaus Kufeld (Talheimer: Mosseingen-Talheim, 2009), pp. 11-27. Palavras-chave: Utopia; Distopia; Direitos Naturais Abstract The text was delivered as Ernst Bloch Prize winner speech in the Ernst Bloch Zentrum in Ludwigshafen, Germany, on September 25, 2009. Translated from the English version, published as Chapter 10 of the book Dignity in adversity: human rights in troubled times (Cambridge: Polity, 2011). Keywords: Utopia; Distopia; Natural Rights 1 Seyla Benhabib é professora da Cátedra Eugene Meyer de Ciência Política e Filosofia na Yale University e foi diretora do Programa em Ética, Política e Economia (2002-2008) da mesma universidade. seyla.benhabib@yale.edu. 2 Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 Direitos Naturais e Utopias Sociais Receber um prêmio com o nome de um grande pensador obriga aquele que o recebe a buscar suas influências e afinidades com esse notável intelectual. No meu caso, isso não foi difícil: meu primeiro livro, Critique, Norm and Utopia: A Study of the Foundations of Critical Theory (Crítica, Norma e Utopia: Um estudo dos fundamentos da Te- oria Crítica), publicado em inglês em 1986 e traduzido para o alemão em 1992 (Fischer Verlag), acabava com estas palavras de Ernst Bloch: É tão urgente suo modo levantar o problema de uma herança do direito natural clássico quanto era falar da herança das utopias sociais. As utopias sociais e o direito natural tinham preo- cupações mutuamente complementares dentro do mesmo espaço humano; eles marcharam em separado, mas, infelizmente, não atacaram juntos... O pensamento social utópico dirigiu seus esforços para a felicidade humana, o direito natural se voltou para a dignidade humana. Utopias sociais retratavam relações nas quais o trabalho pesado e a sobrecarga teriam fim, o direito natural construia relações nas quais a degradação e os insultos teriam fim2. O que me pareceu especialmente importante nessa introspecção foi a insistência no conceito de utopia, apesar do embotamento da “filosofia do sujeito”. Deixe-me explicar. O marxismo clássico pressupunha o modelo de uma humanidade demiúrgica, externalizando-se por meio de sua própria atividade na história, mas também enfrentando suas próprias capacidades externalizadas como “capital”, como a soma total das forças alienadas que vieram a oprimir as pessoas. Emancipa- ção significaria então a reapropriação desse potencial alienado pelos próprios indivíduos. Com essa afirmação, a crítica de Marx a Hegel iniciou a transição do sujeito da reflexão para o sujeito da produção. As características essenciais da nossa humanidade deixariam de ser definidas como aquelas de um animal rationale, mas como as de um animal laborans. O ato que nos elevou acima da natureza não foi 2 Ver Bloch (1986). Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 5 de novos atores emancipatórias em sociedades capitalistas avançadas, como também, na práxis histórica dos movimentos marxistas, ela le- vou a uma política da singularidade coletiva6. Por isso, entendo uma modalidade política, onde um grupo ou organização age em nome do todo. É evidente que essa usurpação da universalidade por um único grupo – que ora dizem ser representado pelo Partido, ora pelo Comitê Executivo, em outro momento pelo Líder, e assim por diante – só pode levar a uma política repressiva e anti-democrática. Distanciando-se do marxismo ortodoxo e da política stalinista, marxistas críticos não revisaram radicalmente as reivindicações à “universalidade” do pro- letariado até o final da década de 1930, quando a realidade europeia e a ascensão do fascismo não os deixou qualquer outra alternativa. Ernst Bloch também foi acusado de não ter se distanciado o suficiente do stalinismo7. Todavia, o jovem Bloch já criticava a “teoria da astúcia da razão em- prestada de Hegel” (1923:241). Marx, segundo Bloch, apesar de expor o caráter fetichista do processo de produção, ao “exorcizar” da história todos os sonhos, toda a utopia ativa e todas as metas finais de inspiração religiosa, veio a confirmar essa mesma “astúcia da razão”. Marx, “com suas ‘forças produtivas’, com o cálculo do ‘processo de produção’”, acaba defendendo, observa com muita argúcia Bloch, “o mesmo jogo demasiadamente constitutivo, o mesmo panteísmo, misticismo (...) o mesmo poder condutor que Hegel reservou à ‘Ideia’”(ibidem:241). É um claro repúdio à filosofia do sujeito. Também em outras passagens, apesar de seu endosso um tanto ingênuo à doutrina marxista-leninista do “desaparecimento do Estado” (ibidem:241), o Bloch do Spirit of Utopia já evocava “uma sociedade comunitária” (ibidem: 246), elogiando Marx por ter “purificado o planejamento socialista (...) do mero jacobinismo” (ibidem:236), e por ter “restaurado o espírito de Kant e de Baader” (ibidem). 6 Para uma boa perspectiva geral dos conflitos em torno desse tipo de políti- ca dentro da tradição marxista, ver Howard e Klare (1972). 7 Ver o tratamento polêmico e desdenhoso de Mark Lilla (2007), descre- vendo Bloch como um “teólogo sem deus”. 6 Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 Desse modo, o jovem Bloch tem, em muitos aspectos, mais em comum com as tradições anarquista e cooperativista dos primeiros socialistas utópicos que com as intenções marxistas-leninistas de tomada do Es- tado por meio da ditadura do proletariado. A conhecida seção sobre “A ideia socialista” termina com a seguinte visão apocalíptica: “É como Baal Shem diz: o Messias só poderá vir quando todos os con- vidados estiverem sentados à mesa; essa mesa é antes de tudo a mesa do trabalho, para além do trabalho, mas, ao mesmo tempo, é a mesa do Senhor”, e conclui esse trecho com outro totalmente ambivalente em seu significado: “no Reino da Filadélfia a organização da terra encontra sua metafísica fundamentalmente coordenativa” (ibidem: 246). Ao que Bloch poderia estar se referindo? Teria ele em mente a “cidade do amor fraternal” dos Quakers ou a assinatura da Declaração de Independência dos Estados Unidos em 1776? Não sabemos. Prova- velmente, ambas. Trata-se de algo bem-vindo ou algo a ser rejeitado? Em contraste com o messianismo apocalíptico do Spirit of Utopia, que às vezes endossa e às vezes se afasta da filosofia do sujeito, o trabalho posterior de Bloch, Natural Law and Human Dignity (Direito Natural e Dignidade Humana, 1961), é um acerto de contas mais sóbrio com o direito e com a doutrina dos direitos, ou com o que hoje chamaríamos de tradição do “liberalismo político”. Em um programa especial de rádio de 1961, com o título “Naturrecht und menschliche Würde” (“Direito Natural e Dignidade Humana”), destinado a apresentar o livro a um público maior, Bloch escreve: Na medida em que não há dignidade humana possível – do tipo essencialmente intencionado pelo direito natural – sem libertação econômica, também não poderá se suceder qualquer liber- tação econômica sem que se inclua a questão dos direitos humanos... E, portanto, não há qualquer conquista real de direitos humanos sem o fim da exploração, mas também não há qualquer fim real da exploração sem a conquista de direitos humanos. E mais adiante: Admitindo-se que a dignidade humana (que é a intenção fundamental de todas as teorias do Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 7 direito natural) não é de todo possível sem a emancipação econômica, a emancipação eco- nômica não pode acontecer, no entanto, sem o acompanhamento da concretização de direitos humanos... Não há qualquer estabelecimento real dos direitos humanos sem o fim da explo- ração, mas tampouco um verdadeiro fim da exploração econômica sem o estabelecimento de direitos humanos8. Como podemos pensar no fim da exploração e na realização dos direitos humanos? Será que não estamos sob o risco de voltar a cair no abstrakte Sollen (no dever abstrato), como formulado tão vigoro- samente na famosa crítica de Hegel a Kant9? O próprio Bloch falou de “utopia concreta”, ou “utopia reflexiva”10. As utopias sociais não se esgotam nos sonhos de engenharia social dos primeiros pensadores burgueses; ao contrário, elas visavam, o noch nicht, o ainda-não. Quando e como o “ainda-não” se manifesta? Utopia e Novos Movimentos Sociais O fim da filosofia do sujeito e a virada da “crítica da razão instrumen- tal” em direção à racionalidade comunicativa muda o significado da utopia em nossas sociedades. Por mais de duas décadas, tenho aceitado as linhas gerais dessa mudança de paradigma, que nos permite repensar a utopia em novos termos, os quais, porém, possuem notável proximi- dade, creio eu, com o pensamento de Ernst Bloch. Não podemos mais supor que há um ponto de vista privilegiado na estrutura social que outorga a seus ocupantes uma visão especial da totalidade. Tampouco podemos pressupor que as fontes utópicas do espírito objetivo secaram. Os novos movimentos sociais de nosso tempo – do movimento das mulheres nas últimas seis décadas ao movimento ecológico, do movi- mento dos sans papiers, imigrantes ilegais e refugiados aos ativistas do Fórum Social Mundial, que buscam empoderar o “Sul Global” – não 8 Ver Bloch (1985). Tradução da autora. 9 Ver o tratamento bastante instrutivo de Schiller (1985). 10 Ver Bloch (1986). 10 Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 prevalecendo sobre a sociedade civil, incumbido com as tarefas da educação, da defesa militar e da regulação da economia, visando evitar que a sociedade implodisse. Hoje, conforme avançamos em direção à formação da sociedade mundial, enfrentamos a questão de saber se deveríamos mesmo falar de “sociedade”. Podemos estar diante de uma “dessocialização da so- ciedade”. Conforme a sociedade se transforma na sociedade mundial, muitas funções de condução político-econômica e integração sócio- simbólica são entregues a outros agentes: nos Estados Unidos, em particular, vemos a crescente privatização do sistema educacional por meio de vouchers escolares e escolas charter*, bem como a privatização de prisões e até mesmo de funções militares, com o surgimento de organizações como a Blackwater, ativa na Guerra do Iraque e agora denominada por um nome de ficção científica, “Xe”. Pouco a pouco, as funções públicas do Estado-nação estão sendo transferidas a organiza- ções privadas, as quais estão minando o poder do Estado de direito ao evitar a supervisão parlamentar e jurídica. Na verdade, a transferência de funções estatais, tais como vigilância, prisão e defesa militar, para essas organizações, é uma maneira de evitar controles parlamentares e democráticos, vistos como formas politicamente nocivas de interfe- rência no julgamento dos assim chamados “quadros militares profissio- nais” e seus companheiros paramilitares. Certamente, essas tendências são mais visíveis nos EUA. Países da Europa somente têm sido capazes de resistir a algumas das investidas dessas forças globais abdicando da soberania clássica da Vestefália e, consequentemente, aumentando a capacidade estatal de condução em algumas áreas, como controle de fronteira, e perdendo-a em outras, como política econômica e fiscal. Pouco a pouco, porém, ambas as funções de condução e de integração do Estado-nação estão sendo delegadas para outras estruturas: seja em direção a estruturas subnacionais, como no caso da “terceirização”, seja em direção a estruturas supranacionais de condução econômica e militar e de integração socioeconômica, como no caso da União Europeia. A World Wide Web (Rede de Alcance Mundial) e o sistema mundial de entretenimento atual exercem uma influência mais forte sobre a imaginação da geração entre 15 e 25 anos de idade do que as escolas, pais, ou outras associações da sociedade civil. Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 11 Diante da maior crise econômica desde a Grande Depressão da década de 1930, nossos sistemas políticos, no entanto, ainda estão debatendo nos limites de velhos quadros regulatórios da economia mundial. Por um lado, estamos diante de sociedades que estão perdendo suas capa- cidades socioculturais e simbólicas de integrar um número crescente de indivíduos; por outro lado, estamos diante de uma economia mundial que abalou quase todos os países em todos os continentes, mas, em face desta crise, são repetidos apenas slogans esgotados e velhos so- bre regulação de lucros no exterior e sobre uma melhor cooperação. Recordemos Bloch mais uma vez: “Não há qualquer estabelecimento real dos direitos humanos sem o fim da exploração, mas tampouco um verdadeiro fim da exploração econômica sem o estabelecimento de direitos humanos”. Hoje, o quadro para se levantar reivindicações de justiça e para se exigir direitos socioeconômicos foi transformado. Na era da interdependência socioeconômica global, os Estados-nação não podem ser os únicos e exclusivos destinatários de reivindicações redistributivas, embora eles possuam a responsabilidade primária de atender as demandas de seus cidadãos e residentes com todos os meios ao seu alcance. No início do século XXI, a interdependência socioeconômica global é vivenciada menos como se fôssemos membros em uma “república mundial”, no sentido kantiano, e mais na forma da crueldade crescente dos “ricos” contra os “pobres”. As recentes políticas de migração e asilo da União Europeia são um exemplo em questão: as margens do Mediterrâneo estão se tornando cemitérios, repletos de corpos de africanos, chineses e povos do Oriente Médio, que fogem da pobreza em seus países para encontrar a morte nas mãos de guias e capitães traiçoeiros. Aqueles que têm a sorte de não morrer no caminho, en- frentam “campos de recolhimento” ou “campos de processamento de trânsito”, nos quais eles são deixados a um futuro indefinido antes de serem deportados para os países de onde originalmente fugiram por medo de perseguição. A distinção entre o migrante e o refugiado político, que pode ter servido bem o sistema mundo estatal como uma diretriz ao final da Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria, não é mais útil. Marginalização, discriminação econômica e perse- guição política são interdependentes. Não obstante, os movimentos 12 Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 migratórios de todo o mundo estão sendo criminalizados sem uma noção clara das forças econômicas mundiais que dão origem a eles. Há um exemplo que eu uso para explicar aos meus alunos por que as migrações ocorrem como resultado das forças de “atração-e-repulsão” na economia mundial. Os imigrantes dizem: “estamos aqui, porque vocês estavam lá”, “nós não atravessamos a fronteira, a fronteira nos atravessou”. O que isso significa? Por exemplo, por meio do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) na década de 1990, os EUA começaram a exportar milho para o mercado mexicano. Esse tipo de milho era mais resistente a doenças e pragas que tipos locais e, em pouco tempo, as exportações de milho estadunidense empurrou os agricultores mexicanos para fora do mercado. Esses agricultores, por sua vez, se tornaram migrantes pobres e desempregados, tentando atravessar o deserto para chegar aos Estados Unidos, onde, ironica- mente, eles costumam se tornar – quando têm sorte – trabalhadores imigrantes em situação irregular nos campos agrícolas da Califórnia ou trabalhadores intermitentes no Arizona e no Novo México. Qual é a resposta para essa tragédia humana? A criminalização do migrante, a militarização da fronteira e a hipocrisia das autoridades governamentais e líderes políticos, os quais têm medo de enfrentar a represália do agronegócio se combaterem seus efeitos destrutivos na economia mexicana. Situações semelhantes se repetem também den- tro da União Europeia, que protege seus próprios agricultores com subsídios lucrativos, enquanto arruína os agricultores africanos ao se recusar a abrir seus mercados domésticos. Um Legado Blochiano Que forma pode então uma utopia concreta e reflexiva assumir sob tais circunstâncias? Primeiro, precisamos expandir o legado dos di- reitos naturais de modo a incluir as lutas do movimento feminista e do movimento dos sans-papiers e dos “imigrantes ilegais”. Temos de lutar contra a criminalização do imigrante e do estrangeiro; temos que lutar pelo reconhecimento dos direitos civis e socioeconômicos dos outros e pela eliminação dos obstáculos colocados no caminho de Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 15 que parece plausível para muitos, é a de um império cada vez mais militarizado, um hegemon mundial, submetendo todos os países do mundo a crescente criminalização e vigilância; punindo os pobres, colocando-os na prisão e deixando os necessitados e os destituídos caírem através do tecido social na criminalidade, na loucura e no abuso de drogas. Os Estados Unidos chegaram muito perto de tal distopia nos oito anos do governo de George W. Bush, e essa é a razão pela qual o choque do furacão Katrina em 2005 permaneceu na psique estadunidense. Foi como se um espelho fosse apontado para os piores temores sobre as possibilidades distópicas nos Estados Unidos. Se a distopia para os Estados Unidos é a de uma comunidade políti- ca militarizada pós-democrática, para a Europa é o crescimento do egoísmo regional e o crescente conflito entre o Norte e o Sul, Leste e Oeste. Essas fissuras no tecido europeu se manifestaram com a assim chamada crise grega, em 2010. Parecia que o projeto europeu estava e continua a estar em frangalhos. O dano causado ao senso de solidariedade europeu foi intenso e não será cicatrizado tão fácil e rapidamente. A distopia europeia também se manifesta por meio do ódio com relação a estrangeiros, e em particular ao Islã; na crescente marginalização daqueles que não conseguem voltar a entrar no mer- cado de trabalho; no processo de se voltar para dentro em direção a uma forma de grande chauvinismo civilizacional, já evidente em muitos pronunciamentos do presidente francês Sarkozy; no definhamento da cultura política pela fraqueza de uma social democracia cada vez mais tediosa, que é muito temerosa para abraçar o internacionalismo ou para implementar as soluções difíceis e inovadoras que poderiam conter o capitalismo global. Possibilidades distópicas também existem para nações como China, Brasil e Índia, que estão agora enfrentando todos os tumultos da in- tegração ao mercado global. Nesses países e em muitos outros, uma elite relacionada mundialmente está isolada – na verdade, protegi- da – das massas miseráveis por guarda-costas e por uma segurança especial que guarda seus condomínios fechados. A elite brasileira voa com helicópteros de cobertura à cobertura, a fim de escapar da miséria e do perigo de dirigir ao longo de favelas. Nesse ínterim, a 16 Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 massa de trabalhadores chineses enfrenta o fechamento de fábricas, enquanto lhes é servida comida de bebê misturada com substâncias químicas; jovens rapazes e moças na Tailândia e em outros lugares se prostituem para os dispostos turistas ocidentais, e camponeses pobres lutam com secas, bem como com cheias, cada vez mais intensas por todo o Sudeste Asiático. É também obrigação do pensamento utópico concreto, ou do pensa- mento utópico reflexivo, levar em conta essas distopias. O quadro para a realização de ambos os direitos naturais e as utopias sociais exige hoje uma imaginação cosmopolita. Somente então, e talvez somente então, podemos abordar o futuro com o espírito de um experimentum mundi, nas palavras de Bloch – um experimento com e do mundo, no qual lutamos por uma ética planetária e uma esfera pública global. Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.1, n.2, ago-dez/2012 17 Referências Bibliográficas BENHABIB, Seyla. (1986), Critique, Norm and Utopia: A Study of the Foundations of Critical Theor. New York: Columbia University Press. _____. (2011), Dignity in adversity: human rights in troubled times. Cambridge: Polity. _____. (1992), “The Generalized and Concrete Other: The Kohlberg- Gilligan Controversy and Moral Theory”, in Situating the Self: Gender, Community and Postmodernism in Contemporary Ethics. New York: Routledge, pp.148-78. BLOCH, Ernst. (1986), Natural Law and Human Dignity. Cambridge, MA: MIT Press, p.xxix. BLOCH, Ernst. (1985), “Naturrecht und menschliche Würde. Run- dfunkvortrag 1961”, in Bloch-Almanach 5. Folge, Baden-Baden, hrsg. Von Ernst-Bloch-Archiv, pp. 165-79. _____. (1986), The Principle of Hope, vol. 1, Cambridge, MA: MIT Press. _____. (1923), The Spirit of Utopia. Stanford, CA: Stanford University Press, 2000, p. 240. FRASER, Nancy. (1997), Justice Interruptus: Critical Reflections on the “Postsocialist” Condition. New York: Routledge. FRASER, Nancy e HONNET, Axel. (2003), Redistribution or Recog- nition: A Political-Philosophical Exchange. London: Verso. HABERMAS, Jürgen. (1973), “Labor and Interaction: Remarks on Hegel’s Jena Philosophy of Mind,” in Theory and Practice. Boston, MA: Beacon Press, pp.142-69. HOWARD, Dick e KLARE, Karl E. (1972), The Unknown Dimension:
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